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Filosofia da Ciência

Prof. Edgar Lyra

Sumário

A questão do método científico – p. 2

1. Karl Popper – p. 3

2. Ciência: conjecturas e Refutações ˗ p. 5

3. Ludwig Wittgenstein – p. 17

4. Positivismo e neopositivismo: Círculo de Viena – p. 22

5. Apêndice – Brian Greene e Stephen Hawking – p. 25

6. Paul Feyerabend – p. 28

7. Outros nomes ligados à questão do método científico – p. 34

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A Questão do Método Científico

A hegemonia da ciência e da tecnologia nos séculos XX e XXI coloca pelo


menos duas grandes questões. A primeira delas concerne à legitimidade do discurso
científico, medida de verdade no Ocidente contemporâneo, sobretudo do século XX.
Tal preocupação desemboca diretamente em problemas epistemológicos, mais
precisamente, em discussões sobre o método genuinamente científico e sobre o
problema da linha divisória entre ciência e pseudociência. Já a segunda questão versa
sobre as consequências mais amplas da hegemonia técnico científica, tanto em suas
implicações estratégicas, políticas e militares, quanto naquilo que esse
desenvolvimento representa para as expectativas e incertezas do Homem quanto ao seu
futuro. Esta apostila dedica-se à primeira questão.

O problema epistemológico está longe de ser meramente acadêmico, mesmo


porque da resposta a ele depende a destinação dos recursos e as hierarquias a serem
estabelecidas entre os campos da especulação empreendida por cada sociedade e
sancionada pelos Estados. É, por exemplo, bastante fácil conseguir verbas públicas
para pesquisas no campo da biologia e da química, e bastante difícil, se não impossível,
consegui-las para investigações alquímicas ou mesmo homeopáticas.

A discussão sobre o método científico é, por seu turno, multifacetada. Esta


apostila procura traçar um panorama das possíveis posturas filosóficas em relação à
natureza, à legitimidade e ao alcance do método científico, fazendo um balizamento
didático, decerto esquemático e simplificador, que vai do neopositivismo e sua crença
na capacidade da ciência de produzir “comprovação” de suas teses, ao anarquismo,
com sua equiparação da ciência, no que concerne à “Verdade”, a várias outras formas
de saber. Entre essas duas “traves” desenvolvem-se posturas medianas, moderadas,
matizadas. A mais conhecida é a de Karl Popper, que, por isso, foi o pensador
escolhido como ponto de partida para a reconstrução do panorama epistemológico
contemporâneo. O propósito é apresentar introdutoriamente as principais questões
postas à ciência contemporânea,

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1. Karl Popper (1902- 1994)


Karl Popper nasceu em Viena onde estudou e
permaneceu até a ascensão do nazismo.
Fugiu para a Nova Zelândia e de lá para a
Inglaterra, onde se radicou e acabou
recebendo o título de Sir, pelo conjunto do
seu trabalho e pelo ideário liberal por ele
abertamente professado. De início próximo
ao chamado Círculo de Viena, passou a se
opor ao neopositivismo deste círculo e à ideia
de que a diferença entre ciência e
pseudociência se faz pela possibilidade de
verificação empírica das teorias científicas. O
método que define a ciência, segundo Popper,
é o método de produção de hipóteses e
tentativas reiteradas de refutação, sem
possibilidade de verificação definitiva da
verdade das teorias. Suas teses se alinham num plano geral sob a rubrica de um
“racionalismo crítico”. Às vezes são referidas pelo nome de falseabilismo ou
falsificacionismo.

