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Post-scriptum: contra a ecologia.

3) a
hostilidade à civilização urbana
13/09/2013

Desejar uma construção do socialismo com base na negação da


civilização urbana e da sociedade industrial é desejar a barbárie. Por
João Bernardo

Se o lugar-comum da ecologia reside na confusão entre o capitalismo


e a humanidade e se o seu objectivo é salvar o planeta da humanidade,
confundida com o capitalismo, entende-se que os ecologistas sejam
hostis à civilização urbana e à economia industrial que hoje a
acompanha.

1.
Todavia, a civilização urbana não se confunde com o capitalismo.

Por que motivo me sinto tão distante do mundo da Ilíada ou de


Beowulf e, no entanto, os gestos e as preocupações dos personagens
de Shi Nai’an e de Luo Guanzhong ou de Boccaccio me são familiares,
quando não são mesmo os meus? Surgidas como uma das
consequências, e depois um dos factores, da grande revolução na
agricultura e na domesticação de animais e ligadas à sedentarização
da população e à transformação do poder político, as primeiras
sociedades urbanas implicaram o desenvolvimento de formas de
pensamento abstracto, de registo sequencial e de ordenação
geométrica que continuam a caracterizar a sociedade urbana e
industrial dos nossos dias. Os místicos e os funcionalistas depois
deles observaram que a linha curva se encontra na natureza, mas a
linha recta foi criada pelo ser humano. Balzac fez Louis Lambert dizer,
no último aforismo da segunda série, que «Deus só procedeu por
linhas circulares. A linha recta é o atributo do in nito; assim, o
homem que pressente o in nito reprodu-la nas suas obras». Foi a
mesma a lição dada por Séraphîta/Séraphîtüs, aquela gura angelical
que Balzac colocou no ápice da Comédie. «A vossa geometria
estabelece que a linha recta é o caminho mais curto entre um ponto e
outro, mas a vossa astronomia demonstra-vos que Deus só procedeu
por curvas. […] a Curva é a lei dos mundos materiais, […] a Recta é a
dos mundos espirituais […] uma é a teoria das criações nitas, a outra
é a teoria do in nito. O homem, sendo o único neste mundo com
conhecimento do in nito, é o único que pode conhecer a linha recta».
Mas Lambert, a gura angelical e todos os místicos com eles deviam
ter acrescentado que a linha recta foi criada pelo ser humano nas
sociedades urbanas. É neste universo mental que nós ainda hoje
vivemos.

As civilizações podem ser dotadas de muito longa duração, abarcarem


vários milénios, integrarem-se em modos de produção diferentes,
que se apoderam delas e as transformam, e apesar de tudo
conservarem traços distintivos e modos de vida especí cos. É o que
sucede com a civilização urbana, e explica que uma grande parte da
ordenação lógica do nosso pensamento e do nosso universo estético
tenha uma ligação directa a todas as cidades do passado.

O estruturalismo linguístico fornece o modelo para pensar este tipo de


permanência através das rupturas. Os neologismos compõem uma
porção mínima do vocabulário, quase todo ele formado por palavras
de origem milenária, e o recurso à etimologia é uma técnica corrente
na história das instituições e das ideias. Por exemplo, embora já não
vivamos no Império Romano e no modo de produção esclavagista, é
frequente evocar o tripalium quando se procede à análise crítica do
trabalho. Lucien Febvre fê-lo num artigo genial  e Émile Benveniste,
com uma segurança linguística incomparavelmente superior,
ampliou esta metodologia a um grande número de termos, numa obra
que devia ser lida por todos os que se interessem pela história das
instituições. Ao passarem de uma estrutura linguística para outra, as
palavras adquirem um sentido diferente, que lhes é conferido pela
nova estrutura. Mantêm, no entanto, traços de liação, conotações
originárias que não são desprezáveis e contribuem para de nir o novo
sentido. O mesmo sucede com as civilizações. O estruturalismo
linguístico permite compreender de maneira integrada as rupturas e
as permanências, e nesta perspectiva de no a civilização urbana
como muitíssimo mais vasta e de longa duração do que o capitalismo.
Atacar o capitalismo e desejar a sua destruição não implica atacar as
cidades nem mesmo a sociedade industrial e desejar que elas
desapareçam.

