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A OUTRA FACE DOS PROCESSOS CRIATIVOS:


POÉTICAS EM TEMPOS PANDÊMICOS
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Raimundo Kleberson de Oliveira Benicio


Organizador, Capa e Diagramação

Luiz Renato Gomes Moura


Prefácio

Roger Ferreira
Revisor
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A outra face dos processos criativos [livro eletrônico]: poéticas em tempos


pandêmicos / organização Raimundo Kleberson de Oliveira Benicio. -- 1. ed. --
Juazeiro do Norte, CE : Ed. do Autor, 2021.

PDF

ISBN 978-65-00-23210-3

1. Artes 2. Artes cênicas 3. COVID-19 – Pandemia 4. Teatro brasileiro I.


Benicio, Raimundo Kleberson de Oliveira.
21 661032. CDD-700.981

Índices para catálogo sistemático:


1. Artes : Brasil 700.981
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
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Os textos e imagens contidos neste E-Book são de responsabilidade de cada autora e autor.

“ESTE PROJETO É APOIADO PELA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA


DO CRATO, ATRAVÉS DO FUNDO MUNICIPAL DE CULTURA, COM
RECURSOS PROVENIENTES DA LEI FEDERAL N.º 14.017, DE 29 DE JUNHO
DE 2020”.

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A ª Residência Artística: Encontro de Poéticas no Campo foi uma ação cultural pensada pelo antigrupo
Teatro do Irrupto, fundado em 2018. O projeto foi contemplado com o “Edital de Premiação de Fomento
à Cultura Cratense da Secretaria de Cultura do Crato em 2020” e nasceu da necessidade de pensar
possibilidades de processos criativos contemporâneos durante a pandemia do Coronavírus-19, através
de um intercâmbio entre grupos do Cariri/CE. Como pensar estratégias metodológicas levando em
consideração o distanciamento corporal? Essa pergunta norteou nossas reflexões, tanto para seguir as
restrições de higiene como investigar o processo criativo.

Realizada nos dias 13 e 14 de fevereiro de 2021, a residência contou com a participação reduzida das
integrantes dos grupos Trupe dos Pensantes e Dama Vermelha, das cidades de Crato e Juazeiro do
Norte/CE. Com isso, foram compartilhadas três vivências artísticas, a saber: PODTEATRO, com Penha
Ribeiro; Ações Inversas de Contato, proposta baseada no Método Melodramático com Hugo Matheus; e
por último, Corpo Transcendental, com Kleber Benicio.

E-mail: teatrodoirrupto@gmail.com

Portfólio: https://www.flickr.com/people/146307810@N08/

Instagram: @teatrodoirrupto_
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PREFÁCIO

A criação na arte teatral é, antes de tudo, um movimento gerado por necessidade. Criamos para
cultivar o Teatro que existe dentro de nós. Paira incessantemente na existência da/do artista uma
fome por novas experiências, por desafios, por caminhos ainda não trilhados. A atualização nos
move, coloca-nos em pleno estado de alerta, de busca por outros horizontes. Esse movimento é
principalmente impulsionado pela produção da/o outra/o, ou seja, sempre nos atualizamos pela
provocação de um espetáculo que ainda não tinha sido visto, por uma/um artista que renova
nossos saberes a partir de proposições inquietantes.
Nessa caminhada, tudo o que está em volta da/do artista entra em diálogo com a materialidade
da cena em criação, isso porque não há como dissociar a vida e suas intempéries no processo
criativo. Antes de tudo, somos seres que vivem as urgências e violências do cotidiano. Somos
absolutamente transformados pela vida.
Com a pandemia do novo coronavírus-19, a necessidade de continuar criando vem provocando
pesquisas e experiências que grafam as estratégias desse momento. O E-book A OUTRA FACE
DOS PROCESSOS CRIATIVOS: POÉTICAS EM TEMPOS PÂNDEMICOS, tem como proposta registrar
investigações empreendidas na pandemia, feitas por artistas que permaneceram na busca pela
nutrição de seus desejos poéticos.
O Teatro do Irrupto, com suas inquietações propulsoras, tem buscado contribuir para a reflexão
sobre a importância de valorizarmos nossos princípios e trajetórias. Assim, o E-book reúne
artigos que abrem caminhos para se pensar sobre nossas ações artísticas no contexto de
distanciamento social. Cada texto traz a potência do que se pode vislumbrar, mas sem perder o
estado da dúvida e o caráter provocativo, são propulsores de mais lacunas e perguntas que
podem alimentar a fome de criação de outras/os artistas.
O primeiro texto intitulado “Vivência no campo: o teatro no contexto pandêmico e a fuga do
caos”, de autoria de Jéssica Lorenna Lima Gonçalves e Hugo Matheus, integrantes da Trupe dos
Pensantes, registra as percepções da/do autora/autor sobre a 1ª Residência Artística: Encontro
de Poéticas no Campo, realizada pelo Teatro Irrupto, base prática para as provocações deste e-
book. No referido artigo somos convocadas/os a pensar inicialmente sobre nossa mãe Terra, o
que temos feito por ela e como a pandemia tem afetado nossas relações com o mundo. Em
seguida, temos acesso às experiências da residência por meio de um relato das ações realizadas
no período de dois dias. O que se evidencia na escrita é o fortalecimento do compartilhamento
de poéticas entre artistas como meio essencial para a continuidade de pesquisas no contexto da
pandemia.
No segundo artigo, escrito pelas artistas Cícera de Penha Mendes Ribeiro e Larissy Maria
Rodrigues Simião, ambas pertencentes ao Coletivo Dama Vermelha, somos levadas/os a pensar
sobre a interação entre a arte do Teatro e o podcast. Inspirado na radionovela e no drama
radiofônico, o Coletivo vem criando interações “cênico-auditivas” por meio do projeto
“Dramaflix: plataforma digital de Podteatro”, que se configura como estratégia para
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experimentações teatrais no modo virtual. As autoras apresentam princípios que norteiam a


produção nessa modalidade e compartilham suas experiências na vivência realizada na
residência.
O terceiro artigo, intitulado “A poética do antigrupo Teatro do Irrupto”, escrito por Raimundo
Kleberson de Oliveira Benicio, tem uma importância significativa para o registro historiográfico
do Teatro do Irrupto, assim como apresenta suas bases conceituais para as pesquisas artísticas
que vem desenvolvendo. Com foco na relação entre cena, performatividade e virtualidade, o
autor se debruça a analisar a vídeo performance Vaga Simbiose, produzida no contexto da
pandemia, explorando as relações com o espaço como elemento propiciador para a criação.
O quarto texto do E-book trata-se de uma dramaturgia escrita por Bárbara Leite Matias,
intitulada Sistema Límbico. Através de memórias despertadas por um ator diante de câmeras, e
em diálogo com um possível público, somos levados a pensar sobre nossa relação com o mundo
e as diversidades que permeiam nossas circunstâncias cotidianas. A pornografia é trazida como
elemento alinhavador de uma tessitura de imagens provocadas pelas falas da personagem, o
que instala uma leitura projetiva, pois a visualização da cena se torna presente ao longo de toda
a relação com as palavras e frases presentes na obra.
O quinto texto é a obra Amarelo, escrita também por Bárbara Leite Matias. Trata-se de uma
dramaturgia com duas personagens nomeadas como Ator 1 e Ator 2. A autora conduz a leitura
por meio de rúbricas que possibilitam uma interação visual com as falas.
Por fim temos o acesso às descrições das oficinas realizadas ao longo da 1ª Residência Artística:
Encontro de Poéticas no Campo e a consolidação da relação entre o Teatro do Irrupto, Trupe
dos Pensantes, Coletivo Dama Vermelha e Bárbara Leite Matias como o alicerce que estrutura
este e-book.
Quando decidimos criar, fazemos isso por necessidade, porque é a única forma de reexistir.
Nesse ato intenso de querer existir, escoamos as nossas energias para nos movermos, por isso é
inevitável a troca incessante entre vida e obra. A legitimidade da nossa arte está no ato corajoso
de se posicionar, e neste momento de pandemia, na ação de criar em meio ao distanciamento
social e do medo da contaminação. Este e-book é antes de tudo um lugar de experimentação de
ideias sobre o agora e, por isso, resguarda a efemeridade nas reflexões. Trata-se de um
documento importante porque apresenta perspectivas do cotidiano pandêmico e será útil
sempre que precisarmos pensar sobre como foi e tem sido a procura por estratégias para nos
mantermos vivos e criativos em meio ao caos.