Obras principais
A Lógica da Pesquisa Científica (1935)
A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945)
A Pobreza do Historicismo (1957)

Conjecturas e Refutações (1963)

A Querela das Ciências Sociais (1969)


Conhecimento Objetivo (1972)
Autobiografia Intelectual (1976)
O Eu e seu Cérebro (1977)
Em busca de um Mundo Melhor (1984)

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O texto escolhido e recortado para a leitura concentra-se na discussão sobre a


natureza do método científico e sobre qual a melhor forma de demarcação entre
ciência e pseudociência. Para legitimar sua posição, Popper despende nítidos esforços
para mostrar que a posição positivista, hegemônica no seu tempo e ainda hoje muito
presente, é uma posição equivocada. Elege Wittgenstein para atacar, por ser este
pensador um dos principais pilares inspiradores do neopositivismo, ainda que não tenha
tido grande participação no chamado Círculo de Viena – grupo autor do manifesto
neopositivista de 1929, intitulado A Concepção Científica de Mundo. A ideia é partir
desse texto para caracterizar o acirrado debate que marcou a filosofia da ciência no
século XX. O fornecimento, a seguir, do escopo do texto em sua íntegra visa a evitar
que a unidade da proposta popperiana se perca.

Karl Popper: “Ciência: Conjecturas e Refutações” (1953): in ibid.


(passagens selecionadas, negritos meus).

Estrutura do texto

Divisão I

I- Problema da demarcação entre ciência e pseudociência: adiantamento das teses


II- Astrologia, Einstein, Marx e o marxismo, Freud e Adler.

Divisão II

III- Discussão com o verificacionismo: Wittgenstein


IV- Hume e a refutação da pretensão de validade da indução empírica. Refutação da
teoria do hábito de Hume e apresentação da teoria das expectativas inatas.
V- Proposta popperiana para a gênese das teorias científicas: “não há observações
puras” e “Kant foi longe demais”.

Divisão III

VI- Atitude dogmática x atitude crítica


VII- Atitude genuinamente científica
VIII- Solução popperiana para o problema da demarcação: seis teses

Divisão IV

IX- Resumo de problemas e soluções


X- Novos problemas

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2. Texto: “Ciência – Conjecturas e Refutações”

Decidi, portanto, fazer algo que jamais havia feito antes: um relato do meu
trabalho no campo da filosofia da ciência desde o outono de 1919, quando comecei a
lutar com o seguinte problema: “Quando pode uma teoria ser classificada como
científica?”, ou “Existe uma critério para classificar uma teoria como científica?”
[...]
Conhecia, evidentemente, a resposta mais comum dada ao problema: a ciência se
distingue da pseudociência – ou “metafísica” – pelo uso do método empírico,
essencialmente indutivo, que decorre da observação ou da experimentação. Mas essa
resposta não me satisfazia. Pelo contrário, formulei muitas vezes o meu problema como
a procura de uma distinção entre o método genuinamente empírico e o não empírico ou
mesmo pseudoempírico – isto é, o método que, embora se utilize da experimentação e
da observação, não atinge padrão científico. Um exemplo deste método seria a
astrologia, que tem grande acervo de evidência empírica baseada na observação:
horóscopos e biografias.

Mas como não foi o exemplo citado que me levou ao meu problema, creio que
seria oportuno descrever brevemente o clima em que ele surgiu e os exemplos que o
estimularam. Após o colapso do Império Austríaco, a Áustria havia passado por uma
revolução: a atmosfera estava carregada de slogans e ideias revolucionárias; circulavam
teorias novas e frequentemente extravagantes. Dentre as que me interessavam, a teoria
da relatividade de Einstein era certamente a mais importante; outras três era a teoria da
história de Marx, a psicanálise de Freud e a “psicologia individual” de Alfred Adler.

Popularmente, falavam-se muitas coisas absurdas sobre essas teorias, sobretudo a


da relatividade (como acontece ainda hoje), mas tive sorte com as pessoas que me
introduziram a elas. Todos nós – o pequeno grupo de estudantes ao qual pertencia –
vibramos ao tomar conhecimento do resultado da observação de um eclipse
empreendida por Eddington em 1919, a primeira confirmação importante da teoria da
gravitação de Einstein. Foi uma experiência muito importante para nós, com influência
duradoura no meu desenvolvimento intelectual.
[...]
Durante o verão de 1919, comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com
essas três teorias – a teoria marxista da história, a psicanálise e a psicologia individual;
passei a ter dúvidas quanto ao seu status científico. Meu problema assumiu
primeiramente uma forma simples: “O que estará errado com o marxismo, a psicanálise
e a psicologia individual? Por que serão tão diferentes da teoria de Newton e
especialmente da teoria da relatividade?”.

