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A IMPLANTAÇÃO DO CORREDOR TRANSCARIOCA NO

CAMPINHO, RIO DE JANEIRO-RJ: TRANSFORMAÇÕES


DOS ESPAÇOS, IDENTIDADE E DINÂMICA URBANA

Josielle Cíntia de Souza Rocha (1) e Ricardo Ferreira Lopes (2)


(1) Arquiteta urbanista, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF). E-mail: josiellecintia@yahoo.com.br
(2) Arquiteto urbanista, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF). Professor Assistente do Departamento de Projeto,
Representação e Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Juiz de
Fora (DPRTAU-FAU-UFJF). E-mail: ricardof.lopes@yahoo.com.br

RESUMO
Os bairros suburbanos da cidade do Rio de Janeiro vêm sofrendo profundas transformações
decorrentes das obras de construção de eixos viários para o espetáculo dos Jogos Olímpicos de 2016.
O objetivo desse artigo é analisar o contexto em que se deram as recentes intervenções urbanas,
promovendo uma reflexão sobre os aspectos associados à perda ou desvalorização de uma identidade
definida como “suburbana” e a possibilidade de construção de identidades outras. Colocou-se em
questão como estas interferências na paisagem podem gerar mudanças na “identidade suburbana”,
historicamente presente na cidade do Rio de Janeiro. Adotou-se como recorte espacial, o bairro do
Campinho, localizado na zona Norte da cidade, visto que ali, as obras da Transcarioca geraram certa
polêmica com a demolição de casarios outrora tombados pela municipalidade. Com base no
levantamento de dados historiográficos e notícias de jornal, pretende-se nortear a reflexão do
contexto de como a área suburbana da cidade está se transformando e os reflexos dessa transformação
no cotidiano de sua população.
Palavras-chave: Megaeventos. Subúrbio. Identidade

1 INTRODUÇÃO

A cidade não é estática, mas um fenômeno em constante transformação. No curso de sua


