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ediÇÃo 380-a • outubro/2017

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R$ 16,00

nazismo brasil no
Não é só lá fora. O fantasma de Hitler também assombra o passado, o presente e o futuro do país.

Suástica na piscina e Brasil dos anos 1930: Como os neonazistas


revisionismo na escola: o país do segundo maior atuam nas redes
o nazismo entre nós. partido nazista no mundo. sociais – e fora delas.

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especial nazismo no Brasil.

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especial nazismo no Brasil.

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NAZISMO
NO BRASIL

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especial nazismo no Brasil. carta e sumário 1/2

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suPer

sumário
capítulo 1

o Nazismo
muito e o BrasiL
Próximos Nazistas eNtre Nós P. 8
Na carona da imigração alemã, o Partido
Nazista do Brasil foi a maior filial formal do
grupo de apoio a Hitler fora da Alemanha.

A
2ª Guerra arrasou a Europa e o Japão. Embora o
Brasil tenha enviado os pracinhas para lutar na
Itália conta o Eixo, o contexto da guerra sempre
pareceu tímido por aqui. Estávamos distantes
dos conflitos e enviamos soldados ao front no
final da guerra. capítulo 2

Nazistas
Mas, produzindo este dossiê, me surpreendi como o con-
texto que levou à 2ª Guerra afetou o Brasil. A imigração alemã
touxe a ideologia nazista para cá e ajudou a inspirar um
movimento fascista 100% nacional, o integralismo. Também
tvemos centenas de mortes de civis na guerra. Na metade
de agosto de 1942, o submarino alemão U-507, comandado
pelo capitão Harro Schacht, invadiu o litoral de Sergipe e
da Bahia e atacou seis navios lotados de passageiros. Seis-
centas pessoas morreram. Dias depois, corpos de homens,
mulheres e crianças chegariam às praias, provocando uma
No BrasiL
onda de revolta na população brasileira.
Foi o motvo que levou o presidente Getúlio Vargas a sair
da posição de neutalidade, mantda durante os primeiros
anos do conflito, se juntar em definitvo aos Aliados e declarar
guerra a Hitler, até então parceiro comercial. Depois desse
episódio, o Brasil criou campos de concentação, perseguiu
e prendeu descendentes de alemães, italianos e japoneses
(um deles ganhou, inclusive, o direito a uma indenização) e
serviu como base aérea para os Estados Unidos.
Depois dos combates, o Brasil se tornaria o refúgio de
alguns dos maiores sanguinários do Terceiro Reich. E, ainda
hoje, o nazismo de Hitler inspira grupos intolerantes, que
capítulo 3

Nazistas
atacam judeus e homossexuais nas capitais brasileiras, e até
mesmo um professor do interior de Santa Catarina que re-
latviza o Holocausto.
Sete décadas não foram suficientes para acabar com as

do BrasiL
marcas do maior conflito mundial. Boa leitra.

Alexandre de Sant
Editor

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especial nazismo no Brasil. carta e sumário 2/2

nazismo

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no brasil

raça inferior p.12 amazônia senta a pua p.26


Uma família de milionários
simpática a Hitler escravizou
nazista p.18 Em agosto de 1942, um capitão de
corveta alemão entediado e vaidoso
Projeto Guiana: o plano
órfãos negros em sua fazenda afundou seis navios brasileiros e
alemão de invadir a maior
em 1932 - que só seria matou 607 pessoas. A ação de um
floresta do mundo incluía a
redescoberta décadas depois. homem só levou o Brasil à guerra.
construção de hidrelétricas e
a exploração de minerais.
fascismo os campos de
à brasileira p. 14 jogo duplo p. 22 concentração
Plínio Salgado fundiu ideias
de Hitler e Mussolini e criou
Getúlio flertou com a
Alemanha e os EUA ao
no brasil p. 30
Durante a 2a Guerra, também
o movimento nacionalista mesmo tempo. Tudo isso
tivemos campos de concentração -
mais forte do País, a Ação porque queria industrializar
onde japoneses, italianos e
Integralista Brasileira. o Brasil – e saiu vitorioso.
principalmente alemães ficaram
confinados. Conheça suas histórias

o exílio o açougueiro Hitler


caipira do anjo de treblinka p. 44 não morreu
da morte p. 36 Franz Stangl veio para São Paulo,
não escondeu o nome e trabalhou
no brasil p. 48
Josef Mengele passou 20 anos Livro defende que o Führer
em uma fábrica da Volkswagen.
anônimo no Brasil. Hoje, sua fugiu para o Mato Grosso.
Descoberto, foi extraditado e condenado.
ossada é material didático na USP. Mas essa teoria da
conspiração, como tantas
a besta de o carniceiro sobre o líder nazista,

sobibor p. 42 de riga p. 46 não pode ser levada a sério.


Herói da aviação na Letônia,
Gustav Franz Wagner entregou-se
Herberts Cukurs virou empresário
à polícia de São Paulo em 1978
no Rio, mas teve o passado
com medo de ser assassinado.
revelado e uma morte violenta.

meu professor terrorismo


é nazista p.52 doméstico p. 58
Wandercy Pugliesi tem uma suástica na Neonazistas brasileiros
piscina de casa e relativiza o Holocausto já mataram, espancaram,
nas suas aulas de história. Mas é adorado jogaram bomba em pessoas
por alunos. O que explica essa tolerância? e seguem ativos na internet.

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capítulo 1

o naz
e o br
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nazismo

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no brasil

zismo
na década de
1930, O brasil
tOlerOu a
ideOlOgia
racista,
alimentada
pela imigraçãO
germânica e
pela pOlítica de
neutralidade
de getúliO
vargas.
emparedadO
entre hitler e
Os americanOs,
O presidente
precisava
dOs dólares
e dO dinheirO
alemãO para
impulsiOnar
a ecOnOmia.
mas ele saiu
de cima dO
murO quandO

rasil
um submarinO
matOu 600
brasileirOs.

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dia do trabalho, 1937

Nazistas
eNtre Nós
Na carona da imigração alemã, o Partido
Nazista do Brasil foi a maior filial formal do
grupo de apoio a Hitler fora da Alemanha.

Por Maurício Brum

foto: reprodução
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nazismo

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no brasil

N
o Dia do Trabalho de 1937, personalidades da polítca torno de uma mesma ideologia. Só os
do Rio Grande do Sul decidiram celebrar a data em imigrantes alemães de primeira geração
meio a uma comunidade conhecida no Estado por eram bem-vindos ao braço tpiniquim
seu empreendedorismo e dedicação – os imigrantes do Partdo Nazista, que por aqui também
alemães. O presidente da Assembleia Legislatva, os disseminava a ideologia de superiorida-
comandantes da 3ª Região Militar e da polícia, e até de racial e combate ao comunismo. Os
mesmo um representante do general Flores da Cunha, então go- descendentes diretos tnham espaço em
vernador gaúcho, dirigiram-se ao campo do Renner, um tme de outas organizações ligadas ao partdo,
futebol de Porto Alegre, para as festvidades de 1º de maio. como a Frente Alemã para o Trabalho e
Seria uma formalidade qualquer, mas, dento de campo, o patio- o Círculo da Juventde Teuto-Brasileira.
tsmo alemão era exibido com bandeiras pintadas com suástcas e No Brasil, a estutra era muito me-
com o braço direito estendido ao alto para saudar um ausente Adolf nos centalizada do que na Alemanha.
Hitler. A cena parece chocante nos dias de hoje, mas, naquela época, Os núcleos formados em cada cidade
antes do início da 2a Guerra, não causou estanheza. Membros do se organizavam da maneira que dava e,
Partdo Nazista do Brasil organizaram a cerimônia e em nenhum até 1934, sequer exista uma orientação
momento foram questonados pelas autoridades. A normalidade unificada para os partdos nazistas de
com que tdo aconteceu refleta uma constante no País. Em um cada Estado. Sua tátca para obter po-
tempo em que Getúlio Vargas flertava com ideias totalitárias (como der ente os imigrantes, porém, seguia
veremos na página 22), o nazismo era tolerado no Brasil. Até 1937, um padrão: os seguidores do Führer
sucursais do partdo de Hitler existam havia quase uma década buscavam posições de liderança nas
por aqui, espalhadas em 17 Estados. associações e clubes alemães que já
O primeiro registo de um Partdo Nazista em solo brasileiro é existam no Brasil.
de 1928, no município de Timbó, em Santa Catarina. Logo a sede Por tás dessa estatégia estavam dois
estadual se mudaria para a vizinha Blumenau, a 30 quilômetos conceitos: volksgemeinschaft (comunida-
dali, presidida por Otto Schinkel, um veterano da 1a Guerra. Na de nacional) e volksgenosse (compatiota).
década de 1930, emissários de Hitler que passassem por Santa Todos os alemães eram parte da primei-
Catarina faziam visita obrigatória a Blumenau e às indústias ra, mas, na visão do nacional-socialis-
fundadas ali por alemães, como a companhia têxtl Hering. Em mo, só aqueles que concordassem com a
seus primeiros dias de Brasil, o partdo não parecia diferente de ideologia do partdo e aceitassem Hitler
outas organizações fundadas para congregar os recém-chega- como seu líder poderiam ser vistos como
dos da Europa e seus descendentes: era uma forma de manter a volksgenosse. O que o Führer tentava, tan-
comunidade unida na nova terra. to na Europa quanto ente seus cidadãos
Diferentemente de outos emigrados, era igualar a noção da pátia
grupos de viés fascista dessa alemã à do Partido Nazista – os dois
época, como a Ação Integra- deveriam ser vistos como a mesma coisa.
O Brasil de Getúlio Vargas lista Brasileira (veja mais na Pregar a superioridade racial em
página 14), os nazistas nun- um país marcado pela miscigenação
flertava com ideias nazistas, ca tentaram se envolver na não era um tema fácil. No Brasil, o
e a ideologia foi tolerada em solo polítca nacional. A vocação
da insttição era de aproxi-
mito nacionalista apontava em outa
direção: a força da “raça brasileira” vi-
nacional por quase uma década. mar o povo germânico em ria da mestçagem. Muitas vezes, a

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Outros
grupos
alemães
OrganizadOs pelO
fez o então presidente Paul von Hin-
denburg nomeá-lo chanceler para tentar
própriO partidO cOmO contornar a crise. Hitler, que já era um
órgãOs de apOiO, Ou Schützenvereine: as nome popular, deveria ser uma liderança
de fOrma autônOma sociedades de tiro eram tra- “acima dos partdos”. Mas, em março,
pOr dissidentes, eles dicionais entre os alemães quando os nazistas conquistaram a
também mObilizaram do sul do brasil. locais de maioria das cadeiras no Parlamento
Os imigrantes congregação da comuni- germânico, seu verdadeiro plano tornou-
alemães. dade, foram das primeiras se claro. Após a morte de Hindenburg,
organizações que os grupos em 1934, os nazistas proibiram qualquer
Frente Alemã para o nazistas tentaram aparelhar oposição, ocuparam todos os cargos de
Trabalho: na alemanha, para conquistar apoiadores poder e alçaram Hitler à condição de
ela funcionava como uma para o partido. Führer (líder) da nação. O Partdo Nazista
espécie de “sindicato es- se tornou a única organização polítca
tatal”, substituindo todas Círculo da Juventude Teu- permitda, e a própria bandeira alemã foi
as uniões de trabalhadores to-Brasileira: organização abolida: o novo símbolo seria o estan-
que existiram antes da as- para reunir os jovens flhos darte do nacional-socialismo, vermelho
censão nazista. no brasil, de imigrantes, era a versão com uma suástca dento de um círculo
serviu como fachada para nacional da Juventude branco ao cento.
os nazistas que Hitlerista. Os nazistas brasileiros incentvaram
não queriam apoiar campanhas de votação em Hitler por
Hitler abertamente, Der Kompass: o jornal Der meio da embaixada alemã e, em alguns
e seguiu funcionando Kompass (“a bússola”), de casos, até mesmo financiaram viagens
mesmo após o fechamento curitiba, era publicado em de retorno à Alemanha para os imigran-
do partido no país. língua alemã e foi um dos tes que apoiavam o Terceiro Reich. Ao
principais órgãos de oposi- mesmo tempo, a relação com os polítcos
ção ao regime, tornando-se brasileiros era de tolerância: assim como
o veículo mais importante ocorria em outos lugares do mundo, o
de questionamento expansionismo alemão demorou para
às políticas de Hitler causar alarme e encontou conivência e
entre os imigrantes. silêncio por parte de Vargas e outos lí-
deres locais, simpátcos ao novo regime.
No auge, o Partdo Nazista chegou a
contar com mais de 2,9 mil membros
no Brasil, um número pequeno frente
aos 87 mil alemães natos que, segundo
o Censo de 1939, viviam no País. Mas
ideologia nazista original foi adaptada imigrante tcheco de origem judia, da era impossível determinar o total de
e suavizada. direção do Die Serra-Post, um dos mais simpatzantes e adeptos das ideias de
Por aqui, os discursos de pureza ra- importantes jornais em língua alemã superioridade racial. Em geral, aqueles
cial e conta os judeus apareciam menos do interior gaúcho. que efetvamente se filiaram ao part-
do que na Europa. Isso fazia parte da Casado com uma “ariana pura”, Löw do eram adultos jovens de até 35 anos,
estatégia internacional do nazismo era visto como um mau exemplo para moradores de áreas urbanas. São Paulo
para a América Latna. Cada vez mais os demais imigrantes, e seu afasta- contou com o maior número de mem-
pensando em uma futura guerra de mento da publicação foi resultado de bros (785), seguido por Santa Catarina
influência com os Estados Unidos, a pressão direta do consulado alemão e (528), Rio de Janeiro (447), Rio Grande
ordem do dia era não criar problemas de grupos nazistas locais. do Sul (439) e Paraná (192). Conforme
demais com as autoridades locais. os nazistas ganharam influência na Ale-
Mesmo assim, o antssemitsmo não Na carona de Hitler manha, também se estutraram melhor
deixou de cobrar seu preço em solo Adolf Hitler chegou ao poder na Ale- pelo mundo. Seções do Partdo Nazista
brasileiro: um dos casos mais famo- manha em janeiro de 1933. O vácuo de começaram a aparecer em outos países
sos foi o afastamento de Robert Löw, poder causado pela Grande Depressão e a ser coordenadas pela Organização

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no brasil

Nazistas
do século 21
Criado em 2012 pelo
técnico em informática
Harryson Almeida Marson,
paulista de Monte Santo
de Minas (MG), o Partido
Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Brasileiros
promete levar adiante as
ideias de Hitler no País.
Sem qualquer relação
com o partido original, o
PNSTB não tem registro
flores da cunha no TSE, mas já anunciou
até o número com que
concorreria às eleições: 88
(referência à oitava letra do
alfabeto, “H”, formando a
sigla para “Heil Hitler”). No
manoel ribas
Brasil, existe desde 1994
o “crime de divulgação do
nazismo”, com pena de dois
a cinco anos de reclusão. As
páginas do PNSTB nas redes
sociais chegaram a ser sus-
Partdo Nazista. Assim, embora hou-
para o Exterior (Auslands-Organisaton, pensas, mas voltaram ao ar
vesse coalizões nacional-socialistas
ou AO), parte do Ministério das Relações e continuavam funcionando
mais numerosas na Europa (na Holanda,
Exteriores de Hitler, que coordenava “fi- até agosto de 2017.
liais” em 83 nações. por exemplo, o movimento hitlerista
A partir de 1934, a AO passou a
teve mais de 100 mil membros), o Brasil
exercer a direção polítca formal dos
contou com o maior Partdo Nazista
vários braços nazistas em solo brasi-
formal fora da Alemanha.
leiro, ajudando a coordenar o recruta-
A comunidade teuto-brasileira
mento e a circular propaganda favorável
exercia importante influência econô-
ao Terceiro Reich, sob o comando do
mica, principalmente no Sul. Em Porto Sozinha, a Alemanha comprava cerca
adido cultral da Embaixada Alemã no
Alegre, a lista de anunciantes do jornal de 20% das exportações brasileiras. Os
Für Dritte Reich (“Pelo Terceiro Reich")
Rio, Hans Henning von Cossel. Apenas nazistas não queriam se indispor com
incluía várias empresas fundadas ou
os grupos conectados por meio da AO as autoridades brasileiras, e a recíproca
tazidas por imigrantes: ente elas, os
eram considerados sucursais oficiais do era verdadeira. Em 25 de julho de 1936,
Laboratórios Bayer, o Ban- o governador gaúcho Flores da Cunha
co Alemão Transatlântco, a discursou: “Eu poderia, como homem
A Alemanha comprava cerca fábrica de tntas Renner, a
Companhia de Eleticidade
de Estado, ser colocado como cego se
eu não quisesse ver e reconhecer que
de 20% das exportações Siemens-Schuckert (atal Hitler, com sua visão de mundo nacio-
Siemens) e a Viação Aérea nal-socialista, salvou a Alemanha e a
brasileiras, uma influência Rio-Grandense (Varig), fun- cultra do caos”, bradou, sob os aplausos
econômica que incentivou a dada pelo alemão Otto Er-
nst Meyer. Brasil e Alema-
do grande líder do nazismo em seu Es-
tado, Walter Horning. A semente estava
tolerância ao radicalismo nazista. nha eram “nações amigas”. plantada em solo brasileiro.

colagem: Fábio Dias


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S
idney Aguiar Filho nunca
vai esquecer aquela aula de
1998. O historiador falava
sobre nazismo para uma
turma de Ensino Médio
no interior de São Paulo
quando uma aluna pediu a palavra.
Ela disse que reconhecia o símbolo
do partdo: na fazenda onde seu pai
tabalhava havia muitos tjolos com
suástcas gravadas. Seguindo a pista,
Sidney encontou muito mais que t-
jolos. Descobriu que em outa fazenda
da região, logo antes da 2a Guerra, ór-
fãos negros tnham sido escravizados,
cercados de símbolos e ideias nazistas.
As propriedades eram da rica e influen-
te família Rocha Miranda, alinhada às
doutinas totalitárias. Nada disso era
segredo. Tinha sido apenas esquecido.

raça
Para recuperar o passado, Sidney pre-
cisava achar algum daqueles meninos,
vivo e disposto a contar sua história. No
mesmo município das fazendas, Cam-
pina do Monte Alegre (SP), localizou
Aloysio da Silva. Unindo seu depoimen-
to com muita pesquisa, concluiu a tese
de doutorado Educação, Autoritarismo e

inferior
Eugenia: Exploração do tabalho e violência
à infância desamparada no Brasil (1930-
45), defendida na Unicamp em 2012. O
tabalho acadêmico serviu de base para
um documentário de Belisário Franca,
Menino 23 - Infâncias Perdidas no Brasil.
Além de serem confinados e obrigados
a tabalhar sem remuneração, como es-
cravos, os garotos eram chamados por
números. Aloysio era o 23.
Uma família de milionários simpática A justficatva para a exploração era
de que membros de uma “raça inferior”
a Hitler escravizou órfãos negros em não mereciam oportnidades melho-
sua fazenda em 1932 - que só seria res. “No início do século 20, teorias da
superioridade racial branca floresciam.
redescoberta décadas depois. Nosso país tolerava essas ideias. Saber
que tdo isso pareceu muito natral na
época foi o mais revoltante”, afirma Sid-
ney no documentário. Mais de 70 anos
Por Emiliana Urbim depois de sair da fazenda, Aloysio ainda