Para tornar claro esse contraste devo explicar que, naquela época poucos
afirmariam acreditar na verdade contida na teoria da gravitação de Einstein. O que me
incomodava, portanto, não era o fato de duvidar da veracidade daquelas três teorias;
também não era o fato de que considerava a física matemática mais exata de que as
teorias de natureza psicológica ou sociológica. O que me preocupava, portanto, não era
pelo menos naquele estágio, o problema da veracidade, da exatidão, da

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mensurabilidade. Sentia que as três teorias, embora se apresentassem como ramos da


ciência, tinham mais em comum com os mitos primitivos do que com a própria ciência,
que se aproximavam mais da astrologia que da astronomia.

Percebi que meus amigos admiradores de Marx, Freud e Adler impressionavam-se


com uma série de pontos comuns às três teorias e, sobretudo, com a sua aparente
capacidade de explicação. Essas teorias pareciam capazes de explicar praticamente tudo
em seus respectivos campos. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma
conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para uma nova verdade, escondida
dos ainda não iniciados. Uma vez abertos os olhos, podia-se ver exemplos
confirmadores em toda parte: o mundo estava repleto de verificações da teoria.
Qualquer coisa que acontecesse vinha a confirmar isso. A verdade contida nessas
teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram nitidamente aqueles que não
queriam vê-la: recusavam-se a isso para não entrar em conflito com seus interesses de
classe ou por causa de repressões ainda não analisadas, que precisavam urgentemente de
tratamento. [...]

Durante o inverno de 1919-1920, essas considerações me levaram a conclusões


que posso agora reformular da seguinte maneira:

(1) É fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria – desde que
as procuremos.

(2) As confirmações só devem ser consideradas se resultarem de predições


arriscadas; isto é, se, não esclarecidos pela teoria em questão, esperarmos um
acontecimento incompatível com a teoria e que a teria refutado.

(3) Toda teoria científica boa é uma “proibição”: ela proíbe certas coisas de
acontecer. Quanto mais uma teoria proíbe melhor ela é.

(4) A teoria que não for refutável por qualquer acontecimento concebível não é
científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como frequentemente se pensa, mas um
vício.

(5) Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade
de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém,
diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”,
mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos.

(6) A evidência confirmadora não deve ser considerada se não resultar de um


teste genuíno da teoria; o teste pode apresentar-se como uma tentativa séria porém
malograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da “evidência corroborativa”)

(7) Algumas teorias genuinamente “testáveis”, quando se revelam falsas,


continuam a ser sustentadas por admiradores, que introduzem, por exemplo, alguma
suposição auxiliar ad hoc, ou reinterpretam a teoria ad hoc de tal maneira que ela escapa
à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria da refutação ao
preço de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrão científico. (Mais tarde passei a

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descrever essa operação de salvamento como uma distorção convencionalista ou um


estratagema convencionalista.)

Pode-se dizer, resumidamente, que o critério que define status científico de uma
teoria é a sua capacidade de ser refutada ou testada.

II

Posso exemplificar o que acabo de afirmar com a ajuda das diversas teorias já
mencionadas. A teoria da gravitação de Einstein satisfazia nitidamente o critério de
“refutabilidade”. Mesmo se, naquela época, nossos instrumentos não nos permitissem
ter plena certeza dos resultados dos testes, existia claramente a possibilidade de refutar a
teoria.

A astrologia não passou no teste. Os astrólogos estavam muito impressionados e


iludidos com aquilo que acreditavam ser evidência confirmadora - tanto assim que
pouco se preocupavam com qualquer evidência desfavorável. Além disso, tornando suas
profecias e interpretações suficientemente vagas, eram capazes de explicar qualquer
coisa que possivelmente refutasse sua teoria se ela e as profecias fossem mais precisas.
Para escapar à falsificação, destruíram a “testabilidade” de sua teoria. É um truque
típico do adivinhador fazer predições tão vagas que dificilmente falham: elas se tornam
irrefutáveis.