2.

A ecologia opõe-se à sociedade industrial como um todo e um grande


número de ecologistas propõe o m das metrópoles e uma ruralização
generalizada.

Desde o início do capitalismo industrial, na transição do século XVIII


para o século XIX, tem havido uma sucessão ininterrupta de
romancistas, poetas e ensaístas — alguns que se contam entre os
génios da época — infamando as cidades, por motivos económicos ou
morais, e tecendo louvores ao campo. Nos artigos que dediquei à
miti cação do camponês, à agricultura familiar no fascismo e à
agricultura familiar no nazismo mostrei como a apologia da
agricultura familiar foi gerada juntamente com a produção fabril em
série e como, no caso especí co dos fascismos, se articulou sempre
uma corrente industrial e urbana com uma corrente de pendor
agrário. Em termos muito genéricos, pode admitir-se que a ecologia
actual tivesse encontrado nos escritores ruralistas inspiração para a
sua crítica à civilização urbana. É possível, no entanto, indicar uma
antecipação com maior proximidade ideológica.
Geralmente as pessoas lêem, quando lêem, os dois ou três romances
mais conhecidos de Zola e com isto cam com uma falsa noção acerca
das ideias do autor. Se conhecessem na totalidade os vinte volumes da
série dos Rougon-Macquart, e por ordem, como Zola pretendia,
veriam que para ele tanto os burgueses como o operariado eram duas
forças sociais nefastas, condenadas a destruírem-se reciprocamente e
arrastando consigo o principal elemento nocivo, a Cidade. Os gestores
praticamente não aparecem na obra, era cedo demais para isso, mas
Zola intuiu acertadamente o seu papel nos con itos sociais quando
descreveu o engenheiro de uma mina paralisada pela greve passeando
a cavalo e distanciando-se do con ito, enquanto o proprietário e os
operários se digladiavam. Para Zola o con ito de classes central no
capitalismo não conduziria ao socialismo mas à aniquilação de ambos
os contendores e, com eles, da civilização urbana. E a nova sociedade
resultaria da conjugação da ciência e da tradição rural. Na época,
sobretudo em França, o modelo do cientista era o médico-biólogo, e é
este o signi cado do termo da série dos Rougon-Macquart, com a ida
do dr. Pascal para o campo. Uma cidade corroída e que se autodestrói e
uma ciência que se liga ao mundo rural, quere-se uma melhor
antecipação do ideal ecológico?

Poder-se-ia dizer que a lição dos Rougon-Macquart abriu o caminho


à ecologia contemporânea, com a condição de sabermos que os
ecologistas leram Zola. Mas duvido muito de que o tivessem feito.
Assim, aquela obra serve para indicar algo não menos importante,
que as necessidades sociais e ideológicas imperam para além da
consciência individual e que quando uma liação directa não existe as
coisas são criadas de novo.

3.