Luiz Renato Gomes Moura


Juazeiro do Norte, abril de 2021
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Sumário

VIVÊNCIA NO CAMPO: O TEATRO NO CONTEXTO PANDÊMICO E A FUGA DO CAOS - JÉSSICA


LORENNA LIMA GONÇAVES E HUGO MATHEUS ................................................................................. 8
EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA – PODTEATRO - CÍCERA DA PENHA MENDES RIBEIRO E LARISSY
MARIA RODRIGUES SIMIÃO ................................................................................................................. 14
A POÉTICA DO ANTIGRUPO TEATRO DO IRRUPTO – RAIMUNDO KLEBERSON DE OLIVEIRA
BENICIO ................................................................................................................................................ 20
SISTEMA LÍMBICO - BARBARA LEITE MATIAS ..................................................................................... 26
AMARELO - BARBARA LEITE MATIAS.................................................................................................. 30
PODTEATRO COM PENHA RIBEIRO ..................................................................................................... 33
CORPO TRANSCENDENTAL COM KLEBER BENICIO .......................................................................... 34
AÇÕES INVERSAS DE CONTATO, BASEADO NO MÉTODO MELODRAMÁTICO COM HUGO
MATHEUS ..............................................................................................................................................35
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VIVÊNCIA NO CAMPO: O TEATRO NO CONTEXTO PANDÊMICO E A FUGA DO CAOS.

Jéssica Lorenna Lima Gonçalves1


Hugo Matheus2

RESUMO: Este artigo apresenta uma discussão sobre a vivência e experiência


compartilhada dentro do projeto 1ª Resistência Artística: Encontro de Poéticas no Campo,
financiado pela Lei Aldir Blanc, pela prefeitura municipal da cidade do Crato, e realizado no
período de 13 a 14 de fevereiro de 2021, no sitio Santa Rosa. Nesse suporte buscamos fazer
uma análise da experiência compartilhada, além de refletir a respeito do contexto
pandêmico e como essa conjuntura interfere na produção artística. Influenciados pelos
escritos de Ailton Krenak, nós percebemos a função social que a natureza tem nos corpos
humanos. Levando em consideração a troca de experiência no ambiente do teatro no
campo, percebemos a potência que muitos de nós ainda não pode experimentar.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro; Caos; Vivência no Campo.

INTRODUÇÃO

O que é o caos? Essa palavra às vezes tão usada por nós e que tem origem grega
kháos, significa abismo, de modo geral essa palavra carrega consigo a ideia central de
desorganização, falta de ordem e confusão. O que está um caos precisa de organização,
de lógica e equilíbrio. Nesse sentido, é possível afirmar que estamos presenciando um
mundo em caos, onde um vírus aparentemente sem explicação assola o mundo inteiro há
mais de um ano e fez com que todas as estruturas da sociedade virassem de ponta cabeça.
Levando a morte de milhares de pessoas em pouco tempo, atualmente chegamos a quase
três mil mortes por dia.
Esse sentimento de descontrole, causa nas pessoas, e em todos os setores uma
sensação concreta de desorganização do mundo, os prefeitos e governadores divulgam

1
Educadora Popular, atuante da Trupe dos Pensantes.
2
Licenciando em Teatro (URCA) e atuante da Trupe dos Pensantes.
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seus decretos e fecham os serviços não essenciais por semanas, causando a


desestabilização de comércios que sobrevivem do dia a dia. O que podemos avaliar desse
caos dialoga diretamente com o que o autor Ailton Krenak apontava em suas falas há anos:
as cidades fazem parte de um organismo vivo e que fora assolada pelo caos da civilização.
Nesse trecho o autor lança um olhar a respeito desse organismo vivo:

A nossa mãe a terra, nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos
desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e
as brisas cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente
faz com ele? O que estamos vivendo pode ser uma mãe amorosa que
decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante (2020, p. 84).

Nesse sentido, temos que concordar com o autor, pois tudo o que precisamos está
e vem da natureza, mas nós criamos a frágil ilusão de que não precisamos dela e que somos
superiores, mas é exatamente ao contrário, a natureza não precisa de nós, ela é soberana
e continuaria existindo sem a nossa presença. Acreditamos que existiria até de forma mais
saudável, já que nós somos responsáveis por queimadas e muitas formas de poluir o
ambiente.
E é exatamente nesse ponto que queremos chegar: até março de 2020, todos nós
acreditávamos que não poderíamos existir sem o trabalho, e repetimos tantas vezes que
esse trabalho era o mais importante. Ou seja, manter nossos espaços artísticos, nossos
grupos, e empresas, enclausuradas em grades e prédios, foram práticas que garantiam o
nosso deslocamento físico durante muitos anos. Mesmo quando alguns de nós víamos o
campo, as comunidades rurais como uma potência, ainda assim eram deixados à revelia de
transportes mal planejados e dificuldade de acesso a esses espaços rurais.
Em plena pandemia do Covid-19, mergulhamos durante um fim de semana no sítio
Santa Rosa, Crato/CE, para a realização de uma residência artística. Assim, pudemos
apreciar sem a velocidade das metrópoles, o ar puro, o som dos pássaros e o chacoalhar
das árvores. Ou seja, propor práticas artísticas em um espaço não convencional do teatro
permitiu muitos elementos possíveis de presença na cena, de modo que a própria câmera
do celular possibilitava construirmos um trabalho final, resultado da vivência.

Elementos Teatrais no Campo

Nesse contexto já havia muito tempo que não trabalhávamos presencialmente.


Assim, desde o início da pandemia que nos articulamos para realizar nossos trabalhos,
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reuniões e até nossa mostra anual da Trupe dos Pensantes aconteceu de forma virtual, por
conta das questões sanitárias e isolamento causado pelo Covid-19.
Quando surgiu o convite para participarmos da 1ª residência artística: encontro de
poéticas no campo, que se realizou nos dias 13 e 14 de fevereiro no sítio Santa Rosa, ficou
aquela tensão sobre participar ou não, por conta do que estava acontecendo atualmente,
lembrando que íamos com toda certeza realizar os protocolos de segurança: o uso de
álcool em gel e máscara. Em uma reunião realizada pelo grupo, três pessoas decidiram
participar e compartilhar nossas experiências, que foi o intuito maior do encontro, esse
compartilhamento de poéticas de grupo, desde que fosse mantido o distanciamento
físico.
Acabou que apenas dois integrantes do grupo puderam participar. Diante das
questões do distanciamento social, o atuante Hugo Matheus criou uma oficina com o
tema: Ações Inversas de Contato Baseado no Método Melodramático, que também faz parte
da pesquisa do próprio em sua monografia. Oficina essa que já trabalhamos por diversas
vezes no interior das práticas do grupo e em outras experiências, entrando no plano as
contribuições de outros integrantes. Quando aceitamos o convite para participar do
evento, era requisito ministrar uma oficina e essa ideia descrita anteriormente foi o que
desenvolvemos na ocasião.

Descrição da Oficina compartilhada

Conduzimos uma oficina baseada e formulada no que tange o gênero


melodramático, gênero cujo texto é acompanhado por música ou drama popular com
acompanhamento musical. Muitas vezes com o enredo complicado e pelo exagero de
situação violentas ou patéticas, se apresenta também como ridícula, grotesca, drama
lacrimoso, drama sentimental ou dramalhão. Nesse suporte, levamos jogos de
improvisação, criação de personagens e exercícios de treinamento corporal e vocal.
Levando em consideração o distanciamento social, é importante lembrar que utilizamos
cenas do cotidiano, vivenciadas durante a pandemia. Antes parte do intuito de nossos
trabalhos o contato entre os atuantes. Nesse sentido, a oficina aconteceu de forma
diferente. Utilizamos o imã enquanto uma analogia a algo que se repele e se distancia, sem
se tocar, criando um campo magnético que impeça os corpos de se tocarem. Percebemos
que houve muita ação e reação, considerando também as condições atuais.
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Com duração de dois dias, o evento contou com a participação de outros grupos, a
saber, o coletivo Dama Vermelha e o Teatro do Irrupto. Tínhamos assim cinco pessoas para
trabalhar e compartilhar, o que também deixou o trabalho mais enxuto e um tanto
produtivo. Assim iniciamos os trabalhos com a oficina PODTEATRO, do coletivo Dama
Vermelha. Essa oficina traz para nós a possibilidade da escuta e da interação de uma forma
bem diferenciada, com exercícios de fala com os olhos fechados, ativando assim uma
percepção em todo o espaço e transbordando os sentimentos como a curiosidade, medo,
inquietação, e até a criação de imagens instantâneas na mente.
Outro exercício muito interessante que fizemos foi com a possibilidade que
tínhamos para criar sons diferenciados e alternados com a voz, exercitando também o
grave e agudo, e assim trazer para o corpo as possibilidades que aquele local nos
proporcionava. No final foram divididas duas duplas e ambas tinham que gravar e criar
cenas apenas com áudios, o que foi incrível. A gravação foi feita pelo celular, tendo como
base um roteiro criado pelos oficineiros, para assim poder montar no final, foi uma
experiência excepcional, pois nos possibilitou entrar em contato novamente com nossa
poética e com os elementos que aquela natureza à nossa disposição tinha a nos oferecer.
No segundo dia, seguimos com a oficina do antigrupo Teatro do Irrupto intitulada
CORPO TRANSCENDENTAL, que nos possibilitou uma experiência de trabalhar em
processos de investigação. Começamos com um exercício de sentir o espaço, de tocar, de
viver, e principalmente se conectar; em seguida, fizemos uma caminhada por espaços
diferentes, como o lago, a estrada, uma casa abandonada e um poço. Enfatizando esses
quatro espaços, passamos a investigar cada um deles em separado. Assim, trabalhamos
durante alguns minutos na improvisação de um fragmento de cena. Naquele momento, o
exercício nos fez conectar com aquele espaço, colocar o pé no chão e sentir toda aquela
energia que as folhas, a terra e o ar nos proporcionavam. Toda essa prática reverberou em
nosso corpo, e conseguimos criar fragmentos de cena. Em seguida, assistimos ao exercício
criativo de todes e foi muito impactante o resultado, pois nos surpreendeu como o contato
com o campo pode nos dar elementos cênicos. Talvez a carência que estávamos do
contato visual com pessoas tenha potencializado essas impressões, mas o que culminou
essas experiências foi a captação das imagens provocando assim um trabalho de
audiovisual que posteriormente apresentamos virtualmente.
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A última oficina foi a que ministramos, enquanto Trupe dos Pensantes, intitulada:
AÇÕES INVERSAS DE CONTATO, BASEADA NO MÉTODO MELODRAMÁTICO. Começamos
com jogos de treinamento de corpo, pois o princípio da minha oficina foi a criação de
personagens melodramáticos e de onde ele nasce, percebi muito a entrega de todes que
participavam. Visto que estavam muito atentos e abertos a realizarem os trabalhos, parti
do princípio do ridículo para movimentação desses corpos. Foi proposto, então, exercício
de imaginar uma cena cotidiana para que pudéssemos extrair diversas possibilidades de se
trabalhar e criar e, assim, realizamos criações de uma forma bem inusitada. Trabalhei voz
utilizando todas as potências possíveis e jogo do bastão, que trabalha especificamente
nesse jogo corpo e voz ao mesmo tempo, e assim pudemos fazer um mapeamento da
construção desse personagem, voz, corpo, jeito e de como ele pode ser criado. Por fim,
criamos cenas aleatórias baseadas em tudo que eu tinha passado na oficina.

