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FORMAÇÃO DO PESQUISADOR E SOFRIMENTO MENTAL:

UM ESTUDO DE CASO

*
Rita de Cássia Ramos Louzada
#
João Ferreira da Silva Filho

RESUMO. Neste trabalho foram investigadas as relações entre formação de pesquisadores e sofrimento psíquico.
Trabalhamos com relatos de um grupo de 21 pós-graduandos inscritos num programa de excelência, na área biomédica, numa
universidade pública brasileira. Utilizamos metodologia qualitativa (método biográfico e observação participante). O material
encontrado revelou que, neste grupo, o sofrimento psíquico faz parte do percurso acadêmico, aparece nomeado de diversas
formas e em diferentes graus de intensidade. Na maior parte dos relatos o sofrimento foi relacionado a dificuldades
institucionais (financiamento, por exemplo) na condução do projeto de pesquisa, na divulgação de trabalhos e no processo de
“tornar-se pesquisador independente”.
Palavras-chave: pós-graduação, pesquisadores, sofrimento mental.

THE RESEARCH FORMATION AND MENTAL SUFFERING:


A CASE STUDY

ABSTRACT. The relationship between researcher formation and mental suffering has been investigated in this work.
Reports from a group of 21 graduate students enrolled in a biomedical excellence program at a Brazilian Federal
University were analyzed. Qualitative methodology was used, comprising biographical method and participant
observation. The material found revealed that mental suffering was part of the academic pathway followed by this
group and appeared classified under different names and different degrees. In most reports, the suffering was related to
institutional handicaps (e.g. sponsorship), difficulties in carrying out the research project, divulging the papers and
“becoming an independent researcher.
Key words: graduate studies, researchers, mental suffering.

A preocupação com o impacto da formação de pesquisas (Heins, 1984; Herzog, Norman,


sobre a saúde dos estudantes não é um tema novo. Rigotti & Pepose, 1986; Helmers, Danoff, Steinert
Na graduação ele tem sido bastante explorado & Leyton, 1997; Kreger, 1995; Towes, Lockyer,
(Firth, 1986; Grau, Arias & Ghisays; Hudson & Dobson, Simpson Brownell, Brenneis,
O'Regan, 1994; Vitaliano, Maiuro, Russo & Macpherson & Cohen, 1997; Tyssen, Vaglum,
Mitchell, 1989; Wolf, 1994, 1999, entre outros), Gronvold, & Ekeberg, 2001, entre outros). A
mas o mesmo não se pode dizer a respeito da maior parte do material encontrado, no entanto,
formação pós-graduada. Embora as pesquisas não tende a agrupar estudantes de graduação, pós-
sejam numerosas, aos poucos o tema do graduação e pesquisadores estabelecidos, sem que
sofrimento vem sendo relacionado à formação de se especifiquem as características de estrutura e
pesquisadores. Desde a década de 1970 já é demandas exclusivas da pós-graduação.
possível encontrar pesquisas (Fang & Howell, Vale lembrar também o debate que se estabeleceu, a
1977; Spiro, Roenneburg & Maly, 1979). Depois partir de 1998, com o suicídio, de grande repercussão,
dessa década é possível encontrar maior número

* Doutora em Psiquiatria e Saúde Mental- Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade Federal do Espírito
Santo-UFES.
#
Doutor em Psiquiatria - Instituto de Psiquiatria/ UFRJ. Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal,
Faculdade de Medicina Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.