12 colagem: Fábio Dias


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expressa seu rancor no filme: “Sou re- levantasse suspeita estaria


voltado, se eu encontar um cara desses falando conta aqueles vis- A maioria dos garotos só foi
eu tro a forra”, referindo-se aos antgos
proprietários da fazenda.
tos como grandes benfeito-
res da cidade, batzando a
libertada em 1942, quando ideias
Aloysio foi da primeira leva de me- avenida principal e o maior fascistas e racistas saíram de
ninos retrados do Educandário Romão colégio público. Ignorados
de Mattos Duarte, um orfanato no Rio e isolados, os meninos não moda no Brasil.
de Janeiro ainda em operação e com tnham saída. Mas um te-
registos de todo o processo. Ente 1932 ve: durante as filmagens
a 1941, 50 garotos de 9 a 12 anos de de Menino 23, a produção encontou
idade, a grande maioria negros, foram em Foz do Iguaçu o único a escapar
levados dali para Campina do Monte do catveiro. Argemiro dos Santos, o
Alegre. Para selecionar as crianças, os Marujo, que passou por uma série de
abusadores teriam jogado balas diante subempregos até entar na Marinha,
de um grupo grande. Quem demons- diz no filme que se mandou aos 15
tasse mais agilidade recolhendo os anos. “Esperei ficar grande. Se eu fosse
doces seria escolhido. “Era que nem pequeno e o capataz me pegasse, não
um gado que o comprador ia comprar”, tnha briga, eu tava morto.”
diz Aloysio no documentário. A maior parte dos meninos só foi
libertada em 1942. Quando o governo
Benfeitores da cidade Vargas declarou guerra ao Eixo, movi-
A promessa era de que lá os órfãos mentos totalitários e racistas ganha-
iriam ingressar em uma escola, apren- ram má fama, e a fazenda se tornou um
der um ofício, crescer aproveitando a grande incômodo. Para evitar proble-
vida no campo. Chegando à fazenda mas, os proprietários teriam simples-
Santa Albertna, só o que enconta- mente aberto os portões da fazenda
vam era trabalho duro e não remu- Santa Albertna. “Abandonaram os
nerado. Proibidos de sair da fazenda, meninos”, diz Sidney no documentário,
os meninos eram vítmas de castgos ressaltando que muitos sonhavam em
físicos constantes. Ao amanhecer e ao voltar ao Rio, mas se perderam pela
entardecer, cantava-se o hino da Ação vida. “As notícias que temos são de
Integralista Brasileira, organização ex- miséria, alcoolismo, exclusão e aban-
temista de direita. Os garotos esta- dono.” Um menino, no entanto, ficou
vam sob custódia dos irmãos Rocha no local como funcionário doméstco:
Miranda. Enquanto Osvaldo, Otávio José Alves de Almeida, já falecido, co-
e Renato eram integralistas, Sérgio nhecido como Dois.
apoiava publicamente o nazismo. Na Otávio, Osvaldo e Sérgio Rocha Mi-
sua fazenda, a Cruzeiro do Sul, é que randa não possuem herdeiros. O neto
se faziam os tjolos com as suástcas. de Renato, Mauricio Rocha Miranda,
Lá o gado também era marcado com o enviou uma carta à Unicamp chamando
símbolo nazista, e fotos mostam que a pesquisa de Sidney de “sensaciona-
até o tme de futebol dos funcionários lista e oportnista”. Fez um blog (fa-
tnha no uniforme a cruz dos segui- miliarochamiranda.com) onde dá sua
dores de Hitler – cujo retato estaria versão dos fatos, e um vídeo chamado
na sede da fazenda. Direito de Resposta, no qual moradores
Em Campina do Monte Alegre, os da região defendem sua família. Mau-
moradores não tnham noção exata do ricio negou-se a dar depoimento para
que se passava. De toda forma, quem o documentário Menino 23.

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mussolini
hitler

plínio salgado

fascismo à
brasileira
Plínio Salgado fundiu ideias de Hitler e Mussolini
e criou o movimento nacionalista mais forte do
País, a Ação Integralista Brasileira.

Por Maurício Brum

14 colagem: Fábio Dias


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P
or muito tempo, Plínio Salgado parecia destnado a ocupar A guinada definitva à direita se deu
um lugar de destaque na literatra. Amigo do escritor após uma visita à Itália, em 1930, quando
modernista Menott del Picchia, dedicou-se à poesia conheceu de perto o regime de Benito
na juventde. Aos 22 anos, escreveu um dos sonetos Mussolini e concluiu que um sistema
mais citados pelos seus seguidores, a Canção das Águias, semelhante levaria o Brasil ao progres-
que termina com um chamado à batalha: “Grita, forceja, so. Curiosamente, Salgado regressou da
anseia e combate impoluta!/ Morre a lutar!/ Morre na luta!/ Mas, Europa em 4 de outbro, um dia depois
antes de morrer, tenta ainda voar!” do movimento revolucionário que le-
Nascido em 1895 na pequena cidade de São Bento do Sapucaí, no varia Getúlio Vargas ao poder. Plínio
interior de São Paulo, Salgado era filho de um coronel de Exército e havia apoiado Júlio Prestes, adversário
de uma professora primária, e publicou seus primeiros textos em um de Vargas nas eleições.
jornal semanal que ele próprio fundou – o Correio de São Bento. Sua
obra de esteia foi o livro O Estangeiro. Mas Salgado também quis, Soldados de Deus e da Pátria
desde muito cedo, seguir uma carreira polítca. Em 1918, ajudou a A chegada nada democrátca de Vargas
fundar o Partdo Municipalista, que reunia lideranças locais do Vale ao Palácio do Catete deu início a um
do Paraíba. As inclinações polítcas o levaram à capital paulista. Lá, flerte do governo federal com as ideias
passou a escrever no Correio Paulistano e teve contato com as ideias fascistas tão caras a Plínio Salgado. Mas
do movimento modernista, em especial a vertente “verdeamarelista”, ele entendia que era preciso avançar mais
que valorizava a cultra nacional. Salgado criou então o chamado para se chegar a um Estado totalitário
Grupo da Anta (o nome peculiar homenageava o animal que, segundo como a Itália. Por isso, em 1932, com
ele, era o mais importante na tadição tpi) e se dedicou cada vez um documento conhecido como o Ma-
mais a tabalhar em prol de uma “revolução nacionalista”. nifesto de Outbro, a Ação Integralista
Talvez o livro que mais bem resuma os dois interesses de Salgado Brasileira (AIB) foi fundada por Salgado,
seja uma coletânea de títlo sugestvo: Literatra e Polítca, lançado Miguel Reale e Gustavo Barroso. Plínio
em 1927, reunia ensaios defendendo que as mudanças vistas ao foi escolhido como chefe nacional do
longo da história são definidas pelas duas tadições. Ou seja, era movimento.
necessário que os pensadores de um país “despertassem” para uma O discurso exaltava o nacionalismo,
nova literatra e um novo pensamento polítco. Nessa época, Plínio já atacava o comunismo, defendia a ne-
começava a se aproximar dos conceitos de unidade e valorização da cessidade de um partdo único nacional
raça que estavam em moda na Europa. No caso brasileiro, entendia, e acrescentava tons de antssemitsmo
deveríamos exaltar os índios tpis, os autêntcos representantes à mistra. Embora eles não pregassem
da identdade nacional. Se abertamente a perseguição aos judeus,
os nazistas buscavam a pu- documentos integralistas afirmavam
reza racial, o caminho para que a ruína econômica daqueles anos
formar um povo brasileiro que seguiram a crise da bolsa de valo-
Antes de fundar o movimento, “legítmo” era a miscigenação. res de Nova York em 1929 era causada
Em 1928, foi eleito para um pelo “capitalismo internacional” liderado
Plínio Salgado foi um escritor cargo polítco pela primeira pelo judaísmo. A organização também
ligado aos modernistas vez: deputado estadual em
São Paulo pelo Partdo Re-
investa pesado em uma simbologia que
incluía a cor verde, saudações e braça-
de São Paulo. publicano Paulista. deiras que lembravam as dos nazistas

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Anauê!
As simbologiAs integrAlistAs erAm
umA formA de distinguir seus membros
e disciplinAr A militânciA, Além de
disseminAr os vAlores do grupo.
(veja o quadro ao lado). “O integralista é o
soldado de Deus e da Pátia, o homem-
novo do Brasil que vai constuir uma
grande nação”, prometa a AIB.
Os integralistas também sonhavam
com uma “democracia orgânica”, na
qual o voto deixaria de ser individual Bandeira: o azul indicava
e passaria a representar setores da so- Sigma: presente na “distância”, signifcando
ciedade – geralmente, organizações de bandeira do movimento, é que o movimento não tem
classe. Os sindicatos seriam mais ade- um símbolo matemático as limitações políticas
quados para representar os cidadãos do que representa a soma dos partidos tradicionais,
que os partdos existentes, de acordo de várias partes, uma enquanto o branco seria
com a filosofia integralista. Em vários analogia aos membros da o somatório de todas as
aspectos, a ideologia se aproximava do Aib e à ideia de um estado cores (a ideia de união) e a
pensamento do Partdo Nazista da Ale- único e integral. pureza dos integralistas.
manha, que também tnha “sucursais” no
Brasil. Em algumas cidades, as sedes de
ambos chegavam a funcionar lado a lado.
Apesar dessa proximidade, a Ação
Integralista tentava – ao menos publica-
mente – se diferenciar dos alemães. Para
consolidar sua ideologia nacionalista, era
fundamental que fosse vista como um
movimento inteiramente nacional, e não Lema: deus, pátria e Anauê: saudação com
um subproduto de ideias estangeiras. família. representam, o braço direito erguido,
Havia, de fato, algumas distnções ente respectivamente, aquele trazendo similaridade
a AIB e os nazistas, como o conceito de que guia o destino dos com o “Heil” nazista.
raça e de partcipação polítca. Enquan- povos, o nosso lar e “o vem do tupi e signifca
to os nazistas não tnham interesse em início e o fm de tudo”. “você é meu irmão”.
partcipar de eleições no Brasil, a AIB
sempre lançou candidatos. No que diz
respeito à raça, a polítca de miscigenação Hinos: o ofcial chama-
promovida pelos integralistas causava va-se Avante, com letra
calafrios nos nazistas, que temiam ser de salgado. o refrão
forçados a abandonar a homogeneida- prometia: “Avante!
de étnica de suas comunidades em um Avante!/ pelo brasil toca
evental governo de Plínio Salgado. marchar/ Avante! Avan-
Os integralistas tveram sucesso me- não costumavam ter voz na política, te!/ nosso brasil vai des-
teórico em um Brasil que mudava rapi- como mulheres, negros e jovens. Nu- pertar”. era considerado
damente. A Revolução de 1930 enterrou ma época em que os partdos podiam a segunda música mais
de vez a “polítca do café com leite”, a existr apenas em nível estadual, os dois importante, abaixo do
alternância de paulistas e mineiros aris- extemos do especto polítco cresceram Hino nacional, que não
tocratas no poder, e deixou um vácuo vertginosamente ao apostar em campa- era cantado inteiro pelos
ocupado por novos movimentos no País nhas de filiação nacionais. O objetvo era, integralistas – o verso
– grupos que, agora, buscavam seduzir mais cedo ou mais tarde, suceder Vargas. “deitado eternamente
setores tadicionalmente excluídos do De um lado, estavam os comunistas e em berço esplêndido”
jogo eleitoral. Com um discurso con- sua Aliança Nacional Libertadora (ANL). era evitado, entendendo
tário às oligarquias e aos “coronéis”, os Do outo, como alternatva conservadora que o país deveria estar
integralistas rapidamente conquistaram ao regime, os integralistas. sempre em pé para
apoiadores, não apenas ente homens Nos anos 1970, o historiador Hélgio encarar os desafos.
de classe média (como seus fundadores), Trindade entevistou ex-membros da
mas também de grupos que até então AIB a respeito de suas motvações para

16
especial nazismo no Brasil. capítulo 1 12/28

nazismo

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no brasil

Depois do golpe do Estado Novo, desesperadas de tomar o po-


der: em 11 de março de 1938,
a AIB foi extinta, mas Plínio tentaram ocupar uma esta-
ção de rádio e se infiltar na
Salgado seguiu na política. Marinha do Rio de Janeiro,
Elegeu-se deputado e conquistando oficiais para
a causa, mas não tiveram
concorreu à Presidência. sucesso. Dois meses depois,
em 11 de maio, veio a ação
mais cinematográfica: um
se juntar ao movimento quato décadas ataque ao Palácio da Guanabara, resi-
mais cedo: antcomunismo, admiração dência presidencial, com o objetvo de
pelos fascismos europeus e oposição depor Vargas. Cerca de 80 integralistas
ao regime de Vargas eram as principais conduziram a intentona, que foi facil-
bandeiras. Um ano depois da fundação mente debelada pelas topas do governo.
da AIB, mais de 40 mil pessoas marcha- O fracasso do Levante Integralista foi
ram nas ruas de São Paulo para apoiar o enterro definitvo do grupo. Os líderes
a candidatra do jurista Miguel Reale, foram presos – Salgado negou qualquer
ainda pouco conhecido, à Assembleia envolvimento, mas também foi detdo.
Consttinte de 1934. Aos 24 anos, Reale Em junho de 1939, partu para o exílio
não foi eleito, mas os resultados vieram. em Portgal, de onde só voltou sete anos
Em 1936, o sucesso eleitoral em todo o mais tarde, quando Vargas havia deixado
País fez com que aquele ficasse conheci- o poder. No retorno, após as derrotas
do como o “ano verde”: a AIB elegeu 20 de Hitler e Mussolini e a condenação
prefeitos e cerca de 500 vereadores, além
de quato deputados estaduais, obtendo
de suas ideologias no mundo inteiro, o
grande líder da extnta Ação Integralista
Integra-
250 mil votos no País inteiro – um nú-
mero importante em uma época em que
se esforçou para esconder seu passado
fascista, mas não abandonou a polít-
listas do
o sufrágio não era universal, e apenas
2,5 milhões de eleitores votavam. Nesse
ca: fundou o Partdo de Representação
Popular e contnuou presente na vida
século 21
O integralismo
período, o total de integralistas no Brasil nacional por mais tês décadas. renasceu no Brasil
era estmado ente 600 mil e 1 milhão. Sem o destaque de antes, Salgado em 2004, com a
Às vésperas das eleições presiden- contnuou sua carreira de combate ao formação da Frente
ciais prometidas por Getúlio Vargas comunismo. Afinal, atacar os comu- Integralista Brasileira
para 1938, Plínio Salgado despontava nistas contnuava um tema popular no (FIB), em um congres-
como um dos candidatos mais fortes. novo contexto do pós-guerra. Também so realizado com o
A tendência era que concorresse ao cargo investiu em um discurso fortemente apoio da Casa de Plí-
com o então governador de São Paulo, identficado com os católicos, na defesa nio Salgado, entidade
Armando Sales de Oliveira, candidato dos “valores cristãos”, e tentou reagrupar que busca preservar a
de oposição, e contra o situacionista a base integralista, mas o apelo da ideo- obra do político. A FIB
José Américo de Almeida, ex-ministo logia havia esfriado. Nos anos seguintes, segue a doutrina dos
dos Transportes de Vargas. Os tês já Plínio conquistou sucessivas reeleições integralistas originais,
taçavam suas estatégias quando, em como deputado federal. Seu maior mo- mas afrma não ser
novembro de 1937, o golpe do Estado mento veio em 1955, quando finalmente um partido político
Novo deu fim às pretensões. concorreu à Presidência. Sob o slogan e nem ter laços com
“Nas tevas da confusão, a luz de uma as siglas atuais, pois
Fascista, eu? esperança”, fez pouco mais de 700 mil “atualmente não
O golpe jogou na clandestnidade to- votos, cerca de 8% do total, mas nunca há qualquer partido
dos os partidos do Brasil. Enquanto teve chances de vencer o pleito que levou que se aproxime das
Vargas dava início à fase mais ditato- Juscelino Kubitschek ao poder – ficou ideias integralistas”,
rial e repressora de seu longo governo, em quarto lugar ente quato candidatos. segundo afrma em
os integralistas fizeram duas tentatvas seu site ofcial.

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super

amazônia
nazista
Projeto Guiana: o plano alemão de invadir a
maior floresta do mundo incluía a construção
de hidrelétricas e a exploração de minerais.
Por Emiliano Urbim

18 colagem: Fábio Dias


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nazismo

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E
m um cemitério de Laranjal do Jari, no Amapá, uma se- meses enredados em labirintos burocrá-
pultra se destaca. Trata-se de uma cruz de madeira com tcos. Apoio oficial não faltava: naquela
dois metos de largura, tês de altra e suástca no topo. época, militares, cientstas e membros
Abaixo do símbolo nazista, palavras em alemão informam: do governo Vargas expressavam sua
“Joseph Greiner faleceu aqui em 2-1-36 de morte febril admiração pelos novos rumos da Ale-
em serviço de exploração para a Alemanha. Expedição manha. Os exploradores precisavam de
Jari, 1935-1937”. Durante 17 meses, alemães exploraram o afluente alguém versado no jeitnho brasileiro e
do Amazonas com fins científicos – ente eles, Greiner. E seu líder, chegaram ao marinheiro Joseph Greiner,
Otto Schulz-Kampfhenkel, foi além: elaborou um plano de invasão um auslandsdeutscher (alemão criado no
e colonização da Amazônia pelo norte do Brasil, que foi apresentado exterior). Havia anos no Brasil, Grei-
aos comandantes do Terceiro Reich. Se o seu Projeto Guiana tvesse ner ficou encarregado das bagagens,
vingado, o Amapá seria invadido por soldados de Hitler. alimentação e contatação de mão de
Schulz-Kampfhenkel, nascido em 1910, era geógrafo, explorador, obra local.
escritor e produtor de filmes. Em 1931, aos 21 anos, liderou uma
expedição à Libéria, na África, de onde levou vários animais (vivos Selva infernal
e mortos) para o Zoológico de Berlim e colecionadores. Seu livro A imprensa saudava a empreitada. Em
sobre a empreitada fez sucesso, e o jovem Otto ganhou moral ente 9 de agosto de 1935, o jornal carioca
os nazistas, recém-chegados ao poder e interessados em mandar Gazeta de Notícias publicou uma maté-
pesquisadores para os quato cantos do planeta. Sim, aqueles vilões ria em que “a sensacional expedição ao
dos filmes do Indiana Jones têm um fundo de verdade. Heinrich Jari” recebia “os mais francos aplausos”.
Himmler, chefe da SS, a topa de elite nazista, tnha predileção por Schulz-Kampfhenkel era descrito como
excursões exótcas. Principalmente se visse nelas relação com suas “uma expressão brilhante da moderna
pirações ocultstas: Himmler acreditava que, com os pesquisadores geração que ora está surgindo cheia
certos, provaria a existência de Atlântda e do martelo de Thor e de vida e coragem, disposta a derrubar
sua conexão com as origens da tal “raça ariana”. O chefe da SS os obstáculos que entavam a marcha
bancou expedições para lugares como Tibete, Antártda e Cáuca- da civilização”. A voz contária foi de
so. Obedientes, os pesquisadores sempre voltavam com supostos Curt Nimuendaju, alemão que vivia em
indícios que reescreviam a história segundo as teorias nazistas. Belém tabalhando para o Serviço de
Em 1935, Schulz-Kampfhenkel foi encarregado da Expedição Proteção aos Índios, atal Funai. Con-
Jari: além de buscar indícios de arianos na América do Sul, mape- siderado por Darcy Ribeiro “o pai da
aria a região. O geógrafo, que nesse meio tempo havia se tornado antopologia brasileira”, ele foi convi-
aviador, veio com outros dado a se juntar aos pesquisadores, mas
dois pilotos: Gerd Kahle recusou. Motvo: odiava nazistas.
Os nazistas tinham gosto e Gerhard Krause. Sem se
preocupar com excesso de
Os alemães touxeram o avião para
fazer fotos aéreas. Quando a aeronave
por expedições exóticas, na bagagem, o tio touxe 11 pifou, o jeito foi exigir o máximo de
toneladas de suprimentos, seus caboclos para percorrer longas
esperança de coletar artefatos que munição para 5 mil tros e distâncias a pé – o Jari, rio raso e com
ajudassem a reescrever a história um avião. Os alemães che-
garam ao Rio de Janeiro em
fundo repleto de pedras, era de difícil
navegação. Para chegar até a fronteira
conforme a ideologia do Reich. junho, mas perderam dois com a Guiana Francesa, destno final

