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Filosofia da Ciência
Sumário
1. Karl Popper – p. 3
3. Ludwig Wittgenstein – p. 17
6. Paul Feyerabend – p. 28
Obras principais
A Lógica da Pesquisa Científica (1935)
A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945)
A Pobreza do Historicismo (1957)
Estrutura do texto
Divisão I
Divisão II
Divisão III
Divisão IV
Decidi, portanto, fazer algo que jamais havia feito antes: um relato do meu
trabalho no campo da filosofia da ciência desde o outono de 1919, quando comecei a
lutar com o seguinte problema: “Quando pode uma teoria ser classificada como
científica?”, ou “Existe uma critério para classificar uma teoria como científica?”
[...]
Conhecia, evidentemente, a resposta mais comum dada ao problema: a ciência se
distingue da pseudociência – ou “metafísica” – pelo uso do método empírico,
essencialmente indutivo, que decorre da observação ou da experimentação. Mas essa
resposta não me satisfazia. Pelo contrário, formulei muitas vezes o meu problema como
a procura de uma distinção entre o método genuinamente empírico e o não empírico ou
mesmo pseudoempírico – isto é, o método que, embora se utilize da experimentação e
da observação, não atinge padrão científico. Um exemplo deste método seria a
astrologia, que tem grande acervo de evidência empírica baseada na observação:
horóscopos e biografias.
Mas como não foi o exemplo citado que me levou ao meu problema, creio que
seria oportuno descrever brevemente o clima em que ele surgiu e os exemplos que o
estimularam. Após o colapso do Império Austríaco, a Áustria havia passado por uma
revolução: a atmosfera estava carregada de slogans e ideias revolucionárias; circulavam
teorias novas e frequentemente extravagantes. Dentre as que me interessavam, a teoria
da relatividade de Einstein era certamente a mais importante; outras três era a teoria da
história de Marx, a psicanálise de Freud e a “psicologia individual” de Alfred Adler.
Para tornar claro esse contraste devo explicar que, naquela época poucos
afirmariam acreditar na verdade contida na teoria da gravitação de Einstein. O que me
incomodava, portanto, não era o fato de duvidar da veracidade daquelas três teorias;
também não era o fato de que considerava a física matemática mais exata de que as
teorias de natureza psicológica ou sociológica. O que me preocupava, portanto, não era
pelo menos naquele estágio, o problema da veracidade, da exatidão, da
(1) É fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria – desde que
as procuremos.
(3) Toda teoria científica boa é uma “proibição”: ela proíbe certas coisas de
acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe melhor ela é.
(4) A teoria que não for refutável por qualquer acontecimento concebível não é
científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um
vício.
(5) Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade
de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém,
diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”,
mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos.
Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define status científico de uma
teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada.
II
Posso exemplificar o que acabo de afirmar com a ajuda das diversas teorias já
mencionadas. A teoria da gravitação de Einstein satisfazia nitidamente o critério de
“refutabilidade”. Mesmo se, naquela época, nossos instrumentos não nos permitissem
ter plena certeza dos resultados dos testes, existia claramente a possibilidade de refutar a
teoria.
Apesar dos esforços sérios de alguns dos seus fundadores e seguidores, a teoria marxista
da história tem ultimamente adotado essa mesma prática dos adivinhadores. Em
algumas de suas formulações anteriores (como, por exemplo, na análise de Marx sobre
o caráter da “revolução social vindoura”), as predições eram “testáveis” e foram
refutadas. Mas em vez de aceitar as refutações, os seguidores de Marx reinterpretaram a
teoria e a evidência, para fazê-las concordar entre si. Salvaram assim a teoria da
refutação, mas ao preço de adotar um artifício que a tornou de todo irrefutável.
Provocaram, assim, uma “distorção convencionalista” destruindo-lhe as anunciadas
pretensões a um padrão científico.
As duas teorias psicanalíticas pertencem a outra categoria, por serem simplesmente não
“testáveis” e irrefutáveis. Não se podia conceber um tipo de comportamento humano
capaz de contradizê-las. Isso não significa que Freud e Adler estivessem de todo
errados. Pessoalmente, não duvido da importância de muito do que afirmam e acredito
que algum dia essas afirmações terão um papel importante numa ciência psicológica
“testável”. Contudo, as “observações clínicas”, da mesma maneira que as confirmações
diárias encontradas pelos astrólogos, não podem mais ser consideradas confirmações da
teoria, como acreditam ingenuamente os analistas. Quanto à epopeia freudiana do Ego,
Superego e Id, não se pode reivindicar para ela um padrão científico mais rigoroso do
que os das histórias de Homero sobre o Olimpo. Essas teorias descrevem fatos, mas a
maneiras de mitos: sugerem fatos psicológicos interessantes, mas não de maneira
“testável”. [...]