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de um doutorando de Harvard (Schneider, 1998; (2004), abordou, no âmbito da psiquiatria, 146 pós-
Fischer, 2000)1. graduandos (99 mestrandos e 47 doutorandos) em um
No âmbito nacional, a atividade de pesquisa tem centro de saúde mental da Universidade Federal de
sido investigada com freqüência crescente, a partir de São Paulo. Observaram que a maioria dos pós-
temas como investimentos em pesquisa, formação da graduandos que buscaram ajuda psiquiátrico-
comunidade científica, produtividade científica, perfil psicológica eram do sexo feminino (68,5%) e solteiras
da ciência, financiamento de postdocs, pós-graduação (71,9%). As crises apresentadas foram classificadas
e trabalho (Schwartzman, 1979; Leta & De Meis, em crises adaptativas ou psicopatológicas. As
1996; Reis, 1998; Velloso, 2002). Embora haja uma categorias diagnósticas mais freqüentes foram:
tendência a considerar a educação em ciências como transtorno depressivo e ansioso. O artigo aponta ainda
uma atividade fundamental e necessária para o a possibilidade de identificação precoce de estudantes
desenvolvimento do país, a formação de com distúrbios emocionais e a necessidade de
pesquisadores na pós-graduação, apenas nos últimos encaminhamento para serviços especializados, que
tempos começa a ter destaque. Isso é o que se vê nos forneçam atenção estruturada e confidencial. Alertam
estudos de Carmo (2001), Leta (1999), Peixoto também no sentido de que os orientadores e
(1994). programas de pós-graduação estejam empenhados na
Enfocando especificamente o sofrimento de construção de um ambiente de treinamento acolhedor.
pesquisadores, foi possível encontrar duas pesquisas Nossa pesquisa distingue-se desses trabalhos do
brasileiras. A primeira, conduzida por De Méis, ponto de vista metodológico e teórico. Aqui
Velloso, Lannes, Carmo e De Meis (2003), partiu de apresentamos relatos de sofrimento2 em doutorandos e
entrevistas com pesquisadores estabelecidos e pós- mestrandos, ante a atual organização da pós-graduação
graduandos da área de bioquímica e identificou a brasileira, a partir de uma abordagem exclusivamente
existência de síndrome de burnout naquele grupo e qualitativa. Além disso, os autores que nos guiam são:
21% das pessoas pesquisadas com pelo menos um Bourdieu (1989; 1997; 2001) e os que compõem o
atendimento psiquiátrico ou psicológico. Em suas campo da saúde mental & trabalho (Dejours, 1988;
conclusões esses autores afirmam que o crescimento Sato, 1992; Seligmann-Silva, 1994, entre outros).
da ciência brasileira se dá graças a um enorme Embora nosso foco seja a formação de pesquisadores,
desgaste emocional das pessoas envolvidas. A consideramos que as mudanças observadas na pós-
segunda, realizada por Nogueira-Martins e cols. graduação só ganham sentido se articuladas com as
que vêm sendo observadas no mundo do trabalho
1 acadêmico/ científico3
O pós-graduando, Jason D. Altom, 26 anos, era estudante do
Departamento de Química. Trabalhava no grupo do Professor de
De acordo com Seligmann-Silva (1994),
Química Orgânica, Elias J. Corey., laureado, em 1990, com o consideramos a necessidade de estudar o fenômeno do
Nobel. A morte do rapaz produziu bastante comoção sofrimento (no nosso caso, durante a formação de
especialmente porque era considerado um excelente estudante. O pesquisadores) através de múltiplas dimensões
debate que se seguiu relacionava-se ao fato de tratar-se do quinto (multiterritorialidade), que vão desde o nível micro (os
suicídio na Universidade de Harvard entre 1997-1998. A partir estudantes e suas vivências subjetivas) até o nível
daí a saúde mental dos alunos passou a ser pensada por aquela macro (questões políticas, institucionais).
universidade. Isso de tal maneira que, em 2001, foi inaugurado
um centro de convivência para estudantes, no prédio do
Departamento de Química. A iniciativa foi comemorada pelos
alunos. As matérias publicadas apresentam ainda declarações de
MÉTODO
estudantes resumidas na que se segue: “um pós-graduando pode
ser muito solitário, especialmente no campo das ciências”. Nesses Trata-se de pesquisa qualitativa, de tipo estudo de
artigos, todos de opinião, esses estudantes fizeram muitas caso. Foram realizadas 21 entrevistas individuais, com
referências à sobrecarga de trabalho num grupo de pesquisa: pós-graduandos (6 mestrandos e 15 doutorandos), de
muitas horas de trabalho, permanência num único experimento
durante meses e pressão por resultados. Todos esses itens foram
2
considerados danosos para o cotidiano dos estudantes. Com o Dejours e Abdoucheli (1994) definem sofrimento (na
suicídio de Altom, esta pressão alcançou proporções críticas, situação de trabalho) como “a vivência subjetiva
impulsionando o debate que resultou em mudança quanto à intermediária entre a doença mental descompensada e o
orientação de alunos da pós-graduação do departamento: passou- conforto (ou bem-estar) psíquico”.
se a atribuir três orientadores, ao invés de um único, para cada 3
Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla onde
estudante. Vale lembrar que Altom havia deixado um bilhete, são articulados os temas da formação, do trabalho científico
fazendo referências ao modelo de orientação existente àquela e da saúde mental de pós-graduandos brasileiros (Louzada,
época na instituição. 2005).