Neste caso foram criadas de novo duas vezes, porque a ligação da


ecologia à agricultura foi pensada por Rudolf Steiner em 1924, quando
lançou a ideia da agricultura biodinâmica. Steiner é conhecido como
fundador da antroposo a, e Peter Staudenmaier, autor de um
excelente capítulo acerca da génese comum da ecologia e do nacional-
socialismo germânico, descreveu noutro artigo a ligação da
antroposo a com os meios místicos e teosó cos mais delirantes.
Steiner transpusera a hierarquia mística de progressão espiritual para
uma hierarquia biológica de sucessão de raças, em que o lugar mais
recente, e portanto o lugar superior, caberia à raça ariana, cujo
componente mais perfeito seria o nórdico-germânico. A fusão de uma
hierarquia espiritual com uma hierarquia racial colocava a
antroposo a no mesmo campo ideológico em que o racismo
hitleriano se desenvolveu, e foi neste ambiente que Steiner formulou
a teoria da agricultura biodinâmica, inspirada pela noção de que a
terra seria um organismo e pela sua pretensão de conhecer as forças
cósmicas invisíveis que exerceriam efeito sobre o solo e a ora.
Rudolf Steiner morreu em 1925 e pouco depois essa forma de
agricultura começou a ser promovida por Walther Darré.
Staudenmaier procedeu a uma história detalhada das relações entre a
antroposo a e o nacional-socialismo de 1933 em diante. Basta-me
aqui destacar que, nomeado em 1930 conselheiro de Hitler para as
questões agrárias, desde Junho de 1933 até 1942 Walther Darré
encarregou-se do Ministério dos Abastecimentos e da Agricultura,
além de ser Führer dos Camponeses do Reich e de che ar o
Departamento Central de Raça e Colonização dos SS desde o nal de
1931 até 1938, com a patente de Obergruppenführer, o segundo mais
alto escalão dos SS. Como o Passa Palavra abordou a questão com
algum detalhe no artigo «MST S.A. (3ª parte)», limito-me aqui a
recordar que Walther Darré, para contornar a descon ança ou mesmo
hostilidade que alguns sectores do nacional-socialismo sentiam
perante a antroposo a de Steiner, procedeu a uma mudança de
palavras e a agricultura biodinâmica passou a denominar-se
agricultura orgânica, cando convertida na principal doutrina
agrícola do Terceiro Reich. O ministro Darré esforçou-se por refrear o
desenvolvimento do capitalismo nos campos e a industrialização da
agricultura, e fê-lo com enormes custos, pois entre 1934 e 1939,
enquanto os orçamentos ministeriais do Reich aumentaram em média
cerca de 170%, o Ministério da Agricultura viu o seu orçamento
crescer cerca de 620%, ultrapassado apenas pelos ministérios
dedicados à preparação militar e à repressão. Mesmo depois de
começada a guerra, só três ministérios dispuseram de um orçamento
superior ao do Ministério da Agricultura.

Por isto mesmo, com a derrota do Reich na guerra a agricultura


orgânica foi atingida pela ignomínia que cobriu todas as iniciativas
fomentadas pelos nacionais-socialistas, e o facto de Darré e os
antroposo stas terem continuado a promovê-la na década de 1950
não contribuiu para a inocentar. Só muito lentamente ela conseguiu
renascer. Quando, no Brasil, o coordenador de Políticas Públicas da
ONG Agricultura Familiar e Agroecologia e membro da Articulação
Nacional de Agroecologia a rma que «a agroecologia deve ter cerca de
40 anos» (veja aqui), entendemos que genealogia ele se esforça por
ocultar.

Com efeito, na década de 1970, com a dissolução das esperanças


socialistas e obreiristas da década anterior, surgiu nos países anglo-
saxónicos uma audiência de esquerda para as teses agroecologistas
que até então haviam sido conotadas com a extrema-direita. Quem
estiver interessado pela obscura — e, no entanto, perfeitamente
documentada — história da agroecologia, especialmente no Reino
Unido e na Alemanha, e pela sua rede de liações deve ler um
brilhante ensaio de William Walter Kay. «A vaga de activismo
estudantil britânica do nal da década de 1960 não tinha um
componente ambientalista», escreveu Kay. «Os activistas estudantis
tendiam a ser esquerdistas e anarquistas que faziam parte de
coligações antinucleares e contra a guerra. Passada uma década,
muitos destes contestatários seriam activistas do ambientalismo». E
Kay acrescentou que este ambientalismo britânico desenvolveu ainda
subcorrentes de feminismo excludente e de nacionalismo céltico. Ora,
esta última observação recorda-me o que ao mesmo tempo eu vi
passar-se em França, onde na década de 1970 os jovens maoístas
descobriram uma vocação regionalista, e em apoio ao autonomismo
bretão e occitano se uniram aos velhos fascistas que haviam
defendido a independência dessas regiões numa Europa
hegemonizada pelo Reich. Pelo menos ganhámos com esta
ressurreição a insuperável pureza dos cantos bretões de Jean-
François Quémener, dito Yann Fañch Kemener (por exemplo aqui ou
aqui). Alguma coisa se salva. Foi esta a génese conturbada do
multiculturalismo, de que a ecologia faz parte.

