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TRÊS COISAS QUE NÃO SE DEVEM FAZER PARA SER UM ESCRITOR DO SÉCULO

XXI
1. Sábio é o que se nutre com o espetáculo do mundo
E ao mirá-la nem sente
Suas paragens distantes,
Qual esperança além
Vista de todos, vida.

Coroem-nos pâmpanos: sábio é o que se vivaz contenta,


Onde as horas se passem
Com um vento hiemal
E um corpo de outonais
Relvas primaveris.

Afluamos mundos no verão dos deuses, que nele cresce


O de sorrisos roxos
Jovem do vinho, córrego
Cadente dos semblantes,
Do mais fino e candente.

E inda recriados, saibamos, Cloé, Lídia, Neera,


Ser o papel imposto,
E das falsas curvas sérias
Façamos de felizes
Ríctus a via reta.

Soframos, sim, conjuremos o sofrer com o destino;


E ter fixo na estra,
Se na destra há o vinho,
Felizes como sangue,
Em prazer vivo ser.
Mas nós sabemos fazer que a cor do vinho reforce isto,
Composto de vivo antigo,
Melhor por nós mais vivo
O que sorvido deles,
Não certo um amor viu.

Quando a nossa onda nos tocar, peguemos quais volucres,


Lua sob o azul,
Só o dia viram, álacres,
Nas sem fins tortas áleas
Por todos, nossas rosas.
2. PRÓLOGO GERAL

Quando em meio de junho os ventos mostram


Seu rosto mais gelado, inda não forte,
Cobrindo a terra inteira no torpor
De que fogem os campos e as flores
Para dentro de si, buscando exílio
Do Zéfiro, a maldosa e injusta ira,
Cujo vento matou o de si e de Apolo
Jovem amor imberbe, tão inglório
Que hoje tais virações vêm sim do meio
Das florestas peludas que abre o deus
Co as duas mãos e sai correndo o fruto
Do frio que foge lesto, feito um puto
— É que a hora é chegada da partida
Da gente que saiu em romaria,
Vária gente que vem de terra vária
Agora sai da bela Cantuária
E se dirige à via maltratada
Da volta – que jamais há alguém que fale.

Então, os trinta e um que se preparam


E montam, na catedral, os seus cavalos
Começam a voltar pelo caminho
— E o que foi dito, eu que não repito —.
Quando já iniciados eles tavam
Em seus caminhos antes perpassados,
Co a alma toda imersa na certeza
Que a flor colhida e o sol serão os mesmos,
O Albergueiro começa a sua fala
E a verdade e não mais exato eu narro:
“Enfim chegou a hora de nos irmos!
Não há que reclamar, a estadia
Foi digna dos vinhos e dos deuses
Reunidos sob o signo da cerveja
Que nos deram a extremunção da noite
Ungidos no feliz fungar do sono.
Após tantos momentos assim lá
— Inda que alguns quiseram se apartar
Pra orar mais — a roda enfim girou
E a promessa era cada contar dois
Contos mais breves que antes e... Que merda!
Que ser do inferno vem com tanta pressa,
Acenando pra nós, todo sorrisos?!
Desembucha, caramba!” E o rapazito
De alta estatura e óculos nos olhos
Parou em frente a nós, qual estertório
Ambulante que horava pra falar
Nada, e se aproximou do meu Bayard,
E cingiu-me em seus braços a cintura,
E até pude sentir-me a perna dura
Que encostava em seu peito e sua barriga
E mais embaixo nas partes menos frias.
Olhava ele atento e os meus próximos,
Estes rindo ou, nervosos, se colocam
A lançar xingamentos, impropérios
Contra o rapaz de boca bem aberta,
Quase chorando, pobre rapaz, penso,
Está perdido ou quê?, mais alto penso.
Me solta e vai pra frente, qual bobão,
Acenando co a mão, de supetão,
Que andemos sem demora, enquanto fala
De costas pro caminho, chei de graça,
Se espreguiçando com suas mãos nas costas.

“Aaaah... que preguiça!


Corri a noite inteira, senão não dava
Pra encontrá-los de manhã na Cantuária!
Sorte que havia alguns poucos que também iam
E então não me perdi.
Nossa, bem que fazia tempo
Que eu queria visitar esse lugar,
Cujo céu é um leão feroz e gracioso,
Tem até unhas azuis!
Mas belo mesmo é esse solo sagrado,
Guardado por três aves enegrecidas por Apolo,
Como um de vocês contou, né, Provedor?
Ah, perdão,
Entendo a cara de vocês: não estou rimando.
Mas é que faço pra poupá-los
Dessa fala intervalada que eu tenho,
Prometo, às vezes, dar maior engenho
Pra que não haja grande estranhamento
Disso que não é prosa, mas inda é verso.