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ambos os sexos, na faixa etária de 25 a 52 anos, na pesquisas nacionais vem sendo realizada – têm se
maioria solteiros. Os entrevistados compunham a modificado rapidamente, e isso em sintonia com
totalidade dos estudantes de dois laboratórios de um tendências internacionais (Easthope & Easthope,
mesmo programa de pós-graduação. Todos estavam, à 2000; Slaughter & Leslie, 1999). Um marco
época da pesquisa, formalmente matriculados nesse importante foi a edição da Lei de Diretrizes e Bases da
programa de pós-graduação, nível de excelência, na Educação Nacional, em 1996, que definiu, por
área biomédica, de uma universidade pública exemplo, categorias diferenciadas de instituições de
brasileira. Apenas uma minoria dos sujeitos possuía ensino superior. Outro dado é o flagrante
ascendentes familiares envolvidos com pesquisa esvaziamento das instituições públicas de ensino
(professores universitários ou pesquisadores). A superior. Um exemplo aqui é a relação
maioria era oriunda de classe média, filhos de professor/estudante nesse âmbito: atualmente, cerca de
pequenos comerciantes, funcionários públicos e 50 mil professores lecionam nessas instituições, sem
profissionais liberais. Apenas um sujeito tinha origem que se altere esse contingente desde o início da década
rural. Os pós-graduandos, na maioria, dedicavam-se de 1990; já o número de alunos cresceu bastante nesse
exclusivamente às atividades do curso. Dois deles, período (de 356 para 600mil).
além da pós-graduação, mantinham vínculos Em segundo lugar, observamos um crescimento
trabalhistas: um como professor substituto importante da pós-graduação brasileira nos últimos
(universidade pública) outro como professor efetivo anos, bem como da produção científica e do número
em universidade privada. Vale destacar também que de alunos nesse nível de formação5.
um dos sujeitos era aposentado. Em terceiro lugar, registre-se que o fomento à
As entrevistas foram conduzidas conforme o pesquisa no país esteve praticamente estagnado de
método de história de vida (tópica) (Minayo, 1994). 1998 a 2000, ano em que o Governo Federal acenou
Trabalhou-se, portanto, com entrevistas abertas. Na com um conjunto de medidas que instituíam um novo
pergunta inicial solicitava-se ao sujeito que sistema nacional de fomento à pesquisa, com recursos
caracterizasse seu percurso acadêmico; seguia-se dos “fundos setoriais”6.
então uma conversa, com liberdade ao entrevistado de Por último, deve ser destacada a Lei de Inovação
tematizar e temporalizar a seu modo. As interferências Tecnológica, recentemente aprovada. Esta lei vem
do entrevistador visavam esclarecer pontos/temas sendo apontada como peça-chave para o
levantados pelo próprio pós-graduando e incluir, caso desenvolvimento da ciência e tecnologia nacionais na
não surgissem no relato, os temas “escolha da medida em que articula o trabalho de pesquisa
profissão/atividade”, “dia-a-dia da pesquisa” e realizado em instituições públicas com as atividades
“vivências de sofrimento e prazer”4. empresariais.
As entrevistas foram gravadas, integralmente Ao menos estes eventos e tendências, mais nítidos
transcritas e submetidas, posteriormente, à análise de a partir de meados da década de 1990, trazem como
conteúdo (Bardin, 1987). Além das entrevistas, foi conseqüência um ritmo intenso nas atividades das pós-
possível também contar com dados recolhidos a partir graduações. Surgem novas exigências para que se
da observação participante de algumas atividades alcance o nível de excelência em pesquisa. Os
desenvolvidas no departamento (seminários, cursos, programas de pós-graduação passam a ser mais
cotidiano de laboratórios), durante os anos de 1999 e cobrados no que se refere à produtividade científica e
2000. estimula-se a conclusão mais rápida de cursos de
mestrado e doutorado. A mudança incide diretamente
1O TERRITÓRIO: O CENÁRIO INSTITUCIONAL nos programas de pós-graduação, mas também sobre
os docentes-pesquisadores, pós-graduandos e
À época da pesquisa, a atividade científica no candidatos à pós-graduação. Ao contrário do que
Brasil vivia momentos difíceis em função de apontam alguns autores, a cultura da produtividade
importantes restrições orçamentárias e, além disso, não se restringe a níveis departamentais. Esta passa a
inúmeras transformações estavam em curso no âmbito
acadêmico-científico. 5
Cf. discurso proferido pelo Presidente da República em
Primeiramente, destacamos que as diretrizes da 3/4/2000 (Jornal da Ciência, 14/4/2000).
universidade brasileira – onde a maior parte das 6
O lançamento da nova proposta quanto ao sistema de
financiamento da pesquisa científica e tecnológica
brasileira foi feito em 3/4/2000 pelo Presidente da
4
Para este artigo apenas o tema do sofrimento foi República. (Jornal da Ciência, 14/4/2000). Vários fundos
considerado. já se encontram em funcionamento.