Havia um grande número de outras teorias com este mesmo caráter pré ou
pseudocientífico, algumas das quais, infelizmente, tão influentes quanto a teoria
marxista da história. Pode-se citar, por exemplo, a teoria racista da história – outra
daquelas impressionantes teorias que tudo explicam, e que atuam como revelações sobre
as mentes fracas. [...]
III
Wittgenstein, como todos sabem, procurou demonstrar em seu Tractatus (vide por
exemplo as proposições 6.53; 6.54 e 5), que as proposições filosóficas ou metafísicas,
como são chamadas, são na verdade falsas proposições ou pseudoproposições, sem
sentido ou significado. Toda proposição genuína (ou significativa) deve ser função da
verdade de proposição elementar ou “atomística”, que descreva “fatos atômicos”, isto é,
fatos que, em princípio, possam ser verificados pela observação. Em outras palavras, as
proposições significativas são totalmente redutíveis a proposições elementares ou
atomísticas, afirmações simples descrevendo um possível estado de coisas que podem
em princípio ser estabelecidas ou rejeitadas pela observação. Se chamarmos uma
afirmação de “afirmativa resultante da observação”, ou porque implica de fato uma
observação ou porque menciona algo que pode ser observado, teremos de dizer (de
acordo com o Tractatus, 5 e 4.52), que toda proposição genuína deve ser uma função da
verdade de afirmativa resultante da observação e dela dedutível. Qualquer outra
proposição aparente será uma pseudoproposição sem significado; não passará de um
conjunto de palavras desarticuladas, sem sentido algum.
Essa ideia foi utilizada por Wittgenstein para uma caracterização da ciência
em oposição à filosofia. Podemos ler (por exemplo em 4.11, onde a ciência natural
assume uma posição oposta à filosofia): “A totalidade das proposições verdadeiras
corresponde a toda a ciência natural (ou a todas as ciências naturais)”. Isso significa que
as proposições pertencentes ao campo da ciência são dedutíveis das afirmações
verdadeiras derivadas da observação, e podem ser verificadas por elas. Se pudéssemos
conhecer todas as afirmações verdadeiras derivadas da observação, saberíamos tudo o
que pode ser afirmado pela ciência natural.
IV
casos dos quais não tivemos experiência alguma assemelham-se àqueles que já
experimentamos anteriormente”. [...]
... o tipo de repetição imaginado por Hume jamais pode ser perfeito; os casos que
ele expõe não são casos de similaridade perfeita; são apenas casos de semelhança. Logo,
são repetições apenas se consideradas de certo ponto de vista em particular (aquilo que
sobre mim tem o efeito de uma repetição não poderá ter o mesmo efeito sobre uma
aranha). Mas isso significa que, por motivos lógicos, tem que haver sempre um ponto de
vista – um sistema de expectativas, antecipações, presunções ou interesses – antes que
possa existir qualquer repetição; o ponto de vista, consequentemente, não pode ser
meramente o resultado da repetição. (Vide também o apêndice X, (1), em L. Sc. D.)
(p.74)
[...]
A crença de que a ciência avança da observação para a teoria é ainda aceita tão
firme e amplamente que minha rejeição dessa ideia provoca muitas vezes reação de
incredulidade. Já fui até acusado de ser insincero – de negar aquilo de que ninguém
pode razoavelmente duvidar.
para que as usasse como evidência indutiva. Uma anedota que nos deveria mostrar que
podemos colecionar com vantagem insetos, por exemplo, mas não observações.
É claro que a teoria das ideias inatas é absurda; mas todos os organismos têm
reações ou respostas inatas – entre elas respostas adaptadas a acontecimentos
iminentes. Podemos descrever essas respostas como “expectativas” sem implicar que
tais “expectativas” sejam iminentes. Assim, o bebê recém-nascido tem a expectativa de
ser alimentado (bem como – poderíamos dizer também – a expectativa de ser protegido
e amado). Tendo em vista a relação estreita entre a expectativa e o conhecimento,
podemos falar mesmo, de modo muito razoável, em “conhecimento inato”: um
conhecimento que não é válido a priori – uma expectativa inata, por mais forte e
específica que seja, pode constituir um equívoco (o bebê recém-nascido pode ser
abandonado e morrer de fome).
VI
Nossa inclinação para procurar regularidades e para impor leis à natureza leva ao
fenômeno psicológico do pensamento dogmático ou, de modo geral, do comportamento
dogmático: esperamos encontrar regularidades em toda parte e tentamos descobri-las
onde elas não existem; os eventos que resistem a essas tentativas são considerados como
“ruídos de fundo”; somos fiéis a nossas expectativas mesmo quando elas são
inadequadas – e deveríamos reconhecer a derrota. Este dogmatismo é em certa medida
necessário; corresponde a uma exigência de situação que só pode ser tratada pela
aplicação das nossas conjecturas ao universo; além disso, ele nos permite abordar uma
boa teoria em estágios, por aproximações – se aceitarmos a derrota com muita facilidade
podemos deixar de descobrir que estivemos muito perto do caminho certo.