Tudo bem, antes que o Albergueiro me xingue


E me trate como o pobre Chaucer
Direi de onde eu vim:
Vim do país da brasa, onde esquenta o pendão
Da alegria, da gente bonita, feia, negra, azul e branca,
Mais diverso que o grupo de vocês
E de tamanho dá uns dez do país de vocês —
É enorme, onde o carnaval é maior que o mundo
Que brilharia sozinho com um sorriso nosso!
Mas é só brasa! Um sopro e puf. Chama, chama não é!
Se a brasa fosse chama, e a chama, alta,
Seria só carvão pra alimentar
O que já se alimenta com eles lá.
Este é o meu país. Bem-vindos, sintam-se à vontade
Que a casa não tem dono! Hah hah!
Foi de lá que eu vim, há séculos vendo essa viagem:
Cachorrinho latindo, rindo, lambendo os beiços e excitado,
Cansado de ser pós-contemporâneo, o que me brocha,
Brocha a terra, céu e mares, e a saudade.
Mas que exploda tudo, agora estou feliz!
É que gosto de quem olha só os pés,
Feio que nem um elfo e é reservado,
De cara chupada e que não sabe falar em versos rimados
Histórias que não sejam mais que merda — tão quietinho!
Corai-o, em verdade, de rosas!
Mas enfim...”

E quando ele falou o “Mas enfim...”


Cinco dias se foram co esse fito.

“Mas enfim, vou começar meu conto, que eu vejo que já estamos chegando no Tabardo.
Quer dizer, começo quando o dia raiar.”
CONTO DO POETA GAGO

Falo de um povo abençoado por Deus


Com o dom de falar com um ovo na garganta.
Apenas linhagem nobre de reis famosos,
Fervorosos sob o poder de Vênus Cytherea.
Para constituição do reino: luta de mãe com filho,
Luta contra o vizinho à direita, lambendo o saco do da esquerda,
Luta do povo contra a rainha danada,
E até do povo contra o povo. Bello povo!
E toda a história acaba na última luta covarde
Do povo contra um rei menor que eu e esse criado
Co essa face queimada, pobrezinho!!
O rei só queria fazer a vontade do seu Senhor
Que era essa: “Seu puto! Vá a navegar de navio
Para que a Palavra Minha seja fértil no mundo intairo!”
E o pobre rei com boquinha linda de boquete grita: “Sim!”
E o ovo de sua garganta estoura e lhe sai um pinto.
Juntou alguns navios, com alguma gente e algumas armas,
E desceu logo ali na África e apanhou como nunca (a boquinha manteve ele vivo!)
Anos e mais anos se passaram pra esse povo sem rei,
Muitos se disfarçaram, descobertos e decapitados.
Um dia o rei voltou, feio feito a peste (era o preço!)
E falou: “Voltai!”, mas, como estava feio e sem ovo na garganta,
Disseram: “Vá-te à merda!”, e foi enforcado em praça pública,
Como o último exemplo de rei falso que voltou!
Hoje o povo inda espera a volta dessa coisa! Hah hah!
PALAVRAS DO ALBERGUEIRO AO POETA GAGO

“Rapaz”, diz, “também não é bom em contos!


Que demora! Um conto ruim de todo
Não tem cura, senão com vários tapas
Pra ver se ajeita o conto e essa fala!
Pelos céus! Mas, ao menos, há algo bom
Em você: esse riso todo pronto!
Venha molhar um pouco essa garganta,
Que o caminho se acaba amanhã!”
3. Impressões do interlúdio