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ser, a partir de determinado momento, a regra para não conseguiam ter muitos amigos ali. De maneira
avaliações de todos os programas de pós-graduação no geral, no entanto, os entrevistados falavam de um
país. relacionamento institucional bom e afirmavam que
Em resumo, à época dessa pesquisa existiam nas uma característica do departamento era a
pós-graduações brasileiras um grande contingente de solidariedade. A isto relacionavam, especificamente, a
alunos, aumento do número de titulados a cada ano grande disponibilidade no compartilhamento de
(6.000 em média), cobrança de produtividade aparelhos, reagentes e informações entre os
(especialmente via publicações) e preocupação com o laboratórios. Uma via para aferir esta última
tempo médio de titulação. Tal quadro traz como característica era a intensa comunicação eletrônica
conseqüência uma maior sofisticação nos processos entre os estudantes, docentes e funcionários do
seletivos e termina por valorizar a “real capacidade” departamento, onde se podiam ver mensagens sobre
de produção dos futuros alunos, com a criação de eventos, solicitações de bibliografia, reagentes,
estágios – assim nomeados ou não - anteriores à instrumentos etc.
entrada formal nos cursos de pós-graduação. A relação dos pós-graduandos com seus
orientadores também era digna de nota. Em geral os
pós-graduandos sentiam-se apoiados por seus
2O TERRITÓRIO: O AMBIENTE DA FORMAÇÃO7 orientadores. Estes, no entanto, nem sempre estavam
disponíveis, o que terminava produzindo a prática da
Os relatos colhidos apontaram, no âmbito do
chamada “orientação em cascata”, em que alunos mais
programa de pós-graduação em foco, exigência de
grande dedicação à atividade de pesquisa. Isso podia avançados apoiavam os mais novos nas atividades
incluir finais de semana e até 12 horas de atividade acadêmicas, gerando estreitas relações de pesquisa
diárias, a depender somente das exigências das entre doutorandos, mestrandos e alunos de iniciação
atividades desenvolvidas pelo pós-graduando. científica, em projetos estreitamente articulados.
As disciplinas que os alunos deviam cumprir, para Outra observação importante é que a formação
compor os créditos necessários à conclusão do curso, desses jovens pesquisadores ocorria num ambiente
eram em geral curtas e condensadas, de modo que a onde as trocas eram inúmeras, tanto interna quanto
maior parte de suas atividades durante o curso externamente (nível nacional e internacional). Como
concentravam-se na pesquisa propriamente dita. resultado do ritmo intenso de trocas científicas
Os pós-graduandos tinham uma inserção observava-se, por exemplo, a inserção de alunos muito
institucional importante, com a participação em cursos jovens em projetos de grande complexidade.
para estudantes de níveis inferiores; trabalhavam Embora existissem, no momento da pesquisa,
também na confecção de relatórios, projetos para a importantes restrições orçamentárias ao setor de
captação de recursos e atividades de manutenção do ciência e tecnologia, a maior parte dos pós-
laboratório (compras, obras, segurança). Tais graduandos desse programa recebia apoio
atividades tomavam como referência o dia-a-dia e as
financeiro de agências de fomento brasileiras. Além
necessidades dos laboratórios, muito mais do que o do
disso, muitos deles encontravam-se envolvidos em
próprio departamento, e em geral os projetos
individuais eram muito articulados entre si e com a (ou em busca de) colaborações com outros
linha de pesquisa mais geral de cada laboratório. departamentos e instituições.
As relações entre os pós-graduandos eram
obrigatoriamente próximas, já que permaneciam
3O TERRITÓRIO: AS VIVÊNCIAS DE
muitas horas diárias naquele local, compartilhando
SOFRIMENTO
aparelhos/instrumentos e espaços. A qualidade dessas
relações variava, segundo os alunos, conforme a Nas entrevistas, todos os pós-graduandos fizeram
liderança do laboratório, as características dos referência a algum tipo de mal-estar, atual ou pretérito.
próprios estudantes e a forma como o trabalho era Tal como apontado nas pesquisas realizadas por
desenvolvido. Foi possível ouvir de alguns pós- Dejours (1988) e sua equipe, o mal-estar que aparece
graduandos que se sentiam em família e de outros que em nossos dados não pode ser caracterizado como
doença mental, em sentido estrito. O que temos, na
7
A maior parte das informações contidas neste item baseou- maioria dos casos, são vivências de sofrimento
se nas observações feitas a partir do cotidiano dos nomeadas de várias formas: “angústia”, “estresse”,
laboratórios e algumas atividades do
“preocupação”; “ansiedade”; “tensão”, como
programa/departamento.

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poderemos ver adiante8. Além disso, vale ressaltar que que mudar porque eu não ia ter uma coisa
as referências a vivências de sofrimento foram assim, que fosse dar uma tese de
apresentadas pelos entrevistados em intensidades e doutorado...Agora... algumas coisinhas que
freqüência muito singulares, variando desde uma eu gostaria de ter feito, mas enfim...Aí no
simples preocupação até um intenso mal-estar, começo [do doutorado] eu ainda estava
tristeza, somatização ou depressão. Essas vivências, de resistindo a.. a mudar, como se fosse assim:
modo geral, foram relacionadas, no percurso aquele não é o meu trabalho, né? Até passar a
acadêmico, a: ser o meu trabalho demorou um pouco
[pausa longa] [...] O trabalho de mestrado
• condução do projeto de pesquisa; principal foi tudo eu que decidi fazer, desde
• divulgação de trabalhos; o começo... [...] Eu sentia um objetivo, eu
• “tornar-se pesquisador independente”; queria provar uma coisa....uma idéia que eu
tinha tido. Foi um trabalho muito... é..
• problemas institucionais. recompensante, né? Já no doutorado não...”
A condução do projeto de pesquisa foi muito
referida como produtora de mal-estar. Os entraves “Eu ainda não sei te dizer qual que é a minha
observados foram relacionados especialmente ao questão hoje, sabe?”
próprio processo de construção do conhecimento, que
é complexo: os pós-graduandos precisam trabalhar, ao No primeiro relato aparece a “resistência” a
mesmo tempo, com um grande volume de pesquisas já mudar de projeto, na passagem do mestrado para o
realizadas (através da leitura de artigos, livros) e com doutorado. Essa dificuldade foi relacionada ao
suas próprias idéias, num esforço contínuo de interesse em terminar ou dar continuidade ao projeto
articulação. Além disso, precisam contar com recursos anterior. O relato é interessante na medida em que a
materiais, nem sempre existentes. O ritmo da pesquisa, aluna revela sua “estranheza” em relação ao novo
portanto, é dependente de inúmeras variáveis, que se projeto. Por indicação de seu orientador, engajou-se
relacionam com as características do campo estudado, nessa nova pesquisa, cujas bases já haviam sido
a criatividade do pesquisador, o relacionamento com o lançadas em projeto anterior do próprio laboratório.
orientador, os recursos existentes, o volume de Tratava-se, portanto, de uma adequação de seu próprio
discussão no ambiente de trabalho, as características caminho acadêmico à experiência de sucesso de uma
do projeto, o tamanho do laboratório, as exigências
determinada linha de pesquisa daquele laboratório.
das agências de fomento etc.
Isso levou tempo (“até passar a ser o meu trabalho
Diante de tudo isso, os pós-graduandos
demorou um pouco”). Ou seja: a idéia gestada no
detalharam esse item, de tal maneira que foi possível
nível do mestrado teve de ser abandonada, produzindo
identificar subcategorias. As dificuldades na condução
da pesquisa foram mais relacionadas a: “estranheza” na relação com o novo tema, no
doutorado.
• definir/mudar o problema da pesquisa; Esta situação articula-se com um relato ouvido,
• ausência de resultados/montagem de uma história a numa conversa informal, de uma pesquisadora que já
partir dos experimentos; havia passado por aquele departamento, a respeito de
• existência de múltiplos projetos/tarefas “projetos institucionais”:
simultâneos.
“O fato é que você precisa ter claro que [ali]
Quanto a definir/mudar o problema da pesquisa, você faz parte de um grupo e que o teu
destacamos dois relatos: um de uma doutoranda e o projetinho faz parte de um projeto maior. Só
outro de uma mestranda, respectivamente: assim as coisas fazem sentido”.