E assim recomeçou a difundir-se a agroecologia, versão modernizada


da xação do dr. Pascal na aldeia, no meio de um confronto entre a
tendência expansionista da civilização urbana e da sociedade
industrial, promotora da industrialização das fainas rurais, e o
esforço de resistência da agricultura familiar pré-capitalista e
antiurbana. Sem esta resistência a agroecologia não teria conseguido
uma base social. Mas, se a agroecologia toma como referência
técnicas arcaicas, por outro lado pretende usar a ciência para
introduzir inovações nessas técnicas. Nesta perspectiva, a
antecipação gurada pelo dr. Pascal é perfeita, excepto num aspecto.
É que, enquanto o dr. Pascal foi viver para a aldeia, onde é certo que
instalou um chuveiro, os agroecologistas preferem o conforto dos
departamentos universitários nas cidades, que além de tudo lhes
rendem os nanciamentos sem os quais a sua actividade caria
condenada ao insucesso.

4.
Hoje, com a hegemonia obtida pelo multiculturalismo no meio
académico, no jornalismo e no meio político considerado de esquerda,
é praticamente unânime a crítica à noção de progresso. Em grande
parte dos casos, porém, é uma crítica equivocada, porque supõe que o
progresso implique obrigatoriamente uma evolução linear e uma
teleologia. Ora, o estruturalismo permite pôr em causa tanto a noção
de linearidade de evolução como a noção de teleologia sem para isso
prescindir da noção de progresso.

A evolução nunca pode ser linear numa história concebida como luta
social, que implica percursos sinuosos, não linhas direitas mas
espirais. Fala-se em vitórias e derrotas, mas as derrotas são sempre
derrotas de uma certa maneira, e essa maneira condiciona por seu
turno a forma da vitória. Consoante a maneira como formos
derrotados, assim os vencedores carão numa ou noutra situação. Se
conseguirmos escolher os termos da nossa derrota poderemos impor
aos outros os limites da sua vitória, e é por isto que não se trata de
vaivéns num plano único, mas de espirais.

Por outro lado, a noção de progresso está muito longe de ser


necessariamente teleológica, não  sendo obrigatório supor que se
progrida num sentido único e para um alvo exacto. Trata-se de de nir
leis de tendência, que apontam para direcções gerais na evolução, mas
podendo realizar-se por uma in nidade de caminhos concretos.

Aliás, esta discussão deve antes de mais travar-se no plano prático e


só acessoriamente consiste num debate metodológico. Ora, um dos
aspectos curiosos das teses agroecológicas é a separação que insistem
em operar entre o campo e as cidades, considerando que apenas uma
falsa noção de progresso leva a considerar como inelutável a
industrialização da agricultura. Na fase actual do capitalismo, porém,
a expansão da cidade sobre o campo e da indústria sobre a agricultura
já não é sequer uma tendência, é uma realidade de nitiva. Em
primeiro lugar, porque o êxodo da população rural em direcção às
cidades faz com que uma grande parte das famílias camponesas esteja
na dependência, pelo menos parcial, dos seus membros urbanos. Em
segundo lugar, porque foi industrializada a produção agrícola mais
dinâmica, organizada em empresas capitalistas que obedecem ao
modelo das empresas industriais e de serviços. Em terceiro lugar,
porque os assalariados destas explorações agrícolas industrializadas
se assemelham mais a operários do que a camponeses. E, em quarto
lugar, porque a aquisição de máquinas pela agricultura familiar, nos
países onde ocorre, reforça a inclusão do mundo rural na sociedade
industrial.

Nestas condições, a agropecuária familiar foi inteiramente subsumida


pelo modo de produção capitalista. Convém recordar que o marxismo
estruturalista francês e italiano de há umas décadas atrás remodelou e
ampliou o conceito de formação económico-social, dando-lhe a
acepção de uma estrutura que articula mais de um modo de produção,
mas ocupando um deles o lugar determinante e ditando aos outros
funções acessórias. Enquanto o multiculturalismo parte do
pressuposto de que tudo se equivale, o estruturalismo hierarquiza as
sociedades mediante a análise integrada dos processos económicos. A
subordinação dos regimes económicos arcaicos a um modo de
produção dominante faz com que uma formação económico-social
possa funcionar como uma economia e uma sociedade uni cadas. É o
que sucede hoje com a subordinação da agricultura familiar ao modo
de produção capitalista.

5.