existência, geralmente ocorrem crescimentos, urbanizações, adaptações e readaptações de
seus espaços, em princípio, na busca de torná-lo adequado às necessidades humanas, estas
mesmas sujeitas a mudanças. Durante as últimas décadas, muito tem se discutido e
investigado sobre as transformações dos espaços das urbes, tomando como objeto de estudo
centros históricos, áreas portuárias, a exemplo dos demais setores urbanos, seja por terem
passado por esvaziamentos em suas ocupações, seja em razão de degradação ambiental, seja
ainda por acolhimento de novas atividades, entre muitos outros motivos. Estes movimentos
emergem, e têm permitido propostas para suas qualificações, revalorização econômica e
cultural, por vezes através da adaptação de antigas estruturas às novas dinâmicas, nem
sempre acompanhada da preocupação de manutenção ou do intuito de recuperação da
identidade local. Discute-se, em certos casos, inclusive, o reflexo inverso: a expulsão da
população que residia em locais que passaram por intervenção, através de processos
diversificados de gentrificação nestas áreas.
Por outro lado, também pode acontecer o anúncio de preservação de áreas e, em outra escala,
de paisagens urbanas, na tentativa de reter significados e referências para as populações
concernentes. Segundo ABREU (1997, p.81), nestes casos, a memória urbana retida torna-
se um elemento fundamental na constituição da identidade desses lugares. Esta prática, nem
sempre vem atrelada a razões identitárias, visto que a espaço e imagem urbana vêm sendo
reconhecidos como “mercadoria” e possibilidade de lucro imediato. Reflexo das novas
dinâmicas urbanas encontra-se na agenda das discussões atuais, não raro articulado ao fato
questionável de dependência da disputa entre cidades, para alcançar determinadas posições
no cenário mundial. Tais estudos, portanto, se desdobram em análises de áreas com maior
visibilidade, sendo menos frequente que contemplem estudos referentes a espaços de menor
visibilidade.
Também representantes de entidades nacionais vêm trabalhando nestes últimos anos, na
arena competitiva, para sediar eventos de repercussão mundial. Para tanto, houve grande
destaque para a cidade do Rio de Janeiro, por ter posição privilegiada dentre as demais
cidades brasileiras. A cidade do Rio de Janeiro acolherá as Olimpíadas de 2016, depois de
ter sido palco de outros grandes eventos. Estes e outros investimentos que envolveram todas
as esferas de governo – municipal, estadual e federal - foram calcadas em ações estratégicas
e agressivas de marketing.
Contudo, as obras de infraestrutura viária contidas no plano de ação da Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro para lhes dar suporte são controversas, uma vez que o traçado do corredor
Transcarioca desconsiderou, em boa parte, os registros da memória de alguns bairros
suburbanos por ele cortado, com cerca de 3.600 imóveis desapropriados, afetando
diretamente a imagem e a identidade dos mesmos, deixando lacunas em termos de espaços
de referência, já incorporados por sua população.
Assim, este artigo1 tem por objetivo analisar o contexto socioespacial da área suburbana da
cidade do Rio de Janeiro onde as recentes intervenções urbanas, que fazem parte do conjunto
de obras para a construção da Cidade da Copa e Olímpica estão promovendo grandes
mudanças físicas na imagem de sua paisagem. Deste modo, adotou-se como recorte espacial
o bairro do Campinho, localizado na Zona Norte da cidade, visto que ali, as obras do corredor
expresso Transcarioca geraram certa polêmica com a demolição de casarios outrora
tombados pela municipalidade. Pretende-se, ainda, promover uma reflexão sobre os aspectos
associados à perda ou desvalorização de uma identidade definida como “suburbana” e a
possibilidade da construção de outras identidades em função das transformações observadas
na estrutura morfológica, por sua vez, decorrentes da dinâmica de produção de um novo
espaço urbano.
A metodologia empregada na coleta de dados e análise aborda o levantamento
historiográfico, a fim de embasar a reflexão sobre a evolução da área suburbana da cidade,
bem como a pesquisa de fontes primárias como base de investigação das transformações que
estão ocorrendo no espaço urbano, todas obtidas em notícias de jornais.
Algumas reflexões sobre as relações entre o processo de transformação da cidade em
espetáculo e a identidade existente, bem como as possíveis identidades construídas a partir
deste novo espaço construído, serão foco de reflexão, inclusive a apropriação afetiva dos
novos espaços pela população, e a sua consequente fruição, de forma a promover sua
existência de forma vital. Por fim, pretende-se, ainda, apontar os resultados das
transformações decorrentes do processo de construção da “Cidade Global” no recorte
espacial proposto, não apenas tangentes às mudanças físicas do espaço, mas, para além
destas, as modificações na “identidade suburbana”, que é fortemente presente na cidade do
Rio de Janeiro. Há que se preocupar, também, com as mudanças imediatas, ou seja, o reflexo

1
Trabalho originalmente apresentado na disciplina Planejamento e Espaço Urbano, ministrada pelas
professoras Drª Maria de Lourdes Pinto Machado Costa e Drª Lélia Mendes de Vasconcellos, do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF), realizada
no primeiro semestre de 2014.
da transformação de bairros tradicionais da cidade em grandes canteiros de obras e os
impactos no cotidiano da população suburbana.

2 A CONSTRUÇÃO DE UMA PAISAGEM SUBURBANA “GLOBAL”?

No modelo atual de planejamento, estratégico, a competitividade entre as cidades, cujo