“Eu acho que eu tinha um pouco de Dito de outra maneira, a possibilidade de


resistência, tinha muita coisa que eu ainda experimentar mal-estar ou bem-estar quanto a esse
queria fazer mas... Enfim, realmente tinha
modo de organização da pesquisa parece ter relação
direta com o modo como o estudante “vê” a situação;
8
Colhemos apenas um relato de doença (depressão), com e ele “vê” mais ou menos naturalmente, conforme o
necessidade de acompanhamento psiquiátrico e psicológico.
maior ou menor êxito de seu processo de ordenação
Isto, no entanto, não quer dizer que inexistiam outras
situações semelhantes, mas apenas que não nos foram (Bourdieu, 1989), ou seja, em função do processo de
relatadas. socialização a que foi/é submetido, dos valores e

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comportamentos que vai assimilando para, Este momento, em que a pesquisa “fica parada” é
efetivamente, poder tornar-se um elemento daquele também referido como ausência de resultados. Pode
curso/departamento. ocorrer em função do próprio processo de construção
O mesmo se pode dizer com relação à afirmação – do conhecimento, por problemas inerentes ao projeto
segundo relato citado - de uma mestranda a respeito de ou por dificuldades do pós-graduando numa técnica
não saber “qual é sua questão para a pesquisa”. específica. De toda maneira, pode produzir mal-estar,
Embora apresentasse linhas gerais de interesse, essa como aponta também esta outra pós-graduanda:
aluna, formalmente matriculada no mestrado, não
“Às vezes você começa a fazer uns
tinha definido, no início de seu curso, o problema experimentos e as coisas vão se encaixando.
sobre o qual iria trabalhar. Isto faz pensar nos pré- Então vai meio que contando uma historinha,
requisitos para a admissão. Peixoto (1994), interessada né? Aí fica bonitinho, mas às vezes não, às
na formação de pesquisadores e tendo entrevistado vezes você tem um monte de resultado...e
alunos e professores de cursos de pós-graduação, nível agora, o que que eu faço?”
A, no Rio de Janeiro, assinalou que havia, na época de
sua pesquisa, grande diversidade de critérios para a Aqui se vê claramente que, diante da inexistência
seleção nos diferentes programas de pós-graduação: de regularidade nos resultados, ou seja, ausência de
em alguns deles exigia-se, por exemplo, a definição do resultados, surge uma vivência de dúvida (“o que que
projeto a ser desenvolvido, em outros, não. eu faço?”). O pressuposto neste último relato é que,
através do processo de fazer e refazer experimentos, o
No programa em foco havia, sem dúvida, grande
caminho da pesquisa será encontrado. Esta é, sem
peso para o envolvimento anterior no trabalho de
dúvida, uma parte do trabalho de pesquisa que
pesquisa, muito mais do que exigências de definições
realizam, mas, além disso, tal atividade exige
claras e sistematizadas a respeito do futuro projeto.
articulação com um volume de conhecimento do
Tal característica podia ser percebida na forma como a campo que é, em geral, requerido (encontrado) do (no)
maioria dos pós-graduandos entrevistados havia orientador. Essa foi uma vivência de entrevistados de
chegado ao departamento: via iniciação científica ou ambos os níveis - variando conforme as características
cursos de atualização. Estas atividades poderiam do percurso na pesquisa - mas especialmente de
evoluir, no tempo e conforme o interesse das partes mestrandos.
(orientador e orientando), para outros níveis de Vale lembrar, aqui, o achado de Alvarez (2001/
treinamento, até alcançar (ou não) a pós-graduação 2004) em pesquisa com físicos brasileiros. Falando do
stricto sensu9. trabalho oculto, mental, na atividade dos físicos, a
Vale notar que, embora a maioria dos pós- autora identifica frustração e a ansiedade produzida no
graduandos estivesse nos laboratórios desde algum contato alongado com as idéias, inicialmente pouco
tempo, as idas e vindas do trabalho científico sistematizadas; a incerteza com relação à viabilidade
apareceram como produtoras de angústia: de determinado projeto/problema e a frustração por
dificuldades na obtenção de resultados. Embora este
“Eu acho que o processo científico ele é meio não fosse o foco da pesquisa, Alvarez ouviu com
assim: você fica, tem uma hora que você freqüência referências a alterações no sono de seus
empaca e fica parado, parado, batendo cabeça, entrevistados.
batendo cabeça.. E ai na hora que vai, vai
Outra fonte de mal-estar foi citada inúmeras
mesmo... Aí desanda, aí sai.... e vai, produz,
produz, até que chega uma hora que ele trava de vezes: as múltiplas tarefas simultâneas. Se, por
novo. Só que a primeira vez que ele trava é um lado, essa experiência traz uma amplitude
horrível, né? Porque você não sabe que é assim. maior à formação do pós-graduando, por outro
Da segunda vez você já fica mais calmo: pode significar interferências no tempo para o
trabalha que vai chegar uma hora que vai desenvolvimento de projeto de tese/dissertação.
conseguir a solução... Mas da primeira vez é
As tarefas mencionadas, para além da própria
horrível! É superangustiante, né?”
pesquisa, tinham caráter didático, mas também
foram mencionadas: confecção de
relatórios/projetos, seleção de alunos para cursos
de atualização e atividades relacionadas ao
9
Ouvimos de alguns entrevistados que esse era um processo cotidiano do laboratório para as quais inexistiam
de “seleção natural”, expressão que desde sempre funcionários do staff (compras, controle de
estranhamos. segurança).

