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As formações discursivas – Arqueologia do Saber


Segundo texto da resenha de Arqueologia do Saber, de Foucault. Desta vez será a seção As Formações Discursivas, do
segundo capítulo do livro.

by Vinicius Siqueira
Published abril 6, 2015
9 Comentários

Da série “A Arqueologia do Saber“.


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Veja abaixo nosso podcast sobre as formações discursivas, depois, complemente com o artigo!

As Formações Discursivas - Michel Foucault

Chegar na formação discursiva não foi rápido. Se Foucault inicialmente tentou encontrar aquilo que dava unidade ao
discurso, ele acabou percebendo que não era possível enxergar essa homogeneidade nem na materialidade do livro e
nem na autoria, pois o discurso é algo que atravessa os livros, os documentos, as falas em público e as conversas
cotidianas de uma dada época e tem sua característica especí ca não nas palavras ditas, nem nas causas externas a elas
e muito menos às causas internas (como se fosse um fato psicológico).

A especi cidade do discurso está em pauta na seção As Formações Discursivas, do segundo capítulo d’A Arqueologia do
Saber. São quatro hipóteses para a identi cação da unidade do discurso, que são refutadas pelo próprio Foucault uma a
MENU uma.
Michel Foucault dedicou sua

vida para uma análise


heterodoxa, baseada em
conceitos opostos ao da ciência
estabelecida.

As quatro hipóteses de Foucault


1) De início, Foucault se pergunta sobre o objeto do discurso. Segundo o autor, “primeira hipótese – a que me pareceu inicialmente a mais verossímil e a
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mais fácil de provar: os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto”[1].
Mas logo percebe que é impossível agrupar o objeto da loucura em um único local.

Se a doença mental é aquilo que falaram sobre ela, as técnicas que se utilizaram e as tecnologias sociais para terapêutica ou internamento, então não é
possível a rmar que a unidade de objeto “loucura” seja uma só. Os enunciados sobre a loucura não falavam do mesmo objeto a cada época diferente. O
louco de Pinel não é o mesmo louco pré-revolução francesa, que era internado por comportamentos moralmente condenáveis.

Desta forma, a unidade dos discursos sobre a loucura não teria a ver com o objeto “loucura” em particular, mas com as regras que permitem a sua
emergência em épocas diferentes, que são medidas e categorizadas de acordo com práticas diferentes. Seria necessário observar não a continuidade do
objeto “loucura”, mas perceber todas as séries de enunciados que o constituem e reparar em suas separações. Sendo assim, em relação aos diferentes
objetos do discurso da loucura, “de nir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual consistiria em descrever a dispersão desses objetos,
apreender todos os interstícios que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição”, encontrar
a formação discursiva.

2) Em seguida, Foucault se pergunta sobre os modos enunciativos. “Segunda hipótese para de nir um grupo de relações entre enunciados: sua forma e seu
tipo e encadeamento”[2], tenta Foucault. Esta seria a tentativa de encontrar num discurso especí co, como o médico, um certo estilo, um jeito próprio de
descrever seus enunciados. No entanto, esta hipótese ruiu com a observação da medicina na história.

A ciência médica, após a tentativa de torná-la ciência e retirá-la do campo das tradições e do misticismo, precisou car cada vez mais heterogênea em
relação às formas como lidava com a coleta de dados e com a exposição de suas conclusões. Então o francês conclui,

 Se há unidade, o princípio não é, pois, uma forma determinada de enunciados, não seria, talvez, o conjunto das regras que tornaram possíveis, simultânea ou
sucessivamente, descrições puramente perceptivas, mas, também, observações tornadas mediatas por instrumentos, protocolos de experiências de laboratórios,
cálculos estatísticos, constatações epidemiológicas ou demográ cas, regulamentações institucionais, prescrições terapêuticas? Seria preciso caracterizar e
individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos; o sistema que rege sua repartição, como se apoiam uns nos outros, a maneira pela qual se
supõem ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo de seu revezamento, de sua posição e de sua substituição [3] .