Vivência do Teatro no Campo

Antes do contexto da pandemia, alguns estudiosos e estudiosas já levantavam


como possibilidade de criação por meio de espaços alternativos. A autora Sílvia Fernandes,
na obra Teatralidades Contemporâneas (2013), faz sua reflexão a respeito de alguns
grupos que já trabalham com obras em contextos adversos e em espaços alternativos. Na
nossa região, o Teatro do Irrupto também se propunha a realizar ações no contexto do
campo. Em que as narrativas eram elaboradas com as imagens desse ambiente às vezes
tão distantes da sua maioria. Diante do contexto de pandemia, e diante da “nossa”
necessidade de sairmos dos apartamentos apertados em metrópoles isoladas, muitos
decidiram passar esses dias nos sítios. Nesse sentido o Irrupto se adianta, pois residem
exatamente nesse ambiente.
Percebemos que a arte se reinventou nesse processo adverso, muitos espetáculos
se adaptaram ao ambiente virtual, novas obras foram propostas para salas de transmissão
ao vivo, mas o contato físico com o ser humano, e nesse contexto com a natureza ao nosso
redor, é ainda um caminho muito cheio de criatividade e possibilidades para a criação
cênica. E nesse sentido, mais uma vez, o autor Ailton Krenak nos alerta:

Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me


salvar sozinha de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu
percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras
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perspectivas e dessa afetação pelos outros que pode sair outra


compreensão sobre a vida na terra. (2020, p. 104).

Talvez esse prenúncio de morte e de necessidade de vida que nos acomete a


pandemia do Covid-19 seja um pedido de socorro da natureza, ou seja, apenas mais uma
oportunidade de toda a humanidade olhar para si e, em um movimento honesto, exercitar
a empatia e não só o valor das coisas inúteis que a sociedade nos oferece. O sentido e
desejo de esperançar vem também quando esse mesmo autor provoca o nosso olhar para
as crianças ao dizer: “Quem me dera eu pudesse fazer uma mágica para nos tirar desse
confinamento, que pudesse fazer todos sentirem a chuva cair. É hora de contar histórias às
nossas crianças, de explicar a elas que não devem ter medo.” (KRENAK, 2020, p. 85). É nesse
desejo de vivermos em comunhão que percebemos a total necessidade que temos do
organismo vivo que é a terra, dando possibilidade de existirmos com nossos fazeres e
nossa arte em qualquer lugar desse planeta, desde que o respeitemos e cuidemos dele.
Para concluir esse processo, no dia primeiro de abril de 2021, estreamos no
ambiente virtual o resultado desses encontros no campo, e a possibilidade do encontro foi
mais uma vez intensificado pelos rastros do processo. Produzimos uma vídeo-
performance intitulada “MATA-CATARSE” que recolheu fragmentos de cena no processo.
E o teatro no campo, feito sem aglomeração e com distanciamento social, pode existir.
Olhar para os lados e enxergar vida fora dos grandes centros urbanos ainda será a nossa
salvação.

REFERÊNCIAS

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Careli. 1ª ed. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.

FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013.


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EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA – PODTEATRO

Cícera da Penha Mendes Ribeiro3


Larissy Maria Rodrigues Simião4

Resumo: O Podteatro é um espaço de investigação/experimentação em criações cênico-


auditivas, inspirado no significativo histórico do radiodrama e radionovelas e suas
atualizações na contemporaneidade. Mediante as experiências com as possibilidades e
ressignificações de criação teatral para o formato digital, o Coletivo Dama Vermelha
compartilha possibilidades e formas de fazer Podteatro com o celular, sem precisar de uma
aparelhagem tecnológica específica para a captação do som. Tivemos a oportunidade de
compartilhar essa pesquisa que está em desenvolvimento na 1ª Residência Artística:
Poéticas no Campo e estamos muitos felizes com os resultados obtidos.
Palavras-chave: Teatro Digital; Podteatro; Vivência Compartilhada.

Resumen: El Podteatro es un espacio de investigación/experimentación en creaciones


escénicas-auditivas, inspirado en el significativo historial del radiodrama y radionovelas y
sus actualizaciones en la contemporaneidad. Mediante las experiencias con las
posibilidades y resignificaciones de creación teatral para el formato digital, el Colectivo
Dama Roja comparte posibilidades y formas de hacer Podteatro con el celular, sin
necesidad de un aparejo tecnológico específico para la captación del sonido. Tuvimos la
oportunidad de compartir esta investigación que está en desarrollo en la 1ª Residencia
Artística: Poéticas en el Campo y estamos muy contentos con los resultados obtenidos.
Palabras-clave: Teatro Digital. Podteatro. Vivencia Compartida.

Residente entre as cidades de Crato e Juazeiro do Norte, no interior do estado do


Ceará, o Coletivo Dama Vermelha desenvolve suas pesquisas desde 2013, partindo do
hibridismo na arte, baseando-se no estudo ético e estético na dança contemporânea, na
fisicalidade do intérprete/criador cênico, aliados às pesquisas e experimentações teatrais.
O grupo conserva o caráter colaborativo na criação cênica, tanto que os trabalhos
artísticos partem das inquietações dos intérpretes.

3
Licenciada em Teatro pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Atriz, professora, pesquisadora e
figurinista. Intérprete-criadora do Coletivo Dama Vermelha.
4
Licencianda em Teatro pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Atriz e performer do Coletivo Dama
Vermelha. Intérprete-criadora em D(R)AMAFLIX: Plataforma Podteatro.
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Em razão dos acontecimentos decorrentes da pandemia do Covid-19, sobretudo as


importantes medidas restritivas de isolamento social, o Coletivo Dama Vermelha teve que
suspender suas atividades presenciais, o que resultou em diversos questionamentos sobre
como o setor da arte se manteria ativo e em produção, principalmente o teatro que é
bastante atingido com o resvalo da presença física.
Para além da instância física e presencial, dimensionamos a possibilidade de criação
de um teatro que atravesse as ambiguidades acerca da noção de “presença”, e que esteja
intimamente ligado à imaginação individual do espectador, sem a mediação de imagens
visuais bidimensionais materializadas, mas apoiada fortemente nos estímulos e na
performance sonora. A palavra Podteatro é uma junção dos termos podcast e teatro,
surgindo, então, o projeto “Dramaflix: Plataforma Digital de PODTEATRO”, um espaço de
investigação/experimentação em criações cênico-auditivas, inspirado no significativo
histórico das radionovelas e suas atualizações na contemporaneidade.
O Podteatro é uma versão contemporânea do drama radiofônico, amplamente
conhecido como radionovela. A radionovela teve ênfase no Brasil entre os anos 40 e 50, e
era um entretenimento popular no difusor mais potente de comunicação da época, o
rádio. Anteriormente, em meados dos anos 30, já eram apresentados os teatros em casa,
os “radioteatros” e esquetes teatrais em emissoras de rádio brasileiras. Com a chegada do
cinema e da televisão, as radionovelas perderam um pouco o seu espaço, mas com o
avanço tecnológico do século XXI, a efervescência da cybercultura e o surgimento de
novas mídias, essa linguagem artística vem sendo ressignificada, ganhando outros
espaços, contextos e dimensões.
Se tratando de Podteatro (também conhecidos como “podnovelas”), o conteúdo
não precisa ser necessariamente em formato de novela ou uma história de ficção; na
atualidade podemos ouvir séries, ou até mesmo contos. Em uma era visual exacerbada, o
Podteatro nos convida a dilatar o nosso sentido auditivo e criar imagens a partir do que
escutamos, propiciando uma performance auditiva que dialoga dramaturgia teatral à
estímulos e elementos sonoros, convidando o ouvinte à uma experiência intensa em
sensações e criação de imaginários. Tendo em vista que, no Podteatro, a imaginação do
ouvinte é estimulada do começo ao fim, a voz é a grande protagonista da ação. Por meio
dela, corporifica-se a/o personagem, esta/este que irá convidar o ouvinte a deleitar-se
numa viagem imagética.
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O Podteatro tem o desejo de popularizar “O escutar teatro", possibilitando