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dos alemães, foi preciso contar com o


serviço de tibos locais. Os pesquisa-
Por onde
dores acabaram desenvolvendo uma
relação próxima com os índios aparaí.
passaram
As AnDAnçAs
Segundo algumas fontes, até próxima nAzistAs pElA
demais: Schulz-Kampfhenkel teria en- FlorEstA.
gravidado uma índia.
Com o tempo, a selva foi cobrando
seu preço. O calor era imenso, a chu-
rio jari
va, paralisante. Todos tveram malária,
arumanduba
Schulz-Kampfhenkel desenvolveu ItInerárIo
difteria e uma febre misteriosa acabou A expedição percorreu mil km.
breves belém
matando Greiner, posteriormente ho- Ela partiu de Belém, em 1935,
menageado com a cruz. Ao final da e atravessou Breves e Aruman-
expedição, em 1937, os pesquisadores duba até chegar ao rio Jari e
enviaram para a Alemanha peles de terminar perto da fronteira da
500 mamíferos diferentes, centenas Guiana, em maio de 1937.
de répteis e anfíbios e 1.500 objetos
“arqueológicos” – aspas porque tatava-
se de uma arqueologia fraudulenta que
buscava reescrever a história segundo
os nazistas. Além disso, foram produ-
zidas 2.500 fotografias e 2.700 metos
de filme 35 mm, que resultariam no
documentário Rätsel der Urwaldhölle
(“Enigma da Selva Infernal”), que Ot- 1. Set/1935
to lançou em 1938 junto com um livro A expedição
de mesmo nome. Com muitas imagens começa,
e precisas descrições de paisagens, a com parte da
obra vendeu incríveis 100 mil exem- equipe num
plares na época. hidroavião e a
outra de barco.
Conquista e colonização
A expedição científica, apesar de pouco
conhecida, nunca foi segredo. A reve-
lação é que aquela empreitada inspirou
um plano nazista para ocupar parte da
Amazônia – usando o Brasil como por- vez, no entanto, como conquistador das atacariam a costa da Guiana Britânica.
ta de entada. A estatégia concebida tês Guianas: a Francesa, a Holande- Sitada ente esses dois territórios, a
por Schulz-Kampfhenkel é detalhada sa (hoje Suriname) e a Britânica (hoje Guiana Holandesa cairia na sequência.
no livro Das Guayana-Projekt - Ein simplesmente Guiana). No documento, Uma vez dominada, a região serviria co-
deutsches Abenteuer am Amazonas, (“O Schulz-Kampfhenkel afirmava: “a to- mo base para um futro ataque ao Japão
Projeto Guiana - Uma Aventra Alemã mada das Guianas é uma questão de via Canal do Panamá – curiosamente, os
no Amazonas, sem edição brasileira), de primeira importância por razões polít- EUA não entavam na equação.
Jens Glüsing, correspondente da revista coestatégicas e coloniais”. Os soldados Na avaliação do pesquisador, ne-
alemã Der Spiegel no Brasil. nazistas entariam pela região que ele nhum dos países vizinhos impediria
O geógrafo best-seller, recém-filia- conhecia, onde hoje é o Amapá. a invasão – como argumento, citava o
do à SS, bolou o plano de conquista A conquista começaria sem alarde: apoio que recebeu durante sua primeira
ao voltar para a Alemanha. Com a 2a uma tropa de 150 homens subiria o viagem no Brasil. Para ele, aquilo não
Guerra estourando em 1939 e os na- Rio Jari para chegar a Caiena, capital da era assunto de sul-americanos, mas
zistas empilhando vitórias, viu a opor- Guiana Francesa. Ao mesmo tempo, pe- de europeus, uma simples troca de
tnidade de voltar à Amazônia. Desta quenas embarcações e dois submarinos colonizadores. O pesquisador ainda

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4. Abril/1936 argumentava que a baixíssima densi-


dade demográfica e sua amizade com
O Projeto
Uma cruz de 3 m, deco-
rada com uma suástica, as tibos locais garantria a conquista
germânica. “O plano parece romântco,
Guiana,
é colocada na cachoeira
de Santo Antônio em mas é factível”, defendeu Schulz-Kamp-
fhenkel. No livro em que revela a esta-
passo a
homenagem a Greiner.
tégia do compatiota, Glüsing escreve
que o nazista não queria apenas partci-
passo
par da invasão; ele sonhava em governar
3. Jan/1936 a futra Guiana Alemã. 1. Entrando discre-
Há um surto de O documento parece ter circulado tamente pela Foz do
malária e um dento da SS. Em 3 de abril de 1940, Amazonas, 150 solda-
membro da equipe um oficial chamado Heinrich Peskoller dos alemães subiriam
morre. A expedição escreveu uma carta para Himmler di- o Rio Jari para tomar
é obrigada a zendo que Adolf Hitler deveria tomar a capital da Guiana
voltar a Aruman- as Guianas por seu subsolo. “Na Guia- Francesa, Caiena.
duba para pegar na Britânica, a extação de ouro e dia-
suprimentos. mante é mantda em baixa para não 2. Pequenos barcos
atapalhar o mercado sul-africano (do- e dois submarinos
minado também por ingleses). Nas avançariam pela costa
mãos do Führer, cada meto quadrado da Guiana Britânica.
de solo poderia ser em pouco tempo
explorado pela grande Alemanha”, es- 3. O passo seguinte
creveu o oficial. “O empenho e a téc- seria o domínio da
nica alemã poderiam domar as inúme- Guiana Holandesa.
ras cachoeiras na forma de usinas hi-
dreléticas colossais. Todo o país teria 4. A região serviria
bondes, navegação fluvial, produção de como base para
madeiras nobres, pontes, aeroportos, patrulhar o Atlântico
2. Nov/1935 escolas e hospitais. A comparação en- e atacar a Ásia.
Os alemães fazem te antes e depois da tomada dos ale-
seu primeiro conta- mães contaria pontos para o Führer.”
to com indígenas. Apesar de chegar até os altos es-
calões da SS, o Projeto Guiana nunca
saiu do papel. Naquele verão de 1940,
os nazistas tnham todas as suas aten-
ções voltadas para a Europa Ocidental.
Com Holanda e França ocupadas pelos cientstas, formou uma topa de elite
alemães, suas colônias (o que incluía de pesquisadores a favor do nazismo.
Guiana Holandesa e Francesa) estavam Fazendo fotos aéreas e analisando ter-
automatcamente sob domínio de Hitler. renos, passou pelo Deserto do Saara,
Na visão triunfante dos alemães, as- Itália, Grécia, Iugoslávia, Finlândia,
sim que vencessem a guerra na Europa, Polônia e Ucrânia. Em 1945, foi preso
O plano previa bastaria vir até a América tomar posse pelas forças americanas, sendo solto
a transformação dos territórios. Como sabemos, não foi
assim. O fracasso no front soviétco
no ano seguinte. Foi para Hamburgo,
onde produziu filmes, escreveu livros
das Guianas e o desembarque dos americanos na e fundou o Insttt für Weltkunde in
França fez com que qualquer plano de Bildung und Forschung (Insttto de
em vitrines das soldados nazistas circulando em nossas Formação e Pesquisa de Ciência do
conquistas selvas fosse abortado.
Já Otto Schulz-Kampfhenkel teve um
Mundo). Funcionando até hoje, a ins-
ttição fornece material de ensino de
globais de Hitler. final de guerra agitado. Com outos geografia para escolas alemãs.

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Jogo duploGetúlio flertou com a Alemanha e os EUA


ao mesmo tempo. Tudo isso porque queria
industrializar o Brasil – e saiu vitorioso.

Por Sílvia Lisboa

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D
esde a independência até o início do século 20, a Inglaterra os caciques que chegaram ao poder com
era a grande parceira comercial do Brasil. Empréstmos, Vargas em 1930 nutiam simpata por
investmentos, venda de produtos agrícolas e importação regimes fortes, como Itália, Japão e Ale-
de insumos industiais – tdo envolvia capital britânico. manha. “Exceto Oswaldo Aranha, um
Depois da 1ª Guerra, porém, o domínio dos ingleses na americanófilo declarado, havia uma ideia
economia brasileira começou a recuar até quase sumir reinante no Brasil de que a democracia
após a quebra da bolsa de Nova York, em 1929. A fonte secou. O clássica estava morta e aquele papo de
Brasil estava prestes a raspar as suas reservas cambiais na insistência que ‘o povo não sabe votar’”, diz o his-
de manter a paridade dos mil-réis com as moedas europeias. toriador René Gertz, um dos maiores
Em 1931, houve uma tentatva, batzada de Missão Niemeyer, de especialistas em nazismo no Brasil. Em
retomar as relações ente os dois países no nível anterior. Sem su- 1940, num discurso a bordo do coura-
cesso. Os ingleses estavam mais interessados em proteger e trbinar çado Minas Geraes, Vargas elogiou o
seu combalido mercado interno do que comprar o café brasileiro, o nacionalismo das “nações fortes que se
principal produto de exportação nacional na época. O Brasil precisava impõem pela organização baseada no
de mais. Para o presidente Getúlio Vargas, não havia outa saída a sentmento da pátia e sustentando-se
não ser abrir novas frentes de comércio internacional para satsfazer pela convicção da própria superioridade”.
seu plano: industializar o País e deixar para tás o passado agrário. A A exemplo de Hitler, Vargas aparelhou
única via era importar tecnologia, bancando a conta com a venda de uma poderosa máquina de propaganda
commodites. Pragmátco, Getúlio começou a jogar ente as principais polítca, o Departamento de Imprensa e
potências de então: Alemanha e Estados Unidos. Propaganda, cujas polítcas giravam em
Ambos eram parceiros relevantes, mas os germânicos levavam torno do culto à sua figura. Os slogans
vantagem. Primeiro, não tínhamos dívidas com a Alemanha. Se- “pai dos pobres” e “amigo das crianças”,
gundo, nos Acordos de Compensação assinados em 1934 e 1936, usado em panfletos e apostlas, ajuda-
ficou garantda a exportação de minérios, algodão, café, laranja, couro, ram a consolidar o poder ditatorial de
tabaco e carne enlatada em grandes quantdades em toca de pro- Vargas em pouco tempo. Além disso, o
dutos manufatrados alemães. Nesse tpo de relação, chamada de Partdo Nacional-Socialista alemão, que
comércio compensado, a balança comercial dos dois países (o saldo alçou Hitler ao poder em 1933, parecia ser
ente as importações e exportações) era equilibrada à base de toca um aliado importante conta o comunis-
de mercadorias. “Fazia-se a compensação conforme o acordo”, explica mo – este, sim, um inimigo do governo
Amado Cervo, professor da UnB, um dos autores de A História da getlista. “Dizem também que Vargas era
Polítca Exterior do Brasil. Importar algodão do Brasil para agasalhar o o único chefe de Estado com quem Hitler
exército alemão era especialmente estatégico. A fibra costmava ser tocava correspondência de aniversário.
importada da Índia e do Egito, Vargas fazia no dia 19 de abril e Hitler,
duas colônias inglesas, e dos dia 20”, diz Gertz.
Estados Unidos, já nessa épo- Mas o comércio com os EUA de
A equipe de Vargas admirava ca um inimigo alemão. A al- Franklin Roosevelt também era fun-
governos fortes, como Itália e ternatva de importar do Bra-
sil foi perfeita para os planos
damental para os planos de industiali-
zação brasileira. Tanto que Vargas acei-
Alemanha, e reproduziu aqui de Hitler de manter relações tou escancarar nosso mercado interno
esteitas com países neutos. aos produtos americanos sem entaves,
algumas das suas táticas. Do ponto de vista polítco, como altas taxas alfandegárias. E

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nomeou Oswaldo Aranha, seu braço-


direito, primeiro como embaixador em
Washington e depois como ministo
franklIn roosevelt
das Relações Exteriores. Com o ameri-
canófilo Aranha e o germanófilo Góis
Monteiro na equipe da polítca externa,
Vargas mantnha-se próximo de ambos
adolf hItler
os países sem tomar partdo de nenhum.
O governo Roosevelt estava sempre
à espreita e pressionava Aranha a usar
sua influência para limitar ou acabar
com o acordo com a Alemanha. “Esta
últma, porém, era uma meta secundária
e subordinada a um objetvo mais amplo,
o de garantr apoio polítco brasileiro –
uma aliança completa, se possível – aos
Estados Unidos", escreve o historiador
Gerson Moura, em Relações Exteriores do
Brasil 1939-1950. Por isso, Roosevelt não
retaliou o Brasil pela proximidade com
Hitler. Pelo contário: chegou a oferecer
ajuda financeira para saldar a dívida pú-
blica brasileira e criar um banco cental.

Desequilíbrio na balança
A partr de 1937, com o golpe do Estado
Novo, Vargas precisava enfrentar dois
problemas internos: reequipar as Forças
Armadas e erguer uma indústia side-
rúrgica. O Exército, que tomava cada
vez mais espaço no governo, pressio-
na ilegalidade por duas medidas toma- filho mais velho de Getúlio. Lutero era
nava pela compra de equipamentos e
das em 1937 e 1938: primeiro, a extnção ortopedista e fez um estágio em hospitais
munições. O sonho de constuir uma
de todos os partdos polítcos no Brasil; durante sua estadia na Alemanha. A via-
usina também não podia ser adiado.
depois, a proibição de atvidades polítcas gem foi bem proveitosa: Lutero conheceu
Sem ferro e aço, o governo sabia que
por parte de estangeiros. As ações foram sua primeira mulher, Ingeborg ten Haef,
não podia seguir com planos industiais.
interpretadas como um ataque direto ao em um restaurante na capital alemã.
Passou, então, a negociar com alemães
Reich. O embaixador alemão no Brasil, Mas o jogo duplo de Vargas era
e americanos capital e tecnologia para
Karl Ritter, reagiu indignado: “o Partdo intenso. Na mesma época, o governo
Nazista é a própria Alemanha. Todos os
instalar uma grande siderurgia no País. brasileiro recebeu no Palácio da Gua-
A ditadura do Estado Novo havia es-
ataques ao Partdo são ataques ao Tercei- nabara o chefe do Estado-Maior do
temecido as relações com a Alemanha.
ro Reich”. Era a confirmação de que Hitler Exército americano, o general Marshall,
Após dez anos de tolerância, o Partdo
havia concluído seu projeto de igualar a e enviou Góis Monteiro, junto com
Nacional-Socialista brasileiro foi posto
ideologia nazista à patia. Vargas chegou Aranha, aos EUA. Para a opinião pú-
a expulsar Ritter do Brasil em blica americana, a visita dos emissários
1938, mas o alto comando tnha o único objetvo de esteitar os
do Reich tratou de aparar laços comerciais ente os países. Mas
O Brasil foi assediado por ale- as arestas. Em 1939, Hitler Roosevelt tnha outos planos.
começou a bancar viagens Quando Aranha desembarcou em
mães e americanos. Vargas pediu de estdos e estágios para Washington em fevereiro de 1939, o
a ambos ajuda para construir médicos, engenheiros e ad-
vogados brasileiros. Um dos
presidente americano revelou o verda-
deiro motvo do enconto. Os EUA se
usinas e defender o País. convidados foi Lutero Vargas, preparavam para um evental conflito,

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Vargas saiu de cima do muro


depois que a Alemanha parou de
importar os nossos produtos – e
que os americanos colocaram o
presidente na parede.

getúlio vargas

Ainda assim, o avanço de Hitler sobre a


Europa fazia a opinião pública e mem-
bros do governo de Vargas acreditarem
que a Alemanha sairia vencedora.
O governo brasileiro continuou
mantendo a sua polítca de “equilíbrio
pragmático”. Até que, em janeiro de
1942, após o ataque japonês a Pearl Har-
bor, Vargas foi colocado na parede. Os
EUA convocaram a 3ª Conferência Ex-
taordinária dos Ministos das Relações
Exteriores das Repúblicas Americanas,
sediada no Rio, para extair o compro-
e seus planos navais incluíam a defesa contra a Alemanha sepultou as re- misso de todos os países do contnente
da América do Sul. Por isso, Roosevelt lações comerciais brasileiras com o de romper, ao mesmo tempo, as rela-
queria uma colaboração mais íntma de Reich – os navios alemães carregados ções com o Eixo. Na ocasião, o ministo
Vargas. Hábil negociador, Aranha não de suprimentos não conseguiam mais americano Summer Welles fez um co-
quis assumir compromissos no encon- acessar a costa brasileira, e vice-versa. mentário que soou como uma indireta.
to, mas deixou claro que o Brasil queria Naquele ano, o volume de comércio Disse que, se a Argentna, irredutível
contar com a ajuda para se defender. ente o Brasil e o Terceiro Reich caiu na postra de neutalidade, ou qualquer
Monteiro propôs a constução de ba- 90%. O problema é que nem os EUA outo país latno não concordasse com
ses e de artlharia antaéreas no Nor- nem o Reino Unido conseguiam subs- os termos alinhavados no enconto, os
deste do Brasil. Mas restições legais ttir a importância alemã na balança EUA cortariam todo o auxílio polítco,
impediram que o exército americano comercial verde-amarela. militar e econômico a eles.
fornecesse o material que o Brasil pedia, Além disso, Hitler recuou nas suas Sob pressão, Vargas pediu tempo e
e a proposta naufragou. Às vésperas promessas. Avisou que só poderia se en- enviou um telegrama a Roosevelt para
da 2a Guerra, não havia uma definição volver na constução da usina siderúrgica garantr apoio real na defesa dos seus
clara de quem seria o parceiro militar após o cessar-fogo. Mas Vargas tnha quase 7,5 mil quilômetos de litoral. Até
do Brasil: Alemanha ou EUA. pressa. Alinhavou um acordo com os aquele momento, os EUA não haviam se
A eclosão do conflito em setembro EUA e, por meio da United States Steel, mexido para entegar armamentos para
de 1939, porém, foi aos poucos forçan- conseguiu, em 1940, o empréstmo para o Brasil fortficar o litoral. Receberam do
do o governo a sair da neutalidade. A trar do papel a Usina de Volta Redonda, presidente americano uma resposta afir-
economia brasileira, dependente das no Rio – inaugurada em 1946. Em to- matva. Diante do apoio ianque, Vargas
exportações, sofreu um baque e tanto. ca, cedeu a costa do nordeste brasileiro rompeu as relações com a Alemanha – e
Em 1940, o bloqueio naval britânico para os EUA instalarem bases militares. o jogo duplo chegou ao fim.