Está claro que essa atitude dogmática que nos leva a guardar fidelidade às
primeiras impressões indica uma crença vigorosa; por outro lado, uma atitude crítica,
com a disponibilidade para alterar padrões, admitindo dúvidas e exigindo testes, indica
uma crença mais fraca. [...]
Esta é uma descrição do que chamei de “atitude dogmática” por comparação com
a atitude crítica que tem em comum com ela a facilidade da adoção de um sistema de
expectativas – um mito, talvez hipótese ou conjectura –, mas que estará sempre pronta a
modificá-lo, a corrigi-lo e até mesmo a abandoná-lo. Estou inclinado a achar que as
neuroses, em sua maioria, podem ser devidas ao não desenvolvimento da atitude crítica
– a um dogmatismo enrijecido (e não natural); à resistência às exigências de adaptação
de certas interpretações e respostas esquemáticas. Resistência que em si pode ser
explicada, em alguns casos, por uma injúria ou choque que provocou medo e o aumento
da necessidade de segurança, analogamente ao que acontece quando ferimos um
membro, que depois temos medo de usar – o que o enrijece. [...] (p.78-79)
VII
[...] Vamos admitir que aceitamos deliberadamente a tarefa de viver neste mundo
desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possível, aproveitando as oportunidades
que nos oferece; e que queremos explicá-lo, se possível (não será preciso presumir esta
possibilidade) e na medida da nossa possibilidade, com a ajuda de leis e teorias
explicativas. Se essa é a nossa tarefa, o procedimento mais racional é o método das
tentativas – da conjectura e da refutação. Precisamos propor teorias, ousadamente;
tentar refutá-las; e aceitá-las tentativamente, se fracassarmos.
[...]
A atitude crítica pode ser descrita como uma tentativa consciente de submeter
nossas teorias e conjecturas, em nosso lugar, à “luta pela sobrevivência”, em que os
mais aptos triunfam. Ela nos dá a possibilidade de sobreviver à eliminação de uma
hipótese inadequada – quando a atitude mais dogmática levaria à nossa eliminação. (Há
uma história tocante a respeito de comunidade indiana que desapareceu por causa de sua
crença na santidade da vida – inclusive da vida dos tigres.)
Adotamos assim a teoria mais apta ao nosso alcance, eliminando as que são
menos aptas. (Por “aptidão” não quero dizer apenas “utilidade”, mas também
verdade; vide os capítulos 3 e 10 deste livro.) Na minha opinião, este procedimento
nada tem de irracional, nem precisa de maior justificação racional. (p.81-82)
VIII
[...] Perguntava-me por que tantos cientistas acreditam na indução; descobri que
isso se devia ao fato de acreditarem que a ciência natural se caracteriza pela indução:
um método que tem início em longas sequência de observações e experiências e que
nelas se baseia. Acreditavam que a diferença entre a ciência genuína e a especulação
metafísica ou pseudocientífica dependia exclusivamente do método indutivo. Pensavam,
portanto (para usar a minha própria terminologia) que só o método indutivo fornecia um
critério de demarcação satisfatório.
inútil discutir com eles: não posso obrigá-los a aceitar os mesmos critérios de indução
válida nos quais acredito – o código científico”. Essa passagem deixa bem claro que a
“indução válida” é usada aqui como critério de demarcação separando a ciência da
pseudociência.
É óbvio que a regra da “indução válida” não chega a ser metafísica: ela
simplesmente não existe. Não há regra que possa garantir uma generalização inferida de
observações verdadeiras, por maior que seja a sua regularidade. (O próprio Born não
acredita na verdade da física newtoniana, a despeito do seu êxito, embora ele acredite
que ela se baseia na indução.) Por outro lado, o êxito da ciência não se fundamenta em
regras indutivas mas depende de sorte, do engenho dos cientistas e das regras puramente
dedutivas do raciocínio crítico.
6) Se afirmarmos que a indução leva a teorias prováveis (e não certas) nada do que
precede se altera fundamentalmente. (Vide em especial o cap. 10 deste livro.) (p.82-83)
[...] De qualquer modo, estou ainda a espera de uma crítica simples, lúcida e clara
à solução que propus pela primeira vez em 1933, na carta ao editor de Erkenntnis,
reproduzida mais tarde em The Logic of Scientific Discovery.
Por outro lado, fica bem claro que, quando propusemos nossa pergunta, tínhamos
em mente mais do que chegamos a perguntar (“De que forma saltamos de uma
afirmativa derivada da observação para uma teoria?”). Aparentemente o que queríamos
perguntar era: “Como saltamos de uma afirmativa derivada da observação para uma
“boa” teoria?” A resposta seria: “Saltando primeiro para uma teoria qualquer; depois,
testando essa teoria, para ver se ela é boa ou má – isto é, aplicando reiteradamente o
método crítico, de modo a eliminar muitas teorias inadequadas e inventando muitas
teorias novas”. Nem todos são capazes disso, mas não há outro meio.