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Essa multiplicidade de atividades também aparece De Méis, Velloso, Lannes, Carmo e De Meis
no relatório de um workshop sobre educação pós- (2003) já apontaram que a publicação transformou-se
graduada, na área de Química10, realizado nos EUA. no momento mais importante para o pós-graduando
Em determinado momento acompanha-se uma brasileiro, em detrimento da defesa da tese. Por isso, a
reflexão a respeito do duplo papel do pós-graduando: rejeição de artigos, por exemplo, pode ser vivida como
aluno e instrutor. rejeição ao próprio pós-graduando, uma forma de não-
reconhecimento ao seu “talento científico”12
Graduate students have just come from an Além de problemas na condução e divulgação da
environment in which faculty talked at them. própria pesquisa, apareceram também muito citadas as
Now, they have to adjust to a new living dificuldades em “tornar-se um pesquisador
environment, figure out the university`s
independente”. Embora não tivessem vivenciado
bureaucracy, excel in graduate courses, find a
research advisor and, by the way, they have diretamente essa dificuldade, na medida em que ainda
to teach. estavam em formação, os pós-graduandos falavam
sobre quão delicado esse processo pode ser. Para
[...] They have only watched others teach,
“tornar-se um pesquisador independente” eles devem:
and then we ask them to teach. They have
read about science and done directed
obter financiamento, orientar alunos de pós-
laboratory experiments, but have done very graduação, publicar sem o auxílio do orientador e ter
little research, yet we expect them to know sua própria linha de pesquisa. Alguns relatos:
what science is all about [...] Moreover, they
have to teach in the way that we dictate, “[é] uma parte dura [...] acho que todo
which may or not be consistent with their mundo passa por isso mesmo. Eu acho que
owns views about teaching (National essa parte de você estabelecer uma linha de
Academy of Sciences, 2000, p. 75) pesquisa... [Isso] te angustia assim[...]”
“[...]isso [fazer pesquisa de forma
Tais preocupações poderiam ser consideradas independente] gera um estresse grande”.
também para pensar as atividades de pós-graduandos
brasileiros. Tal como a função de ensino, pós- Ou seja, se por um lado esses pós-graduandos
graduandos brasileiros de algumas áreas também são formam-se numa relação estreita com o eixo temático
requisitados a desenvolver inúmeras outras tarefas do laboratório - fenômeno já apontado como
para além do projeto de tese; e a resposta a esse tipo característica muito marcante na ciência brasileira
de demanda, não há negar, relaciona-se diretamente (Reis, 1998) – por outro sabem quão importante é
com a consciência que esses pós-graduandos têm do separar-se disso, ter/definir uma linha de pesquisa ao
alto nível de competição a ser enfrentado para a futura final do doutorado. Somente a partir daí podem,
inserção laboral11. efetivamente, pensar em alcançar todos os requisitos
Outro item relacionado ao mal-estar foi a exigidos a um “pesquisador independente”.
divulgação de trabalhos. Surgiram respostas Esta não é uma realidade exclusiva desses
envolvendo dificuldades em escrever, em lidar com a estudantes ou dessa pós-graduação. Os jovens
rejeição de artigos e com a competição no momento pesquisadores americanos, por exemplo, também
da publicação. Os entrevistados tinham clareza a encontram dificuldades semelhantes ao final do curso.
respeito das desigualdades existentes na estruturação Segundo Stephan e Mangematin (1997),
do campo científico e sua influência no momento do
reconhecimento de seus trabalhos pelos periódicos Ils doivent prouver, en particulier, qu’ils
considerados “bons”. O mesmo se pode dizer a sont capables de créer leur propre
respeito das condições em que se formam, laboratoires, c’est-à-dire de trouver les
consideradas “adversas”: o tempo de duração dos fonds pour faire fonctionner le laboratoire
(non seulement por acheter les matériaux
cursos e a fragilidade das bibliotecas são
et équipements mais aussi pour payer les
especialmente citados. assistants de recherche – des étudiants de
niveau maîtrise -, pour financier des
postdoc et des techniciens), fonction que
10
Cf. National Academy of Sciences (2000) Graduate
Education in the Chemical Sciences. Issues for the 21st 12
Vale lembrar que esta exigência (publicação), por vezes
Century: Report of a Workshop. durante a pós-graduação, é relativamente recente no país e
11
Vale confrontar a discussão realizada por Louzada e Silva existem indícios de sua relação com o aumento da
Filho (2003) a esse respeito. produtividade científica brasileira.

