XXI
1. Sábio é o que se nutre com o espetáculo do mundo
E ao mirá-la nem sente
Suas paragens distantes,
Qual esperança além
Vista de todos, vida.
“Mas enfim, vou começar meu conto, que eu vejo que já estamos chegando no Tabardo.
Quer dizer, começo quando o dia raiar.”
CONTO DO POETA GAGO
Há tempo que estou aqui sentado, e mais ainda que me invade, undosa,
quase lacrimosa, esse princípio de precipício de dia pelas janelas entrecortadas.
Vai e volta, pelas curvas sinuosas da estrada reta que fez o homem sobre a
natureza; que fez o homem para imprimir-se — na natureza.
Não são cadeiras confortáveis, o ar condicionado fere os olhos.
Mas meu braço sorri esplendoroso!
***
Sob o sol quente, o mundo lá fora e meu olhar herbívoro, esperam, cansados,
diversos gestos impacientes, na impaciência de também não haver onde se sentar,
senão no chão, onde estou sem alma, coberto pela impaciência de formigas pelas
plantas, fungos, tão humanas sem o ser!
Há um casal esperante, diferentes, intelectuais, futuros servos do saber pelo
bem, o porvir, iniciáticos nos saberes do amor, do corpo, de páginas de tratados
molhados.
Ó! eles são alegres apesar de tudo! eles vivem e querem ter filhos apesar de
todos!
E eu enxergo essa gênese humana, pasmado em quietações.
Pasmado em quietações, quais as grades que circundam à frente.
Acolá do casal, há uma cara rodeada de cabelos vultuosos, balançando-se
para cima e para baixo.
Que alegria em poder partilhar desta canção, sentir-me demovido por tal
superfície distante e por isso imaculosa!
Que pele negra, que não é negra nem branca; que feição rígida, que não é
homem e não é mulher; que mandíbula diferente, que não é de macaco mas de
algum homem primordial; que silêncio, que a faz tudo menos mulher!
Sob o sol quente, sinto cada uma de suas ondas anômalas rebater em cada
consciência sempilongínqua e se refratar no outro, criando territórios de calor
discordantes, que compõem a base da termodinâmica das relações.
Sob o sol quente e tudo vai incindindo na apoteose calva deste homem entre
mim e ela, com a orelha no celular e um sorriso de fauce obscurecida.
“Porra, cara, pois é... O motorista vacilou aqui, tinha ainda um monte de
vagas e ainda assim não deixou. É foda, bicho... Pô, mas não tem como vim aqui me
buscar, não, cara? Você falou hoje que também ia lá, hoje... seria uma puta mão na
roda. Sério? Pô, obrigadão, cara, vou estar te esperando aqui então!”
Que exibição de faces gloríolas é este homem agora!
E o sol queima, e longas filas vizinhas começam a se formar, cria um novo
ambiente repleto de falas ao léu, recriando o caos primordial que habita o
cotidiano.
E meu olhar herbívoro, viajo por este espaço intergambiado com o sonho, o
mais antigo alucinógeno, venda, sinto roçar-me cada parte as gâmbias há muito
lambuzadas pelos ósculos e salivas de antigas bocas, essas almas
esplendorosamente há muito já desfraldadas!
E há algumas — e isso me causa uma verdadeira alegria primeva e
coetânea! — que foram defloradas em eras de lanugem, realizando a
precociosidade que toda experiência é, lançando nas páginas unguentas da história
mais um sacrifício pelo homem armado, mais um gota de prazer hepático
verossímil a meu ser inteiro.
Quanto suor nessas gâmbias após o esforço ao futuro do país!
Queima sol! Enquanto ando, percebo que a menina sumiu.
***
O espaço quente do claustro automobilístico, o suor de todos estarem
falando incontinenti.
Após longos quilômetros, percebo que me sentei ao lado dela. Que rosto
desagradavelmente não tão feio, cabelos irregulares, boca de lábio inferios não tão
levemente avantajados.
A subida começa a mostrar-se, os montes longínquos há pouco estarão
invadindo seu interior, onde estou, ao lado desta, premida pelo estarmos na última
fileira, e ela na janela, entre o mundo, filtrado, e minha visão deles.
Enfim aparecem, estão frondosamente lisos, montes ao princípio do
precipício do dia, suas árvores e relvas somem à visão da distância que tenho,
infindamente em pugna contra o séquito infindo de ar condicionado.
O acidente do toque...
Sinto-me as vísceras frias... O sabor estrangeiro age como um vírus.
Meu sistema imunológico torna-se límbico, o ataque de suas
gamaglobulinas faz meu corpo inteiro estremecer por um zeptossegundo.
Vai e volta; criem meus acidentes, curvas labirínticas.
Não fuja, macieza plena, que é por ti que suportaria teus rostos, é por ti que
toda essa medianidade se torna secundária.
Ó! beija-me, é visível que gostou!
Não abre tua boca, supô-la é mais sublime que ouvi-la.
Afastasse-me, iria se jogar também ao acidente das curvas ao meu braço?
Estaria você pensando igual a mim? Não fale, deixe-me supô-la! A verdade deve ser
desvelada pelos embaraços.
A paisagem lá fora me roça.
***
Encerra a noite, o fito.
O sol de outrora bravio em nós desejava sua própria queda, a propósito do
invariável findo.
Daqueles pulmões expectorou imprevisivelmente uma fina voz entoada
distante. “Com licença” — “Eu vou sair também.”
Distante dela já, espargindo-me na imensa apoteose da montra telúrica,
admiro arqueanjado uma criança pequena de loques louros, caminhando pela noite
falsamente iluminada, lambendo um sorvete, enquanto o mundo para para vê-la e
indignar-se, preocupar-se, imbecilizar-se com a inutilidade do amor ao próximo
em detrimento da assistência, que é própria dela. E não muito longe, dois homens
engajam em briga no meio da cega rua.