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Harro ScHacHt

senta a pua
Em agosto de 1942, um capitão de corveta alemão entediado
e vaidoso afundou seis navios brasileiros e matou 607
pessoas. A ação de um homem só levou o Brasil à guerra.

Por Sílvia Lisboa

26 colagem: Fábio Dias


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À
s 17h48 de 15 de agosto de 1942, o capitão de corveta sangrando, caminhavam desnorteadas
alemão Harro Schacht, comandante do submarino U-507, quando o segundo torpedo acertou os
anotou no seu diário de guerra: “No início do crepúsculo, motores e provocou imensas labaredas
um (navio a) vapor é avistado a nove milhas náutcas (16,7 que atngiram a altra do masto prin-
km) no rumo 288°. Manobrei adiante. Na escuridão, o cipal, segundo a descrição do capitão
vapor acendeu suas luzes de navegação, entetanto, não Lauro Moutnho dos Reis, um dos 36
há marcas de neutalidade”. No visual do U-507, no litoral de Sergipe, sobreviventes da tagédia. As luzes se
estava o Baependy, navio de carga e passageiros que levava a Olinda apagaram, e a escuridão e os gritos de
um grupo da artlharia do Exército com suas famílias. socorro tomaram conta.
Faltava pouco para escurecer, o que impediria o reconheci- A tipulação não conseguiu nem se-
mento do navio brasileiro. A embarcação estava com as luzes quer enviar um S.O.S para pedir socorro
acesas, mas não tnha bandeira e nome do País pintados no casco e desvencilhar os botes salva-vidas. Vá-
e iluminados – as tais “marcas de neutalidade visíveis". Schacht rios foram tagados pela água. Moutnho
ainda anotaria que se tatava de um “passageiro-cargueiro”, o que também foi arrastado ao fundo do mar,
a rigor não o enquadrava no universo dos navios que poderiam imprensado por dois fardos que se solta-
ser torpedeados. “Mas Schacht mosta-se ansioso por alcançar a ram da carga do navio. Mas, por conterem
sua primeira vitória após mais de 40 dias de missão. Voltar para material flutante, os volumes voltaram à
casa com todos os 22 torpedos intactos seria constangedor para superfície e, como um milagre, touxeram
um comandante laureado como ele – um motvo para a chacota o capitão de volta. Outos não tveram
dos demais submarinistas”, escreve o historiador militar Durval a mesma sorte: 286 pessoas morreram.
Lourenço Pereira, no livro Operação Brasil: O Ataque Alemão que Schacht não perdeu tempo. Saiu
Mudou o Curso da Segunda Guerra, lançado em 2015. de novo à caça de outra embarcação.
Quando chegou a 1.500 metos do alvo, às 18h53, Schacht disparou Às 21h03, quase duas horas depois de
dois torpedos. O rasto espumante dos bólidos rasgou o mar, mas afundar o Baependy, o U-507 explodiu
não acertou o alvo. O capitão não desistu: aproximou-se mais do o Araraquara, um barco de carga e pas-
navio e acionou mais dois torpedos às 19h12 a apenas mil metos sageiros. Em cinco minutos, o navio par-
de distância. “Dois disparos para prevenir qualquer possibilidade de tu-se ao meio e levou 131 pessoas para o
tansmissão de rádio pelo vapor”, anotou no diário. Dento do navio, fundo do mar. O capitão nazista seguiu
tipulação e passageiros, a maioria cariocas, haviam acabado de jantar. sua sanha destuidora. Às 2h10, já no
A noite estava animada. Era litoral norte da Bahia, avistou o terceiro
a comemoração do aniver- navio, o Aníbal Benévolo, e lançou mais
sário do imediato do navio, um torpedo. A embarcação foi atngida
Antônio Diogo Queiroz, e no cento e afundou em 45 segundos.
Logo na primeira noite de fúria, uma pequena banda animara
a refeição. O choque do tor-
Das 154 pessoas a bordo, apenas quato
sobreviveram. Numa época em que as
Harro Schacht disparou contra pedo com o compartmento telecomunicações e os sistemas de defesa
de carga sacodiu a embarca- da costa ainda eram precários, a notícia
três navios brasileiros recheados ção. As vidraças quebraram, dos ataques demorou para chegar ao
de civis – e colocou o País em a madeira do casco rangeu,
e o navio começou a ader-
contnente – em forma de náufragos e
de cadáveres na praia. Enquanto isso, o
rota de colisão contra o Eixo. nar. As pessoas, muitas delas submarino alemão seguiu à caça.

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especial nazismo no Brasil. capítulo 1 23/ 2 8

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Em 17 de agosto, dois dias depois desolado à beira da praia com a morte da


do primeiro disparo, Schacht avistou mulher e do filho, que estavam no Bae-
uma embarcação mercante cinza, sem pendy. Foi quando o Brasil se deu conta
bandeira. Era o Itagiba, um navio de do ocorrido. A opinião pública entou
cargas e passageiros. O alemão disparou em choque, e os jornais cobraram uma
mais um torpedo que atngiu o barco decisão imediata de Vargas.
no centro. Passageiros e tripulantes O Brasil havia cortado relações co-
abandonaram o navio e pularam em merciais e diplomátcas com os países
botes salva-vidas – mas um deles foi do Eixo em janeiro de 1942, mas man-
atngido pela queda do masto durante tnha sua independência do conflito.
o naufrágio. O iate Aragipe, que estava Também não era novidade o ataque a
nas proximidades, percebeu a explosão navios brasileiros. Vários barcos car-
e partu para acudir os sobreviventes – regados de borracha haviam sido alvo
cerca de 150. Outo navio, o Arará, um dos alemães. “Mas, em geral, os oficiais
velho mercante de 1907, se juntou ao de Hitler davam um tro de alerta, os
resgate do Itagiba, a essa hora envol- marinheiros saltavam nos botes salva-
to em fumaça. Schacht acompanhou vidas, e o navio era afundado”, relata o
a movimentação. Ele havia avaliado historiador René Gertz. Além disso, os
não ser apropriado gastar artilharia naufrágios anteriores haviam ocorrido
tão perto do contnente. Mas, quando no Caribe, na costa americana – logo,
o Arará se aproximou e recolheu 18 zona de guerra. Desta vez, o ataque acer-
náufragos, Schacht mudou de ideia e tara navios de cabotagem e de passagei-
disparou outo torpedo a apenas 200 ros, deixando mais de 600 cadáveres na
metos de distância. Dos 35 tipulan- costa brasileira. E um país indignado.
tes do Arará, apenas 15 sobreviveram a No dia 18, terça-feira, o Departamen-
mais um ataque do capitão de corveta to de Imprensa e Propaganda divulgou
do Terceiro Reich. uma nota sobre o ocorrido. No Rio, hou-
ve passeatas em diferentes pontos da
Corpos na praia cidade que rumaram até o Palácio da
Schacht deu por concluída a operação Guanabara. Vargas, ainda debilitado por
e se afastou para o alto-mar para fa- um acidente de carro que sofrera em
zer reparos no submarino – ele ainda maio, saiu na sacada, amparado pela
afundaria mais um barco brasileiro, o mulher e a filha, e fez um discurso de
Jacyra. Depois dos ataques, dezenas de improviso. “A agressão não ficará im-
corpos de mulheres, homens e crianças pune”, disse. No sábado, 22 de agosto,
chegaram ao litoral de Sergipe. A cena atendendo ao clamor popular, Vargas
é parecida com a que chocou o mundo reuniu os ministos e comunicou que o EUA. Que nada. O U-507 ainda acertaria
em setembro de 2015, quando o corpo Brasil decretaria “estado de beligerância” mais duas embarcações antes de deixar
do menino sírio Alan Kurdi apareceu na conta a Alemanha e a Itália – na prátca o litoral nordestno rumo à África Oci-
praia de Bodrum, na Turquia, depois de o País já estava entando em guerra. dental em 27 de agosto. O Catalina só
um naufrágio. Uma das cenas mais de- Enquanto isso, o U-507 seguia no conseguiria acertar o submarino no ano
vastadoras é a do tenente Castelo Branco Atlântco. Como precisou emergir à seguinte, causando a morte do capitão.
superfície, foi avistado por
uma patulha americana. Pi- A verdade vem à tona
lotado pelo tenente John M. Até bem pouco tempo atás, acreditava-
Novas pesquisas em documentos Lacey, o Catalina 83P6 abriu se que a ordem para atacar os navios
fogo conta o U-507, mas er- de brasileiros fazia parte dos planos
de guerra mostram que Schacht rou o alvo. Lacey acreditava da Marinha alemã, com aval direto do
agiu sozinho, contra ordens dos ter acertado o submarino, e
o feito foi comemorado pe-
próprio Hitler. Mas uma investgação
no diário de bordo de Harro Schacht
comandantes alemães. la imprensa do Brasil e dos e nos arquivos de guerra alemães feita

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pudesse incriminar as lideranças alemãs


pelas mortes no litoral brasileiro. “A razão
é evidente: tal ordem jamais foi dada”, sus-
cartaz da campanha brasileira na 2a guerra.
tenta Pereira. Os documentos mostam
que o U-507 recebeu a autorização apenas
para fazer manobras no litoral com um
objetvo específico: interceptar comboios
Aliados rumo à Cidade do Cabo.

Tédio mortal
A Alemanha havia alertado o Chile e a
Argentna que era necessário sinalizar
os seus navios para não se tornarem alvo
dos ataques dos submarinos alemães.
Mas o Brasil não fora avisado da medida,
conforme consta nos documentos des-
cobertos por Pereira – outa retaliação
por ter rompido relações com o Eixo em
1942. Isso acabou servindo como just-
ficatva para afundar os navios, segundo
apontamentos no seu diário de bordo.
A pesquisa no Arquivo Federal ale-
mão mosta que Harro Schacht recebera
uma missão de atacar navios isolados
em uma zona bem longe do Brasil, o
que decepcionara o oficial. O tédio de
não avistar nenhum inimigo ao longo
de semanas, enclausurado dento da
cabine de um submarino, levou o co-
mandante a invadir o litoral brasileiro
atás de serviço. O oficial parecia es-
tar convencido de que o táfego naval
americano estava passando pela costa
brasileira, como anotou em seu diário.
Na época, até a diplomacia alemã ficou
intigada com o disparo dos torpedos
pelo tenente-coronel Durval Pereira des- Submarinos. Já a interrupção da ope- e suspeitava que os ataques haviam
mente essa versão. Em pelo menos duas ração está num relatório do Comando partdo dos italianos. O próprio Scha-
oportnidades, Hitler teria atado para de Operações Navais sobre a ação do cht foi inquirido diversas vezes logo
conter a Marinha alemã, conforme reve- U-507, afirmando que ela fora abando- após os naufrágios para dar explica-
lam os autos do Terceiro Reich. A Ordem nada por motvos polítcos. Segundo ções, mas tergiversou. “Se Schacht não
de Operações nº 53, a famosa Operação Pereira, é provável que o ministo das tvesse aprontado aquilo que aprontou,
Brasil, teve, sim, origem no Comando Relações Exteriores nazista, Joachim Von o Brasil não teria entado na guerra”,
de Guerra Naval alemão e determinava Ribbentop, tenha convencido o Führer diz René Gertz, professor aposentado
que os submarinos atacassem o Brasil que a entada do Brasil na guerra poderia da UFRGS. Quase dois anos após o ata-
em bando – provavelmente para retaliar ter um efeito-cascata na América do Sul que alemão, em 30 de junho de 1944, o
o País por ter rompido relações diplo- – Chile e Argentna poderiam se unir Brasil enviou o primeiro contngente
mátcas e estar mais próximo dos EUA. conta o Eixo. de topas rumo à Itália. Ao longo dos
Mas a operação foi sustada. “A Ordem A devassa feita pelo Tribunal de oito meses seguintes, 25 mil soldados
de Operações nº 53 não será realizada", Nuremberg nos arquivos alemães não brasileiros lutaram na 2ª Guerra, e 476
diz o diário de guerra do Comando de encontrou um único documento que deles morreram.

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navio Windhuk

tripulantes do Windhuk

os campos de
concentração
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Durante a 2a Guerra, também tivemos campos de concentração
- onde japoneses, italianos e principalmente alemães ficaram
confinados. Conheça suas histórias

Por Alexandre Duarte e Bruno Garattoni


Reportagem originalmente publicada na SUPER em fevereiro de 2011.

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M
anhã de 2 de março de 1944. Na Estação Ex- Mas, em 1942, tdo mudou. O Brasil
perimental de Produção Animal de Pinda- rompeu relações diplomátcas com os
monhangaba, uma fazenda no interior de São países do Eixo – cujos cidadãos pas-
Paulo, ouviu-se um som que não era comum saram a ser considerados inimigos. “O
no local. Era o choro de uma criança nascendo. governo brasileiro precisava fazer is-
Mas não uma criança qualquer. O choro era de so [criar os campos de concentação]
Carlos Johanes Braak, o único brasileiro nascido em um campo para se alinhar com as estatégias dos
de concentação – e em seu próprio país. Durante a 2ª Guerra, o Aliados e dos EUA”, explica a pesqui-
Brasil manteve 31 campos de concentação, para onde mandava os sadora Priscila Perazzo, autora do livro
cidadãos de países do Eixo – a coligação formada por Itália, Japão Prisioneiros da Guerra. Alguns estan-
e Alemanha. Os pais de Carlos, que eram alemães, estavam ente geiros foram mandados para presídios
as centenas de pessoas que viveram esse lado menos cordial da comuns – como os de Ilha Grande e Ilha
história brasileira. “Era uma fazenda. O estábulo virou um dormi- das Flores (RJ). Mas a maioria foi para
tório. Minha mãe ficava numa casa, separada. Foi onde passei os campos de concentação, organizados
dois primeiros anos da minha vida”, lembra Carlos. pelo Ministério da Justça.
O pai de Carlos se chamava August Braak. Sua mãe, Hildegard Os pais de Carlos foram parar num
Lange. Eles partram de Hamburgo, Alemanha, em direção à Cidade desses campos – a fazenda em Pindamo-
do Cabo, na África do Sul. Estavam a bordo de um navio chamado nhangaba, onde ficaram confinados 136
Windhuk, no qual August tabalhava como comissário e tesoureiro. alemães do navio Windhuk. Eles foram
O Windhuk era uma embarcação trístca, mas também coletava presos porque seu navio tnha chegado
mercadorias. Quando a 2ª Guerra estourou, o navio já estava no ao Brasil durante a guerra, coisa que o
contnente africano – em Lobito, Angola, recebendo um carrega- governo interpretou como uma ameaça.
mento de laranjas – e não tnha como voltar para a Alemanha em Os prisioneiros não podiam manter
guerra, pois estava sendo perseguido por embarcações inglesas. O suas tadições. Nada de ler livros em
capitão, então, decidiu fugir para o Brasil. A embarcação acabou alemão, por exemplo. Mas o clima era
chegando ao Porto de Santos disfarçada de navio japonês, com o relatvamente tanquilo. Alguns pri-
nome de Santos Maru, em 7 de dezembro de 1939. sioneiros podiam visitar o cento da
Assim que o navio chegou aqui, ficou evidente que ele não era cidade aos sábados, aonde iam acom-
japonês coisa nenhuma. Mas os alemães foram bem recebidos. panhados pelos guardas. “Era comum
August e Hildegard, bem os presos chegarem carregando os fuzis
como os outos 242 tipu- dos guardas, que sempre voltavam bê-
lantes, viviam em Santos e bados”, lembra Carlos.
Para agradar aos Aliados, redondezas. Alguns mora-
o governo Vargas decidiu criar os vam no próprio barco; ou- Trabalhos forçados
tros, em pensões. Todos A outa parte da tipulação do navio
campos para onde eram enviados recebiam salários do gover- foi parar no campo de Guaratnguetá
no alemão, e levavam uma – ente eles, Horst Judes, também ti-
imigrantes do Eixo que chegaram vida boa. Em 19 de abril de pulante do Windhuk, que tnha 19 anos.
aqui durante o conflito ou 1940, os pais de Carlos se
casaram numa festa a bor-
Quando desembarcou em Santos, foi
um dos que ficaram vivendo no navio,
suspeitos de espionagem. do do navio. até ser preso em 1942. No campo