artisticamente outra forma de acesso à cena teatral. O projeto/pesquisa é desenvolvido de
forma independente e não possui filiação ou coligações monetárias. Sem recursos
financeiros para custear uma aparelhagem tecnológica de sonorização profissional,
trabalhamos com as ferramentas mais acessíveis que possuímos nesse momento: o
gravador do celular, para a captação da voz e sons experimentais; e o notebook para as
edições e composições de efeitos sonoros.
Os ensaios para o Podteatro acontecem individualmente, antes da gravação as/os
atrizes/atores aquecem a voz, estudam, leem e releem o texto, buscando compreender os
significados dos símbolos presentes na dramaturgia. É válido salientar o quanto é
importante degustar o texto, entender a entonação das palavras e articular bem cada uma
ao iniciar e finalizar a fala, pois algumas dessas palavras acabam se perdendo no início e/ou
no final da fala, quando os áudios passam pelo processo de limpeza (redução de ruídos); e
o jogo de cena, que entra posteriormente na edição dos áudios.
As/os atrizes/atores do Coletivo Dama Vermelha gravam os áudios com o celular à
um palmo de distância da boca. A gravação acontece por captação de áudio, é utilizado o
próprio gravador de áudio do aparelho celular. As gravações acontecem geralmente no
período noturno, levando em conta a menor interferência possível de ruídos externos. O
Podteatro não trabalha com imagens prontas, a partir da performance vocal de cada
atriz/ator, somado à dramaturgia sonora, o ouvinte é estimulado a viajar na história
contada.
Após a gravação dos áudios, a segunda etapa é a redução dos ruídos, e
posteriormente a edição (junção dos áudios gravados aos elementos sonoros). Os
elementos sonoros ajudam o ouvinte a compreender melhor a história, em termos de
espaço, ação, tempo e lugar. É nesta etapa que se efetiva a dramaturgia sonora, músicas
e elementos sonoros são incorporados à dramaturgia textual e a performance vocal
das/dos atrizes/atores.
Os recursos utilizados para a produção do Podteatro são: gravador de áudio do
aparelho de dispositivo celular; computador/notebook para facilitar o manuseio na edição
dos áudios e construção do Podteatro; aplicativos para edição dos áudios, como: o Lexis
Áudio Editor, para reduzir os ruídos externos, e o Virtual DJ, para a junção dos áudios e
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elementos sonoros; alguns elementos sonoros podem ser produzidos em espaços abertos
e/ou fechados, outros são extraídos da internet, bem como algumas músicas.
O Podteatro resgata uma linguagem artística, aclamada em meados dos anos 20 e
30, as radionovelas, e que com o advento da tecnologia foi aos poucos sendo
“substituída”. Essa linguagem dilata o sentido auditivo, permite a criação de imaginários a
partir do que escutamos, proporcionando uma experiência sensorial individual.
A oficina foi dividida em três momentos, apresentando o percurso das criações a
partir das descobertas das/dos integrantes dos outros grupos convidados. Para a
realização da mesma, foi necessário que cada participante estivesse com o celular e fones
de ouvido, para que pudessem perceber as nuances dos sons que foram captados por
eles/elas ao longo da vivência.
A dramaturgia sonora não é somente o texto teatral interpretado. Por mais que um
texto seja experimental, ele é composto por elementos sonoros da palavra, que por si só
é som. A dramaturgia sonora parte da ideia de que a cena nasce antes do texto, e depende
dele para existir. Ela se cria com certas conjunções sonoras de elementos organizados
numa certa ordem, que geram sentimentos, sensações e imaginários.

Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se
transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória,
que nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-
lhe configurações e sentidos. (WISNIK, 1989, p.17).

Iniciamos a oficina com uma preparação corporal e vocal, ampliando a percepção


da escuta e emissão do som, dilatando o corpo e a voz a partir do espaço que estávamos
inseridos. O espaço-sítio nos induziu a reproduzir sons animalescos. Ludicamente
experimentamos o uso criativo da voz e seus potenciais expressivos. Os sons eram
emitidos a partir de vogais e sílabas, juntamente com os movimentos corporais que
transitavam pelo espaço, esses movimentos alternavam entre ritmos e níveis cênicos.
Inicialmente, para esse exercício, a ideia era fazer com que os jogadores sintonizassem
corpo e voz, assim como em um programa de radionovela, ambiente em que há toda uma
preparação antes de começar a cena para se ouvir. Assim, vislumbramos um corpo
treinado para Podteatro como um corpo sintonizado.
A segunda ação consistiu em praticar a sonoridade do corpo que estava
sintonizado. Trabalhamos com a contação de histórias improvisadas com limite de três
18

minutos. Um dos jogadores ficava no centro com os olhos fechados, sendo atravessado
pelos sons emitidos por outros jogadores. A primeira história a ser contada tinha que ser
contínua, sem interrupções; a segunda história tinha que ser contada através de sussurros;
a terceira consistia numa história caótica e muito ruidosa. Todas as histórias partiam do
improviso com os sons produzidos tanto no espaço quanto no corpo da/do atriz/ator. A
dramaturgia sonora que foi sendo composta no decorrer do jogo, instalou uma atmosfera
densa e perturbada.
Ainda que todo o som seja composto por um complexo de vibrações, há
frequências mais regulares e estáveis, que entendemos como o som mais
limpo, afinado. E há frequências irregulares, instáveis, que entendemos
como barulhos, ruídos. Um ruído é uma mancha em que não distinguimos
frequência constante, uma oscilação que nos soa desordenada (WISNIK,
1989, p. 27).

Compor uma cena sonora é como pintar nas artes plásticas uma tela, pois
conseguimos trabalhar com textura, cor, som e sensações. O espetáculo cênico-auditivo,
assim como uma imagem, é um grande campo sensorial, é um quadro cênico de sons
gerados, multiplicados pelo jogo sonoro, os sucessivos ruídos, frequências ou o próprio
silêncio, juntam-se os sons e vozes, corpos e espaços e cria-se um campo sintonizado pela
percepção criativa das/dos intérpretes.

Paisagem Sonora Natural – Pinterest (2021)


19

Criado em 1957, beba coca cola é um dos poemas mais famosos do movimento concretista, e foi
publicado na revista Noigandres, nº 4, em 1958.

O som atua como elemento essencial na construção do Podteatro, considerando a


potencialidade da sua função dramatúrgica, ao pontuar cenicamente o tempo, ritmo e
sensorialidade na narratividade. O foco do jogo era criar no final uma cena-auditiva, deixar
o o som agir como um indutor, ser gerador de ideias. Um dos primeiros exercícios consistiu
em explorar a funcionalidade sonora dos elementos do espaço. A partir daí, as cenas foram
ganhando novos contornos. Os jogadores usaram textos, o corpo também foi um gerador
e compositor sonoro.
A oficina foi finalizada com cenas improvisadas. Os jogadores e jogadoras
conseguiram compreender as possibilidades de se trabalhar e produzir um Podteatro,
partindo do princípio que o Podteatro tem uma estrutura encenativa, composta de roteiro,
interpretação, captacão de som, edição e montagem de áudio para a composição da cena
audível.

Referências:

WISNIKI, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
SALLES, Cecília A. Gesto Inacabado-Processo de Criação Artística. 2013. São Paulo: Ed.
Annablume, 1998.
20

A POÉTICA DO ANTIGRUPO TEATRO DO IRRUPTO

Raimundo Kleberson de Oliveira Benicio5

Resumo: O texto poético se concentra na breve descrição histórica do antigrupo Teatro


do Irrupto. Se discute alguns aspectos da performatividade centrais na composição de
seus processos, bem como apresenta partículas que contaminaram o estado criativo para
a materialização da videoperformance Vaga Simbiose (2020), primeiro processo surgido
em contexto pandêmico do novo coronavírus-19.

Palavras-chave: Processo Criativo; Performatividade, Videoperformance.