É inegável que em certas regiões de diversos países tem ocorrido uma


resistência de culturas e sistemas económicos pré-capitalistas e
extra-urbanos. Todavia, nas formações económico-sociais em que o
capitalismo é determinante — e é esta hoje a situação em todo o
mundo — os modos de produção arcaicos cumprem o papel de
fomentar a extorsão de mais-valia absoluta, e quanto mais arcaicos
forem e menos produtivas as suas técnicas, maior será essa
contribuição para a mais-valia absoluta. É nesta perspectiva que deve
avaliar-se a celebrada capacidade de resistência de tais culturas. Para
ser um sujeito histórico não basta ser uma vítima do progresso, senão
haveria hoje uma multidão in ndável deles. É indispensável
constituir um organismo social próprio e com capacidade autónoma
de desenvolvimento, e isto só a classe trabalhadora tem condições de
assegurar. As formas campestres e primitivas defendidas pelo
multiculturalismo de esquerda não constituem ilhas sociais que
permitam, a partir daí, enfrentar o capitalismo. Pelo contrário, os
resquícios do pré-capitalismo estão inseridos no modo de produção
dominante, onde desempenham uma função auxiliar, mas
eventualmente importante, de reforço das formas mais degradadas de
exploração.

A luta dos trabalhadores contra os patrões de uma empresa, se por um


lado pressiona ao aumento da produtividade e, por aí, contribui para o
desenvolvimento da mais-valia relativa e do próprio capitalismo, em
sentido oposto contribui para reforçar elos de solidariedade entre os
trabalhadores, antagónicos da hierarquização vigente no âmbito da
produção capitalista. Aquelas relações de novo tipo, solidárias e
igualitárias, tecidas na luta, constituem a base real possível de uma
sociedade nova. Ora, não se encontra este vigor nos resquícios
históricos em decomposição, desertados pelas novas gerações, que
não estão dispostas a viver na miséria para sustentar a ideologia
alheia. Sucede por vezes que estes resíduos sociais arcaicos sejam
mantidos arti cialmente graças a nanciamentos variados, a ponto
de os seus membros chegarem a mascarar-se com imitações de
adereços tradicionais para aparecer em manifestações públicas ou em
vídeos de propaganda, tal como os índigenas de certas aldeias despem
a roupa comum e se vestem de fantasia quando está prevista a
chegada de um grupo de turistas. Aliás, a fronteira é muito ténue
entre a meia-farsa e a farsa completa, e o multiculturalismo não se
limita a restaurar e promover ruínas sociais. Em alguns casos inventa
de cima a baixo pseudo-identidades, para somá-las ao saco sem
fundo dos sujeitos históricos, convertendo assim a pesquisa
antropológica numa construção de cenários.

Para os defensores do multiculturalismo no meio universitário — e os


movimentos sociais ligados a resquícios históricos contam entre eles
com um número sempre renovado de apoiantes — não se trata de um
erro de perspectiva. A defesa desta componente de mais-valia
absoluta corresponde nas universidades a interesses egoístas
imediatos, na medida em que se procura conservar objectos de estudo
tal como se alimentam cobaias num laboratório. É curioso observar o
empenho com que departamentos académicos e os seus associados
nos movimentos sociais pretendem manter a linguagem, o modo de
vida e as tradições de comunidades arcaicas, das quais sobra apenas
um lastimável arremedo, enquanto os jovens dessas comunidades
desejam emigrar e abandonar um meio que só representa a miséria e
falar a língua que lhes permita inserir-se no mercado geral de
trabalho.

Estes casos mostram como a aculturação é a resposta dos


trabalhadores ao multiculturalismo dos doutores. Transposta a
questão para um plano político, trata-se, num lado, do processo de
formação de uma cultura de classe comum e, no lado oposto, da
tentativa de obstrução desse desenvolvimento de uma consciência de
classe.
6.

Entretanto, o multiculturalismo promoveu no plano do léxico o


politicamente correcto, um sistema de substituições que disfarça a
realidade por detrás de uma cortina de palavras. Esta propensão do
multiculturalismo a montar encenações e, muito mais grave do que
isso, a acreditar nas encenações que monta avalia-se pela
ressurreição das hortas urbanas.