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458 Louzada & Silva Filho

relève de la responsabilité individuelle du importante na medida em que torna coletiva uma


chercheur, l’ université fournissant les experiência que, quando chega a ser expressa, é feita
financements nécessaires au démarrage
apenas no singular.
(Stephan & Mangematin (1997,p. 38).
As vivências subjetivas de pós-graduandos –
tomados aqui como pesquisadores de fato - talvez
Outra relação estabelecida, nos relatos, com o
possam ser, em parte, aproximadas às dos pilotos de
sofrimento vivenciado foi com problemas
caça, estudados por Dejours (1988). Esse autor nos
institucionais. As respostas incluíam a rotina no
informa que os pilotos passam por uma “corrente
próprio laboratório, a estrutura da pós-graduação, a seletiva”, que envolve rígida seleção física, intelectual
universidade e as instituições financiadoras. Uma pós- e psíquica. Quanto a esta última Dejours nos diz: “ela
graduanda se queixa do ritmo de trabalho no resulta do jogo oculto das relações que acompanham a
laboratório e observa: progressão do aluno desde os testes de entrada até a
qualificação de piloto operacional” (p. 94). Tal
“[...] hora de almoço é hora de almoço, as
situação pode, a nosso juízo, ser aproximada à
pessoas têm que entender que têm que
almoçar. Não têm que ficar fazendo journal, atividade dos pós-graduandos aqui estudados, na
têm que almoçar, têm que dar chance ao medida em que estes são também permanentemente
estômago, têm que dar chance ao corpo, avaliados. Vários de nossos entrevistados chamaram
né?!” esse processo de “seleção natural”, expressão que
descreve o que ocorre no caminho da formação. Nesse
Outros pós-graduandos estranham as regras das caminho ocorrem algumas desistências de candidatos
agências de fomento: a pesquisadores. Segundo alguns relatos, os
candidatos que ficam pelo caminho “descobrem que
“Ela [instituição financiadora] quer que você aquela não é a sua praia” ou “não se divertem muito
tenha as coisas bem estabelecidas, que você com a atividade”.
cumpra o cronograma do seu projeto, mas Além disso, talvez se possa dizer que, tal como os
enfim como é impossível você estabelecer pilotos de caça, os pós-graduandos precisam se manter
um projeto sem surgirem questões?... É meio sempre motivados, em suas palavras: “muito
imprescindível que eles tenham uma certa envolvidos”, em “busca de excelência”, “antenados”.
flexibilidade com relação a mudanças ou Vale lembrar que os pilotos de caça estudados por
eventuais novas perguntas que possam surgir.
Dejours, quando não desejavam voar, eram
Mas não é muito fácil [...] eles não querem
rapidamente eliminados da equipe.
nem saber, eles querem saber de resultados!”
Em resumo, é mister notar que os relatos de mal-
Outra entrevistada acrescenta uma regra do estar aqui apresentados podem ser separados em duas
grandes categorias. Numa primeira categoria ficam os
programa de pós-graduação que imprime determinado
que continham as vivências mais agudas de sofrimento.
ritmo ao final do curso:
Todas essas referidas como pretéritas e superadas com o
“Mas aqui pra defender o doutorado você apoio de orientadores, da instituição (tolerância quanto a
tem que ter um artigo aceito, também, né? prazos, por exemplo) e eventualmente de profissionais de
Então eu tenho que correr porque em geral as saúde (psiquiatra, psicólogo). Numa segunda categoria de
revistas demoram 2 ou 3 meses pra relatos apareceram as vivências mais leves e ocasionais.
responder, enfim, tem que correr, mandar O material colhido, sem dúvida, tem a configuração do
logo o artigo, e isso que tá mais estressando e que é passível de verbalização, dadas as circunstâncias
a questão dos elementos que não pode deixar existentes no momento da pesquisa (condições/relações
de ir, né, no primeiro artigo... Mas eu acho de trabalho no laboratório; o momento da formação e as
que essa semana eu acabo de resolver e demandas existentes; a relação estabelecida com a
fecho. Aí vai demorar mais um mês pra eu entrevistadora, entre outras).
fechar as coisas todas do artigo e mandar o
artigo.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dito de outra maneira, há características na
organização desse trabalho que impactam os sujeitos Os dados colhidos revelaram que o sofrimento faz
produzindo, eventualmente, mal-estar (Dejours,1988; parte do processo de formação dos pesquisadores
Dejours & Abdoucheli, 1994). Esta é uma constatação entrevistados; manifesta-se em diversos níveis de