Poética Irrupta

O Teatro do Irrupto, fundado em 2018, é inspirado pela ideologia do encenador


argentino Rodrigo Garcia, criador do La Carnicería Teatro (DAMASCENO; BONFITTO, 2017),
projeto que busca em seus processos a performatividade nas investigações realizadas na
sala de ensaio, por meio da multiplicidade de estímulos que percorrem suas criações.
Sua gênese também abarca a noção de antigrupo, justamente porque foge das
bases que estruturam a noção de Teatro de Grupo, tais como a pesquisa continuada de um
núcleo fixo de integrantes, sede própria, busca por uma identidade ou de um modelo
organizacional de produção contínua. O antigrupo possui a característica de ser flutuante
no que diz respeito à criação, por isso sua poética se sustenta pelo fluxo de trocas entre
diversos artistas envolvidos, conduzidos pelos seguintes princípios: a performatividade,
apropriação do espaço, tecnologias da cena, acontecimento e atravessamentos entre
linguagens.

5
Artista-professor-pesquisador. Nome artístico Kleber Benicio. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade
Federal da Bahia (PPGAC/UFBA). Licenciado em Teatro pela Universidade Regional do Cariri (URCA).
Participou do grupo de teatro Trupe dos Pensantes (Crato/CE, 2014-20 17). Tem experiência nas práticas
pedagógicas, com maior preferência para os processos artísticos. Atualmente tem interesse em pesquisas sobre
reflexões cênicas do teatro contemporâneo e suas intersecções a partir da Recepção em diversas perspectivas.
Possui projeto de pesquisa independente intitulado Performatividades Irruptas relacionadas ao antigrupo Teatro
do Irrupto (2018). Contato: kleberbeniciop@gmail.com
21

No Teatro do Irrupto a performatividade é central na composição de suas cenas e


de seus processos guiados, principalmente, pela projeção de recepção ao futuro público.
Durante a pandemia do novo coronavírus-19, o antigrupo expandiu as relações com a
performance quando propôs investigações virtuais de ações cênicas em contatos com
espacialidades alternativas, e pessoais.
Dentre alguns trabalhos realizados pelo antigrupo que marcaram o início das
inquietações entre criação de cena e performatividade, podem ser destacados: Império
Virtual (2018), realizado num porão da Universidade Regional do Cariri (URCA); Cápsula do
Caos (2019), realizado em percurso por um auditório, porão e cabine de luz da mesma
universidade; Armagedom (2019), realizado num percurso pelo Sítio Santa Rosa, situado
na zona rural da cidade do Crato/CE. Os aspectos performativos trabalhados nessas
encenações se concentraram nas tensões do lugar do público, no sentido de desconforto
com a cena, ocasionando diferentes graus de recepção. Os três processos abordaram
temáticas subversivas, como deep web, escatologias, misticismos, sociedades secretas,
ciberespaço, dentre outras.
Durante a pandemia surgiram outros quatro processos: Vaga Simbiose (2020), E X I
T U S (2020), Éden XXI (2020), Mata-Catarse (2021) gravados e investigados em espaços
como o lixão abandonado de Juazeiro do Norte/CE e sítio Santa Rosa. Além desses
processos, vale mencionar Irrupta Cartomante (2020), que foi uma encenação
performativa-interativa entre performer e público, no qual o acontecimento cênico-virtual
se desenvolveu de acordo com a quantidade de público participante.
A cena atual pode se dizer que tende ao deslize para o campo da experiência do
real, da dimensão virtual, da interatividade entre performer e o público, assim como
algumas práticas se distanciam do mimetismo (enquanto imitação) e da representação
(enquanto criação de um papel). Porém, com a diversidade do caráter híbrido e
multidisciplinar de outras linguagens que são recombinados na prática da encenação
contemporânea e das diferentes ferramentas virtuais, constantemente emergem
apagamentos de diversas fronteiras da cena que, consequentemente, geram dificuldades
no que diz respeito a sua identificação e definição numa única instância.
A Performatividade, ao longo das pesquisas do século XX, possui diversas frentes
possíveis de definição. Em Austin (1990), a performatividade adquire um status de
oralidade em que a fala depende de condições e contexto para sua efetivação. Ainda de
22

acordo com Austin, as ações representacionais de um personagem, por exemplo, não


possuem uma concretização real de uma ação, por isso escapa de um enquadramento ao
acontecimento; isto é, a performatividade seria um enunciado que concretizaria uma ação
real, portanto não ficcional.
Já nos estudos de Erika Fischer-Lichte (2008; 2011), a performance e a
performatividade das ações possuem uma Estética do Performativo, de práticas artísticas
como a arte corporal e de ações que concretizam uma obra de modo relacional com a
presença de quem fez a ação (performer, atriz) e o público. A performatividade possui uma
relação de ação entre quem executa e quem frui a obra, um contraponto ao que o
pensador Austin (1990) defende.
Contudo, nos estudos de Josette Féral (2015), a perfomatividade possui uma
caraterística de acontecimento. Para a pesquisadora, a atriz-performer tem um papel
fundamental na cena performativa, pois não é apenas uma mera reprodutora de
informações, mas sim causadora de provocações e zonas híbridas de significância, e
sugere à sua maneira o estado de encontro e proximidades com o real. Real esse
acentuado pelo olhar do público, causada por um efeito de desorientação entre realidade
e ficção. Esse estado entre realidade e ficcionalização é denominado de Espaço de
Clivagem pela pesquisadora.
Entendendo o espaço de clivagem como uma identificação da teatralidade, torna-
se oportuno problematizar a relação de impactos de seus trabalhos com o público virtual.
Para Féral (2015), a performatividade possui múltiplas características. Uma delas está
relacionada à manipulação do corpo, indispensável ao ato performativo; outra
característica reside na manipulação do espaço; e outra, reside na relação entre a
performer e o público, a obra e o público, a obra e a performer.
O corpo da performer através de suas explorações pessoais põe em destaque a
realização da ação física que, em particular, recusa uma ilusão do teatral, sem, no entanto,
descartar a hibridização de outras linguagens e seus diversos recursos como a música, a
pintura, as tecnologias, as textualidades, dentre outras.
A teatralidade do corpo da performer é uma condição que possibilita uma
identificação/conferição através do processo cognitivo que faz emergir o espaço de
clivagem mesmo que ela não estivesse sido intencionada particularmente à uma ilusão.
Por vezes, a performance nem sequer pode possuir um sentido, mas cria um sentido que
23

proporciona uma desarticulação e desmistificação na recepção. “A performance não visa


um sentido, mas ela faz sentido, na medida em que trabalha precisamente nesses lugares
de articulação extremamente frouxa de onde acaba por emergir o sujeito. Contudo, ela o
questiona de novo enquanto sujeito constituído e enquanto sujeito social, para
desarticulá-lo, para desmistificá-lo” (FÉRAL, 2015, p. 158).
Com a pandemia do Covid-19, diversas estratégias para o redimensionamento
virtual foram colocadas em práticas. Isso se reflete na readequação de alguns objetos
cênicos adaptados para as plataformas, além de outros criados exatamente para o espaço
virtual. A performatividade, nesse sentido, adere outras adjacências, pois as mídias digitais
oferecem novas possibilidades de criação que contribuem para uma relação diferenciada
entre quem performa e quem expecta.
É necessário evitar ver o teatro enquadrado a uma única estética nesses tempos
de peste, em que a pandemia forçou drasticamente o recuo ao contato social. O teatro
contemporâneo não finda, ele se reajusta de acordo com as modificações sociais. Com
isto, artistas se reinventam na tentativa de sobreviver, difundir, divulgar, permanecer
ativo no meio social.
Diversos sites, congressos, e produções são elaborados para amenizar o grau de
impacto em que todos os setores foram atingidos. As ferramentas tecnológicas desses
lugares desterritorializados permitem novas configurações, tanto espacial como de
efeitos para o suporte cênico. Desse modo, o sentimento de que não conseguimos
interromper por completo nossas atividades sugere um redimensionamento que, por sua
vez, seria a gênese para a criação de novas estruturas processuais criativas.
O teatro se torna subversivo em diversos graus de [re]invenção, onde a cena
extrapola os limites e suas fronteiras. Para o pesquisador Patrice Pavis, “o digital é uma
aposta central para o teatro, na medida em que contribuiu para transformar nossas
tecnologias intelectuais. Ela toca na escritura, na memória” (BAUCHARD apud PAVIS, 2017,
p. 98). A performatividade – enquanto ação, acontecimento – e virtualidade não são mais
disjuntos, este fenômeno é atrelado ao compartilhamento volátil ao público virtual em
que o espaço ganha potencialidades graças aos efeitos nas/das transmissões ao vivo, ou
das edições de seus materiais, possibilitando um encontro “entre” corpos ausentes e
presentes em termos de territorialidades para desenvolver infinitos graus enunciativos na
recepção.
24