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de concentação de Guaratnguetá, o almoço e no jantar era só arroz com Horst conseguiu sobreviver depois de
tatamento não era tão bom. “Éramos feijão. Às quintas e aos domingos, era ser solto, em 1945. “Saímos do campo
obrigados a tabalhar no campo”, con- dia de macarrão. Mas a comida nem sem dinheiro nem emprego. Foram os
ta o alemão em entevista em 2011, sempre era suficiente, e os prisioneiros padrinhos que nos ajudaram. O meu era
com 87 anos e dono de uma chácara dependiam de padrinhos, geralmente de São Paulo. Trabalhei como mordo-
no interior de São Paulo. A rotna no alemães livres, que os ajudavam de di- mo e até como taxista”, conta. Como a
campo de Guaratnguetá era acordar versas maneiras. Alemães livres? Sim. maioria desses estangeiros, ele também
cedo, pegar enxada e picareta e dar A maior parte dos imigrantes não foi consttiu uma família, e diz gostar do
duro. Cada prisioneiro levava um nú- presa. Iam para os campos aqueles que país que adotou de maneira forçada.
mero nas costas. “O meu era 17”, con- chegavam ao Brasil em plena guerra, Na época, o governo brasileiro fazia
ta Horst. O café da manhã tnha dois ou eram suspeitos de espionagem. de tdo para mostar que os prisionei-
pãezinhos e uma caneca de café. No Foi graças a esse apadrinhamento que ros de guerra eram bem tatados – o que
nem sempre era verdade. O tempo de
internamento variava. Houve pessoas
que ficaram tês anos presas, mas outas
conseguiam ser libertadas mais cedo.
Também é difícil definir exatamente o
Campos brasileiros número de presos que foram manda-
dos para os campos de concentação
pRisioneiRos eRam brasileiros ente 1942 e 1945, pois os
cHamados poR númeRos, registos são vagos. Mas existe uma
tRabalHavam o dia documentação que revela nomes e,
Tomé-Açú (PA)
inteiRo e comiam pouco. a 200 km de belém. em alguns campos, o número exato
Recebeu alemães e
japoneses. de prisioneiros que passaram por lá.
Os registos comprovam que a maioria
era de alemães, seguidos de japoneses
Chã de Estêvão (PE)
abrigou empregados em bem menor número, italianos e um
alemães da cia pau-
lista de tecidos (hoje ou outo austíaco.
conhecida como ca-
sas pernambucanas).
Juventude Hitlerista
Poucas pessoas foram tão afetadas com
Pouso Alegre
(MG) o internamento nos campos quanto In-
o campo de
pouso alegre grid Helga Koster, cujas memórias re-
reunia presos gistou no livro Ingrid, Uma História de
militares: os
62 marinhei- Exílios. Nascida no Paraná, ela se tornou
ros do navio
anneleise órfã de pai com apenas 1 ano. Quando
essberger. tnha 5 anos, sua mãe se casou nova-
mente, com um alemão. Seu padrasto,
Ilha das Flores (RJ) Karl von Schültze, tnha migrado para
nessa cadeia, prisio-
neiros de guerra fo- o Brasil em 1920, para fugir da crise
ram misturados com
detentos comuns que castgava a Alemanha depois da 1ª
– uma violação das
leis internacionais.
Guerra. Schültze chegou aqui e, junto
com outos estangeiros, começou a ta-
Guaratinguetá e balhar em uma empresa alemã, a AEG,
Pindamonhangaba (SP) fazendo instalações eléticas em vários
Fazendas que pertenciam
ao governo e foram adapta- lugares do País. Ele se casou com a mãe
das para receber alemães. de Ingrid no início dos anos 1930, em
Rio Negro, no Paraná. Pouco depois a
Oscar Schneider (SC)
família, já com duas outas filhas, se
Hospital transformado mudou para Joinville, em Santa Catari-
em colônia penal.
na, cidade dominada pela cultra alemã.
Ingrid se lembra de ouvir no rádio um

fotos: Reprodução
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O anistiado político
do Estado Novo
De forma inéDita, a Justiça anistiou
antônio Kliemann 56 anos Depois Da
novo chanceler que assumira o poder perseguição que o levou à loucura.
na Alemanha, cujo carisma a deixava
emocionada. “Eu ficava arrepiada. Ele antônio Kliemann era um negócios. por três vezes,
sabia falar com o povo. Nós não ima- comerciante próspero de porto foi internado em hospital
ginávamos o que estava acontecendo”, novo, um povoado formado psiquiátrico até se suicidar
conta Ingrid. O tal chanceler era Hitler. por descendentes de alemães em 1952. sem o chefe do
Então começou a guerra, e o pai de católicos no extremo oeste lar, a família perdeu tudo.
Ingrid pressentu que as coisas ficariam de santa catarina, quando foi o caminhão de antônio foi
ruins. Ele proibiu, mais de uma vez, que preso pela primeira vez em confscado pelo Decreto
Ingrid se unisse ao movimento Juven- agosto de 1942, acusado de 4166/42, que determinou
tde Hitlerista que exista em Joinville. contrabando de armas. solto a expropriação dos bens de
Na Alemanha, esse grupo foi criado pa- um mês depois, Kliemann cidadãos alemães, japoneses
ra reunir e doutinar ideologicamente retornou para casa, mas a per- e italianos residentes no
os jovens de 6 a 18 anos. No Brasil, o seguição não cessou. ele voltou Brasil. a mulher, emilia,
grupo assumiu um tom mais brando – a ser preso em novembro do não conseguiu tocar o
servia principalmente como ponto de mesmo ano. recaiu sobre ele a negócio com os quatro flhos
enconto para os imigrantes alemães. denúncia de ter trazido armas pequenos. os Kliemann
Mas o pai de Ingrid não quis nem saber. da argentina para o levante cresceram sem saber por
E também queimou todos os livros em integralista de porto novo – ele que seu pai partira tão
alemão que tnha. Ente eles o famoso era chefe da aiB na colônia cedo e não entendiam as
Minha Luta, de Hitler. – para um suposto ‘golpe de escusas da matriarca em
Até que, em 1942, a polícia bateu à estado em 1939’, um crime falar do assunto. quando
porta. “Eles chegaram procurando pelo contra a segurança nacional. foram atrás, descobriram
meu pai, o levaram e ficamos dias sem quando foi libertado, havia que a prisão – incluindo a
notícias. Até que chegou um comuni- enlouquecido. não conseguiu tortura – estava documen-
cado dizendo que ele estava preso aqui retornar à família ou tocar os tada. “o processo foi todo
em Joinville”, lembra ela, que depois de forjado, com testemunhas
algum tempo passou a levar marmitas que foram torturadas
para seu pai no Hospital Oscar Schnei- para confessar crimes que
der, adaptado como campo de concen- nunca ocorreram”, conta o
tação à época. O governo brasileiro historiador leandro mayer,
acreditava que Karl fosse um espião autor do livro o retrato da
nazista. Por isso, o regime de confina- repressão: as perseguições a
mento dele era rígido. Nos dois meses por espionagem. “Meu pai nunca falou alemães no oeste de santa
em que ficou em Joinville, nenhum sobre os tempos em que ficou preso. catarina Durante o estado
familiar pôde visitá-lo. A marmita era Mas acredito que tenha sofrido muito, novo (1937-1945). com as
entegue aos guardas. Até que certo inclusive tortra, porque antes era uma provas, a família processou a
dia, quando Ingrid foi levar a comida, pessoa alegre e depois se tornou calado, união e o estado catarinense
avisaram que seu pai não estava mais tiste”, conta Ingrid. Ela chegou a per- por danos morais e materiais
lá: tnha sido tansferido para o Presídio guntar antes de o padrasto morrer, em em 1998. “a Justiça acatou o
da Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. 1966, se ele realmente espionara. Karl pedido alegando que o crime
“Nosso dinheiro acabou e tvemos que deu uma resposta vaga, e disse apenas de tortura é imprescritível”,
voltar para o Paraná, viver do jeito que que não foi condenado. Então ele era diz a neta ania Kliemann.
dava”, diz Ingrid. “Nossa casa era ape- mesmo um espião nazista? “Até hoje o caso chegou ao stf, que
drejada, pichavam a suástca nos muros. não tenho certeza”, admite Ingrid. deferiu a ação. no ano
Nós éramos o inimigo.” Mesmo tendo passado sofrimentos passado, a família recebeu
Daí em diante, ela só pôde visitar o e humilhações, os prisioneiros alemães uma indenização de r$ 440
padrasto uma vez por ano – no Natal. não quiseram deixar o Brasil depois da mil, e antônio se tornou o
Quando a guerra acabou, Karl foi li- guerra. Como o padrasto de Ingrid.“- único anistiado do estado
bertado por falta de provas. Mas seu Quando eu perguntava se ele não gos- novo até agora.
chefe na AEG, Albrecht Gustav Engels, taria de voltar, ele dizia que, apesar de
acabou condenado a oito anos de prisão tdo, agora era brasileiro.”

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capítulo 2

osnaz
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zistas
asil
com o fim da 2 a guerra,
oficiais alemães fugiram
para a américa do sul,
onde encontraram refúgio
– e certa tolerância das
autoridades – para viver
longe dos caçadores
de nazistas. alguns dos
maiores criminosos
de guerra, como josef
mengele, viveram no brasil
sob nomes falsos. mas pelo
menos um deles estava
tão à vontade que usou a
própria identidade para
trabalhar por aqui.

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especial nazismo no Brasil. capítulo 2 3/16

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o exílio caipira do

anjo da
morte
Josef Mengele passou 20 anos anônimo no Brasil.
Hoje, sua ossada é material didático na USP.
Por Alexandre de Santi

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O
exército alemão estava em frangalhos nos primeiros Lei para Prevenir Doenças Hereditárias,
dias de 1945. A invasão da Rússia havia fracassado e, que previa a esterilização obrigatória de
fragilizadas pelas múltplas frentes de batalha por toda pessoas com problemas mentais, defici-
a Europa, as topas de Adolf Hitler começaram a ceder ências físicas, surdez ou cegueira.
espaço para o avanço dos soldados aliados e soviétcos. Mengele mergulhou na filosofia euge-
No front do Leste, o exército russo avançava sobre a nista: em 1938, filiou-se à Schutzstaffel, a
Polônia e ameaçava chegar a Auschwitz, local do maior campo de SS, o grupo paramilitar de Hitler. No ano
concentação alemão, onde cerca de 1,1 milhão de pessoas seriam seguinte, os alemães invadiram a Polônia,
assassinadas até o final da 2ª Guerra. dando início à 2ª Guerra. Josef tnha 28
O médico Josef Mengele era um dos principais responsáveis pelo anos e, como membro da SS, foi enviado
extermínio. No dia 17 de janeiro de 1945, ao receber a notícia de ao front soviétco como médico militar.
que a artlharia soviétca estava a apenas dez dias de distância do Mengele voltou à Alemanha em janeiro
campo de concentação, ele decidiu recolher pertences e anotações. de 1943 depois de sofrer um ferimento
Guardou papéis importantes em duas caixas e fugiu de Auschwitz em campo de batalha e foi tabalhar no
a bordo de um carro. As autoridades que permaneceram no campo Insttto Kaiser Wilhelm de Antopo-
queimaram os documentos deixados para tás. logia, Genétca Humana e Eugenia. Três
A derrota era iminente. No final de abril, Hitler cometeu suicídio, meses depois, tornou-se capitão da SS
e a Alemanha assinou a sua rendição em 8 de maio, pondo fim ao e foi enviado para Auschwitz, quando
conflito em território europeu – japoneses e americanos seguiriam Hitler já havia ocupado grande parte da
a matança até agosto de 1945. Mengele passou meses escondido. Europa contnental e fazia milhares de
O médico tnha medo de ser captrado pelos Aliados e julgado prisioneiros diariamente.
pelas atocidades que cometeu em Auschwitz. Em setembro, con-
seguiu uma identdade falsa, passou a atender pelo nome de Fritz Experimentos macabros
Hollmann e foi colher batatas em fazendas do sul da Alemanha. Sua passagem pelo campo de concenta-
O destno rural foi um duro golpe para o ambicioso médico nascido ção foi brutal. Uma das suas atvidades
em Günzburg, na Bavária, em 1911. Filho do dono de uma fábrica de mais rotneiras era a seleção dos prisio-
equipamentos agrícolas, a terceira maior da Alemanha, Josef afastou neiros que chegavam a Auschwitz. Al-
a possibilidade de assumir os negócios da família para perseguir a guns eram selecionados para tabalhar
carreira de cientsta. Entou para o curso de Medicina da Universi- como escravos e outos eram enviados
dade de Munique em 1930 e diretamente para a câmara de gás. Ao
foi contaminado pela cultra final de 1943, mandou matar 600 mu-
nazista da região – a cidade lheres de um único prédio para extn-
Josef era filho de um rico indus- era sede do partdo de Hitler. guir um surto de tfo. Quando faltava
trial, mas trocou os negócios da Um dos professores de Men- comida para os milhares de prisioneiros
gele, Ernst Rudin, defendia jogados em Auschwitz, optava pela ma-
família pela carreira de cientista. abertamente que a medicina tança em massa: em 1944, ele ordenou
devia ser usada para “higie- o assassinato de 4 mil mulheres por dia
Teve aulas com Ernst Rudin, que nizar” a humanidade. Depois nas câmaras de gás, ao longo de dez
defendia o uso da medicina para que Hitler se tornou chance- dias. Mengele lidava com as mortes co-
ler alemão, conceitos racistas mo uma atvidade administatva. Sua
"higienizar" a humanidade. se tornaram a norma, como a verdadeira paixão ainda era a ciência

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e, em vez de somente matar os prisio-família, que contnuava abastada no pós-


guerra – a mulher e o filho ficaram na
neiros, decidiu fazer experimentos com
eles antes de assassiná-los, a exemplo
Alemanha. A América do Sul se tornou
do que já vinha ocorrendo em outos um destno comum de nazistas. Cerca
campos de concentação. O primeiro foide 9 mil seguidores de Hitler desem-
logo com crianças: injetou pigmentos barcaram na Argentna, Chile e Brasil
nos olhos dos pequenos na tentatva a partr de 1945. O principal destno foi
de reproduzir olhos azuis. É claro que
Buenos Aires, onde 5 mil encontaram
não deu certo, e as crianças tveram refúgio, de acordo com documentos se-
infecções e perderam a visão. Mais tar-
cretos recuperados por investgadores
de, foram jogadas nas câmaras de gás.alemães em 2012. No Brasil, chegaram
Mengele tnha fascinação por gené-ente 1.500 e 2 mil nazistas.
tca. Como parte da ideologia de higie- Durante a guerra, os militares que go-
vernavam a Argentna desde o golpe de
nização da raça, o médico queria saber
quais traços humanos eram fruto do 1943 mantveram a neutalidade. Quando
DNA e quais eram influenciados pelo Juan Perón assumiu, em 1946, o presi-
ambiente. Por isso, recrutava gêmeos dente teria facilitado a fuga dos nazistas
idêntcos enviados para Auschwitz e ao fornecer passaportes argentnos com
carimbos da Cruz Vermelha de acordo
usava os irmãos como cobaias para expe-
rimentos macabros. Amputava membros, com o livro A Verdadeira Odessa, de Uki
fazia tansfusões de sangue, os infectava
Goñi, jornalista argentno especializado
com doenças e depois comparava como no exílio dos aliados de Hitler na Amé-
cada gêmeo se comportava. Terminada arica do Sul. As comunidades italiana e
experiência, Mengele matava os irmãosalemã na Argentna eram fortes e aju-
davam a sustentar o governo de Perón,
e analisava os corpos. As anotações do
médico sádico nunca foram encontadas,presidente populista que admirava a forte
e tdo o que se sabe sobre as experiên-
liderança de Hitler e Mussolini. Não se
cias vem dos relatos dos sobreviventes.
sabe as razões que levaram Perón a faci-
A pseudociência pratcada pelo Anjo dalitar a fuga dos nazistas, mas suspeita-se
Morte, como ficou conhecido, não deixou
que ele tvesse interesse na presença de
qualquer contibuição para a medicina.alemães com alto grau de educação na
Argentna, como era comum ente os
Fuga latina oficiais da SS. Os cientstas germânicos
Mengele não completou dois anos em poderiam ajudar as indústias e os mi-
Auschwitz até a fuga. No interior da litares platnos.
Alemanha, o médico ficou quato anos Em Buenos Aires, Mengele encontou
colhendo batatas. Em 1949, conseguiu amparo na ampla rede de proteção nazis-
um passaporte falso da Cruz Vermelha ta e montou uma carpintaria para produ-
sob o nome de Helmut Gregor e fugiu zir brinquedos. Tinha dinheiro de família
para Buenos Aires com ajuda da sua e vivia com conforto – a ponto de voltar a
usar o nome de batsmo. Em
1956, divorciou-se da mulher,
e a mudança no estado civil
Mengele conseguiu um pas- foi o suficiente para que o nome:

saporte falso argentino com governo alemão, pressionado


pelos Aliados para entegar
Josef Mengele.
nascimento:
carimbo da Cruz Vermelha, criminosos de guerra, des- Gunzburg, 1911.

cobrisse seu paradeiro. As onde viveu:


concedido por Perón, antes de vir autoridades germânicas não
São Paulo.

para o Brasil fugindo do Mossad,


que fim levou:
estavam com pressa: levaram Morto provavel-
tês anos para pedir a exta- mente por um
o serviço secreto de Israel. dição de Mengele. Além do
AVC, sofrido em
um banho de mar.

38 colagem: Bruno Algarve

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percebeu que os israelenses estavam no


seu encalço e fugiu para o Brasil.
O médico desembarcou em São Paulo
usando um novo nome, Peter Hochbi-
chler – um camponês suíço. Logo encon-
tou uma ocupação. Em Nova Europa,
cidade a 300 km da capital paulista,
o nazista passou a administar a pro-
priedade rural do casal húngaro Geza
e Gitta Stammer, que ele conheceu por
intermédio do amigo Wolfgang Gerhard,
um austíaco simpatzante de Hitler que
morava no Brasil desde 1948. A família
estanhou o comportamento do cam-
ponês suíço. Ele ouvia música clássica e
discuta filosofia e história, temas pouco
comuns ente os tabalhadores rurais.
Além disso, tnha receio de sair de casa
e só deixava a propriedade vestndo capa
e chapéu, cercado de cachorros.
Em 1962, os Stammer e Mengele com-
praram juntos uma fazenda maior em
Serra Negra, também em São Paulo. O
clima serrano agradou o alemão, mas ele
contnuava com medo de ser descober-
to. Para observar quem se aproximava
na propriedade, constuiu uma torre de
cinco metos na fazenda – Mengele dizia
que usava a constução para observar
pássaros. Um dia, um visitante foi à
propriedade para comprar frutas e, na
saída, deixou um jornal com a foto de
Mengele estampada, devidamente ident-
ficado como nazista. A família encontou
o jornal e confrontou “Peter” sobre sua
verdadeira identdade. O falso camponês
suíço admitu que havia sido oficial da
SS, e a relação com os Stammer nunca
mais foi a mesma.