objetivo é a busca pela categoria de “cidade global”, se dá através de determinadas
intervenções urbanas que garantam a modernização da infraestrutura necessária para
renovação da base econômica, que vem sendo feita através dos grandes projetos urbanos.
Para Portas (1998, p.60) a modernização ou construção de infraestrutura serve para criar ou
valorizar o “capital fixo urbano”, que não deve ser resolvido como simples projeto setorial,
sem tomar em consideração os efeitos mais amplos que pode desencadear sobre o espaço
que serve. Assim, os projetos urbanos atuais consideram o espaço público enquanto
protagonista, onde se melhora a circulação, a iluminação, o escoamento das águas pluviais,
o calçamento das vias, o transporte, ou seja, o fluxo, o movimento. E o “estar dos citadinos”?
O “permanecer”? Não há dúvida que o escopo dos grandes projetos urbanos atuais deveria
considerar as questões referentes à habitação no espaço da cidade formal e também no
informal, os vazios urbanos gerados por grandes intervenções urbanas, abertura de vias, o
meio ambiente resultante e, o destruído, bem como a participação social.
Outra estratégia da lógica atual de planejamento que amplia a competição entre as cidades é
a candidatura a grandes eventos internacionais, conhecidos como “megaeventos”. As
cidades buscam, portanto, a projeção de uma imagem de nova potência em desenvolvimento
e capacidade para receber investimentos de grandes empresas multinacionais, como
exemplo, a cidade do Rio de Janeiro.
Na construção da imagem da cidade enquanto espetáculo nota-se a crescente
desconsideração com a identidade do lugar em detrimento das ações do Poder Público. Áreas
que, por tradição, são arraigadas de significados para a coletividade, tais como ocorrem no
subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, estão sofrendo mudanças significativas em seu
conteúdo socioespacial. Neste sentido, o planejamento estratégico teve um papel decisivo
para a dinâmica urbana atual e é apresentado como um instrumento que tem a capacidade de
construir o consenso político fundamental para execução de grandes projetos urbanos. Este
planejamento atual tem como estratégia a cooperação público-privada no financiamento das
intervenções, a busca pela cidade enquanto centro terciário qualificado, bem como a
construção de uma imagem da cidade para projetá-la no exterior, sobretudo sob a conotação
turística ou culturais como produto de venda (COMPANS, 1996, p. 215).
Na dinâmica urbana atual, a busca da ascensão de categoria na hierarquia do urbano, dá-se
através de determinadas intervenções, que garantem a modernização da infraestrutura
necessária para renovação da base econômica. Para Portas (1998, p.60) a modernização ou
construção de infraestrutura serve para criar ou valorizar o “capital fixo urbano”, que não
deve ser resolvido como simples projeto setorial, sem tomar em consideração os efeitos mais
amplos que pode desencadear sobre o espaço a que serve. Assim, os projetos urbanos atuais
têm no espaço público um protagonista, onde se melhora a circulação, a iluminação, o
escoamento das águas pluviais, o calçamento das vias, o transporte, ou seja, o fluxo, o
movimento. E o “estar dos citadinos”? E o “permanecer” deles?
Na cidade do Rio de Janeiro, as principais obras, de acordo com o site oficial
(www.portal2014.org.br) são: a reforma do estádio do Maracanã e intervenção no entorno,
reforma da Estação de Metrô da Mangueira, transformando-a em multimodal, reforma dos
terminais 1 e 2, pista e pátio do Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim (Galeão), e a
construção do corredor BRT Transcarioca, ligando o Aeroporto Internacional à Barra da
Tijuca.
A obra do corredor Transcarioca foi dividida em quatro trechos. O primeiro incluiu o
Terminal Alvorada, as avenidas Ayrton Senna e Embaixador Abelardo Bueno, ligando a
Barra a Jacarepaguá. O segundo da Estrada Coronel Pedro Corrêa à Estrada dos
Bandeirantes, na Taquara. A terceira perna inclui a Avenida Nelson Cardoso e as ruas
Cândido Benício, Domingos Lopes e Quaxima e a duplicação do Viaduto Negrão de Lima,
em Madureira. Por fim, o quarto trecho foi composto pelas avenidas Ministro Edgard
Romero, Vicente de Carvalho e Brás de Pina até o Aeroporto Internacional (Figura 1).
Figura 1: Trajeto do corredor expresso Transcarioca e a centralidade geográfica de Madureira na escala
metropolitana.