Há tempo que estou aqui sentado, e mais ainda que me invade, undosa,
quase lacrimosa, esse princípio de precipício de dia pelas janelas entrecortadas.
Vai e volta, pelas curvas sinuosas da estrada reta que fez o homem sobre a
natureza; que fez o homem para imprimir-se — na natureza.
Não são cadeiras confortáveis, o ar condicionado fere os olhos.
Mas meu braço sorri esplendoroso!
***
Sob o sol quente, o mundo lá fora e meu olhar herbívoro, esperam, cansados,
diversos gestos impacientes, na impaciência de também não haver onde se sentar,
senão no chão, onde estou sem alma, coberto pela impaciência de formigas pelas
plantas, fungos, tão humanas sem o ser!
Há um casal esperante, diferentes, intelectuais, futuros servos do saber pelo
bem, o porvir, iniciáticos nos saberes do amor, do corpo, de páginas de tratados
molhados.
Ó! eles são alegres apesar de tudo! eles vivem e querem ter filhos apesar de
todos!
E eu enxergo essa gênese humana, pasmado em quietações.
Pasmado em quietações, quais as grades que circundam à frente.
Acolá do casal, há uma cara rodeada de cabelos vultuosos, balançando-se
para cima e para baixo.
Que alegria em poder partilhar desta canção, sentir-me demovido por tal
superfície distante e por isso imaculosa!
Que pele negra, que não é negra nem branca; que feição rígida, que não é
homem e não é mulher; que mandíbula diferente, que não é de macaco mas de
algum homem primordial; que silêncio, que a faz tudo menos mulher!
Sob o sol quente, sinto cada uma de suas ondas anômalas rebater em cada
consciência sempilongínqua e se refratar no outro, criando territórios de calor
discordantes, que compõem a base da termodinâmica das relações.
Sob o sol quente e tudo vai incindindo na apoteose calva deste homem entre
mim e ela, com a orelha no celular e um sorriso de fauce obscurecida.
“Porra, cara, pois é... O motorista vacilou aqui, tinha ainda um monte de
vagas e ainda assim não deixou. É foda, bicho... Pô, mas não tem como vim aqui me
buscar, não, cara? Você falou hoje que também ia lá, hoje... seria uma puta mão na
roda. Sério? Pô, obrigadão, cara, vou estar te esperando aqui então!”
Que exibição de faces gloríolas é este homem agora!
E o sol queima, e longas filas vizinhas começam a se formar, cria um novo
ambiente repleto de falas ao léu, recriando o caos primordial que habita o
cotidiano.
E meu olhar herbívoro, viajo por este espaço intergambiado com o sonho, o
mais antigo alucinógeno, venda, sinto roçar-me cada parte as gâmbias há muito
lambuzadas pelos ósculos e salivas de antigas bocas, essas almas
esplendorosamente há muito já desfraldadas!
E há algumas — e isso me causa uma verdadeira alegria primeva e
coetânea! — que foram defloradas em eras de lanugem, realizando a
precociosidade que toda experiência é, lançando nas páginas unguentas da história
mais um sacrifício pelo homem armado, mais um gota de prazer hepático
verossímil a meu ser inteiro.
Quanto suor nessas gâmbias após o esforço ao futuro do país!
Queima sol! Enquanto ando, percebo que a menina sumiu.
***
O espaço quente do claustro automobilístico, o suor de todos estarem
falando incontinenti.
Após longos quilômetros, percebo que me sentei ao lado dela. Que rosto
desagradavelmente não tão feio, cabelos irregulares, boca de lábio inferios não tão
levemente avantajados.
A subida começa a mostrar-se, os montes longínquos há pouco estarão
invadindo seu interior, onde estou, ao lado desta, premida pelo estarmos na última
fileira, e ela na janela, entre o mundo, filtrado, e minha visão deles.
Enfim aparecem, estão frondosamente lisos, montes ao princípio do
precipício do dia, suas árvores e relvas somem à visão da distância que tenho,
infindamente em pugna contra o séquito infindo de ar condicionado.
O acidente do toque...
Sinto-me as vísceras frias... O sabor estrangeiro age como um vírus.
Meu sistema imunológico torna-se límbico, o ataque de suas
gamaglobulinas faz meu corpo inteiro estremecer por um zeptossegundo.
Vai e volta; criem meus acidentes, curvas labirínticas.
Não fuja, macieza plena, que é por ti que suportaria teus rostos, é por ti que
toda essa medianidade se torna secundária.
Ó! beija-me, é visível que gostou!
Não abre tua boca, supô-la é mais sublime que ouvi-la.
Afastasse-me, iria se jogar também ao acidente das curvas ao meu braço?
Estaria você pensando igual a mim? Não fale, deixe-me supô-la! A verdade deve ser
desvelada pelos embaraços.
A paisagem lá fora me roça.
***
Encerra a noite, o fito.
O sol de outrora bravio em nós desejava sua própria queda, a propósito do
invariável findo.
Daqueles pulmões expectorou imprevisivelmente uma fina voz entoada
distante. “Com licença” — “Eu vou sair também.”
Distante dela já, espargindo-me na imensa apoteose da montra telúrica,
admiro arqueanjado uma criança pequena de loques louros, caminhando pela noite
falsamente iluminada, lambendo um sorvete, enquanto o mundo para para vê-la e
indignar-se, preocupar-se, imbecilizar-se com a inutilidade do amor ao próximo
em detrimento da assistência, que é própria dela. E não muito longe, dois homens
engajam em briga no meio da cega rua.

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