3) A terceira hipótese se coloca em relação aos conceitos: “não se poderiam estabelecer grupos de enunciados,
determinando-lhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que aí se encontram em jogo?”[4]. Esta hipótese não
se sustentou nem por dois parágrafos.

Porque quando se tenta reconstruir uma arquitetura conceitual de um discurso, se percebe que a cada diferente escola de
pensamento ou até mesmo na mesma escola de pensamento em momentos diferentes, há conceitos que se opõem aos
outros ou que lhes são completamente incompatíveis. Os conceitos da tentativa dos gramáticos evolucionistas de encontrar
um sentido oculto nos sons não tem nada a ver com os conceitos. Novamente, Foucault conclui com uma indagação bem
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parecida com as duas últimas já mostradas,
 Entretanto, talvez fosse descoberta uma unidade discursiva se a buscássemos não na coerência dos conceitos, mas em sua
emergência simultânea ou sucessiva, em seu afastamento, na distância que os separa e, eventualmente, em sua incompatibilidade.
Não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos su cientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e
introduzi-los no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão [5] .

4) Por m, a última hipótese se relaciona com os temas, as teorias ou estratégias do discurso. “A quarta hipótese para
reagrupar os enunciados, descrever seu encadeamento e explicar as formas unitárias sob as quais eles se apresentam: a
identidade e a persistência dos temas”[6].

Neste ponto, se encontra a hipótese do discurso como algo baseado numa teoria (por exemplo, a evolucionista). O discurso
seria a convergência do tema evolucionista conforme tudo que saiu de Bu on até Darwin. Mas também poderia ser a
persistência da estratégia da economia política em fundamentar a burguesia. Para o autor, não existe tal unidade.

Foucault mostra que, a partir de um único tema (que é o próprio evolucionismo) emergem duas escolhas estratégicas: se no
início do século XVIII o evolucionismo tem mais a ver com uma ideia de evolução linear interrompida unicamente por Edição francesa da


catástrofes naturais, no século XIX a teoria se dá mais na relação das espécies descontínuas com o meio do que em sua Arqueologia do Saber.
suposta continuidade (já considerada desnecessária).

Desta forma,

 estaríamos errados, sem dúvida, em procurar na existência desses temas os princípios de individualização de um discurso. Não seria mais indicado buscá-los na
dispersão dos pontos de escolha que ele deixa livres? Não seriam as diferentes possibilidades que ele abre no sentido de reanimar temas já existentes, de suscitar
estratégias opostas, de dar lugar a interesses inconciliáveis, de permitir, com um jogo de conceitos determinados, desempenhar papeis diferentes? Mais do que
buscar a permanência dos temas, das imagens e das opiniões através do tempo, mais do que retraçar a dialética de seus con itos para individualizar conjuntos
enunciativos, não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha e de nir, antes de qualquer opção, de qualquer preferência temática, um campo de
possibilidades estratégicas?[7]

A formação dos discursos


Após colocar em pauta e refutar quatro maneiras diferentes de de nir a unidade do discurso, 1) tentando veri car a permanência dos objetos e percebendo
que vários diferentes objetos com o mesmo nome são dispostos nos enunciados da loucura; 2) tentando veri car os modos enunciativos e percebendo que
há várias maneiras de coleta e indução de dados para um mesmo discurso; 3) tentando observar uma continuidade das mesmas noções, conceitos e ideias,
mas frustrando sua análise ao perceber que diferentes conceitos, até mesmo antagônicos podem estar presentes no mesmo discurso; por m, 4) colocando
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em foco os temas, as escolhas estratégicas, mas observando o exemplo do evolucionismo, em que o mesmo discurso permite a saída para suas escolhas
estratégicas, Foucault então percebe que é necessário dar atenção às dispersões, ao que separa e ao que faz de cada enunciado ser único num dado
momento: a arqueologia, assim, trata de sistemas de dispersões, não de quadros de diferenças, cadeias de inferência ou de qualquer forma contínua e linear
de compreensão do discurso.