Apesar dos esforços sérios de alguns dos seus fundadores e seguidores, a teoria marxista
da história tem ultimamente adotado essa mesma prática dos adivinhadores. Em
algumas de suas formulações anteriores (como, por exemplo, na análise de Marx sobre
o caráter da “revolução social vindoura”), as predições eram “testáveis” e foram
refutadas. Mas em vez de aceitar as refutações, os seguidores de Marx reinterpretaram a
teoria e a evidência, para fazê-las concordar entre si. Salvaram assim a teoria da
refutação, mas ao preço de adotar um artifício que a tornou de todo irrefutável.
Provocaram, assim, uma “distorção convencionalista” destruindo-lhe as anunciadas
pretensões a um padrão científico.

As duas teorias psicanalíticas pertencem a outra categoria, por serem simplesmente não
“testáveis” e irrefutáveis. Não se podia conceber um tipo de comportamento humano
capaz de contradizê-las. Isso não significa que Freud e Adler estivessem de todo
errados. Pessoalmente, não duvido da importância de muito do que afirmam e acredito
que algum dia essas afirmações terão um papel importante numa ciência psicológica
“testável”. Contudo, as “observações clínicas”, da mesma maneira que as confirmações
diárias encontradas pelos astrólogos, não podem mais ser consideradas confirmações da
teoria, como acreditam ingenuamente os analistas. Quanto à epopeia freudiana do Ego,
Superego e Id, não se pode reivindicar para ela um padrão científico mais rigoroso do
que os das histórias de Homero sobre o Olimpo. Essas teorias descrevem fatos, mas a
maneiras de mitos: sugerem fatos psicológicos interessantes, mas não de maneira
“testável”. [...]

Havia um grande número de outras teorias com este mesmo caráter pré ou
pseudocientífico, algumas das quais, infelizmente, tão influentes quanto a teoria
marxista da história. Pode-se citar, por exemplo, a teoria racista da história – outra

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daquelas impressionantes teorias que tudo explicam, e que atuam como revelações sobre
as mentes fracas. [...]

III

Hoje sei, é claro, que esse critério de demarcação – o critério de “testabilidade”


ou “refutabilidade” – está longe de ser óbvio; ainda hoje seu significado é raramente
compreendido. Naquela época, em 1920, ele me pareceu quase trivial, embora
resolvesse um problema intelectual que me havia preocupado profundamente, e tivesse
consequências práticas óbvias (políticas, por exemplo). Mas não havia percebido ainda
todas as suas implicações ou sua importância filosófica. Quando o expliquei a um
colega, estudante do Departamento de Matemática (hoje um conhecido matemático na
Inglaterra), ele sugeriu que o publicasse. Isso me pareceu absurdo, pois estava
convencido de que o problema, tendo em vista a sua importância para mim, já havia
decerto preocupado numerosos cientistas e filósofos, que certamente já teriam chegado
à minha solução, um tanto óbvia. O trabalho de Wittgenstein e o modo como foi
recebido mostraram que não era bem assim; por isso publiquei minhas ideias treze anos
depois, sob a forma de uma crítica ao critério de significação de Wittgenstein.

Wittgenstein, como todos sabem, procurou demonstrar em seu Tractatus (vide por
exemplo as proposições 6.53; 6.54 e 5), que as proposições filosóficas ou metafísicas,
como são chamadas, são na verdade falsas proposições ou pseudoproposições, sem
sentido ou significado. Toda proposição genuína (ou significativa) deve ser função da
verdade de proposição elementar ou “atomística”, que descreva “fatos atômicos”, isto é,
fatos que, em princípio, possam ser verificados pela observação. Em outras palavras, as
proposições significativas são totalmente redutíveis a proposições elementares ou
atomísticas, afirmações simples descrevendo um possível estado de coisas que podem
em princípio ser estabelecidas ou rejeitadas pela observação. Se chamarmos uma
afirmação de “afirmativa resultante da observação”, ou porque implica de fato uma
observação ou porque menciona algo que pode ser observado, teremos de dizer (de
acordo com o Tractatus, 5 e 4.52), que toda proposição genuína deve ser uma função da
verdade de afirmativa resultante da observação e dela dedutível. Qualquer outra
proposição aparente será uma pseudoproposição sem significado; não passará de um
conjunto de palavras desarticuladas, sem sentido algum.