Outra pergunta que também se ouve é a seguinte: Por que razão é razoável preferir
afirmativas que não foram refutadas a outras que puderam ser refutadas? Tem havido
respostas bastante peculiares a essa pergunta – por exemplo, resposta pragmáticas. Do
ponto de vista pragmático, porém, o problema não existe, já que as teorias falsas muitas
vezes são eficazes; assim, por exemplo, muitas das fórmulas usadas em engenharia e em
navegação são reconhecidamente falsas, mas como oferecem excelentes aproximações e
são fáceis de usar são empregadas com toda a confiança por pessoas que não ignoram
sua falsidade.
Em The Logic of Scientific Discovery expliquei por que acredito que essa
abordagem seja fundamentalmente errônea.1 Para tornar isso bem claro, introduzi uma
distinção entre probabilidade e grau de confirmação (ou corroboração) – o termo
“confirmação” tem sido de tal forma usado e abusado nos últimos tempos, que decidi
abandoná-lo aos verificacionistas, passando a usar exclusivamente a expressão “grau de
corroboração”; já o termo “probabilidade” é melhor empregado em algum dos muitos
sentidos que satisfazem o conhecido cálculo de probabilidade – axiomatizado, por
exemplo, por Kaynes, Jeffreys e por mim mesmo. Naturalmente, a escolha da
terminologia não será decisiva, desde que não se presuma, de forma acrítica, que o
“grau de corroboração” deva ser também uma probabilidade – isto é, que precise
satisfazer o cálculo de probabilidade.
No meu livro expliquei por que razão nos interessamos por teorias que apresentam
um grau de corroboração elevado. Expliquei também por que seria um erro concluir daí
que estamos interessados em teorias altamente prováveis, lembrando que a
probabilidade de uma afirmativa (ou de um conjunto de afirmativas) é tanto maior
quanto menos ela informar; é o inverso do seu conteúdo ou poder dedutivo – e, por
conseguinte, da sua capacidade de explicação. Por isso, toda afirmativa interessante e
poderosa terá necessariamente uma probabilidade reduzida e vice-versa. Assim, uma
afirmativa de alta probabilidade terá pouco interesse científico, porque dirá pouco e terá
pouca capacidade de explicação. Embora procuremos teorias com um elevado grau de
corroboração, como cientistas não estamos interessados em teorias de alta
probabilidade, mas sim em explicações; isto é: queremos teorias poderosas e
Obras principais
Prólogo – Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez
ele próprio já pensado os pensamentos que nele são expressos – ou pelo menos
pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria alcançado se
desse prazer a quem o lesse compreendendo.
O livro trata dos problemas da Filosofia e mostra – creio eu – que a posição de
onde se interroga esses problemas repousa numa má compreensão da lógica da nossa
linguagem. Todo o sentido do livro pode ser resumido nas seguintes palavras: o que é
de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo de que não se pode falar, guarda-
se em silêncio.
O livro também desenhará a linha de fronteira do pensamento ou, melhor
ainda – não do pensamento, uma vez que para desenhar a linha de fronteira do
pensamento deveríamos ser capazes de pensar ambos os lados desta linha (deveríamos
ser capazes de pensar aquilo que não deixa ser pensado). Assim, a linha da fronteira só
poderá ser desenhada na linguagem, e o que jaz para lá da fronteira será simplesmente
não-sentido.
Não quero julgar em que medida meus esforços coincidem com os dos outros
filósofos. De fato, o que escrevi não contém, em particular, nenhuma pretensão à
novidade; e assim não indico quaisquer fontes porque me é indiferente se o que pensei
já foi pensado por outrem antes de mim. Quero apenas mencionar que os meus
pensamentos foram em grande parte sugeridos pelas grandes obras de Frege e pelos
trabalhos o meu amigo, o senhor Bertrand Russell.
O valor deste trabalho, se o tiver, consistirá em duas partes. A primeira é que
nele se exprimem pensamentos e este valor será tanto maior quanto melhor os
pensamentos forem expressos. Quanto mais se acertar na cabeça do prego. Estou
consciente de ter ficado muito aquém das possibilidades. E isto apenas porque os meus
poderes para a realização do trabalho são escassos. Possam outros aparecer e fazer
melhor. Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me a mim
intocável e definitiva. Sou por isso da opinião de, essencialmente ter encontrado a
solução final dos problemas. E se nisso não estou enganado, então a segunda parte do
valor deste trabalho consiste em que ele mostra quão pouco se consegue com a solução
destes problemas.
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4.06 – A proposição só pode ser verdadeira ou falsa por ser uma imagem da realidade
[…]
4.11 – A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade
das ciências da natureza).