Vaga Simbiose: 1º Processo em Contexto Pandêmico

Como eixo que norteia este ensaio poético, pretendo apresentar a


vídeoperformance Vaga Simbiose6 (2020) a qual faz parte do projeto-pesquisa-flexível,
“Performatividades Irruptas"; de caráter independente para produzir ações performativas
de cenas em campo expandido, presenciais e virtuais direcionadas a estéticas relacionadas
ao misticismo, tecnologia, escatologia, dentre outras.
Vaga Simbiose foi concebida e filmada por mim, em março de 2020, no período de
quarentena no sítio Santa Rosa, em Crato/CE, cuja temática possui uma gênese, de meu
corpo deprimido em meio a um isolamento rural e caos interno (sentimentos sobre
relações amorosas). Para mim enquanto criador, a ideia com as imagens obscuras era
possibilitada por diversas sensações claustrofóbicas, justamente por ser um percurso por
volta das 18:00 no sítio.
Cada espaço escolhido para o percurso tem uma leve inspiração aos espaços de
desvios que, na perspectiva da pesquisadora Silvia Fernandes (2010), são associadas às
modificações de sua originalidade. Isto é, com a criação da teatralidade via corpo do ator-
performer, o espaço produzido produz flutuações no imaginário que permitem, através
da expectação, retirar eles do seu espaço originário.
Metodologicamente decidi experimentar meu corpo nos espaços de desvios da
minha residência, escolhidos por me remeterem e despertar diversas memórias pessoais.
O primeiro foi: uma casa destruída por cupins, levei uma rede e um livro de bolso intitulado
“Agonia de Eros”, do filósofo Byung-Chul Han (2017). Inclusive, já li quase todos os livros
desse autor para a minha pesquisa de mestrado no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Seus escritos me abrem muitas portas para refletir sobre as relações pessoais,
contemporâneas da sociedade entre virtualidade e aspectos sociopolíticos, dentre muitos
outros. Destaco uma que me contamina a refletir sobre o momento atual: “Nos últimos
tempos tem-se propalado o fim do amor. Hoje, o amor estaria desaparecendo por causa
da infinita liberdade de escolha, da multiplicidade de opções e da coerção da otimização”
(HAN, 2017, p. 7).

6
Disponível em: https://youtu.be/BBE-LcdxCOQ. Acesso em: 15. Set. 2020.
25

O segundo espaço: foi debaixo de uma árvore morta, onde tinha uma cabra que
criamos no sítio, em seguida, um percurso pela floresta a qual me levava até o açude. No
retorno para casa, depois de um percurso pela mata à noite, visitei o chiqueiro do porco,
que chamou atenção do meu cachorro, e que me acompanhou em algumas de minhas
trilhas. Vaga Simbiose, portanto, é uma relação íntima de mim mesmo, com meu percurso
por meus espaços de desvios. Meu corpo encontrava-se deprimido em relação a muitos
acontecimentos pessoais, e com o mundo. Eu deixei-me ir ao fluxo com a câmera tateando
uma trajetória sem um roteiro definido.
Enquanto artista-pesquisador-em-ação, reflito que sempre nos reinventamos,
buscando estratégias para suprir nosso vazio interior, nos refugiamos nos jogos, na
virtualidade, nas práticas corporais, na música, nos alimentos, cada um de maneira
singular de acordo com o gosto atrativo que funciona como um anestésico esporádico e
temporário de desligamento. Todavia, há períodos que não encontramos nosso lugar no
mundo e nos ausentamos de nós mesmos, nossos processos criativos carregam um pouco
de nossa alma desfragmentada, a poética é uma questão íntima de nosso ser em processo
de mutabilidade.

Referências

AUSTIN, John Langshaw. Quando Dizer é Fazer. Tradução de Danilo Marcondes de Souza
Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
DAMASCENO, C; BONFITTO, M. Dramaturgia Performativa e Produção de Corporeidades
nos Trabalhos do La Carnicería Teatro. Sala Preta. V.17, n.1, 2017. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/128014. Acesso em: 13 jan. 2021.
FISCHER-LICHTE, Erika. The transformative power of performance: a new aesthetics.
Translated by Saskya Iris Jain. London; New York: Routledge, 2008.
FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de Lo Performativo. 1ª ed. Madrid, España: Abada
Editores, 2011.
FÉRAL, Josette. Além dos Limites: teoria e prática do teatro. Trad. J. Guinsburg [et al.]. 1ª
ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.
FERNANDES, Silvia. Teatralidades Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

HAN, Byung-Chul. Agonia de Eros. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
PAVIS, Patrice. Dicionário da Performance e do Teatro Contemporâneo. Tradução: Jacó
Guinsburg. 1ª. São Paulo: Perspectiva, 2017.
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SISTEMA LÍMBICO

Barbara Leite Matias7

Ator entra em cena, com vestes cotidianas, um computador numa das mãos, no bolso
carrega uma carteira de cigarros e um isqueiro, no centro do palco tem uma mesa e uma
cadeira, uma câmera de mão ao lado, no chão, outra câmera que será chamada câmera
geral que filma todo o trabalho que estará sendo compartilhado em alguma plataforma
virtual. Liga a câmera principal. Olhando pra câmera: Existe mais câmera no mundo que
humanos.

(Retorna, puxa a cadeira e senta-se à mesa com os pés na cadeira, retira umcigarro da
carteira e segura na mão junto com o isqueiro).
Talvez nesse momento alguém esteja longe e com saudade da mãe, da tia que lhe fazia
cafuné na cabeça antes de dormir quando tinha seis anos. Talvez nesse momento uma
jovem esteja numa dessas paradas de ônibus tremula de medo, mas, ao mesmo tempo
com a mão ativa, se necessário usará seu spray de pimenta que se deu de presente no natal
passado, talvez na maior avenida da cidade um maníaco sobe e desce no seu carro a
procura de vitimas medrosas nas paradas de ônibus, talvez esse mesmo maníaco tenha
pai, mãe e tenha sido uma criança como eu, você. Nunca se sabe! Quem sabe a mãe está
com saudade ou já morreu. Existe sempre essa possibilidade e mais bilhões. Nesse
momento, em algum lugar do planeta ou quem sabe em vários, existem pessoas querendo
olhar pra mim (faz um gesto/ou/olha para o computador) e antes que sua cabeça ache, ele
vai mostrar a cor do ânus, respondo-lhe, pode ser que sim, pode ser quenão, tem sempre
o talvez. E daí se mostrar, mas, posso lhe confessar que a possibilidade será mais excitante
assim, como a mão que está atenta pra pegar o spray.
Não me pergunte do que se tratam essas blablações, sabe de uma coisa, nossa cabeça
edita sempre o ato (Acende o isqueiro e fica olhando pra chama) e, isso que eu tenho aqui
nas mãos é um computador, porém resolvi chama-lo de talvez, porque com ele construo
possibilidades de arrepio. Alguém gostaria? (Faz um sinal para o cigarro,caso alguém
tope, lamberá todo o cigarro, colocará na boca do espectador, em seguidaacende).
(Espera o espectador terminar o cigarro em silêncio)

7
Barbara Matias é artista Kariri, [1993, CE], nasceu na comunidade do Marreco, Quitaius, Lavras da Mangabeira.
Transita entre as artes da cena, áudio visual e escrita. Licenciada em Teatro pela Universidade Regional do Cariri
(URCA). Mestra em Teatro pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutoranda em Artes da Cena pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sua prática é um caminho não-linear que usa a corpa como
suporte para denunciar o memoricídio, "se-acontece" em diferentes plataformas artísticas para resgatar
memórias originárias e recontar memórias nativas que foram apagadas devido ao etnocídio aos povos kariri.
Produz com artistas e coletivos artísticos de Pindorama. Atua no cotidiano do Coletivo Arruaça escoamento,
Flecha Lançada Arte e no Grupo Retomada Kariri. Autora do projeto de escrita: Pode ser Uma Poema, Sistema
Límbico, Infanta da Terra, Gabriela, Amarelo e Salada de fruta. Em 2019, lançou a dramaturgia de teatro Ofélia
Formiga e, em 2020, o livro Pensando a Pedagogia do Teatro da Sala de Ensaio para a Escola Pública, Appris-
2020.
27

Posso lhe contar um segredo?


A coisa mais bonita que já vi foi meu avô fazendo o parto de uma vaca. (Ascende mais uma
vez o isqueiro). Era integridade total, a vaca era do vizinho, se conheceram no ato eeu que
observava de longe até hoje me arrepio com essa memória, não tenho relação com o meu
avô e nunca mais vi a vaca. Silêncio.
(Liga o computador e começa a conversar/se mostrar pra alguém, o publico assiste a tudo).
Quem gostaria?

(Caso pessoas da plateia aproxime, começará a filmar partes do corpo da pessoa e projetará
ao mesmo tempo enquanto isso cantará alguma cantiga que lembre memória, parto ou
solidão).
Obrigada, vamos tomar algo.