Essa ideia foi utilizada por Wittgenstein para uma caracterização da ciência
em oposição à filosofia. Podemos ler (por exemplo em 4.11, onde a ciência natural
assume uma posição oposta à filosofia): “A totalidade das proposições verdadeiras
corresponde a toda a ciência natural (ou a todas as ciências naturais)”. Isso significa que
as proposições pertencentes ao campo da ciência são dedutíveis das afirmações
verdadeiras derivadas da observação, e podem ser verificadas por elas. Se pudéssemos
conhecer todas as afirmações verdadeiras derivadas da observação, saberíamos tudo o
que pode ser afirmado pela ciência natural.

Isso nos leva a um critério de significação grosseiro, para a verificação de teorias.


Para torná-lo um pouco menos grosseiro podemos acrescê-lo da seguinte afirmação:
“As asserções que podem recair no campo da ciência são aquelas verificáveis por
afirmações derivadas da observação; elas coincidem, ainda, com a categoria que
compreende todas as assertivas genuínas ou significativas”. Segundo esta visão,

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portanto, há uma coincidência da verificabilidade, do significado e do caráter


científico.

Pessoalmente, nunca me interessei pelo problema do significado: ele sempre me


pareceu um problema apenas verbal, um típico pseudo problema. Estava só interessado
no problema da demarcação, ou seja, na procura de um critério para definir o
caráter científico das teorias. [...]

Em diversas ocasiões demonstrei o que acabo de expor aqui a seguidores de


Wittgenstein e membros do Círculo de Viena. Em 1931-32, resumi minhas ideias num
livro um tanto extenso (que foi lido por vários membros do Círculo de Viena, mas
nunca publicado, embora parte dele tenha sido incorporado ao meu livro Logic of
Scientific Discovery); em 1933, publiquei uma carta escrita ao editor da revista
Erkenntnis na qual tentei condensar em duas páginas minhas ideias sobre os problemas
de demarcação e indução. Nessa carta e em outros trabalhos descrevi o problema da
significação com um pseudoproblema, em contraste com o da demarcação. Os membros
do Círculo de Viena, no entanto, classificaram minha contribuição como uma proposta
para substituir o critério de significado para verificação por um critério de significado
para determinar a “refutabilidade” – o que, efetivamente, esvaziava as minhas
proposições de qualquer sentido. De nada adiantaram meus protestos, embora afirmasse
que estava tentando resolver não o pseudoproblema do significado, mas o problema da
demarcação.

Minhas críticas a respeito da verificação tiveram, contudo, algum resultado:


levaram rapidamente os filósofos verificacionistas do sentido e do sem-sentido à mais
completa confusão. Originalmente, a proposta que considerava a verificabilidade como
critério de significado era pelo menos clara, simples, eficaz, o que não aconteceria com
as modificações e substituições introduzidas. Devo dizer que hoje, as próprias pessoas
que participaram do processo percebem isso. Mas como sou normalmente citado como
uma delas, desejo salientar que, embora tenha criado a confusão, jamais participei dela.
Não propus a refutabilidade ou a testabilidade como critérios de significado. Embora
possa me considerar culpado por haver introduzido ambos os termos na discussão, não
os introduzi na teoria do significado.

As críticas ao meu alegado ponto de vista se difundiram muito e alcançaram êxito.


Mas ainda não encontrei nenhuma crítica às minhas ideias A testabilidade, por
enquanto, tem sido largamente utilizada como critério de demarcação.

IV

Interessei-me pelo problema da indução em 1923. Embora ele esteja intimamente


ligado ao problema da demarcação, durante cinco anos não fiz uma avaliação completa
dessa ligação.

Aproximei-me do problema da indução através de Hume, cuja afirmativa de que a


indução não pode ser logicamente justificada eu considerava correta. Hume argumenta
que não pode haver argumentos lógicos válidos que nos permitam afirmar que “aqueles

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casos dos quais não tivemos experiência alguma assemelham-se àqueles que já
experimentamos anteriormente”. [...]