Fonte: Adaptado de Google Earth, 2014


Contudo, apesar deste projeto de grande porte, com vocação de agente de transformação
social que resultará em um inquestionável legado de desenvolvimento social, esportivo,
urbano e econômico para a cidade e para o país, as obras de infraestrutura viária contidas no
plano de ação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro são controversas, uma vez que o
traçado do corredor Transcarioca desconsiderou, em boa parte, os registros da memória de
alguns bairros suburbanos por ele cortado, com 3.600 imóveis desapropriados, afetando
diretamente a imagem e a identidade dos mesmos.
Em áreas que projetam maior visibilidade, a prática aplicada é pautada na reestruturação da
paisagem urbana baseado num discurso de recuperação da memória coletiva. Por outro lado,
na construção da imagem da cidade enquanto espetáculo, nota-se a crescente
desconsideração da identidade do lugar no tempo das ações do Poder Público. Áreas que,
por tradição, são arraigadas de significados para a coletividade, tais como ocorrem no
subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, estão sofrendo mudanças significativas em seu
conteúdo socioespacial.
3 A IMAGEM E A IDENTIDADE DO SUBÚRBIO CARIOCA

Várias ciências, humanas e sociais, exploraram o tema identidade. No campo da Geografia,


o foco de análise é a identidade dos lugares e sua influência na formação de consciências
individuais e coletivas (ROCHA, 2009). Para Bossé (in CORRÊA e ROSENDHAL, 2004,
p. 158) estes pesquisadores “observam como as pessoas, sujeitos e agentes geográficos
recebem e percebem, constroem e reivindicam identidades cristalizadas em suas
representações e em suas interpretações dos lugares e das relações espaciais”. Com o
desenvolvimento das correntes humanistas dentro da Geografia, a partir de 1970, o tema
ganha uma nova dimensão conceitual – o “sentido de lugar”. O lugar é considerado, pois,
como o suporte essencial da identidade, ele influencia de forma subjetiva e/ou objetiva em
sua construção.
Para a análise das mudanças ocorridas nos espaços da cidade é necessário utilizar a
identidade do lugar como categoria de análise e interpretação das transformações urbanas.
Para tanto, não basta buscarmos abordagens apenas no campo da Geografia, faz-se mister
ampliar essa abordagem em outras ciências humanas e sociais. Lévi-Strauss (1957, p. 231)
expõe a influência do espaço na afirmação da identidade, assim como, a necessidade da
interação entre memória e espaço para possibilitar tal afirmação. Os objetos e o espaço
funcionam como elementos ativadores deste processo de construção e reafirmação de
identidades. Assim, os objetos, aqui, entendidos como edificações, participam na
constituição da identidade no momento em que a memória dos indivíduos é acionada, isto
acontece seja como forma de orientação no espaço, ou para relembrar fatos que ocorreram
naquele espaço, o que lhes confere uma sensação de pertencimento. Nesse sentido,
Halbwachs (2004, p. 139) aponta que um grupo permanece unido através do espaço por
pensarem e permanecerem submetidos à influência de seu ambiente.
Entretanto, a construção de identidades não deve ser associada à simples manutenção da
memória, pois, quando os conhecimentos e valores culturais são lembrados no presente para
uma reelaboração, se deparam com transformações que contribuem ou não para a afirmação
da identidade dos indivíduos. Para o sociólogo Bauman (2005, p.35) as identidades estão
livres e cabe a cada um capturar aquela que lhe convém, conferindo-lhe segurança e
pertencimento. Portanto, as experiências urbanas decorrentes da dinâmica da sociedade
sobre o espaço concede também aos indivíduos a possibilidade de escolhas, ou seja, o
surgimento de “novas identidades”. Assim, a identidade depende do contexto social, pois