Sozinho e paranoico
governo alemão, o serviço secreto de A família se mudou mais uma vez em
Israel, o Mossad, também estava à caça 1969, dessa vez para um síto em Caiei-
de nazistas. O médico sentu que a vida ras, na grande São Paulo, e, apesar dos
portenha estava com os dias contados atitos, Mengele foi junto. Próximo da
e fugiu para o Paraguai, onde ganhou metópole, o médico passou a convi-
guarida do ditador Alfredo Stoessner. ver com mais frequência com o amigo
Mas a barra não estava limpa: em 1960, Wolfgang e reduziu o nível de paranoia.
o Mossad sequestou Adolf Eichmann, Mas o austíaco voltou para a Europa
considerado o arquiteto do Holocausto, em 1971 e, como presente, deixou para
em Buenos Aires, e levou o oficial nazista Mengele a sua carteira de identdade.
para julgamento em Jerusalém. Mengele Os Stammer também abandonaram

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Josef
o médico nazista. Em 1974, venderam
médico alemão, e caçadores de nazistas
a propriedade de Caieiras, e Mengele
do mundo todo seguiam no seu encalço,
passou a viver num casebre ao lado da
na esperança de julgá-lo por crimes de Mengele:
objeto de
guerra. Em 1985, quarenta anos depois
represa Billings. Sozinho, o alemão sen-
tu o peso da idade. Tinha insônia, prós-
do fim da 2ª Guerra, autoridades ame-
tata inflamada, pressão alta, enxaquecas
ricanas, israelenses e alemãs ocidentais
e dormia ao lado de uma pistola, com
anunciaram um esforço conjunto para
medo de ser descoberto por caçadores
captrar Mengele. O grupo de investga-
de nazistas. Sua cabeça estava a prêmio.
dores encontou cartas dos Bossert para
estudo
Governos e organizações ofereciam uma
o ex-secretário da família Mengele, nas
quais lamentava a morte do “amigo em
recompensa de US$ 3,4 milhões para Antes do exAme de
comum”. Era a pista que faltava.
quem fornecesse informações sobre o dnA, feito em 1992,
paradeiro de Mengele (uma bolada de
A solução do caso ficou a cargo da A identidAde de
R$ 22 milhões em valores atalizados).
Polícia Federal brasileira, que monito- Josef mengele foi
Numa tarde de fevereiro de 1979, o
rou os passos dos Bossert e encontou veRificAdA pelAs
médico foi convidado para dar um pas-
objetos pessoais de Mengele com a fa- mARcAs que A
seio na praia de Bertoga com um casal de
mília. O casal austíaco confirmou ter vidA deixou em seu
amigos, os austíacos Wolfram e Liselotte
protegido o nazista e levou os policiais esqueleto. quAndo
Bossert. Passou dois dias tancado no
até o cemitério de Embu das Artes. O mengele se Afiliou
quarto, mas decidiu caminhar na areia
corpo de Mengele foi exumado e levado à ss, teve todos os
na tarde do dia 7 de fevereiro. Às 16h30,
para o Insttto Médico Legal de São membRos medidos,
Paulo, onde foi examinado por uma
entou no mar. E não voltou mais. Ente o históRico médico
equipe liderada pelo médico Daniel
as ondas, provavelmente sofreu um AVC vAsculhAdo e
e morreu aos 67 anos. O soldado que
Romero Muñoz. Mais tarde, o material As obtuRAções
atendeu à ocorrência revistou o cadáver
genétco foi comparado com o DNA AnotAdAs. foi o que
e encontou uma carteira de identdade:
do único filho de Mengele, Rolf. Deu o entRegARiA.
segundo o documento, o morto se cha-
positvo, e a busca pelo Anjo da Morte
mava Wolfgang Gerhard e tnha 54 anos
foi oficialmente encerrada.
– Mengele havia adotado a identdade
A jornada da ossada, no entanto,
do amigo como se fosse a sua. O casal
teve um últmo capítlo. Por 30 anos,
Bossert ficou em silêncio. os restos mortais de Mengele ficaram
O nazista tnha o desejo de ser cre-
armazenados dento de um saco plást-
mado, mas a legislação brasileira exigia
co no IML. Rolf, o filho, não pediu seu
envio para a Alemanha, e as autoridades
que um parente direto autorizasse a ope-
brasileiras decidiram deixar o saco guar-
ração. E não havia nenhum familiar de
Gerhard para assinar a papelada. O corpo
dado em um local seguro para evitar que
caçadores de relíquias nazistas atacassem
de Mengele foi enterrado no cemitério
Nossa Senhora do Rosário, em Embu das
o novo túmulo ou que a sepultra se
Artes, sob o nome de Wolfgang Gerhard.
tornasse um ponto trístco para fãs de
Hitler. Em 2016, Muñoz, agora professor
O mundo não sabia da morte do
de Medicina da USP, conse-
guiu a tansferência do saco
de Mengele para a universi-
Em fevereiro de 1979, o Anjo da dade. Em aula, usa os ossos
Morte foi tomar um banho de mar do médico para ensinar para
os alunos da pós-graduação
e morreu vítima de um AVC. Tinha como identficar uma pessoa
pelos restos mortais. O médi-
67 anos. Mas as autoridades só co que pratcou algumas das
descobriram seu destino anos experiências mais horripi-
lantes da história, no fim, se
depois. Sua ossada mora na USP. tornou material didátco.

40 infográfco: Alberto Rocha

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sinusite
O buraco na face
provavelmente
decorreu de uma
sinusite crônica,
alimentada
por abscessos
44 cm
dentários.

braço direito braço esquerdo

60,7 cm 60,1 cm

forame
incisivo
Quando jovem,
Mengele tinha
uma grande
distância entre os
dentes incisivos
superiores, que
desapareceu
quando passou a
ficha dentária usar um implante.
Foram analisados três Ainda assim, o
molares superiores enorme forame
obturados, o sufciente incisivo indica que
para checar com a fcha os dentes originais
dentária da SS. eram separados.

perna direita perna esquerda

83,8 cm 85,3 cm

Bacia
A borda posterior do acetábulo
– onde o fêmur se encaixa com
a bacia – apresentava uma
anormalidade: um esporão
formado provavelmente numa
coxo fratura. A posição do esporão
O nazista tinha a perna indicava que a fratura ocorrera
esquerda mais comprida. com as pernas dobradas. De
Para não mancar, usava esporão fato, conforme o arquivo da SS,
uma palmilha de alumínio acetábulo Mengele sofreu um acidente de
no sapato direito. moto em Auschwitz.

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D
urante a ditadura militar,
poucos civis entavam por
vontade própria em um
prédio do DEOPS (Depar-
tamento Estadual de Ordem
Política e Social) de São
Paulo, órgão responsável por prisões,
tortras e mortes clandestnas. Foi uma
surpresa, portanto, quando em 30 de maio
de 1978 um senhor alto, de rosto sério e
olhos azuis, se apresentou no DEOPS do
Campo Belo, na capital paulista, para se
entegar. Tratava-se do austíaco Gustav
Franz Wagner, oficial nazista, um dos co-
mandantes do campo de Sobibor. Após
ver seu nome divulgado na imprensa, o
responsável pela morte de 200 mil pes-
soas temia ser assassinado. Foi o fim de
28 anos de esconderijo no Brasil.
Gustav Wagner nasceu em Viena,
em 1911. Aos 20 anos, filiou-se ao par-

A besTA de
tdo do seu compatiota Hitler. No final
da década, já fazia parte da temida SS
(“Schutzstaffel”, literalmente “topa de
proteção”). Durante a 2a Guerra, coube
à SS a gestão dos campos de concen-
tação e extermínio onde morreram

sobibor
milhões de judeus, ciganos, homos-
sexuais e outas minorias.
O primeiro contato de Wagner com a
máquina da morte nazista foi em 1940,
no Cento de Eutanásia Hartheim, on-
de, apesar do nome, ocorriam execuções:
considerados dispensáveis, milhares de
doentes mentais e deficientes físicos t-
nham seu fim em câmaras de gás. Elo-
giado por sua eficiência, em 1942 ele foi
enviado para Sobibor, na atal Polônia.
Gustav Franz Wagner entregou-se Uma de suas funções era selecionar
quais dos recém-chegados iriam para o
à polícia de São Paulo em 1978 com tabalho escravo e quais morreriam nas
câmaras de gás. Wagner também era res-
medo de ser assassinado. ponsável por supervisionar os prisionei-
ros, tarefa na qual exerceu o que a filósofa
Hannah Arendt chamou de “banalidade
do mal”. Sádico e frio, era conhecido por
Por Emiliano Urbim açoitar prisioneiros regularmente, além

42 colagem: Fábio Dias

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no brasil

nome:
de matar judeus sem razão ou restição. com o nome “Günter Mendel”, sua no- Gustav Franz
Wagner.
“Talvez fora dali fosse civilizado, mas va identdade. Casou com uma mulher
em Sobibor sua ânsia de matar não co- que já tnha uma filha e tatou de to- nascimento:
Viena, 1911.
nhecia limites”, conta o sobrevivente car uma vida discreta em Atbaia, a
onde viveu:
Moshe Bahir no livro The Operaton 50 quilômetos de São Paulo. Estava Atibaia, São Paulo.
Reinhard Death Camps (Os Campos de tabalhando como caseiro de um síto que fim levou:
Morte da Operação Reinhard, sem edi- quando foi surpreendido com a notícia Suicidou-se a
facadas em 1980,
ção em portguês), de Yitzhak Arad. de que ele havia sido reconhecido em aos 69 anos.
“Eu vi ele espancar dois homens até a um enconto de simpatzantes do na-
morte com um rifle porque não segui- zismo em Itataia, no Rio. Era fake news,
ram suas instuções corretamente, já uma invenção de Simon Wiesenthal, que
que não sabiam alemão. Lembro de um caçou nazistas pelo mundo, com o jor-
jovem de 15 anos, Abraham, que ele foi nalista brasileiro Mario Chimanovitch.
acordar no dormitório, mas não ouviu Ambos sabiam que Wagner estava no
seu chamado. Furioso, Gustav puxou o Brasil e, para trá-lo da toca, resolveram
garoto da cama, começou a bater nele provocar. Não deu outa: a falsa repor-
e, quando se cansou, deu um tro na tagem de Mario saiu no Jornal do Brasil
sua cara, na frente de nós todos e do em 18 de maio de 1978: doze dias depois,
irmão menor.” Atos macabros como Wagner se apresentava no DEOPS, onde
esse fizeram com que Wagner ficasse seria preso logo depois. Seu temor era
conhecido como A Besta de Sobibor. ser pego pelo Mossad, o serviço secreto
israelense, que captrou vários fugitvos
Vida pacata em Atibaia nazistas na América do Sul.
Wagner não estava no campo de exter- O facínora contava uma história
mínio em 14 de outbro de 1943, data diferente: seria um burocrata. Foi pre-
em que centenas de presos fugiram - os ciso que um sobrevivente de Sobibor
detentos calcularam que teriam mais radicado em Goiânia, Stanislav Szna-
chance na sua ausência. Após o levante jner, o reconhecesse e o forçasse a
bem-sucedido, foi determinado que o confessar. Houve então um nebuloso
campo seria apagado do mapa. Wagner processo jurídico: pedidos de extadi-
comandou a tarefa com a crueldade cos- ção de Alemanha Ocidental, Áustia,
tmeira: judeus vieram de Treblinka para Israel e Polônia foram negados. Wagner
a demolição e, concluída a tarefa, foram acabou solto em 22 de junho de 1979.
todos mortos. O oficial da SS foi então O nazista tentou o suicídio algumas
para a Itália, encarregado dos últmos vezes na cadeia. Livre, voltou a Atbaia,
deportamentos de judeus. Após o fim onde foi encontado morto
da guerra, Wagner e o seu colega Franz com facadas em 3 de out-
Stangl viveram anos na clandestnidade. bro de 1980, aos 69 anos. Há
Contavam com a ajuda de membros da quem creia em assassinato. Um caçador de nazistas e um
Igreja Católica, que criaram rotas de fuga
para nazistas conhecidas como “cami-
Antes de falecer, deu uma
entevista à BBC, na qual
jornalista brasileiro armaram
nhos de rato”. Após uma passagem pela não demonstou remorso uma cilada para pegar Wagner:
Síria, ambos vieram para o Estado de São por seus crimes: “Tornou-se
Paulo (ver mais nas págs. 46 e 47). mais um tabalho. À noite, publicaram uma matéria falsa
Wagner chegou em 12 de abril de
1950. Em 4 de dezembro daquele ano,
nunca discutíamos nosso
dia. A gente só bebia e jo-
na qual relatavam ter visto
conseguiu um passaporte brasileiro gava cartas.” o oficial de Hitler no Rio.

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especial nazismo no Brasil. capítulo 2 11/ 16

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T
odo dia 20 de abril, o pessoal
da fábrica da Volkswagen em
São Bernardo do Campo, no
ABC paulista, reparava na
animação do Seu Franz, que
passava sorridente ente as
linhas de montagem. O motvo, todo
mundo sabia: era o dia do aniversário
de Adolf Hitler, seu ídolo. Foi assim
durante anos, até que, em 1967, o pas-
sado de Franz Stangl foi revelado: antes
de chegar ao Brasil, ele havia sido um
oficial nazista responsável pelo exter-
mínio de mais de 1 milhão de pessoas.
Stangl nasceu no vilarejo de Alt-
münster, na Áustia, em 1908. Seu pai,
um policial, morreu em 1916, e ele teve
que começar a tabalhar cedo. Aprendeu
a tocar cítara e chegou a dar aulas do
instumento e, mais tarde, interessou-se
pela indústia têxtl, vindo a se formar
como meste tecelão. Vendo pouco cres-
cimento profissional, no entanto, acabou
seguindo os passos do pai, prestando
concurso para a polícia federal austíaca.
Saiu da academia em 1931 e, desde então,

O AçOugueirO
passou a se interessar por polítca. Os
arquivos não deixam claro se ele já era
membro do partdo de Hitler desde essa
época ou se filiou-se após a união da
Alemanha com a Áustia (o chamado

de TreblinkA
Anschluss, em 1938). O fato é que, quan-
do os dois países se tornaram um, sob o
mesmo Führer, Stangl não demorou a se
alinhar com a nova ordem: entou para a
temida SS, organização paramilitar que
surgiu como topa de choque nazista
e que aos poucos foi englobando uma
Franz Stangl veio para São Paulo, série de tarefas dento do Estado alemão.
não escondeu o nome e trabalhou No começo de 1940, Stangl foi indi-
cado pelo próprio chefe da SS, Heinrich
em uma fábrica da Volkswagen. Himmler, para comandar o Cento de
Eutanásia de Hartheim, o mesmo onde
Descoberto, foi extraditado e condenado. esteve Gustav Wagner, outo fugitvo
nazista (leia mais na página 42). De eu-
tanásia, o cento não tnha nada: lá eram
assassinados em câmaras de gás doentes
mentais e deficientes físicos, considera-
Por Emiliano Urbim dos pragas para o regime de Adolf Hitler.

44 colagem: Fábio Dias

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especial nazismo no Brasil. capítulo 2 12/ 16

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Morte Branca logo ganhou a companhia de sua mulher, nome:


Franz Stangl.
Dada sua competência no gerenciamento Theresa. No livro Nazistas Ente Nós – A
nascimento:
do projeto descrito como “humanitário, Trajetória dos Oficiais de Hitler Depois da Áustria, 1908.
essencial, legal e secreto”, Stangl rece- Guerra, o historiador Marcos Guterman onde viveu:
beu uma nova oportnidade. Himmler conta que o casal procurou a embaixa- São Paulo.
determinou que ele fosse o primeiro co- da brasileira em Beirute e foi bem re- que fim levou:
Morreu na prisão,
mandante do cento de extermínio de cebido: “Diplomatas brasileiros se inte- em 1971.
Sobibor, constuído no começo de 1942 ressaram por Stangl, que lhes ofereceu
no leste da Polônia. Durante os cinco seus préstmos de mecânico e, assim,
meses em que ele esteve lá (e cruzou com obteve o visto para que sua família se
Wagner), estma-se que foram mortos mudasse para o Brasil”.
100 mil judeus. Tamanha desumanidade Em 1951, com passaportes brasilei-
seria premiada com uma nova promo- ros carimbados, Franz e Theresa foram
ção: Stangl foi deslocado para um campo morar em São Paulo com seus nomes
onde o genocídio seria maior ainda, o de reais. Após uma breve passagem dele
Treblinka, também na Polônia. pela indústia têxtl, Stangl e a mulher
Nos 12 meses em que Stangl esteve foram para o setor automobilístco: ela
no comando de Treblinka, ente 1942 na Mercedes-Benz e ele na Volkswa-
e 1943, cerca de 900 mil judeus foram gen. Sem ser incomodado, “Seu Franz”
exterminados. Calcula-se que as câma- só foi exposto 16 anos depois, quando o
ras de gás instaladas por ele tnham caçador de nazistas Simon Wiesenthal
capacidade para matar ente 12 e 15 rasteou seu paradeiro, confirmou sua
mil pessoas por dia. Além da eficiência identdade e o denunciou formalmente
genocida, sua gestão teve outa marca para as autoridades brasileiras. Em ju-
macabra: o ex-policial queria que o am- lho de 2017, o jornal Süddeutsche Zeitng
biente fosse agradável, e ordenou que publicou techos de uma carta do pre-
os caminhos fossem pavimentados e sidente-executvo da VW do Brasil da
cercados de flores. Relatos dão conta época, Friedrich Wilhelm Schultz-Wenk,
de que ele não lidava diretamente com enviada para a Volkswagen alemã um
os prisioneiros – o que não impediu mês após a prisão de Stangl, na qual o
que eles, ao vê-lo passar com seu uni- executvo diz que a filial brasileira nunca
forme branco, lhe dessem o apelido perguntou ou investgou se Stangl era
de Morte Branca. Seu últmo cargo nazista. No documento, ele alegou que
durante a 2a Guerra Mundial foi em “não era importante para a empresa saber
Trieste, na Itália, onde ajudou a orga- a religião dos empregados" e que a lei
nizar a defesa conta topas iugoslavas. brasileira proibia investgar suas vidas.
Quando o conflito acabou, Stangl foi Em 1967, foi extaditado para a Ale-
captrado pelos americanos e entegue manha; em 1970 vieram o julgamento
ao novo governo da Áustia em 1947. e a condenação máxima, prisão per-
Em 1948, valendo-se das ratlines (rotas péta. Stangl morreu no ano seguinte,
de fuga para nazistas), escapou para em sua cela, aos 63 anos. Sofreu um
a Itália, onde reencontrou o colega ataque cardíaco 19 horas
Wagner. Auxiliados por membros da depois de conceder uma
ultadireita católica, os dois nazistas entevista à jornalista aus- Stangl comandou o campo
iniciaram um périplo para o Brasil. tíaca Gitta Sereny na qual
Stangl contou com a ajuda do com- admitu parcialmente sua de concentração de Treblinka,
patiota Alois Hudal, um bispo que lhe
arranjou um passaporte da Cruz Ver-
culpa. “Eu nunca feri nin-
guém, pessoalmente. (...)
onde 900 mil judeus teriam
melha. O ex-SS foi para a Síria, onde Mas eu estava lá.” morrido na câmara de gás.
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super

Q
uando Herberts Cukurs, a mu-
lher e tês filhos desceram no
porto do Rio de Janeiro, em 4
de março de 1946, era domin-
go de Carnaval. A família da
Letônia deve ter estanhado
a festa: os sambas celebravam a vitória
na 2a Guerra, mas Cukurs lutara com
os perdedores. Colaborador dos nazis-
tas que ocuparam seu país, teve o nome
ligado à morte de 30 mil judeus. Mas
este segredo só viria à tona anos depois.
Cukurs (pronuncia-se “tsúcurs”) nas-

o
ceu em 1900, quando a Letônia ainda
fazia parte do Império Russo. Em 1917,
com a queda do czar, o país ficou inde-
pendente, mas a autonomia durou pouco.
Apesar de uma heroica resistência, na
qual Cukurs se destacou, a pequena na-
ção do Mar Báltco foi forçada a se juntar

carniceiro
à nascente União Soviétca em 1920.
A partr daí, Cukurs buscou novas
aventras. Virou piloto e engenheiro
de aviões, tornando-se especialista em
voos de longa distância nas máquinas que
ele mesmo constuía. Na década de 1930,
realizou duas viagens inéditas: primei-

de riga
ro, da Letônia até a Gâmbia, na África;
depois, até o Japão. Os feitos garantram
stats de herói e até terras do governo.
Quando os nazistas invadiram a
Letônia, em 1941, Cukurs se juntou a
eles. Fez parte do Comando Arajs, to-
pas que estveram à frente do chamado
Holocausto Letão. Testemunhas garan-
tem que Cukurs foi um dos líderes do
massacre de Rumbula, em que 25 mil
judeus foram retrados do gueto de Riga
e mortos nos arredores da capital. Outos
Herói da aviação na Letônia, Herberts sobreviventes dizem que ele comandou o
incêndio de uma sinagoga – e só acendeu
Cukurs virou empresário no Rio, mas teve a fogueira depois de tancar várias pes-
soas dento do templo. De acordo com
o passado revelado e uma morte violenta. Bernard Press no livro The Murder of the
Jews in Latvia (“O Assassinato dos Judeus
na Letônia”, sem edição em portguês),
Por Emiliano Urbim muitos tentavam escapar quebrando