(Na gaveta da mesa tem uma garrafa de vinho, abre a garrafa e coloca vinho para as pessoas
que se dispuseram, retorna a cena).
Eu sou uma alma que vem de Atenas, sim, existo há milhões de anos. Por isso, representar
e ver nudez me aquece pra seguir nesse mundo. Eu sou doutor no kama sutra pós-
moderno, isso não é futilidade porque eu posso falar de amor e não olhar no fundo dos
seus olhos e posso ser fútil como alguém pode ter pensado e olhar no fundo dos seus
olhos, mas, se você diz que é futilidade, eu te digo que sou Dionísio, resolvemos o
problema, é como o computador que talvez ele só seja a ponte da relação que ainda será
construída, sem dores longas e sagradas. (Retira as vestes debaixo).
Lá em Atenas os corpos eram erguidos, o desejo sim era sagrado e por eu ser de Atenas
me coloco aqui como Dionísio@.com, Hoje tenho a pretensão de avinhar esses corações
solitários, talvez eu fale da solidão mais para o final, mas, por enquanto. Eu sou Dionísioda
Net, vim aqui cultivar a saliva sagrada que seca a boca e enche de água ao mesmo tempo,
o espaço da paz entre corpos, terreno para homens e mulheres serem eróticossem
pretensões estabelecidas, apenas com o intuito do encontro, talvez o medo apareça
porque na disponibilidade para o risco o medo vem, ou a memória de um passado vem pra
ocupar, mas, esse instante driblará ou potencializará. Eu grito, eu grito imbuído de fogo de
prazer.
(Vai ao fundo do palco pega uma boneca inflável, começa a enchê-la)
Antes de me julgar quero dizer a vós, pornográfico foram escritas sobre prostitutas, viva
elas, mulheres abertas, acolhedoras (Acende o isqueiro na boca). Para outros que estão
assistindo caladinho, é um pouco torturante, é obsceno talvez, eu sou obsceno, me
desligue se for o caso. Arranque o fio da tomada, veja a ligação entre buracos e fios
imensos cumpridos, veja no seu corpo o desejo que seu pé me causa e é inexplicável assim,
como o encontro do cabo do computador com a tomada, queria eu pelo menosser o
computador.
Bem, vamos começar (Muda a câmera geral de lugar). Como eu estava dizendo,
pornografia, depende da perspectiva, temos aquela perspectiva dos filmes, vídeos
cassetes, revistinha ou a curiosidade de ver e se excitar com aquilo, ou do ao vivo ser só a
28

plataforma pra mim e, se eu lhe disser que também pode ser o contrário, eu estou para e
estamos no ato, ainda que seja uma revista. Hehehe, e eu sou dos anos oitenta então,eu
sou um dos bilhões ativos que busca e assume aqui, no meu caso, esse encontro de
visualização com a maratona pornográfica.
(Começa a contar uma história)

Sabia que o desejo às vezes está mais na minha mão segurando essa boneca do que nela
ou em mim. Sério. (Silêncio).
Tudo começou quando eu achava que era inteligente, que talvez minhas conversas
pudessem ocupar o tempo de alguém ou que minha aparência preenchesse minha solidão
e a do outro. Na verdade eu gostava pouco, mas depois, fui me acostumando, fui
aprendendo a gostar de conversar ou, escutar, uma vez passei uma madrugada inteira
escutando uma moça falar do enterro do pai e claro que ela me pagou pra isso, tem umas
figuras que adoram apanhar, repito esse movimento com um chicote na cama até dar o
horário combinado e tá tudo ok ele gostar, aqui pode. Aqui alguns gostam de bater
(aponta para o bumbum), já elas preferem aqui nessa região da nuca, quer dizer eu que me
bato só que são eles, entende? Só quem entende é quem fez o parto da vaca, a vaca o
bezerro ou a criança curiosa que assistiu porque se permitiram ao acaso.
Quando eu termino as sessões, podemos chamar assim, eu tomo banho e café amargo.
Fico em silêncio e vou pros meus vídeos, tenho de vários gêneros, a questão é que
pornografia requer tempo, se não passaria mais horas falando desses vídeos que tenho
aqui.
Quem aqui sabe o que é solidão? (com a câmera de mão começa a filmar uma parede)
Quando a solidão vem eu protelo tarefas, como artigos, pagar dívida passear com os
cachorros e tantas coisas.
Masturbar leva uns quinze minutos por ai e imagine isso umas cinco, sete, doze vezes no
dia. (Coloca a câmera no próprio olho).
Ex-videos e pornôtube

(retorna a câmera na parede) Eu organizo o tempo da pornografia, só não conto pras


amigas porque elas ficam horrorizadas, escutei minha professora falando. E depois
completou: Eu uso pra não pensar assim como usam o cigarro, a bebida, comida, bater em
mendigo, tem gente que faz isso, sabia? (Coloca a câmera de mão no olho)
(coloca a câmera pros pés)Pergunte-me, Às vezes eu acho que burla meu cérebro e me
distancia pra compreender o que é realidade e ficção, por isso penso em Dionísio pra me
centrar no desejo provido de uma satisfação. Assim, sendo, sem julgar, sem instituições.
A realidade é que eu perdi um pouco a fotografia que poderia criar com o outro, por mais
que se crie, mas, de tanto ver e saber, os filmes estão aqui e eu tento fugi, mas, é o virtual
que edita meus acontecimentos, às vezes penso que também atinge minha Amidala
central, sistema límbico memorial.
Você me entende? (Coloca a câmera no público por alguns instantes). Entende, mas, não
assume. Toda pessoa normal da minha idade tem sua pasta pornô-sagrada-de-todo-dia.

Sistema límbico de Mbarbaro


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AMARELO

Barbara Leite Matias

Sinopse: Amarelo vem de amarelou.


Trataremos na essência da cor amarela que está presente no corpo de carne e osso e do
ouro. Na sopa, na urina, suor e até no cocô do humano e de alguns animais. Amarelo é a
potência do fracasso que está na intimidade e no congresso erguida por mãos amarelas
que quase sempre amarelam. Ao pensar amarelo, logo nos leva ao famoso “amarelou”,
quem nunca amarelou? Desistiu, deu pra trás, seja por bem ou por mal, mas amarelar é um
verbo. A obra é voltada para espetáculo de teatro e tem em cena duas figuras que nominei
como ator e atriz.
[Público adentra ao teatro que se encontra escuro.] [Silêncio]
[Começa a tocar uma música “Shohmyoh”

[Tempo da música (00h55min) Refletores acendem apontados para o público, o ator 1 acende
duas velas. Apagam-se os refletores.]
[A música abaixa o volume, aos poucos a luz da vela revela a cena. Ator 1 inicia a fala. ]
Ator 1: Boa noite, isso não é uma peça de teatro, é um elogio a razão, é a concepção de
uma ideia elaborada; a coletividade estruturada por sorrisos amarelos.
Ator 2: Um brinde aos pensamentos estruturados por uma dita maioria, não sei se eu estou
incluso nessa “dita maioria” mas, a corrente da racionalidade segue engravatada, com
uma voz limpa, reta, sem rodeios ou desdobramento para que o pensamento que não se
encaixou se encaixe. E as questões de responsabilidades coletivas agora são suas em
forma de culpa ou angustia. Que dá no mesmo. Oi? Estou bem? Bem, bem.
Ator 1: Quantas vezes você já morreu hoje? Eu, acabo de completar a minha centésima
morte.
[Ator assopra a vela. Inicia a música “Doll’s Polyphony”]

[Luzes das laterais acende aos poucos. Uma pequena mesa com uma sopa, uma garrafa
pequena de café, um prato, uma xícara e duas cadeiras.]
[Atriz está sentada, tomando a sopa. Ator está sentado olhando a xícara de café à sua frente]
[Fade out música]

Ator 1: Eu fico imaginando que numa outra vida quero ser barata.
Ator 2: Eu quero ser uma mariposa ou quem sabe um camelo, porque é mais fácil camelo
passar no fundo de uma agulha do que um porco.
Ator 1: O porco não tem culpa de ser dito como o nojento, a culpa são dos esqueletos
pensantes, se é que pensam, que falam constantemente do porco. (Silêncio) Eu e vocês
todossssssssssssssss (grita).
31

Ator 1: E se eu fosse um frango? Eu pareço uma franga (sacode os ombros). E se formos


condenados ao gelo do céu ou ao fogo do inferno? Acho que, quando eu morrer, não vai
sobrar nem pó, só purpurina. (risos).
Ator 2: Eu vivo de maça e suco de laranja, às vezes eu consumo um pouco de massa, eu
juro que faço isso por amor. Amor ao corpo, à alma, honra, ao estar aqui lúcida.
Ator 1: Eu tenho lido sobre o marxismo, filosofia do existencialismo, iluminismo e tenho
lido também sobre Jerusalém. Eu juro que tudo não passa de uma estupidez, meu peito
está morrendo (tosse).

Ator 2: É fumaça demais. Besteira, são tudo palavras. Inferno, porra, deserto, artista cheio
de problema, Moscou, paris, heroína, mentira, amizade, racional, tesouro. Quero ver quem
é capaz de resolver tudo? Quem? Quem tem o coração pertencente a uma pessoa só?...
Dizem que os deuses são ricos.
Ator 1: É tudo mentira mas é preciso escutar aos mais velhos, faz cara de educado e deixa
no ar a curiosidade dos jovens, “nossa, esse rapaz é isso, é aquilo, mas é educado e
carinhoso”! Meu pai, por exemplo, não resiste a um vinho velho, e a uma ideia nova, na
verdade sou como ele, gosto do desconhecido, sou um devoradora de ideias alheias, não
li mas se alguém comentou e for interessante, meus ouvidos pinnn, logo escrevem uma
tese, pra existir e ser sopa é preciso dançar intensamente com o outro. Falando em dança,
vamos colocar nossos quadris pra movimentar. Se aproxime com leveza. (Risos)
Atores dançam ao som de “You Never Can Tell”

Ator 2: Estou cansada, estou cansada do fingimento, estou cansada... Preciso de água.