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Formação do pesquisador e sofrimento 459

intensidade e aparece nomeado de múltiplas formas. É atravessam todos esses territórios. Ou seja, faz-se
certo que o tema foi detalhadamente explorado por mister considerar: as relações e condições de trabalho;
poucos, mas referido por todos, ainda que as regras de fomento; a equipe de pesquisa; as
tangencialmente. Eventualmente esse sofrimento colaborações estabelecidas; a posição do laboratório
apareceu naturalizado; mas foi possível vê-lo também no campo; o nível de reconhecimento científico do
remetido a determinadas regras existentes no campo orientador; a posição do programa de pós-graduação;
científico. o estilo do orientador etc. Esses arranjos são
Resgatando os estudos do campo da saúde absolutamente singulares. Não há um único modo de
mental e trabalho, é possível dizer que o sofrimento organizar um laboratório ou departamento, estabelecer
expresso por esses sujeitos não pode ser colaborações ou parcerias em ciência. Muito menos
compreendido sem que se considere a organização uma única maneira de os estudantes responderem às
do trabalho a que estão submetidos. Se, como exigências da formação científica. Não há, enfim, um
vimos, o sofrimento é apresentado como natural único modo de fazer pesquisa nem de formar
por alguns pós-graduandos, isso revela, de pesquisadores. As combinações possíveis entre todas
antemão, a desconsideração da organização do as variáveis citadas, não há negar, impactam o
trabalho como fator relevante nesse processo de processo de formação como um todo e exigem
formação. No entanto, foi também possível reflexão permanente.
encontrar outros estudantes que fizeram referência Os resultados dessa pesquisa, por conta de tudo o
às condições e relações de trabalho na atividade de que foi dito anteriormente, devem ser cuidadosamente
pesquisa. Isso inclui o ambiente do laboratório e a considerados, na medida em que trabalhamos com um
cultura organizacional; mas não apenas. Há que se grupo muito específico de sujeitos; mas ao mesmo
dar destaque também às regras acadêmicas, aos tempo se faz mister reconhecer que todos programas
critérios definidores do sucesso científico por parte de pós-graduação do país - no momento atual - são
das instituições financiadoras, ao próprio processo levados a funcionar em padrão semelhante. Talvez se
de financiamento e sustentação da atividade de possam considerar esses dados como indicadores de
pesquisa. Em suma, há que considerar, no mínimo, uma determinada forma de fazer ciência e de formar
as políticas educacionais e de ciência e tecnologia pesquisadores, com conseqüências bastante complexas
vigentes no momento estudado. e singulares para os pós-graduandos; e essa
Como nos diz Bourdieu (2001), a ciência se complexidade, segundo alguns autores (Allen-
configura como campo, numa luta constante de Collinson, Hockey & Pourmir, 1998), os surveys não
grupos e indivíduos pelo poder de nomear, pelo conseguem acessar.
poder de dizer o que é e o que não é Por fim, levando em conta o aumento do
cientificamente relevante. Além disso, é necessário, número de pós-graduandos em nosso meio e as
segundo o mesmo autor, identificar a posição de dificuldades de inserção laboral dos jovens
determinado laboratório ou pesquisador dentro do pesquisadores, nossos achados apontam para: (1) a
campo. Ou seja, a aprovação ou não de um projeto necessidade de uma escuta mais cuidadosa desse
ou artigo, por exemplo, está relacionada a seu tipo de fenômeno (sofrimento), nem sempre
mérito, mas também à origem desse trabalho. assumido, conforme também apontado em Pourmir
Salvo melhor juízo, nossos achados possibilitam (1998) e (2) a urgência de políticas, ao menos nos
ampliar a noção de ordenação, tal como concebida campos da educação e da C&T, que abram, nas
por Bourdieu. Segundo esse autor, o processo de instituições universitárias e de pesquisa, espaços de
ordenação pode levar, a depender da forma como é produção compatíveis com as especificidades dessa
conduzido, ao êxito ou ao fracasso na carreira escolar. atividade e que abarquem não apenas os resultados,
A nosso juízo, talvez se possa falar desse processo de mas principalmente as singularidades existentes no
ordenação como um continuum, onde o êxito e a processo de trabalho científico.
falência completa estivessem no limite, as gradações
nesse processo pudessem ser consideradas e o
sofrimento incluído como um índice das dificuldades REFERÊNCIAS
existentes durante a formação; dificuldades que,
esperamos tenha ficado claro, não se reduzem ao Allen-Collinson, J. & Hockey, J. (1998). Capturing contracts:
estudante, à relação orientador-orientando, ao informal activity among contract researchers. British Journal of
Sociology of Education, 19, 4, 497-513.
ambiente de formação, ao financiamento ou
possibilidades de inserção laboral no futuro, mas

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460 Louzada & Silva Filho

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Endereço para correspondência: Rita de Cássia Ramos Louzada, Av. Venceslau Brás, 71- fundos, CEP 211941-590, Rio de Janeiro-
RJ. E-mail: ritacrl@uol.com.br

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