fornece condições para variadas alternativas de identidade. E mais, a construção da
identidade se dá através das relações entre os indivíduos num determinado tempo e espaço.
Nota-se que os indivíduos, enquanto sujeitos, percebem, constroem e reivindicam
identidades em suas interpretações dos lugares durante as relações sociais. Neste sentido,
estas relações acontecem em lugares onde se processam a vida cotidiana, que se tornam local
de coesão para determinado grupo social. Consideramos o espaço citadino como sendo
aquele que é suporte da vida cotidiana, aquele que é produto das relações sociais.
Para Muñoz (2008) a urbanização atual, decorrente de uma produção globalizada, se mostra
uma dinâmica tão atuante que se pode falar na existência de um sistema de paisagem que
objetiva a produção de morfologias e ambientes urbanos paradoxalmente sem
temporalidades nem espacialidades reais, apenas simuladas ou clonadas.
O fato é que existem diversos debates teóricos sobre o termo identidade no campo das
ciências humanas e sociais, que corresponde a diferentes maneiras de entender este conceito.
Aqui, trataremos a identidade como expressão do sentimento de pertencimento do grupo
social, como meio de promover a segurança ao indivíduo, ao estar entre indivíduos que se
reconhecem como semelhantes num espaço considerado familiar. Esta sensação favorece o
estabelecimento de vínculos, de trocas e de coesão, que pode ser muito bem exemplificada
com o termo identidade suburbana carioca.
A identidade suburbana carioca está estreitamente relacionada ao particular conceito de
subúrbio assumido na cidade do Rio de Janeiro. Ao tratar do tema subúrbio, na referida
cidade, observa-se que há uma diferenciação conceitual, que se deve a professora Maria
Therezinha Segadas Soares, que, em seus estudos sobre a cidade do Rio de Janeiro, justificou
a existência de um "conceito carioca de subúrbio" (SOARES, 1966, p. 197). A professora
Soares, ao lado de outros autores como Leeds & Leeds (1978), chamaram de subúrbio os
bairros populares e ferroviários situados dentro do território da cidade. Segundo Soares
(1966, p. 197), a identidade do subúrbio está calcada na existência do transporte ferroviário,
uma vez que, só se denomina subúrbio àquelas áreas onde o acesso é primordialmente
realizado por trens. Mesmo as áreas que sejam periféricas, com baixas densidades e outras
características próprias dos subúrbios em geral, em que não houvesse a característica citada
anteriormente, não poderia ser denominada de subúrbio.
Para Soares (1966, p. 197), a palavra subúrbio só assumiu o significado carioca quando
passou a ser definida por três fatores: o transporte ferroviário como meio de acesso,
predomínio de uma população menos favorecida, no que diz respeito à renda, e, por último,
dependência e frequência das relações com o centro da cidade. A partir do século XX, estes
fatores se fixaram à palavra subúrbio, que no caso da cidade do Rio de Janeiro se tornaria o
conceito carioca de subúrbio, que foi amplamente discutido e representado para além do
campo acadêmico.
Desta forma, ao lado de outros signos, tais como Zona Sul, Zona Norte, Central, o subúrbio
passa a compor a imagem da cidade, integrando um mapa social, no qual os citadinos se
definem pelo lugar onde moram, ou seja, uma representação ideológica da divisão de classes.
Por se tratar de um signo ideológico fortemente presente na cidade do Rio de Janeiro, não é
possível tratar da área objeto deste estudo sem referi-la à sua identidade local – a identidade
suburbana carioca, que é representada em seu modo de vida, suas relações de vizinhança e
suas moradias, cujo resultado é a construção de sua paisagem (Figura 2).
Figura 2: A paisagem do Largo do Campinho em 1970: a vitalidade dos casarios como elemento de
identidade suburbana.