Este sistema de dispersão carrega consigo uma determinada formação discursiva, que descreve sua regularidade (seu núcleo), conforme o autor,

 no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipo de de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder de nir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos,
por convenção, que se trata de uma formação discursiva[8]

E continua, “chamaremos de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação,
conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação são condição de existência, mas também de coexistência, de manutenção, de modi cação e de
desaparecimento) em uma dada repartição discursiva”[9].

Os objetos em si não interessam para o lósofo, nem os modos de enunciação, escolhas estratégicas ou conceitos, mas as regras que possibilitaram a
existência de tais regularidades. O que interessa é a formação discursiva, a regularidade entre os enunciados que permite de nir um sistema de dispersão,
em que eles se agrupam e se separam sob o mesmo conjunto de regras num dado momento em um dado local.

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Referências
[1] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.39.

[2] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.41.

[3] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.42.

[4] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.42.

[5] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.43.

[6] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.43.

[7] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.45.

[8] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.47.

[9] FOUCAULT, Michel. As formações discursivas… p.47.

Vinicius Siqueira
Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do biopoder nos textos foucaultianos.
Autor dos e-books:

Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;


Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.

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Publicado em Filoso a, Michel Foucault | Tagueado como Arqueologia do Saber

9 Comentários

José Marcus De Castro Mattos disse:


maio 21, 2015 às 12:45 pm

Em “O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise” (1969 – 1970), Lacan conseguiu formalizar a rede discursiva através da con guração de “quatro
discursos radicais” (nos termos de Lacan), quais sejam, 01) o Discurso-Mestre, 02) o Discurso-Histérico, 03) o Discurso-Psicanalítico e 04) o Discurso-
Universitário. Além disso, demonstrando com rigor a existência de “mutações internas” ao Discurso-Mestre e ao Discurso-Histérico, Lacan mostrou a
existência de outros dois agenciamentos discursivos, a saber, respectivamente, o Discurso-Capitalista e o Discurso-Cientí co. Embora não haja espaço
aqui para a elucidação da estruturação, do funcionamento e das correlações entre tais discursividades, parece-me que o esforço teórico de Lacan abriu
perspectivas de leitura do campo discursivo mais interessantes e fecundas do que as de Foucault…

Responder

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Vinicius disse:
maio 21, 2015 às 9:06 pm

uai, mas são maneiras completamente diferentes e nada excludentes de se analisar dos discursos.

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carlos o minimo disse:


setembro 24, 2016 às 10:35 pm

Não se trata de conceitos dialeticos, mas uma abordagem inovadora onde contextos se entrelaçam aparentemente aleatório , difuso e não disforme, um
trabalho que busca elucidar a babel que se constitui a moral humana. O discurso tem um poder regulador, sua essência é minuciosa e invisível, e suas
realizações são sobre-humanas. Górgias vai acentuar a natureza física da linguagem e a inocência dos ouvintes na seção 8 Há , portanto , inato no ser
humano uma habilidade de persuadir um ao outro e revelar aquilo o que é desejado.

Responder

Vinicius Siqueira disse:


setembro 26, 2016 às 12:55 pm

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Obrigado pela participação, Carlos.
Responder

DAMIAO FRANCISCO BOUCHER disse:


fevereiro 24, 2020 às 11:05 am

Bem esclarecido, Vinícius Siqueira. Nós da Análise de Discurso de linha francesa precisávamos de um site de qualidade como esse. Quero manter contato
contigo, meu e-mail é boucherplace@gmail.com. Sou mestrando a UFT de Letras e tenho a AD como uma ferramenta muito séria para ler o mundo atual
através dos discursos. Em outro momento posso contribuir também com conteúdos, mas por hora, quero agradecer o esclarecimento de forma mais
precisa, (apesar de sua leitura, sua interpretação também ser uma posição discursiva sobre o assunto), com menos interrupção, ruído ideológico possível.

Responder

Vinicius Siqueira disse:


março 8, 2020 às 9:27 pm

Obrigado pelo comentário, Damião!

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