Ator 1: Eu pergunto, essa sopa tem gosto, sabor, ou num passa de uma mentira pra
esbanjar pros amigos? É como a vida, tempera, tempera e continua insossa ou salgada
demais, de um jeito ou de outro, mata. Às vezes a diferença é o tempo.
Atores começam a colocar a sopa pro público.

Ator 2: (Sugestão, o ator pode falar esse texto em outra língua, de preferencia alemão ou
espanhola). No esforço de superação do trauma da guerra e do genocídio, os países
recompõem os frangalhos da nacionalidade e as forças para o desenvolvimento, por meio
de quadros administrativos capazes de empreendê-lo. Isto é, forças à direita, à esquerda,
ao centro; ex-resistentes e ex-colaboracionistas nos mais diversos níveis, todos
interessados na reconstrução inadiável de uma nova vida.
Ator 1: O cu, o cu é o único lugar democrático. Eu leio sobre arte, cinema, música, filosofia
e física quântica e tudo pra mim, se resume ao cu, o lugar da democracia, onde todas os
serem tem essa propriedade, sejam eles pobre, ricos, negros, ruivos, albinos, porcos,
hipopótamos e até os ratos tem cu. Esse espaço singular e plural, singular e plural, singular
e plural. O que falta na organização de um país é olhar com sensibilidade pro cu.
Ator 2: Por favor, vamos fazer um pouco de silêncio. (silêncio). Bem, como eu estava
falando, nos esforços humanos, na legitimidade de uma vida cotidiana regrada de símbolos
que nos levam ao exercício do estar aqui e agora. Puts, esqueci o texto... (silêncio
demorado) Eu sou uma atriz com vinte e poucos e posso errar em cena. Imagino que na
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cabeça de vocês acontecem turbilhões de perguntas: quem é essa criatura? Bem, eu


perguntaria porque é bom saber de onde as pessoas vêm, o que elas carregam, o que
podem nos dar ou roubar de nós... Eu tenho me questionado, ops, é sempre bom dizer de
qual década você é oriundo. Eu, por exemplo, sou dos anos noventa onde Sandy e Junior
fizeram a sonoplastia da minha vida.
Ator 1: Aprendi espanhol assistindo a novela rebelde. (Imita uma dançarina espanhola)
Arriba, arriba muchachos. Buenos días compañeras y compañeros, bandidas y bandidos.
Ai Ai Aiiiii.
Ator 2: Bem, continuando. Se nada nessa vida tem sentido, então tudo é possível e nada
tem importância.
Ator 1: Epa, epaaaa, essa frase é de algum filosofo viu, é sempre bom dizer o nome do
proprietário, ainda mais quando eles estão mortos. Outro dia, numa palestra dessas cheia
de gente que se diz tímida, mas falam por quilômetros, bem, eu comentei alguma coisa
dizendo que era de Artaud, o boy passou a noite inteira nos meus sonhos, no outro dia fui
pesquisar a fundo e descobri que ele tinha dito aquilo, mas, num outro sentido e eu
difamando a vida dele, pra ver né, o que é a presença de uma pessoa, o cara morreu a
séculos, mas vive. (Ator 2 foca num ponto) Veja, ele tá aqui. (silêncio) Você viu como ele
era magro? Alto, elegante, falava doze línguas.
Ator 2: Ei, tu está confundindo Artaud com Grotowski... Pessoal, a sopa não vai dar pra
todo mundo, infelizmente a vida tem me excluído também. Por outro lado, caso haja
generosidade, você pode compartilhar com o colega ao lado, temos colherzinha sobrando.
Ator 1: Esse ato provocará sensações de bem-estar no colega. Inicia a música

(“Balinese Cassette”, apagam as velas. Liga a luz de plateia. Atores começam a distribuir
os pratinhos, cumprimentando o público, interagindo com o público. Apagam as luzes.
Mantem um pouco a música, no escuro. Fim.)
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VIVÊNCIAS DA 1ª RESIDÊNCIA ARTÍSTICA: ENCONTRO DE POÉTICAS NO CAMPO

PODTEATRO

Coletivo Dama Vermelha

O Podteatro é um espaço de investigação/experimentação em criações cênico- auditivas,


inspirado no significado histórico do radiodrama e radionovelas e suas atualizações na
contemporaneidade. Mediante as experiências com as possibilidades e ressignificações
de criação teatral para o formato digital, o Coletivo Dama Vermelha compartilha
possibilidades e formas de fazer Podteatro com o celular, sem precisar de uma
aparelhagem tecnológica específica para a captação do som.
A oficina será dividida em quatro momentos de modo a apresentar o percurso das
possíveis criações a partir das descobertas das integrantes do grupo. Para a realização da
mesma é necessário que cada participante leve seu celular (de preferência com gravador
de voz) e, se possível, um fone de ouvido para que possa perceber as nuances dos sons
que serão captados por eles/elas ao longo da vivência.
Módulo I (Criando efeitos sonoros no texto ou dramaturgia): Neste primeiro módulo, a
atriz Larissy Rodrigues apresentará como brincar/jogar com as palavras pode ser
enriquecedor para se criar efeitos sonoros vocais para os diálogos cênicos-auditivos do
Podteatro, a partir das mesmas, recorrendo aos recursos linguísticos da língua
portuguesa.
Módulo II (Atuação para Podteatro): Neste módulo, a atriz Penha Ribeiro partilhará
exercícios corpo-vocal visando as possiblidades de modulações vocais, controle e
respiração do dialogar poético.
Módulo III (Experimentação e criação de efeitos sonoros a partir do espaço): A atriz Júlia
M. Valério convidará os participantes a participar de um passeio pelo universo sonoro do
lugar/espaço. Esse módulo é um convite estimulante para exercitar a escuta e a criação
a partir do que o espaço propõe. Durante este passeio será utilizado o gravador do celular
para captar os sons do ambiente ou produzidos pelos participantes em contato com este
ambiente para que possa ser posteriormente aproveitado para o módulo de criação
cênica.
Módulo IV (compartilhamento do experimento criado colaborativamente com os
participantes): essa atividade visa apresentar o material final do curso para o público em
geral.

Dia: 13.02.2021
Hora: 14:00. Duração: +/- 2h.
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CORPO TRANSCENDENTAL

Kleber Benicio (Teatro do Irrupto)

Experiência do corpo e do tempo são duas justaposições que nos perseguem na vida;
confere a atenção e subjetividade que compõe um todo-único de nossa essência. Às
vezes, o peso da existência obriga-nos a ausentar-se por um tempo, dos outros, da vida
e de si. Esse exilar-se temporariamente é um recuperar-se para ter fôlego e continuar.
Exilar seria a pista para a evolução? Quando foi a última vez que olhou para dentro? Neste
corpo frágil de sentimentos e desespero, existe um além, adormecido, eu diria, talvez
esquecido com o tempo. Então eu me despertei com isso de a-sociabilizar
contemporaneamente, recuei. Não porque eu quis, claro. Mas porque meu corpo gritou
alto, desabei. Processo longo, cravado em desejos utópicos, e nada tinha haver com a
materialidade das coisas físicas. O corpo com o tempo libera suas tóxicas viciosas que
alimentam suas células. Ficamos em abstinência facilmente. E ai de nós, se não
estimularmos mais, paranoicos permanecemos por alguns dias; aos poucos, este corpo
vai sossegando, desacreditando, falhando...
Isto é apenas uma chave do universo particular de nossa temporária fantasia. Minha
vivência será a busca da relação do cuidar de si, do olhar para dentro e para a energia das
coisas místicas. Foi o que mais aprendi com esse 2020. Buscaremos a transcendência ou
tentaremos, já que acredito enquanto pessoa que nossas práticas são nossas
fragmentações mais íntimas do nosso ser.

Por favor usem vestimentas leves e cores claras.


Dia 14.02.2021
Hora: 9:00h.
Duração: 2h
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AÇÕES INVERSAS DE CONTATO, BASEADO NO MÉTODO MELODRAMÁTICO

Trupe dos Pensantes

Iremos conduzir uma oficina baseada e formulada no que tange ao gênero


melodramático, por meio de jogos de improvisação, criação de personagens e exercícios
de treinamento corporal e vocal. Levando em consideração o distanciamento social, é
importante lembrar que vamos utilizar também cenas e acontecimentos da vida
cotidiana, vivenciados durante a pandemia. Antes, partia do intuito de nossos trabalhos
a possibilidade do toque corpo a corpo. Agora, ao contrário, faremos um imã ao
contrário, capaz de repelir e distanciar sem se tocar de modo a criar um campo
magnético que impeça o contato físico. Nesse sentido, a prática apresenta uma
densidade maior de ação e reação, respeitando assim as condições atuais.

Pedimos a colaboração de todes os envolvidos, o uso de tênis, para uma melhor


experiência e realização do nosso trabalho.

Dia: 14.02.2021
Duração: 1h30
Hora: 14h.
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