4.111 – A Filosofia não é uma das ciências da natureza. (A palavra filosofia tem que
denotar alguma coisa, que está acima ou abaixo das ciências da natureza, mas não ao
lado delas).
[…]
4. 114 – Ela deve delimitar o que é pensável e, assim, o impensável. Ela deve delimitar
assim o pensável, do interior, através do pensável.
[…]
4.52 – As proposições são tudo que se segue da totalidade das proposições elementares
(e, naturalmente, ocorre também de serem a totalidade das proposições). ( Assim poder-
se-ia dizer em certo sentido que todas as proposições são generalizações de proposições
elementares).
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6.52 – Sentimos que mesmo que todas as possíveis questões fossem resolvidas, os
problemas da vida ficariam ainda intocados. É claro que não haveria mais questões; e
esta é a resposta.
6.53 – O método correto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, i.é,
as proposições das ciências naturais – e, portanto, sem nada a ver com a Filosofia – e
depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas
proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o
método pareceria ser frustrante – uma vez que não sentiria que estávamos a ensinar
Filosofia – mas este seria o único método estritamente correto.
6.54 – As minhas proposições são elucidativas pelo fato de que aquele que as
compreende as reconhece, afinal, como falhas de sentido, quando por elas se elevou
para além delas. (Tem que, por assim dizer, jogar fora a escada, depois de ter subido por
ela). Tem que transcender estas proposições, e então verá o mundo corretamente.
7 – Sobre daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio.
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18– Não te deixes perturbar pelo fato de as linguagens (2) e (8) consistirem apenas em
ordens. Se queres dizer que, por esse motivo, não são completas, então pergunta-te se a
nossa linguagem é completa; – Se o era antes de a notação da Química e de a notação do
cálculo infinitesimal terem sido nela incorporados, uma vez que estes são, por assim
dizer, os subúrbios da nossa Linguagem. (E com quantas casas e ruas é que uma cidade
começa a ser cidade)? A nossa cidade pode ser vista como uma cidade antiga: um
labirinto de travessas e largos, casas antigas e modernas e casas com reconstruções de
diversas épocas; tudo isto rodeado de uma multiplicidade de novos bairros periféricos
com ruas regulares e as casas todas uniformizadas.
* 97– (...) Estamos debaixo da ilusão de que o peculiar, o profundo, o essencial da nossa
investigação, reside no fato de ela tentar captar a essência incomparável da linguagem,
isto é, a ordem que relaciona entre si os conceitos de proposição, palavra, inferência,
verdade, experiência, etc. Esta ordem é uma super-ordem entre, por assim dizer, super-
conceitos. Enquanto as palavras "linguagem", "experiência", "mundo", se têm uma
aplicação, ela tem que ser tão humilde como a das palavras "mesa", "candeeiro",
"porta".
* 106– Aqui torna-se difícil, por assim dizer, conservar a cabeça no lugar, de modo a
ver que temos que ficar pelos objetos do pensamento de todos os dias, para não cairmos
no desvio onde nos parece termos que descrever a sutileza suprema que, de fato, com
nossos meios não podemos descrever. Como se tivéssemos que reparar com os dedos
uma teia de aranha partida.
109– (...) E não devemos produzir nenhuma espécie de teoria. Na nossa investigação
não deve haver nada de hipotético. Toda a explicação tem que acabar e ser substituída
apenas pela descrição. E esta descrição recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos
problemas filosóficos. É claro que estes não são problemas empíricos, a sua solução
estará antes no conhecimento do modo como a nossa linguagem funciona, de maneira a
que, de fato, esse modo seja reconhecido – apesar de um instinto para não o
compreender. Estes problemas serão resolvidos não pela adição de novas experiências,
mas pela compilação do que é há muito conhecido. A Filosofia é um combate contra o
embruxamento do intelecto pelos meios da nossa linguagem.
309– Qual é a tua meta na Filosofia? Mostrar à mosca o caminho para sair do pega-
moscas.
66– Considera, por exemplo, os processos aos quais chamamos "jogos". Quero com isto
dizer jogos de tabuleiro, jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O
que é que há de comum a todos eles? Não respondas: "Tem de haver alguma coisa em
comum, senão não se chamariam jogos" – mas olha, para ver se têm alguma coisa em
comum. – Porque quando olhares para eles não verás de fato o que todos têm em
comum, mas verás semelhanças, parentescos e em grande quantidade. Como foi dito:
não penses, olha! – Olha, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com seus múltiplos
parentescos. A seguir considera os jogos de cartas: encontras aqui muitas
correspondências com a primeira classe, mas desaparecem muitos aspectos comuns e
outros aparecem. Se considerarmos a seguir os jogos de bola, conserva-se muito em
comum, mas também muito se perde. São todos eles divertidos? Compara o do xadrez
com o jogo da cabra cega. Ou há sempre perder e ganhar e competição entre os
jogadores? Pensa nas paciências. Nos jogos de bola há perder e ganhar; mas quando
uma criança atira uma bola à parede e depois apanha, desaparece este aspecto. Olha para
o papel que desempenham a habilidade e a sorte. E quão diferente é a habilidade no
xadrez e a habilidade no jogo de tênis. Pensa agora nos jogos de andar à roda: tem-se
aqui o divertimento mas desaparecem muitos dos outros sinais característicos! E assim
podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver suas semelhanças surgir
e desaparecer. E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma rede
complicada de semelhanças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Semelhanças
de conjunto e de pormenor.