Considero a refutação da inferência indutiva de Hume clara e conclusiva. Mas sua


explicação psicológica da indução em termos de costume ou hábito me deixa totalmente
insatisfeito. (p.72)
[...]

... o tipo de repetição imaginado por Hume jamais pode ser perfeito; os casos que
ele expõe não são casos de similaridade perfeita; são apenas casos de semelhança. Logo,
são repetições apenas se consideradas de certo ponto de vista em particular (aquilo que
sobre mim tem o efeito de uma repetição não poderá ter o mesmo efeito sobre uma
aranha). Mas isso significa que, por motivos lógicos, tem que haver sempre um ponto de
vista – um sistema de expectativas, antecipações, presunções ou interesses – antes que
possa existir qualquer repetição; o ponto de vista, consequentemente, não pode ser
meramente o resultado da repetição. (Vide também o apêndice X, (1), em L. Sc. D.)
(p.74)

[...]

Fui levado, portanto, por considerações puramente lógicas, a substituir a teoria


psicológica da indução pelo ponto de vista seguinte: em vez de esperar passivamente
que as repetições nos imponham suas regularidades, procuramos de modo ativo impor
regularidades ao mundo. Tentamos identificar similaridades e interpretá-las em termos
de leis que inventamos. Sem nos determos em premissas damos um salto para chegar a
conclusões – que podemos precisar pôr de lado, caso as observações não as
corroborem.

Tratava-se de uma teoria baseada em processo de tentativas – de conjecturas e


refutações. Um processo que permitia compreender por que nossas tentativas de impor
interpretações ao mundo vinham, logicamente, antes da observação de similaridades.
Como havia razões lógicas para agir assim, pensei que esse procedimento poderia ser
aplicado também ao campo científico; que as teorias científicas não eram uma
composição de observações, mas sim invenções – conjecturas apresentadas
ousadamente, para serem eliminadas no caso de não se ajustarem às observações (as
quais raramente eram acidentais, sendo coligidas, de modo geral, com o propósito
definido de testar uma teoria procurando, se possível, refutá-la). (p.76)

A crença de que a ciência avança da observação para a teoria é ainda aceita tão
firme e amplamente que minha rejeição dessa ideia provoca muitas vezes reação de
incredulidade. Já fui até acusado de ser insincero – de negar aquilo de que ninguém
pode razoavelmente duvidar.

Na verdade, porém, a crença de que podemos começar exclusivamente com


observações, sem qualquer teoria, é um absurdo que poderia ser ilustrado pela história
absurda de um homem que se dedicou durante toda a sua vida à ciência natural –
anotando todas as observações que pôde fazer e legou-as a uma sociedade científica

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para que as usasse como evidência indutiva. Uma anedota que nos deveria mostrar que
podemos colecionar com vantagem insetos, por exemplo, mas não observações.

Há um quarto de século, procurei chamar atenção de um grupo de estudantes de


física, em Viena, para este ponto, começando uma conferência com as seguintes
instruções: “Tomem lápis e papel; observem cuidadosamente e anotem o que puderem
observar”. Os estudantes quiseram saber, naturalmente, o que deveriam observar:
“Observem – isto é um absurdo!” De fato, não é mesmo habitual usar desta forma o
verbo “observar”. A observação é sempre seletiva: exige um objeto, uma tarefa
definida, um ponto de vista, um interesse especial, um problema. Para descrevê-la é
preciso buscar uma linguagem apropriada, implicando similaridade e classificação –
que, por sua vez, implicam interesses, pontos de vista e problemas.

Katz escreveu: “Um animal faminto divide o ambiente em objetos comestíveis e


não comestíveis. Um animal que foge enxerga caminhos para a fuga e esconderijos... De
modo geral os objetos mudam... de acordo com as necessidades do animal”. Poderíamos
acrescentar que só dessa forma, lidando com necessidades e interesses – podem ser os
objetos classificados, assemelhados ou diferenciados. A mesma regra se aplica também
aos cientistas. Para o animal são suas necessidades, a tarefa e as expectativas do
momento que fornecem um ponto de vista; no caso do cientista são seus interesses
teóricos, o problema que está investigando, suas conjecturas e antecipações, as teorias
que aceita como pano de fundo: seu quadro de referências, seu “horizonte de
expectativas”.