Fonte: <http://fotolog.terra.com.br/riodehistorias:163> Acesso em 28 jul. 2012


4 LOCALIZAÇÃO E HISTÓRICO DO BAIRRO DO CAMPINHO

O bairro do Campinho está situado na zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. O mesmo
confronta com os bairros de Madureira, Oswaldo Cruz, Praça Seca, Cascadura e Vila
Valqueire. Sua configuração urbana atual é caracterizada pela interseção dos principais eixos
viários de escoamento dos fluxos daquela região, que são os seguintes: no sentido
Jacarepaguá, rua Cândido Benício; proveniente do bairro de Madureira, rua Domingos
Lopes; em direção ao bairro de Cascadura, Avenida Ernani Cardoso e; em direção ao bairro
de Vila Valqueire, rua Intendente Magalhães (Figura 3).
Estas vias foram formadas no distante passado colonial, quando as mesmas eram chamadas,
respectivamente, Estrada de Jacarepaguá, Estrada de Irajá e, as duas últimas mencionadas
formavam a Estrada Real de Santa Cruz. Em 1589, os padres jesuítas da Companhia de Jesus
adquiriram a fazenda de Santa Cruz e para atingir esta propriedade, fez-se necessário abrir o
caminho que deu origem à Estrada Real de Santa Cruz. No cruzamento destas estradas havia
um local de parada, onde os viajantes tinham por costume descansar, antes de dobrar as
demais estradas rumo às suas terras, deixando seus animais pastarem em um pequeno campo
existente no encontro desses caminhos – eis daí o nome atribuído ao largo: “Campinho”
(COSTA, 2000).
Figura 3: (a) Localização do bairro do Campinho na cidade do Rio de Janeiro (em laranja). Fonte: PCRJ,
Portal GeoRio; (b) o Campinho e seus bairros limites. Fonte: PCRJ, Portal GeoRio; (c) Detalhe dos eixos
viários principais (em amarelo), junto ao centro do bairro.

(a) (b)

(c)
Fonte: Google Earth. Acesso em 28 jul. 2012
O lugar se tornou passagem obrigatória não somente para se chegar à Fazenda de Santa Cruz,
mas para atingir outras localidades, o viajante tinha que passar pela Estrada Real de Santa
Cruz e, por conseguinte, pelo Largo do Campinho. Muitos vinham das províncias, como São
Paulo e Minas Gerais e, muitas vezes optavam em fazer uma pausa no largo, antes de
enfrentar o trajeto final para a cidade do Rio de Janeiro. Ali, no século XVIII, foi aberta uma
estalagem, servindo por mais um século aos viajantes, inclusive Joaquim José da Silva
Xavier (Tiradentes), o qual pernoitou por diversas vezes na hospedaria, em seus
deslocamentos da Vila Rica (Ouro Preto) para o Rio de Janeiro. Ao lado da estalagem havia
o oratório da Fazenda do Campinho onde atualmente, no mesmo local, existe a Igreja de
Nossa Senhora da Conceição, construída a partir de 1862.
No século XIX, bem no início do Primeiro Reinado (1822), foi construído no bairro o Forte
de Nossa Senhora da Glória do Campinho, erguido com o intuito de proteger o Caminho
Real de possíveis ataques de invasores estrangeiros.
A ambiência urbana do entorno do Forte do Campinho passou a contar, nas primeiras
décadas do século XX, com casarios suntuosos, em estilo eclético, evidenciado pelo poder
do comércio local. Vale frisar que, naquela época, o Mercado do Campinho era um
importante entreposto de distribuição e venda da maioria dos produtos agropecuários da
cidade (COSTA, 2000). Estas edificações representavam simbolicamente, uma época de
grande prosperidade.
Apesar do recente estado de abandono, estes casarios, todos componentes do conjunto
arquitetônico localizado no Largo do Campinho, foram tombados pela Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro, a pedido dos moradores em 2004 (MAGALHÃES, 2010) (Figura 4). Isto
significa que, em tese, nenhum dos imóveis tombados poderia sofrer qualquer tipo de
alteração sem análise prévia da Secretaria de Patrimônio Cultural. No entanto, apesar da
tamanha relevância histórica, lamentavelmente parte desta memória foi destruída para dar
lugar ao corredor Transcarioca.
As intervenções promovidas pela necessidade de adequação da cidade aos jogos mundiais
de futebol e olímpicos, cujos efeitos ainda estão em curso, configuram novos significados e
incertezas, tanto na paisagem urbana como nas práticas sociais de seus citadinos. A seguir,
procura-se avançar sobre tais desdobramentos na área objeto do presente estudo.
Figura 4: Conjunto arquitetônico tombado do início do século XX no Largo do Campinho, em dois
momentos distintos (a) 1988; (b) 2010: nítido estado de degradação.