* 21– Pensa num jogo de linguagem em que B relata a A, e a pedido deste o número de
lajes ou blocos de uma pilha, ou as cores e as formas das pedras que estão num ponto
dado. – Um destes relatos poderia: "Cinco lajes". Qual é a diferença entre o relato ou a
asserção "Cinco lajes" e a ordem "Cinco lajes"? – Bem, é o papel desempenhado pelo
ato de pronunciar estas palavras no jogo de linguagem. Mas também será o tom em que
estas palavras são pronunciadas que será diferente, e a expressão facial e muitas outras
coisas. Mas também podemos pensar que o tom seja o mesmo, porque uma ordem e um
relato podem ser pronunciados numa multiplicidade de tons e com uma multiplicidade
de expressões faciais – e que a diferença reside apenas na aplicação. (É claro que
podíamos utilizar as palavras "asserção" e "ordem" para a designação de uma forma
gramatical de uma frase e de uma entonação; assim como chamamos a frase "Não está
hoje um tempo fantástico?" uma pergunta, embora seja empregada como asserção).
Podíamos conceber uma linguagem em que todas as asserções tivessem a forma e o tom
de perguntas retóricas; ou em que todas as ordens tivessem a forma de perguntas:
"Importas-te de fazer isto?" Dir-se-á então: "O que ele diz tema forma de pergunta, mas
é na verdade uma ordem" – isto é, desempenha da ordem na praxis da linguagem.
(Analogamente diz-se a frase "Tu farás isto", não como uma profecia, mas como uma
ordem. O que é que a torna numa coisa ou na outra?)
4. O Círculo de Viena
Esse objetivo define a foco nos esforços coletivos e também naquilo que pode
ser captado intersubjetivamente; dele advém a busca por um sistema neutro de fórmulas,
por um simbolismo liberto do estorvo das linguagens históricas; e também a busca de
um sistema integral de conceitos. A ordem e clareza são tenazmente perseguidas; as
distâncias obscuras e as profundezas insondáveis são rejeitadas.
O método dessa clarificação é o da análise lógica; sobre ele diz Russell (em
Nosso Conhecimento do Mundo Exterior) que “se insinuou gradualmente na filosofia o
escrutínio crítico dos matemáticos … Isso representa, eu creio, o mesmo tipo de
progresso que foi introduzido na física por Galileo: a substituição por resultados
detalhados e verificáveis, passo a passo, das grandes generalidades não testadas,
respaldadas somente numa espécie de apelo à imaginação.
Torna-se visível o fato de haver uma fina linha de fronteira entre dois tipos de
enunciados. Num dos lados estão os enunciados feitos pela ciência empírica; seu
significado pode ser determinado pela análise lógica ou, mais precisamente, através da
sua redução lógica aos mais simples enunciados referenciáveis ao que é empiricamente
dado. Do outro lado estão enunciados, dentre os quais os anteriormente citados, que se
revelam vazios de significado quando tomados segundo propósitos metafísicos.
Expressar tais sentimentos durante a vida pode ser algo importante. Mas o meio
próprio para fazer isso é a arte, por exemplo, a poesia lírica e a música. É perigoso
escolher ao invés disso a roupagem linguística de uma teoria: posto que dessa forma
simula-se um conteúdo teórico onde nada disso existe. Se um metafísico ou teólogo
quiser reter o meio linguístico usual, então ele deve espontaneamente assumir e tornar
claro que não pretende fornecer descrições, e sim expressões, não teoria ou
comunicação de conhecimento, mas poesia ou mito. Quando um místico afirma que tem
experiências que estão acima e além de todos os conceitos, não é possível dizer que é
mentira. Mas o místico não pode falar sobre essas experiências, porque falar implica a
apreensão conceitual e a redução aos estados de coisas cientificamente classificáveis.
[…]
Se tal análise fosse levada adiante para todos os conceitos, eles seriam dispostos
num sistema reduzido, um “sistema constitutivo”. As investigações em direção a um tal
sistema constitutivo, à “teoria constitutiva”, formam o quadro de referência da análise
lógica aplicada pela concepção científica de mundo. Tais investigações mostram muito
rapidamente que a lógica tradicional, de base aristotélica e escolástica, é bastante
inadequada para esse propósito.