O problema “Que vem em primeiro lugar: a hipótese (H) ou a observação (O)


pode ser solucionado como também se pode resolver o problema “Que vem em primeiro
lugar: a galinha (G) ou o ovo (O)?” (A resposta adequada à primeira pergunta é “Uma
hipótese anterior”; a resposta apropriada à segunda é “Um ovo anterior”. É verdade que
qualquer hipótese particular que adotemos será sempre precedida de observações – por
exemplo as observações que ela se destina a explicar. Contudo, essas observações
pressupõem um quadro de referências – uma teoria. Se as observações “iniciais” têm
alguma significação, se provocaram a necessidade de uma explicação, dando origem
assim a uma hipótese, é porque não podiam ser explicadas pelo quadro teórico
precedente, o antigo horizonte de expectativas. Aqui não corremos o perigo de encontrar
um regresso infinito: se recuarmos a teorias e mitos cada vez mais primitivos,
chegaremos finalmente a expectativas inconscientes e inatas.

É claro que a teoria das ideias inatas é absurda; mas todos os organismos têm
reações ou respostas inatas – entre elas respostas adaptadas a acontecimentos
iminentes. Podemos descrever essas respostas como “expectativas” sem implicar que
tais “expectativas” sejam iminentes. Assim, o bebê recém-nascido tem a expectativa de
ser alimentado (bem como – poderíamos dizer também – a expectativa de ser protegido
e amado). Tendo em vista a relação estreita entre a expectativa e o conhecimento,
podemos falar mesmo, de modo muito razoável, em “conhecimento inato”: um
conhecimento que não é válido a priori – uma expectativa inata, por mais forte e
específica que seja, pode constituir um equívoco (o bebê recém-nascido pode ser
abandonado e morrer de fome).

Nascemos, portanto, com expectativas – com um “conhecimento” que, embora


não seja válido a priori, é psicológica ou geneticamente apriorístico – isto é, anterior a

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toda a experiência derivada da observação. Uma das mais importantes dessas


expectativas é a de encontrar regularidades – ela está associada à inclinação inata
para localizar regularidades – ou à necessidade de encontrar regularidades –, como
podemos perceber pelo prazer que a criança sente em satisfazer esse impulso. [...] (p.76-
77)

VI

Nossa inclinação para procurar regularidades e para impor leis à natureza leva ao
fenômeno psicológico do pensamento dogmático ou, de modo geral, do comportamento
dogmático: esperamos encontrar regularidades em toda parte e tentamos descobri-las
onde elas não existem; os eventos que resistem a essas tentativas são considerados como
“ruídos de fundo”; somos fiéis a nossas expectativas mesmo quando elas são
inadequadas – e deveríamos reconhecer a derrota. Este dogmatismo é em certa medida
necessário; corresponde a uma exigência de situação que só pode ser tratada pela
aplicação das nossas conjecturas ao universo; além disso, ele nos permite abordar uma
boa teoria em estágios, por aproximações – se aceitarmos a derrota com muita facilidade
podemos deixar de descobrir que estivemos muito perto do caminho certo.

Está claro que essa atitude dogmática que nos leva a guardar fidelidade às
primeiras impressões indica uma crença vigorosa; por outro lado, uma atitude crítica,
com a disponibilidade para alterar padrões, admitindo dúvidas e exigindo testes, indica
uma crença mais fraca. [...]

Mencionaria aqui um ponto de concordância com a psicanálise. Esta afirma que os


neuróticos interpretam o mundo de acordo com um modelo pessoal fixo que não é
facilmente abandonado, cujas raízes remontam às primeiras fases da vida. [...]