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nome:
janelas, com braços em chamas, pedin- Por isso, nunca o expulsou. Por outo Herbert Cukurs.
do piedade. Diante dos apelos, Cukurs lado, também nunca lhe concedeu a na- nascimento:
disparava seu revólver. tralização”. Condenados pela sociedade Letônia, 1900.
No final da guerra, com os soviétcos carioca, mas não pela Justça brasileira, onde viveu:
prestes a retomar a Letônia, o aviador Cukurs e a família pegaram seus aviões e Rio de Janeiro e
São Paulo.
juntou-se aos batalhões de nazistas vieram para São Paulo. Viveram primeiro
que fim levou:
que recuavam em direção à Alemanha. em Santos e depois na capital, onde ofe- Morto pelo
A guerra acabou, e ele ressurgiu em reciam passeios de lancha e hidroavião Mossad em Mon-
tevidéu, em 1965.
Marselha, na França, onde procurou o na Represa de Guarapiranga. Nesse pe-
consulado brasileiro. Em 18 de dezembro ríodo ele teria seu últmo filho, Richard.
de 1945, recebeu um visto para residência Mantendo discrição, Cukurs viveu
permanente em nosso país. anos tanquilos. Até que, no final de
Chegou ao Rio naquele Carnaval de 1964, o letão recebeu a sugestão de
1946 com a mulher Milda e as crianças expandir seus negócios para o Uru-
Gunars, Antnea e Herberts Júnior. Ins- guai. A proposta vinha de um certo
talado, decidiu tabalhar com o que mais Anton Künzle, que se apresentava
gostava: aviação. Criou um serviço de como austíaco e ex-oficial nazista.
passeios de hidroavião na Lagoa Rodrigo Após ganhar sua confiança, o possível
de Freitas, abriu ali um restaurante flu- sócio convenceu Cukurs a encontá-
tante e, veja só, foi o primeiro a tazer -lo em Montevidéu. Antes de viajar, o
pedalinhos para o cartão postal da Zona letão avisou o DEOPS-SP, onde tnha
Sul. Segundo o historiador Bruno Leal, amigos. Os próprios policiais teriam
cuja tese de doutorado na UFRJ é sobre mencionado Adolf Eichmann, nazis-
o caso de Cukurs, o letão virou uma ce- ta captrado pelo Mossad em Buenos
lebridade. “Ele era bastante conhecido no Aires em 1960, e teriam lhe alertado
Rio, protagonista de várias reportagens. para uma possível armadilha.
Mas ninguém suspeitava do passado de Cukurs viajou assim mesmo. Ao
colaboração com os nazistas. Só sabiam chegar ao Uruguai, foi sequestado e
o que ele contava aos jornais: as proezas levado para uma casa isolada, onde foi
como aviador, a fuga do comunismo, os morto com vários tros em 23 de fe-
planos para o trismo.” vereiro de 1965. Ao lado do seu corpo
foi encontada uma sentença de morte
Desmascarado no Rio listando seus crimes. Anos mais tarde,
Até que, em junho de 1950, a Federação foi revelado que Anton Künzle era na
das Sociedades Israelitas do Rio de Ja- verdade o agente secreto israelense
neiro o denunciou como criminoso de Yaacov Meidad.
guerra, apresentando relatos de suas Talvez pela ausência de
atrocidades. O letão negou qualquer um julgamento, na Letô-
envolvimento no genocídio de judeus, nia, Cukurs ainda é visto Cukurs abriu um serviço de
mas a mídia carioca sentu-se enganada
e iniciou uma campanha conta ele. O
como um herói. Em 2008,
seus filhos criaram um blog
passeios de hidroavião e levou
que aconteceu então foi uma condenação para defender sua memória, pedalinhos para a Lagoa Rodrigo
moral, mas não jurídica, como explica afirmando que ele nunca se
Bruno Leal: “O governo brasileiro, que envolveu em genocídio. O de Freitas, no Rio. Era amado
nunca colocou a questão dos criminosos
nazistas como prioridade, não chegou a
mesmo site contém posts
que ridicularizam judeus e
pelos jornais cariocas, até seu
uma conclusão sobre a culpa de Cukurs. negam o Holocausto. passado vir à tona em 1950.
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H
á quem duvide que o ho-
mem pisou na Lua. Há
quem diga que o 11 de
Setembro foi encenação
da CIA. Há quem veja
armação no Big Brother
Brasil. E há Simoni Renée Guerreiro
Dias, pesquisadora de Cuiabá que es-
creveu e publicou de forma indepen-
dente um livro afirmando que Hitler
não cometeu suicídio no seu bunker de
Berlim em 1945. Apesar de encurralado
pelos soviétcos, ele teria fugido para
o interior do Mato Grosso, onde teria

Hitler
vivido até 1984, chegando aos 95 anos. A
hipótese que a pesquisadora apresenta
em Hitler no Brasil - Sua vida e sua morte,
publicado em 2014, parte do mesmo
fato que sustenta outas elucubrações
sobre o fim do líder nazista: apesar de

NÃO mOrreu
não faltarem registos de que ele e a
companheira Eva Braun se mataram
(ele com um tro, ela com cianureto),
seus corpos nunca foram encontados.
Antes do armistício, esse mito chegou
a ser propagado pela URSS como uma

NO Brasil
maneira de prorrogar o conflito.
Uma das versões mais populares, di-
vulgada no livro Grey Wolf: The escape
of Adolf Hitler (Lobo Cinza: A fuga de
Adolf Hitler, sem tadução em port-
guês), dos britânicos Simon Dunstan
e Gerrad Williams, é de que eles foram
de submarino para a Argentna, onde
Livro defende que o Führer fugiu para o envelheceram protegidos por Perón e
seus seguidores. A verdade, no entanto,
Mato Grosso. Mas essa teoria da é que nenhum historiador sério acredita
que Hitler tenha sobrevivido.
conspiração, como tantas sobre o líder Apesar da repercussão na mídia sen-
sacionalista ao redor do mundo, Hitler
nazista, não pode ser levada a sério. no Brasil recebeu crítcas severas. “Falta
rigor científico”, resumiu educadamente
Cândido Moreira Rodrigues, professor
de História Polítca e Contemporânea
Por Emiliano Urbim da Universidade Federal de Mato

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especial nazismo no Brasil. capítulo 2 16/ 16

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Grosso. Na época da (auto)publicação, Leipzig – uma identdade falsa (e nada


Simoni apresentou a obra como “uma criatva) adotada por Adolf Hitler. Em
dissertação de mestado em jornalismo entevistas, a autora afirmou que, ao
em desenvolvimento”, mas não escla- colocar um bigode no homem da foto
receu se a pesquisa estava vinculada a com Photoshop, convenceu-se de que
alguma insttição de ensino. Procura- estava diante do líder nazista e de que
da para esta reportagem, a autora não toda a história sobre a fuga para o Mato
respondeu aos pedidos de entevista. Grosso fazia sentdo. Segundo a autora,
Simoni Dias,
a relação com uma mulher fora dos que publicou
Um bigode no Photoshop padrões da raça ariana seria parte do sua pesquisa
No livro, Simoni não cita Eva Braun, disfarce de Hitler. em livro de
mas conta que Hitler forjou seu suicí- Outo hipotétco indício que Simoni forma indepen-
dio com ajuda da Igreja Católica. Por taz é o registo de uma internação para dente, negou
os pedidos de
essa tese, além de esconder do mundo cirurgia na Santa Casa de Misericórdia entrevista
o fato de que o Führer estava vivo, o de Cuiabá em 29 de novembro de 1979. da SUPER.
Vatcano teria arquitetado sua fuga para É de um paciente gaúcho de 81 anos cha-
a América do Sul e ainda lhe prometdo mado Adolfo Sopping. Em fevereiro de
sustento pelo resto da vida. Como pre- 1980, a Santa Casa recebeu outo gaúcho,
sente de boa viagem, cardeais conspi- desta vez de 82 anos e chamado Adolfo
radores teriam lhe dado um mapa com Lepping. No livro, Simoni defende que
a localização de um tesouro jesuíta es- são dois nomes para a mesma pessoa:
condido desde os anos 1700 em uma Hitler, claro. Para completar, a autora
caverna de Nobres, cidade trístca a conta a história de uma freira polonesa
150 quilômetos de Cuiabá. presente no local que teria reconhecido
Sempre segundo a autora, Hitler o nazista e gritado: “Aqui este homem
deixou a Europa e passou por Argen- não entra! Ele é sanguinário! Matou
tna, Paraguai e Rio Grande do Sul até muita gente! Tire-o daqui!” A religiosa
finalmente se instalar na cidadezinha teria sido repreendida por um padre, que
de Nossa Senhora do Livramento, no comandou o atendimento ao doente
Mato Grosso, hoje com 11 mil habitan- “seguindo ordens do próprio Vatcano”.
tes. Simoni escreve que o líder nazista A alguns veículos, a pesquisadora
teria passado o resto da vida buscando afirmou que havia obtdo restos mor-
o tesouro prometdo pela Igreja, mas, tais (roupas, fios de cabelo, fragmentos
sem sucesso, morreu pobre e foi en- de ossos) de Adolf Leipzig. O plano era
terrado como indigente. levar esse material a Isra-
Ente as supostas evidências apre- el, onde exames genétcos
sentadas pela pesquisadora está uma comprovariam que Leipzig Segundo Simoni, o suicídio do
foto que mosta uma senhora negra e
um senhor branco abraçados. Na ima-
era Hitler. Como?
A base da comparação
Führer teria sido forjado e
gem, claramente manipulada, as faces seria o material colhido de sua fuga, arquitetada pela Igreja
não são nítdas. Segundo Simoni, o um suposto descendente de
retato é de 1982 e apresenta um casal Hitler que viveria, pasme, Católica, que lhe deu também
de moradores de Nossa Senhora do
Livramento conhecidos como Cutnga
em Israel. Vale ressaltar
que, oficialmente, Hitler
o mapa de um tesouro jesuíta
e Alemão Velho, cujo nome seria Adolf não teve filhos. escondido em Cuiabá.
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capítulo 3

os naz
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zistas
asil
A ideologiA sobrevive por
Aqui. em sAntA cAtArinA,
um professor de históriA
desenhou umA suásticA
no fundo dA piscinA dA
própriA cAsA. em são
pAulo e em porto Alegre,
gAngues já mAtArAm um
homem, AgredirAm judeus
e explodirAm umA bombA
nA pArAdA gAy. A políciA
diz que os crimes desses
grupos estão em quedA.
mAs, com A internet, ficou
cAdA vez mAis difícil coibir
o discurso de ódio.

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especial nazismo no Brasil. Capítulo 3 3/16

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meu
professor
é nazista
Wandercy Pugliesi tem uma suástica na piscina de casa
e relativiza o Holocausto nas suas aulas de história.
Mas é adorado por alunos. O que explica essa tolerância?
Por Daniel Cassol

Colagens: Bruno Algarve

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especial nazismo no Brasil. Capítulo 3 4/16

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A
região do Vale do Itajaí, no norte de San- de imigrantes oriundos da antga Po-
ta Catarina, acordou agitada naquele 2 merânia, mas sua fundação é recente:
de dezembro de 2014. Sequestadores emancipou-se de Blumenau em 1959.
haviam raptado o marido da gerente de Foi na localidade de Pomerode Fun-
uma agência bancária de Rio dos Ce- dos, zona rural do município, que Wan-
dros, na tentatva de obrigar a mulher a dercy Antônio Pugliesi, um conhecido
abrir o cofre. A missão do comandante de helicóptero professor de História em colégios de
Humberto Damásio Costa na ocorrência era levar Blumenau, decidiu constuir sua pisci-
uma equipe da Diretoria Estadual de Investgações na. Wander, como é chamado, já havia
Criminais (Deic) de Florianópolis até Rio dos Cedros. sido assunto nacional 20 anos antes
No final do tajeto de quase 140 quilômetos, po- de sua suástica ser fotografada. Em
rém, o acaso fez com que o piloto produzisse o acon- fevereiro de 1994, ele apareceu numa
tecimento mais importante do dia, ataindo a atenção reportagem do Fantástco, da TV Globo,
nacional para o Vale do Itajaí por um motvo alheio mostando sua coleção de documentos
à tentatva frustada de roubo a banco. “Quando eu e objetos sobre o nazismo. No ano se-
estava cruzando Pomerode, no alto de uns morros guinte, seria capa do jornal Zero Hora,
avistamos uma casa onde deu para ver o que parecia exibindo um quadro de Adolf Hitler
ser uma suástca. Aproximei e vimos a cruz no fundo diante de uma estante de livros. Alguns
da piscina. Pedi para meu copiloto trar uma foto e deles, de uma contoversa editora gaú-
seguimos viagem”, relata Humberto. cha que publicava livros revisionistas
O crime acabaria não se consumando, e o casal sobre o Holocausto, a Revisão.
foi libertado no final da manhã. Mas a foto virou O exibicionismo lhe rendeu um re-
notícia nacional. Feita de um celular do alto do heli- vés na Justiça. Em 1998, a pedido do
cóptero, a imagem mostava uma casa na zona rural Ministério Público Federal, sua coleção
de Pomerode. Ao fundo da piscina, azulejos em azul foi apreendida. De acordo com o MPF,
escuro formavam o desenho de uma suástca em havia “livros, quadros, revistas, cartões
contaste com o azul mais claro. Humberto mostou postais, gravuras do exército alemão,
a imagem a repórteres que estavam em frente à objetos com a cruz suástica, além de
Delegacia de Rio dos Cedros cobrindo o sequesto. uma camiseta (estampada com a figura
A imagem foi publicada e viralizou. As atenções se de Adolf Hitler)". Pugliesi também foi
voltaram a Pomerode, “a ci- denunciado à polícia, mas o inquérito foi
dade mais alemã do Brasil”, arquivado porque a apologia ao nazismo
e a um personagem bastan- só passou a ser crime depois de 1997. A
Antes da foto da piscina, o pro- te conhecido na região. coleção, porém, permaneceu apreendida.
O pequeno município Wander tentou reavê-la alegando que os
fessor de História já havia sido de 31 mil habitantes fica a materiais eram utlizados para estdo,
notícia nacional com sua coleção 169 quilômetos da capital
Florianópolis. Sua origem
e não para divulgação de ideias nazis-
tas. Mas em 2001 o Tribunal Regional
de artigos sobre o Terceiro Reich. remonta à chegada, em 1863, Federal negou o recurso.

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especial nazismo no Brasil. Capítulo 3 5/ 16

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“Estão tentando te enganar”


Isso era o que o resto do Brasil sabia
sobre Wander. No Vale do Itajaí, ele
era o professor carismátco e piadis-
ta, daqueles que marcam a vida de um
estdante. Ex-alunos se dividem en-
te a crítca e a idolatia. “Ele já tnha
uma fama. Tu ia preparado para ter
aula com uma pessoa meio simpátca
ao nazismo”, diz a jornalista Melissa
Schröder, hoje com 26 anos. Em 2008,
em Blumenau, ela teve aula de História
no “terceirão” do Colégio Energia, uma
rede de escolas de Ensino Médio com
foco no vestbular espalhada por várias
cidades catarinenses.
Parte da fama vinha do filho de Wan-
der, batzado como... Adolf. Em 2015,
Adolf Roders Pugliesi se formou Ca-
dete na Academia Militar das Agulhas
Negras (Aman) – o pai chegou a cursar
a Escola Preparatória de Cadetes do
Exército, segundo pessoas próximas.
Hoje, Adolf é segundo tenente do Exér-
cito e ata num Regimento no oeste
de Santa Catarina. Na época em que
Melissa ingressou no Colégio Energia,
Adolf cursava o terceirão. “O Wander
era o típico professor carismátco de
cursinho, que te envolve na matéria.
Na arte de ser professor, ele era bom.
O problema era o conteúdo. Ele vê t-
do do ponto de vista nazista e vai te
ensinar História. Que adolescente vai
questonar?”, afirma Melissa.
Wander não fazia pregação nazis-
ta em sala de aula, mas relatvizava o
Holocausto, por exemplo, comparan-
do com o número de alemães e russos o Holocausto e que havia um motvo Américo. Valia também para o na-
mortos na 2ª Guerra. “Eu achava es- econômico para Hitler fazer o que fez, zismo. Wander manifestava posições
quisito. Mas os alunos se revoltavam como se justficasse”, relata. “Estão ten- conservadoras para além da questão
com a posição? Nem um pouco. Era um tando te enganar” era um dos bordões do nazismo. Temas como a Ditadura
cara adorado por vários alunos”, conta. mais famosos do professor. A frase era Militar e os governos de esquerda na
O relato é parecido com o de Tatane usada sempre que Wander queria dizer América Latna entavam no seu radar
Scoz, hoje professora de Sociologia. aos alunos que a história não era bem de opiniões. Uma entevista de 2014 à
Em 2000, aos 19 anos, ela teve aula assim como lhes ensinavam. rádio Nereu Ramos, de Blumenau, em
com Wander e lembra que o professor Valia para dizer que Dom Pedro 1o que defendeu o regime militar, circula
justficava o nazismo e questonava in- havia gritado “Independência ou Mor- até hoje nas redes sociais.
formações sobre o massacre dos judeus. te” montado em um burro, e não em Para Tarnie Montibeler, 26 anos,
“Dizia que havia contovérsias sobre um cavalo como na pintra de Pedro formado no Energia em 2008, Wander

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especial nazismo no Brasil. Capítulo 3 6/16

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foi um dos melhores pro-


fessores com quem já teve O Partido Nazista do Brasil foi
aula. “O que eu mais gosto
dele é essa forma de des-
fundado a 15 quilômetros da
pertar o senso crítco dos piscina de Wander Pugliesi.
jovens, mostrar que nem
sempre o que se conta é o
que realmente aconteceu. Claro que propaganda que utlizem a cruz suástca
ele ensinava o conteúdo estabelecido, ou gamada, para fins de divulgação do
até porque o Energia era totalmente nazismo”. No quintal de uma residência,
voltado ao vestbular, que não é espaço nos fundos de uma piscina, a suástca
para revisionismo. Mas ele sempre fa- do professor Wander não foi encarada
lava nas entelinhas, deixando entender como uma divulgação do nazismo.
que não era bem assim”, afirma o hoje O professor segue dando aulas em
bacharel em Processos Gerenciais. “Ele Blumenau, mas já não atua mais no
abriu muito a minha cabeça e de alguns Energia, cuja direção preferiu não falar
amigos. Posso dizer que devo parte do à reportagem. Há seis anos, o professor
meu senso crítco a ele.” dá aulas no cursinho Acesso, da mesma
A admiração é tanta que nem a notícia cidade, onde é tdo como uma pessoa
sobre a suástca na piscina mudou a per- de “índole irrefutável e qualidade do-
cepção sobre o professor. “Acredito que cente inquestonável”, nas palavras do
isso possa ter decepcionado e ofendido diretor Felipe Grillo. O professor não
muita gente, embora a suástca não de- respondeu aos pedidos de entevista.
va ser relacionada somente ao nazismo.
Mas honestamente tve um ano de aulas O passado condena
maravilhosas com ele. Não me permitria A história do Vale do Itajaí, onde fica
desconstuir a admiração que possuo Pomerode e a piscina da suástca, foi
pelo Wander por uma coisa que ele tem marcada pela presença do nazismo na
dento da casa dele”, afirma a nuticio- primeira metade do século 20. Antes de
nista Yanna Arante, 29 anos, aluna de Hitler assumir o poder na Alemanha,
Wander em 2005. Em 2002, em uma for- em 1933, o Partdo Nacional Socialista
matra lembrada até hoje por ex-alunos dos Trabalhadores Alemães (NSDAP,
do Energia, os alunos decidiram erguer na sigla em alemão) já havia se insta-
a mão direita, reproduzindo a saudação lado na região (como vimos na página
nazista em “homenagem” ao professor 8), resultado da forte imigração alemã,
de História. “Foi uma forma de home- cujas marcas são visíveis ainda hoje na
nagem ao professor, na nossa visão de arquitetra e hábitos locais. A primeira
17 anos de idade e pouco conhecimento célula do Partdo Nazista no exterior
histórico. Demorei anos para entender o foi fundada no ano de 1928 em Timbó,
que se passava ali”, diz Larissa Beppler, município localizado a cerca de 15 qui-
hoje empresária em São Paulo. lômetos da piscina de Wander. Ente as
Wander não chegou nem a ser alvo décadas de 1930 e 1940, Santa Catarina
de inquérito pela suástca na piscina. era o segundo Estado brasileiro com
Na época, o delegado de Pomerode, Luiz maior número de filiados ao Partdo
Carlos Gros, disse não ver ilegalidades Nazista, atás de São Paulo.
no caso. O Ministério Público também O passado ajudou a fortalecer um ide-
não ofereceu denúncia conta o pro- ário nazista em Santa Catarina, onde as
fessor. O texto da Lei 9.459, de 1997 posições de Wander são toleradas e até
estabelece como crime “fabricar, comer- mesmo idolatadas? Pelo menos uma
cializar, distibuir ou veicular símbolos, pesquisa sugere que sim. Ente 2002
emblemas, ornamentos, distntvos ou e 2009, a antopóloga Adriana Dias