Até há algumas décadas atrás, nos centros industriais mais pobres,


era comum as famílias operárias cultivarem pedaços de terreno, tanto
nas periferias como em espaços vagos no interior das cidades, que
lhes assegurassem um complemento da alimentação. Estas hortas
contribuíam para o agravamento da exploração, porque uma parte da
reprodução da força de trabalho, que deveria ser da responsabilidade
dos patrões, cava a cargo dos trabalhadores, o que pressionava à
manutenção dos salários num nível inferior ao das necessidades
consideradas básicas. Os trabalhadores estavam assim a impulsionar
a mais-valia absoluta. Salazar, que foi um mestre exímio nas artes de
manter o povo a meia porção, estimulou o cultivo de hortas urbanas,
que para ele, além de serem uma das engrenagens do mecanismo de
exploração, tinham a vantagem de se integrar no lirismo rural que
tanto apreciava. Mas o desenvolvimento do capitalismo e as pressões
da mais-valia relativa, em Portugal como nos outros países
industrializados, sepultaram as hortas sob os alicerces de novos
prédios.
Nos últimos anos as hortas urbanas ressurgiram e parecem ser o
indispensável ornamento do que agora se chama esquerda, já não com
uma função alimentar mas estritamente ideológica, num duplo
sentido. Por um lado, no centro das cidades onde são plantadas, por
vezes mesmo, em manifestações efémeras, no meio de praças
públicas, as hortas apresentam-se como um manifesto antiurbano,
uma declaração de hostilidade às cidades e à sociedade industrial. Por
outro lado, as hortas cumprem uma função ritual, mágica ou
religiosa, elas são uma hierofania nesse misticismo da natureza em
que a ecologia tão facilmente se converte. Nesta dupla acepção, as
hortas não representam nenhuma penetração da sociedade rural no
interior da sociedade urbana. Paradoxalmente, elas representam a
forma como a civilização urbana considera o mundo rural.

Convém aqui recordar que na história da pintura ocidental só com o


desenvolvimento dos centros urbanos é que a paisagem se
desprendeu do fundo dos quadros e se tornou um objecto pictórico
próprio. Na sequência deste processo, algumas das grandes
remodelações estéticas do primeiro modernismo tiveram como
objecto formal o campo, como no caso dos impressionistas, um
campo que muitas vezes era só os arredores de Paris. Assim, de no a
paisagem como o campo visto pelos olhos dos habitantes da cidade.
Depois, com o futurismo e o dadaísmo, o neoplasticismo e o
construtivismo e, mais cabalmente, com a lição dada pelos artistas
norte-americanos a partir da década de 1950, a paisagem rural
desapareceu enquanto evocação mítica e a arte passou a assumir
plenamente o mundo em que vivemos, urbano e industrial. A
miti cação estética do campo recomeçou a partir da década de 1980 e
de então em diante uma vertente muito considerável do
conceptualismo — que hoje adquiriu nas artes plásticas o mesmo
grau de hegemonia conseguido pela ecologia na sociedade em geral —
é ruralizante e ecologista, e nada me dá mais vontade de rir do que ver
essas instalações de terra, pedras e pauzinhos expostas, não no
campo, mas nas galerias e museus das grandes cidades. A paisagem
ressurgiu, e embora seja uma paisagem de novo tipo, ela continua a
representar o campo através da visão dos habitantes da cidade. A nova
vaga de hortas urbanas faz parte deste contexto.

7.

A esquerda radical retomou em certas épocas o dilema de Engels,


socialismo ou barbárie, anunciando que se o capitalismo, ou aquele
capitalismo, não fosse destruído, a curto prazo se instauraria a
barbárie. Tratou-se durante a primeira guerra mundial de uma lúcida
constatação dos efeitos do militarismo e de uma antevisão do fascimo.
Depois da segunda guerra mundial este lema serviu os temores de que
estivesse iminente um terceiro con ito, e eram poucos então, na
extrema-esquerda, os que pensavam que a guerra na Coreia não se
generalizaria a todo o mundo.

Hoje, porém, os ecologistas e os multiculturalistas que compõem a


maior parte do que ainda se chama esquerda parece terem adoptado o
lema socialismo e barbárie. A mudança de duas letras muda tudo.
Desejar uma construção do socialismo com base na negação da
civilização urbana e da sociedade industrial é desejar a barbárie, e não
vejo por que hei-de defender uma barbárie com o pretexto de que ela é
colectiva.