[...] Spiegel: Soa bastante maluco. Depois de a física moderna ter decomposto o átomo
em partículas cada vez menores, ela começa agora, mais uma vez, a fragmentar o
espaço e o tempo. Será que esse processo de ir em busca de um fundamento sempre
mais fundamental chega, em algum momento, propriamente a um fim?
Spiegel: ... falando honestamente, “simples” não parece o conceito de todo adequado ao
que o senhor aqui expõe.
Greene: Pode assim parecer aos “leigos” (Auβenseiter) – como se tudo se tornasse mais
complicado. Mas está resolvido que nós dependemos de um número cada vez menor de
ideias e princípios. E quem considerar esse progresso em direção à simplicidade
Spiegel: O senhor divisará, afinal, quando tiver chegado ao mais fundamental de todos
os princípios?
Greene: Isso será evidente, uma vez que o tenhamos encontrado. O mais satisfatório de
todos os pensáveis resultados da viagem de 3000 anos em busca da Verdade seria a pura
consistência lógica: a prova de que o mundo não pode ser mesmo diferente do que é.
In Stephen Hawking: Uma Breve História do Tempo, trad. Maria Helena Torres,
Rocco, Rio de Janeiro, 1988 (1ª ed. Orig. 1988)
Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de que não passa de uma
hipótese: não pode ser comprovada jamais. Não importa quantas vezes os resultados de
experiências concordem com uma teoria, não se pode ter certeza de que, da próxima
vez, o resultado não vá contradizê-la. Por outro lado, pode-se rejeitar qualquer teoria ao
se descobrir uma única observação que contrarie suas previsões. Como filósofo da
ciência, Karl Popper enfatizou que uma boa teoria é caracterizada pelo fato de ser capaz
de fazer um número de previsões que possam, em princípio, ser rejeitadas ou frustradas
pela observação. Cada vez que novos experimentos comprovam as previsões, a teoria se
mantém e o nosso nível de confiança nela aumenta; mas se uma nova observação a
contradisser, é necessário que seja abandonada ou modificada. Pelo menos é o que
supõe que aconteça, embora sempre se possa questionar a competência de quem
realizou as observações.
Na prática, costuma ocorrer que uma nova teoria seja sempre formulada como
extensão de outra, prévia. Por exemplo, observações bastante precisas do planeta
Mercúrio revelaram uma pequena diferença entre seu movimento e as previsões da
teoria da gravidade de Newton. A teoria geral da relatividade de Einstein previa um
movimento ligeiramente diferente da teoria de Newton. O fato de que as revisões de
Einstein viessem de encontro ao que era observado, enquanto as de Newton não, foi um
dos elementos cruciais de confirmação da nova teoria. Entretanto, ainda utilizamos a
teoria de Newton para todos os objetivos práticos, porque a diferença entre as suas
previsões e aquelas da teoria da relatividade geral é muito pequena nas situações com
que normalmente lidamos. (A teoria de Newton apresenta, sobretudo, a grande
vantagem de ser muito mais simples de se aplicar que a de Einstein!)
O objetivo eventual da ciência é prover uma teoria única que descreva todo o
universo. Entretanto [...]
Provou-se que é muito difícil descobrir uma teoria que descreva todo o universo.
Por isso divide-se o problema em diversas partes e inventam-se inúmeras teorias
parciais. [...]
Devido ao fato de as teorias parciais que existem serem suficientes para se fazer
previsões acuradas em todas as situações, exceto as extremas, é difícil justificar no
campo prático a busca da teoria final do universo. (É importante observar, então, que
argumentos similares podem ser usados contra ambas, relatividade e mecânica quântica,
e que estas teorias nos deram tanto a energia nuclear quanto a revolução
microeletrônica!) A descoberta de uma teoria unificada e completa, portanto, talvez não
ajude a sobrevivência de nossa espécie. Pode até mesmo não afetar nosso estilo de vida.
Mas, desde os primórdios da civilização o homem não se satisfaz em observar os
eventos isolados e sem explicação; necessita de uma compreensão da ordem subjacente
ao mundo. [...] (p.29-34)
In Stephen Hawking: O Universo numa Casca de Noz, trad. Ivo Korytowski, rev.
técnica Augusto Damineli, Ed. ARX, São Paulo, 2002 (1ª ed. orig. 2001)
Obras Principais
Contra o Método
Índice Analítico
que é, ainda, um resumo do argumento principal.
I (p. 27)
Isso é demonstrado seja pelo exame de episódios históricos, seja pela análise
da relação entre ideia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é:
tudo vale. [anything goes]
XV (p.267)
XVI (p.283)
XVIII (p.447)
Dessa forma, a ciência se aproxima do mito muito mais do que uma filosofia
científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de
pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor.
Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente superior aos
olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a uma certa
ideologia ou que já a tenham aceitado, sem sequer examinar suas
conveniências e limitações. Como a aceitação e a rejeição de ideologias
devem caber ao indivíduo, segue-se que a separação entre Estado e Igreja há
de ser complementada por uma separação entre Estado e a ciência, a mais
recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação
será, talvez. A única forma de alcançarmos a humanidade de que somos
capazes, mas que jamais concretizamos.
perspicácia para declarar que, talvez, a “verdade” não seja importante e talvez chegue a
ser indesejável?).
No primeiro caso, há de ser possível apresentar regras, padrões, restrições que nos
permitam distinguir o comportamento crítico (pensar, cantar, escrever peças) de outros
tipos de comportamento, de modo a dispormos de meios para descobrir as ações
irracionais e corrigi-las com auxílio de sugestões concretas. Não é difícil apresentar os
padrões de racionalidade defendidos pela escola popperiana.
2. É possível ter, ao mesmo tempo, a ciência tal como a conhecemos e essas regras?
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No que me toca, entendo ser a primeira questão muito mais importante que a
segunda [...] (p. 272-273)
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Não são esses, porém, os problemas que desejo agora examinar. No presente
ensaio, limitar-me-ei à segunda pergunta e indagarei: é possível ter, ao mesmo tempo, a
ciência tal como a conhecemos e as regras de um racionalismo crítico tal como o
descrito? A essa pergunta a resposta parece ser um firme e sonoro Não.
Em segundo lugar, como também vimos, nos capítulos VIII-XII, que um princípio
estrito de falseamento ou um ‘falsear ingênuo’ como o denomina Lakatos, eliminaria a
ciência tal como a conhecemos e nunca haveria permitido que ela tivesse início.
A exigência de conteúdo crescente também não se vê satisfeita. [...] (p. 275)
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Em resumo: para onde quer que olhemos, sejam quais forem os exemplos por nós
considerados, verificamos que os princípios do racionalismo crítico (tomar os
falseamentos a sério; aumentar o conteúdo; evitar hipóteses ad hoc; ‘ser honesto’ –
signifique isso o que significar; e assim por diante) e, a fortiori, os princípios do
empirismo lógico (ser preciso; apoiar as teorias em medições; evitar ideias vagas e
imprecisas; e assim por diante) proporcionam inadequada explicação do passado
desenvolvimento da ciência e são suscetíveis de prejudicar-lhe o desenvolvimento
futuro. Proporcionam inadequada versão da ciência, porque esta é mais ‘fugidia’ e
‘irracional’ do que sua imagem metodológica. E são suscetíveis de prejudicar a ciência,
porque a tentativa de torná-la mais ‘racional’ e mais precisa pode, como vimos, destrui-
la. A diferença entre ciência e metodologia, que é óbvio fato da história, indica,
portanto, insuficiência da metodologia e, talvez, também das ‘leis da razão’. Com efeito,
o que se afigura como ‘fugidio’, ‘caótico’, ‘oportunista’, quando posto em paralelo com
tais leis, tem importantíssima função no desenvolvimento daquelas mesmas teorias que
hoje encaramos como partes essenciais de nosso conhecimento acerca da natureza.
Esses ‘desvios’, esses ‘erros’ são pré-condições do progresso. Permite que o
conhecimento sobreviva no complexo mundo em que habitamos, permitem que nos
mantenhamos como agentes livres e afortunados. Sem ‘caos’ não há conhecimento. Sem
frequente renúncia à razão não há progresso. Ideias que hoje constituem a base da
ciência só existem porque houve coisas como o preconceito, a vaidade, a paixão; porque
essas coisas se opõem à razão; e porque foi permitido que tivessem trânsito. Temos,
portanto, que concluir que mesmo no campo da ciência, não se pode e não se deve
permitir que a razão seja exclusiva, devendo ela, frequentes vezes, ser posta de parte ou
eliminada em prol de outras entidades. Não há uma só regra que seja válida em todas as
circunstâncias, nem uma instância a que se possa apelar em todas as situações. [...] (p.
279)
A ciência não é sacrossanta. As restrições que impõe (e são muitas essas restrições,
embora não seja fácil relacioná-las) não são necessárias para que venhamos a alcançar
concepções de mundo gerais, coerentes e frutíferas. Há mitos, há dogmas de teologia, há
metafísica e há muitas outras maneiras de elaborar uma cosmovisão. Faz-se claro que
uma conveniente interação entre a ciência e essas cosmovisões ‘não científicas’
necessitará do anarquismo ainda mais que a própria ciência. E, assim, o anarquismo não
é apenas possível, porém necessário, tanto para o progresso interno da ciência, quanto
para o desenvolvimento da nossa cultura como um todo. E a razão, por fim, reúne-se a
todos aqueles outros monstros abstratos como Obrigação, Dever, Moralidade, Verdade e
seus antecessores mais concretos, os Deuses, que já foram usados para intimidar o
homem e restringir-lhe o livre e feliz desenvolvimento – e vai se desvanecendo... (p.
279-80)