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especial nazismo no Brasil. Capítulo 3 7/ 1 6

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fez um estdo em 40 sites neonazistas e


verificou que o maior número de acessos
vinha de Santa Catarina. Eram 45 mil
no total, conta 42 mil do Rio Grande
do Sul, 29 mil de São Paulo, 18 mil do
Paraná e 8 mil do Distito Federal. Na
época em que a piscina do professor foi
revelada, os dados foram usados em re-
portagens cujas manchetes atestavam
que Santa Catarina é “o Estado mais
nazista do Brasil”.
Wander não está sozinho. No dia
20 de abril de 2014, meses antes de a
piscina com suástca ser revelada, car-
tazes em homenagem ao aniversário
de Hitler foram afixados em um poste
próximo à Igreja Matiz da cidade de
Itajaí, a 90 km de Pomerode. A Polícia
Civil identficou Kaleb Rodrigo Frut-
oso e Fabiano Antônio Schmitz como
responsáveis pela ação, e os dois foram
presos. A Promotoria de Justça de Itajaí
ofereceu denúncia conta a dupla com
base na Lei de Crime Racial. O processo
aguarda as alegações finais dos acusa-
dos. De acordo com a Polícia Federal
em Santa Catarina, desde 2012 foram
instaurados nove inquéritos para apurar
fatos relacionados ao neonazismo – a
PF não detalha os casos.
Frutoso foi eleito, em 2010, para a
direção do movimento O Sul é o Meu
País, que defende a separação dos Esta-
dos do Sul do resto do Brasil. O grupo
se tornou um ímã para defensores de
ideias que, no mínimo, flertam com o
racismo. De acordo com o jornalista
e ex-presidente do movimento, Celso
Deucher, Frutoso nem chegou a to-
mar posse como integrante do conse- Isolamento do Arquivo Histórico de Blumenau,
lho fiscal, e teria partcipado de apenas A existência de um movimento sepa- Sueli Pety, ente 1904 e 1908 havia
uma assembleia, sendo afastado após ratsta que atai admiradores de Hitler 120 escolas alemãs na região e ape-
verificar-se que ele estava envolvido ajuda a reforçar a fama neonazista dos nas quato em língua portguesa. “O
em atvidades neonazistas na internet. Estados sulistas. Esse sentmento de governo não dava atenção. As escolas
“Após os eventos de Itajaí, tvemos a que o povo sulista é "diferente" do bra- que havia eram da comunidade evan-
certeza de que se tatava de mais uma sileiro pode ter sido fortalecido pela gélica, que tveram forte influência.
ação de elementos infiltados dento geografia. No começo do século 20, Qual era o grande pensamento evangé-
do movimento O Sul é o Meu País”, o Vale do Itajaí vivia isolado do res- lico? A língua, a religião, o sentmento
afirma Deucher. to do País. De acordo com a diretora pátio. Foi o que tvemos aqui”, diz

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especial nazismo no Brasil. Capítulo 3 8/16

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levar também em conta o


grande temor do comunis- Holocausto: Judeu ou Alemão -
mo patocinado pela União
Soviétca num ambiente de
Nos Bastidores da Mentira do
forte coloração rural pau- Século é um dos títulos da editora
tada na pequena proprie-
dade da terra, no tabalho Revisão, de Porto Alegre.
da família e no apego à
religiosidade. Ou seja, tdo
aquilo que, aparentemente ao menos, por propagar conteúdo racista em seus
era o inverso do maldito comunismo”, livros. Ente os títlos, livros como
aponta. No Rio Grande do Sul, outo Holocausto: Judeu ou Alemão - Nos Bas-
Estado fortemente marcado pela imi- tdores da Mentra do Século e Acabou
gração alemã, casos semelhantes ao de o Gás!... O Fim de um Mito. Julgado
Wander são recorrentes. e condenado, contnuou divulgando
O mais recente ocorreu em Porto seus livros, que inclusive faziam parte
Alegre. No dia 23 de março, a Escola do acervo de Wander apreendido em
Estadual Paula Soares recebeu uma Pomerode. Em 2003, o Supremo Tri-
estdante de Filosofia da PUCRS para bunal Federal manteve a condenação
lecionar para uma trma do terceiro do editor por crime de racismo. Ainda
ano do Ensino Médio como parte do hoje é possível comprar livros da edi-
estágio acadêmico obrigatório. Durante tora Revisão pela internet. Siegfried
a aula, a professora ttlar deixou a morreu em 2010.
sala. A estagiária aproveitou que estava
sozinha com os alunos, anunciou que Prudência
era nazista e ordenou que eles fizessem Apesar da recorrência dos relatos, his-
a saudação hitlerista com o braço. A toriadores são cautelosos ao analisar
ordem não foi bem aceita, os alunos conexão ente a imigração alemã e uma
protestaram, e a estagiária teria agre- suposta tolerância cultral ao nazismo
dido uma adolescente com um puxão no Sul. O risco, segundo eles, é criar um
de orelha e um tapa. O caso foi parar novo preconceito conta os descenden-
na direção da escola e na polícia, que tes de alemães. “Não é compreensível
não deu mais detalhes ou divulgou o penalizar a imigração alemã pela forma
nome da acusada. A Secretaria Esta- como neonazistas, que muitas vezes não
dual de Educação cancelou o estágio têm relação com esse fenômeno, visua-
da estdante, e o caso segue em inves- lizam esse processo”, diz Odilon Caldei-
tgação. “Ela falou que foi criada assim ra Neto, pesquisador da PUCRS. Para o
e que sempre agiu dessa forma", disse professor Luiz Felipe Falcão, da Udesc,
a diretora da escola, Genecy Cegala, o sentmento difuso de simpata ao na-
Sueli. “Vivíamos numa região onde ao jornal Zero Hora. zismo é verificado em diversos países e
a germanidade era muito forte”, diz. Porto Alegre também foi sede da tem mais a ver com a realidade polítca e
A imprensa ajudava a propagar a ide- Revisão, a editora de Siegfried Ellwa- sociocultral de cada local. “Não existe
ologia nazista. Os jornais catarinenses nger Castan, nascido no ano de 1928 maior simpata pelo nazismo em Santa
mais importantes da época saudavam em Candelária, município de coloniza- Catarina do que na Avenida Paulista ou
os feitos de Hitler, com a exceção de ção alemã localizado na região cental na zona sul do Rio”, diz.
O Estado, de acordo com o professor do Rio Grande do Sul. O contover- De fato, como veremos nas páginas
de História da Universidade do Estado so personagem ficou conhecido nos a seguir, os mais violentos ataques de
de Santa Catarina (Udesc) Luiz Felipe anos 1980, depois que movimentos neonazistas no Brasil não ocorreram
Falcão. “Para entender isso, é preciso de direitos humanos o denunciaram no Sul: foram em São Paulo.

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Neonazistas brasileiros
já mataram, espancaram,
jogaram bomba em pessoas e
seguem ativos na internet.

Terrorismo
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nazismo

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no brasil

Por Naira Hofmeister


Colagens: Bruno Algarve

o domésTico
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C
huck, Tumba, Crânio, Lika, Mel,
Vivi, Macaco, Sequestrado,
Bulldog e Devastação se reu-
niram na estação Vergueiro do
metô de São Paulo, na tarde
daquele domingo, 14 de junho
de 2009. O plano era rumar em direção à
13a Parada Gay para agredir homossexu-
ais. Três milhões de pessoas percorriam
a pé as 15 quadras ente o vão do Masp
e a Praça Roosevelt para comemorar a
diversidade sexual, e o grupo neonazista
se mistrou à trba colorida.
Depois que a polícia liberou o tân-
sito na região, um grupo continuou
a festa no Largo do Arouche. Chuck,
Tumba e companhia foram junto. Às
21h40, uma bomba foi jogada para ci-
ma, na esquina da Avenida Vieira de
Carvalho com a Rua Vitória. Era um
explosivo de fabricação caseira, que
mistrava “dinamite ou substância de
efeitos análogos”, como definiram os
investgadores, com pedaços de cano
de PVC, cacos de vidro e pregos. Os
estlhaços atngiram até quem estava
a 40 metos do local, na outa esquina.
Quarenta pessoas ficaram feridas.
A 500 metos dali, por volta das 23h,
a gangue atacou Marcelo Campos de
Barros, 35 anos, negro e homossexual,
com um pedaço de madeira e chutes
com botas de bico de aço. Marcelo mor-
reu tês dias depois. O inquérito aberto
pela Polícia Civil e tansformado em
denúncia pelo Ministério Público do
Estado apontou a mesma autoria para
o atentado a bomba e para o assassi-
nato: uma gangue neonazista chamada conteúdo antssemita, cujo link havia
Impacto Hooligan (IH), a que Chuck e sido enviado para um dos organizado-
seus amigos pertenciam. Onze pessoas res da Parada Gay, junto com ameaças.
foram indiciadas, ente elas dois me- Testemunhas ajudaram a colocar as úl- Um assassinato e
nores de idade.
A polícia chegou até eles por meio
tmas peças no quebra-cabeça.
Nas casas de Chuck e Tumba, a po-
um atentado a bomba
das imagens de segurança de um lícia encontou as roupas utlizadas no abalaram a Parada
dos bares, que mostavam os jovens domingo dos crimes: botas com bico de
de classe média chegando ao local e aço, máscaras, armas falsas e munição. Gay de 2009. Os acu-
saindo correndo poucos segundos an-
tes da explosão. A gravação bata com
Também havia papéis documentando
a existência do grupo, um caderno de
sados pelos crimes
fotografias hospedadas em um site de anotações com 241 páginas, considerado seguem em liberdade.
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nazismo

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no brasil

Quem são
os neonazis
da Impacto
Hooligan
sequer os depoimentos de comparsas Parte deles foi
da Impacto Hooligan, que confirmaram denunciada Pela
a partcipação da gangue nos crimes, bomba na Parada
foram suficientes para incriminar os Gay de sP, e outra Pela
acusados. Alguns chegaram a ser presos morte de marcelo de
preventvamente, mas obtveram habeas barros. chuck e tumba
corpus e não retornaram à cadeia. A foram condenados,
punição imposta – exclusivamente a mas nunca foram
Chuck e a Tumba – foi por formação Presos Porque a Pena
de quadrilha: dois anos em regime se- Prescreveu.
miaberto, que acabou perdendo valida-
de porque o processo tamitou durante acusação:
tanto tempo que a pena prescreveu. Formação
O assassinato de Marcelo Barros e de quadrilha
o atentado à bomba na Parada Gay de rodrigo alcantara de
2009, em São Paulo, foi o mais rumoroso leonardo (tumba)
caso de neonazismo dos últmos anos no Guilherme Witiuk ferreira
Brasil. O desfecho, embora tenha frusta- de carvalho (chuck)
do a polícia e o Ministério Público, não
Jorge Gabriel Gonzalez
chega a ser incomum: há ainda poucas
condenações definitvas por crimes que thiago batista miranda
envolvam ideologia neonazista no Brasil (crânio)
e, quando elas são proferidas, em geral vivian cristiny moura da
as penas são alternatvas, podendo ser silva (vivi)
cumpridas com prestação de serviços aline lacerda foche (lika)
comunitários, multas ou em regime
semiaberto ou aberto. ana Paula ramos
Guimarães da silva (mel)
No Rio Grande do Sul, por exemplo,
um caso que é considerado o marco
na investgação do movimento no Bra- acusação:
sil, por ter sido o primeiro a revelar a homicídio
existência de uma quadrilha neonazista, rodrigo alcantara de
ainda não teve sua tamitação concluída leonardo (tumba)
na Justça. O crime ocorreu às 2h da
Guilherme Witiuk ferreira
manhã de 8 de maio de 2005, horário de carvalho (chuck)
em que os bares da Cidade Baixa, bair-
ro boêmio de Porto Alegre, costmam fernando cariola dos
santos laguna (macaco)
estar cheios, especialmente na noite de
o estatto da Impacto Hooligan, no qual sábado. A data é considerada especial diego do nascimento
constam regras como “não ter dó dos pela comunidade judaica, pois marca alves (sequestrado)
inimigos”, e orientações sobre hierarquia a rendição da Alemanha na 2ª Guerra. aline lacerda foche (lika)
da gangue e a simbologia neonazista. Um grupo de judeus que usavam quipá
thiago batista miranda
Ela estava expressa também em cartas cruzou pelo Pinguim, um bar conhecido (crânio)
que relacionavam os numerais 88 e 98 do bairro, onde integrantes da gangue
aos integrantes do bando: são menções Carecas do Brasil bebiam, armados com ana Paula ramos
Guimarães da silva (mel)
à posição das letas no alfabeto. Oito é o facas. O ataque foi rápido e feroz. Sete
“H”, nove, o “I” e portanto 98 quer dizer nazistas agrediram tês judeus, que só Pedro henrique
Impacto Hooligan, e 88 seria as iniciais não morreram porque clientes dos bares soares da silva
de Heil Hitler. apartaram o conflito, e o atendimento samuel vaz de
Mas nem todos esses indícios e médico chegou rápido. Doze anos castilho (boni)

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depois do crime, os 14 réus (agressores para poder conversar com os acusados.


e cúmplices que auxiliaram na fuga) Eles frequentemente testam o nosso
aguardam em liberdade a realização conhecimento para definir se estamos
de um júri popular que vai proferir a autorizados a conversar com eles”, expli-
sentença. É a primeira vez que a decisão ca. A delegacia comandada por Daniela,
será dada por esse método no Brasil. em São Paulo, é outo bom exemplo:
Desde 2005, foram “ente 40 e 50 foi criada em 2006 e, desde então, vem
indiciamentos” por crimes relacionados alimentando um banco de dados e in-
aos neonazistas, segundo cálculos do formações sobre as gangues. “Temos
delegado Paulo César Jardim, que inves- as fotos e os casos relacionados a cada
tgou o caso e que é considerado uma indivíduo investgado. Com o tempo,
das maiores autoridades no assunto no eles foram ficando conhecidos, o que
País. Em geral, os processos aguardam inibiu a atação deles na rua, e a postra
julgamento ou foram concluídos com mais violenta acabou diminuindo”. Em
penas alternatvas. Porto Alegre, guardado em um armário
na sua sala na 1a DP, o delegado Jar-
Vigilância constante dim possui um esquema ilustado que
A sensação de impunidade poderia mosta a diversidade de grupos e as
incentvar os grupos neonazistas no respectvas simbologias existentes no
Brasil. Mas não foi isso que ocorreu Rio Grande do Sul: um careca crucifi-
nos últmos anos. Na verdade, crimes cado, um cotrno preto com cadarços
promovidos por gangues organizadas, brancos ou a suástca. A maioria está
como a Impacto Hooligan e os ski- ligada a uma grande família chamada
nheads gaúchos, estão em declínio. White Power Sul Skin.
“O últmo caso rumoroso foi o ata- A legislação brasileira também mu-
que a bomba, em 2009. Desde então, dou para dar conta da punição a esses
não houve nada nesses termos”, diz crimes, o que contibui para arrefecer
Daniela Branco, responsável pela De- a ação dos bandos racistas. Desde 1989,
legacia de Crimes Raciais e Delitos de havia a Lei do Crime Racial e, em 2016,
Intolerância de São Paulo (Decradi). O entou em vigor a Lei Antterrorismo,
delegado Paulo César Jardim também que prevê crimes inafiançáveis e com
vê uma evolução: a atação dos grupos penas de 12 a 30 anos de prisão. “Esta-
neonazis “tem diminuído acentada- mos mais tanquilos, respaldados por
mente”, afirma. duas leis muito rigorosas”, diz o diretor
A explicação para a queda é a vi- jurídico da Confederação Israelita, Oc-
gilância constante da polícia em cima tavio Jose Aronis.
dos grupos organizados. Daniela e Jar- Hoje, grande parte das ocorrências
dim conhecem em detalhes os hábitos são desavenças internas ou enfrenta-
dos envolvidos, mesmo dos casos que mentos ente gangues de ideologias di-
ainda não foram a julgamento. “Acom- ferentes, não ataques a minorias. “Fun-
panhamos suas vidas, sabemos onde ciona como torcida organizada, cada um
tabalham, com quem se reúnem... E tem sua posição e eles se enfrentam
eles sabem disso”, diz Jardim. Em 12
anos, desde o ataque aos judeus em
caso se cruzem na rua”, diz Daniela.
Por exemplo, se um grupo se inttla
A polícia montou equipes
Porto Alegre, setores da polícia se es- “careca”, ele possivelmente é inimigo especializadas em neona-
pecializaram nesse tpo de ação. Jardim dos skinheads, embora ambos tenham
teinou uma equipe que, além do mo- a cabeça raspada – os carecas são na- zis que seguem os passos
nitoramento de grupos e indivíduos, se
dedica ao estdo de obras fundadoras
cionalistas (e, tecnicamente, não neo-
nazis, mas compartlham de aspectos
dos integrantes – na
da ideologia neonazista. “É importante da ideologia intolerante) e não admitem internet e na vida real.
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nazismo

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no brasil

o grupo ganhou notoriedade por suas


ações violentas nos anos 1980 e 1990,
seguindo nos notciários até a virada do
século. Um dos últmos grandes crimes
associados aos Carecas do ABC foi o
espancamento até a morte do adestador
de cães Edson Neris da Silva, em São
Paulo, no início do ano 2000. Edson era
homossexual – no momento do ataque,
ele estava de mãos dadas com outo
homem, que conseguiu escapar.
Atalmente, esses grupos perderam
espaço nas notícias policiais. Os Ca-
recas do ABC já não são numerosos
como antigamente – estima-se em
torno de 250 membros somados aos
Carecas do Subúrbio, grupo do qual
são uma dissidência – e se dedicam