(a) (b)

Fonte: <http://oglobo.globo.com/rio/bairros/marcelo/posts/2010/08/05/largo-do-campinho-esta-degradado-
313898.asp> Acesso em 28 jul. 2012
5 OS IMPACTOS DO CORREDOR TRANSCARIOCA NO BAIRRO DO
CAMPINHO

Mesmo durante a preparação da cidade para sediar um megaevento como a Copa do Mundo
e as Olimpíadas, há uma troca intensa no campo simbólico, uma vez que, coloca em exibição
ao mundo a cidade em preparação e, por outro lado, exibe o mundo aos seus citadinos. Nesse
movimento, identidades que compõem a imagem urbana, e que servem como promotoras da
cidade no cenário mundial são consideradas características positivas dos citadinos. Por outro
lado, esse movimento convida os cidadãos a se moldarem de forma a assumir novas
identidades para se tornarem cidadãos do mundo (MASCARENHAS; BIENENSTEIN,
SÁNCHEZ, 2011, p. 133).
Como exemplo das consequências da mencionada preparação para a Copa do Mundo e os
Jogos Olímpicos, constatou-se no bairro do Campinho, um dos trechos de maior
complexidade na implantação do traçado do corredor Transcarioca, profundos impactos
decorrentes das suas obras. Por meses, condutores que transitavam pelas artérias viárias
principais, as quais se entrecruzam bem no Largo do Campinho, sofreram com constantes e
intermináveis congestionamentos, sendo refletidos também nos bairros adjacentes. O
cenário de grande “canteiro de obras”, ampliado por sérios transtornos no cotidiano dos
citadinos são típicos em obras desta envergadura (Figura 5).
Figura 5: Impactos das obras de construção do corredor Transcarioca no bairro do Campinho: (a) transtornos
com as demolições e a poeira constante; (b) longos congestionamentos.

(a) (b)

Fonte: <http://www.cidadeolimpica.com/> Acesso em: 25 jul. 2012


Durante a fase inicial da obra, ocorrida em março de 2011 (NASCIMENTO, 2011),
divulgavam-se nas notícias de jornal promessas da construção de um novo subúrbio, visto
que estas intervenções gerariam um “novo visual” aos bairros cortados pela via. Contudo, o
preço dessa transformação imagética implicou em uma série de desapropriações de imóveis
no caminho do Transcarioca (CÂNDIDA, 2011).
De acordo com Magalhães (2010), cerca de dez prédios, incluindo uma antiga estalagem no
Largo do Campinho, todos construídos no início do século XX, foram “destombados” para,
a posteriori, serem demolidos. A alegação da Secretaria Municipal de Obras foi a de que o
desvio da via em função das edificações “exigiria desapropriação em escala maior, elevando
os custos do projeto” (ibid). A remoção dos casarios também implicou no despejo de cerca
de cem famílias residentes na comunidade situada ao redor dos mesmos. Diante da situação
os moradores se organizaram em manifestações realizadas nas vias principais do bairro
(GRANJA, 2011) (Figura 6).
Os moradores mais velhos entrevistados (MAGALHÃES, 2010), se mostraram sensíveis e
muitas vezes saudosistas em relação à aparência da antiga forma urbana do centro do bairro
e temem pelos efeitos da Transcarioca. Por outro lado, muitos se mostraram otimistas às
possibilidades de valorização dos imóveis depois das obras (NASCIMENTO, 2011), uma
vez que as intervenções urbanísticas nas imediações do eixo requalificarão a aparência
ambiental das ruas e do mobiliário urbano.
Figura 6: Moradores se manifestaram contra despejo e reassentamento.

Fonte: (GRANJA, 2011).