Em artigos anteriores e em comentários tenho indicado que seria


oportuno os defensores da ecologia mais avessos à civilização urbana
estudarem a ruralização geral da sociedade operada pelo regime dos
Khmers Vermelhos, no Cambodja, na segunda metade da década de
1970. Os meus apelos caram sem efeito, talvez porque os ecologistas
descon em, e com razão, que um tal estudo lhes revele aquilo que
preferem ignorar. Aliás, é estranho que, pelo menos na América
Latina, os ecologistas não tenham descoberto um seu precursor em
Francia, o ditador do Paraguai, El Supremo. Mas o Paraguai da
primeira metade do século XIX não era uma sociedade
verdadeiramente capitalista e Francia tinha uma base lógica para
considerar que no seu país a utopia de Rousseau poderia ser
imediatamente aplicável. Não se tratava de desurbanizar e
desindustrializar, mas de não urbanizar nem industrializar. Pelo
contrário, a aplicação dessa utopia ao Cambodja dos Khmers
Vermelhos implicou como primeira medida o esvaziamento
obrigatório das cidades, logo em 17 de Abril de 1975, no próprio dia
em que se apoderaram da capital.
Noutros países os camponeses constituíram a base social da guerrilha
e a base inicial da tomada do poder por partidos decididos a encetar
um programa de modernização e de industrialização, mas no caso do
Cambodja os Khmers Vermelhos procederam à súbita destruição das
condições sociais e económicas que permitiriam industrializar. De um
dia para o outro foi dissolvida a população urbana, incluindo a
totalidade do operariado, foram fechadas as universidades e escolas e
mortos muitos professores e 80% a 90% dos artistas pro ssionais, e
foram dispersados no campo entre dois e três milhões de citadinos,
convertendo-se em trabalhadores agrícolas toda a população, excepto
os quadros dirigentes. Note-se que ao mesmo tempo a agricultura
familiar cou destruída, porque a família foi posta em causa enquanto
unidade social e tomaram-se medidas para dissolvê-la. A ruralização
extensiva baseou-se numa modalidade de esclavagismo de Estado. O
país cou transformado num arrozal quadriculado de diques e valas
de água, e o arroz e a água eram o cialmente os dois pés deste
projecto de ruralização. Aliás, talvez se tratasse de um tripé, porque
previa-se a utilização maciça da urina como fertilizante, e os
governantes queixavam-se de só estarem a ser recolhidos 30% da
urina, além de se estar a desperdiçar também a urina das vacas e dos
búfalos. Eis uma interessante lição para os inimigos dos chamados
adubos químicos. Os custos humanos e, se estes não bastarem, os
custos económicos são hoje bem conhecidos. Entre 1,5 e 2 milhões de
mortos numa população de cerca de 7 milhões, um holocausto devido
à deslocação populacional, à repressão política, ao genocídio das
minorias étnicas e à inanição e doença provocadas pela crise
instaurada na agricultura. Foi esta a face real da utopia
rousseauniana.

Não importa aqui saber se a elite dos Khmers Vermelhos tinha ou não
lido Rousseau quando estudara em Paris, porque as ideologias
difundem-se por numerosos meios e em planos muito variados. O que
me interessa é chamar a atenção para o carácter rousseauniano do
programa dos Khmers Vermelhos, como zeram alguns autores. Por
seu lado, outro especialista sustentou que Esparta é a única analogia
histórica que se encontra para o regime dos Khmers Vermelhos, mas
ainda aqui deparamos com Rousseau, já que ele propusera Esparta
como modelo.