A mudança da imagem do bairro decorrente das transformações promovidas pela obra viária
do corredor Transcarioca representa uma ruptura na história e memória coletiva, o que lhe
impõe a reconstrução de sua história a partir desse novo momento, quando dezenas de
casarios, repletos de lembranças de seu povo simplesmente são apagados para dar lugar a
uma passagem de nível subterrâneo. Nesta perspectiva, o bairro que outrora era conhecido
como um bairro residencial suburbano ou centro de comércio e serviços de apoio passaria,
então, a ser conhecido como um bairro de transição – um possível “bairro do Mergulhão” ,
uma alusão à outra passagem subterrânea construída na cidade, popularmente conhecida
como “Mergulhão da Praça XV”. Percebe-se que é comum a apropriação simbólica de
termos, que não são próprios e/ou exclusivos do lugar, mas, trata-se de uma repetição de
intervenções pela cidade. Apesar dessa condição, a comunidade do bairro poderá se
apropriar do termo, que possivelmente passará a fazer parte da nova identidade do lugar
(Figura 7).
Figura 7: “Mergulhão do Campinho”: (a) em construção; (b) recém-inaugurado.

(a) (b)

Fonte: <http://www.jb.com.br/> Acesso em: 28 jul. 2012;


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda é cedo para mensurar na íntegra os impactos do corredor Transcarioca na construção


de uma nova paisagem suburbana, sem espacialidade real, mas, “global”. No entanto, é
correto afirmar que a imagem suburbana está em processo de transformação, mudando
completamente a lógica de comportamento dos citadinos com a abertura de novas vias, com
a promessa de melhoria do fluxo de veículos e a retirada do excedente de ônibus das ruas.
O progresso dá passagem a devastadoras intervenções urbanas, acarretando um grande
volume de demolições e, com isso, o desmanche dos elementos da memória dos bairros.
Construções seculares carregadas de significados estão cada vez mais rarefeitas nos bairros
suburbanos e, assim, fadadas ao desaparecimento. A falta de conservação e/ ou de incentivos
para a preservação do patrimônio dos bairros suburbanos permite a leitura de que a
degradação justifica a obsolescência e o posterior desaparecimento destes imóveis.
O momento atual, contexto de construção da cidade-sede da final da Copa do Mundo e
Olímpica, diz respeito às exigências viárias de transporte, tão necessárias ao sucesso da
mobilidade urbana durante os eventos. Isto implica na reestruturação urbana e na
ressignificação dos valores atribuídos às suas formas. Segundo Jacobs (2000, p. 377) “a
feição urbana é desfigurada a ponto de todos os lugares se parecerem com qualquer outro,
resultando em Lugar Algum” em decorrência da necessidade de adequar a cidade ao
emergente aumento dos congestionamentos. Neste cenário, far-se-á necessário uma nova
intervenção urbana de alargamento da via, sinalizando mais uma destruição de edificações
que fazem parte da tipologia do bairro e, consequentemente, uma nova reconstrução da
imagem e da identidade associadas à memória coletiva da população.
Embora controverso e irreversível, o desenvolvimento urbano é uma realidade e possui custo
alto. Contudo, não devem ser admitidas certas formas de realização. Ainda que exista a
prática da consulta popular (SOUZA, 2006), os valores impostos pelo capital, sempre
autoritário, privilegiam os interesses das classes mais favorecidas economicamente, bem
como da política vigente, desprezando, desta forma, os anseios da população suburbana da
qual, por excelência, usufrui e se identificam nestes lugares da cidade repletos de
significados e simbolismos.

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro. 2ª edição. Rio de


Janeiro: IPP, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/ Zygmunt Bauman;
tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CANDIDA, Simone. Transcarioca prevê outra ponte estaiada na Barra, além de mergulhões
e viadutos rumo à Zona Norte. Extra. Rio de Janeiro, 18 mar. 2011.
COMPANS, Rose. A emergência de um novo modelo de urbanismo no Rio de Janeiro: O
“urbanismo de resultados”. In: Anais do Seminário de História da cidade e do Urbanismo,
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