Também a ecologia, embora mais indirecta do que directamente, deve


muito aos idílios de Rousseau, e é oportuno lembrar que igualmente
noutros casos as suas consequências foram bem menos idílicas do que
pareceria nos escritos. Quando um estudioso do fascismo mencionou
«o nacionalismo orgânico de Rousseau, para quem a nação,
constituída pelos mortos, pelos vivos e por todos aqueles que estavam
ainda por nascer, obedecia idealmente a uma vontade geral que podia
ser melhor de nida como uma revelação de carácter especial», ele
forneceu uma pista de análise que nos permite estabelecer uma linha
de liação entre um dos nomes mais ilustres do liberalismo burguês e
algumas das mais tenebrosas modalidades do fascismo. Aliás, essa
pista já havia sido indicada antes e, pondo o seu espírito cáustico ao
serviço de um rigoroso dom de síntese, Bertrand Russell não receou
escrever que «Hitler é um resultado de Rousseau», exactamente a
mesma tese que Victor Klemperer — que além de nos ter deixado o
registo da vida de um judeu no Terceiro Reich era um estudioso da
cultura francesa — consignou no seu diário: «O desmascaramento
póstumo de Rousseau chama-se Hitler». Para que tudo isto não faça
pensar, é necessário não querer pensar.

É no espelho de Pol Pot que devemos mirar a gura de um socialismo


acompanhado pela barbárie, destruidor da civilização urbana e da
sociedade industrial.

Referências

A primeira citação de Balzac encontra-se em Louis Lambert, em La


Comédie humaine (ed. org. por Pierre-Georges Castex), 12 vols.,
Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gallimard, 1976-1981, vol. XI, pág.
691 e a segunda citação em Séraphîta, em op. cit., vol. XI, pág. 821. O
artigo de Lucien Febvre é: «Travail: Évolution d’un Mot et d’une
Idée», Journal de Psychologie Normale et Pathologique, vol. 41, nº 1,
1948. A obra de Émile Benveniste é: Le Vocabulaire des Institutions
Indo-Européennes, 2 vols., Paris: Minuit, 1969. O capítulo de
Staudenmaier sobre a génese comum da ecologia e do nazismo
encontra-se em Janet Biehl e Peter Staudenmaier, Ecofascism.
Lessons from the German Experience, Edimburgo e San Francisco: AK
Press, 1995. Quanto ao carácter rousseauniano do programa dos
Khmers Vermelhos ver Michael Charles Rakower, «The Khmer Rouge:
An Analysis of One of the World’s Most Brutal Regimes», em Ross A.
Fisher, John Norton Moore e Robert F. Turner (orgs.), To Oppose Any
Foe: The Legacy of U.S. Intervention in Vietnam, Durham NC: Carolina
Academic Press, 2006, pág. 215 e n. 53. A analogia entre o regime dos
Khmers Vermelhos e Esparta foi proposta por Ben Kiernan, «External
and Indigenous Sources of Khmer Rouge Ideology», em Sophie
Quinn-Judge e Odd Arne Westad (orgs.), The Third Indochina War:
Con ict between China, Vietnam and Cambodia, 1972-79, Londres:
Routledge, 2006. A passagem sobre o «nacionalismo orgânico de
Rousseau» encontra-se em Eugen Weber, Varieties of Fascism.
Doctrines of Revolution in the Twentieth Century, Princeton: D. van
Nostrand, 1964, pág. 7. A frase de Bertrand Russell acerca das relações
entre as ideias de Hitler e as de Rousseau encontra-se na sua obra
History of Western Philosophy and its Connection with Political and
Social Circumstances from the Earliest Times to the Present Day,
Londres: The Folio Society, 2004, pág. 654, estando esta tese exposta
nas págs. 654-669. A  frase do diário de Victor Klemperer, referente
ao dia 19 de Julho de 1937, encontra-se na edição do seu diário por
Martin Chalmers, I Shall Bear Witness. The Diaries of Victor
Klemperer, 1933-1941, Londres: The Folio Society, 2006, pág. 268.
Ainda acerca de Rousseau como inspirador do Terceiro Reich devem
ver-se as págs. 209 e 468.

Este artigo é ilustrado, de cima para baixo, com fotogra as de Louis


Stettner, duas de Aleksandr Rodtchenko, Man Ray, André Kertész,
James Casebere e Robert Polidori.

A série Post-scriptum: contra a ecologia é formada pelos seguintes


artigos:
1) a raiz de um debate
2) o lugar-comum dos nossos dias
3) a hostilidade à civilização urbana
4) a agroecologia e a mais-valia absoluta
5) Georgescu-Roegen e o decrescimento económico
6) Malthus, teórico do crescimento económico
7) «Os Limites do Crescimento» ou crescimento sem limites?
8) oportunidades de investimento e agravamento da exploração

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