Esta é uma descrição do que chamei de “atitude dogmática” por comparação com
a atitude crítica que tem em comum com ela a facilidade da adoção de um sistema de
expectativas – um mito, talvez hipótese ou conjectura –, mas que estará sempre pronta a
modificá-lo, a corrigi-lo e até mesmo a abandoná-lo. Estou inclinado a achar que as
neuroses, em sua maioria, podem ser devidas ao não desenvolvimento da atitude crítica
– a um dogmatismo enrijecido (e não natural); à resistência às exigências de adaptação
de certas interpretações e respostas esquemáticas. Resistência que em si pode ser
explicada, em alguns casos, por uma injúria ou choque que provocou medo e o aumento
da necessidade de segurança, analogamente ao que acontece quando ferimos um
membro, que depois temos medo de usar – o que o enrijece. [...] (p.78-79)

VII

[...] Vamos admitir que aceitamos deliberadamente a tarefa de viver neste mundo
desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possível, aproveitando as oportunidades
que nos oferece; e que queremos explicá-lo, se possível (não será preciso presumir esta
possibilidade) e na medida da nossa possibilidade, com a ajuda de leis e teorias
explicativas. Se essa é a nossa tarefa, o procedimento mais racional é o método das
tentativas – da conjectura e da refutação. Precisamos propor teorias, ousadamente;
tentar refutá-las; e aceitá-las tentativamente, se fracassarmos.

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Deste ponto de vista, todas as leis e teorias são essencialmente tentativas,


conjecturais, hipotéticas – mesmo quando não é possível duvidar delas. Antes de
refutar uma teoria não temos condições de saber em que sentido ela precisa ser
modificada. A afirmativa de que o sol continuará a se levantar e a se pôr uma vez cada
vinte e quatro horas é, proverbialmente, um conhecimento “estabelecido pela indução,
além de qualquer dúvida razoável”. É curioso notar que ainda hoje usamos esse
exemplo, que serviu também nos dias de Aristóteles e de Pítias de Massália – o grande
viajante que ganhou reputação de mentiroso devido à descrição de Tule, com o mar
gelado e o “sol da meia-noite”. (p. 81)

[...]

A atitude crítica pode ser descrita como uma tentativa consciente de submeter
nossas teorias e conjecturas, em nosso lugar, à “luta pela sobrevivência”, em que os
mais aptos triunfam. Ela nos dá a possibilidade de sobreviver à eliminação de uma
hipótese inadequada – quando a atitude mais dogmática levaria à nossa eliminação. (Há
uma história tocante a respeito de comunidade indiana que desapareceu por causa de sua
crença na santidade da vida – inclusive da vida dos tigres.)

Adotamos assim a teoria mais apta ao nosso alcance, eliminando as que são
menos aptas. (Por “aptidão” não quero dizer apenas “utilidade”, mas também
verdade; vide os capítulos 3 e 10 deste livro.) Na minha opinião, este procedimento
nada tem de irracional, nem precisa de maior justificação racional. (p.81-82)

VIII

[...] Perguntava-me por que tantos cientistas acreditam na indução; descobri que
isso se devia ao fato de acreditarem que a ciência natural se caracteriza pela indução:
um método que tem início em longas sequência de observações e experiências e que
nelas se baseia. Acreditavam que a diferença entre a ciência genuína e a especulação
metafísica ou pseudocientífica dependia exclusivamente do método indutivo. Pensavam,
portanto (para usar a minha própria terminologia) que só o método indutivo fornecia um
critério de demarcação satisfatório.

Encontrei recentemente uma interessante formulação dessa crença num notável


livro de filosofia escrito por um grande físico – Natural Philosophy of Cause and
Chance, de Max Born. “A indução nos permite generalizar um certo número de
observações, sob a forma de uma regra geral: a de que a noite segue o dia, por
exemplo... Mas, embora, na vida cotidiana não tenhamos um critério válido para a
indução... a ciência desenvolveu um código ou norma para a sua aplicação.” Born não
revela o conteúdo desse código da indução, mas salienta que “não há um argumento
lógico” que apoie a sua aceitação; trata-se de “uma questão de fé”, pelo que o autor se
inclina a qualificar a indução de “princípio metafísico”. Por que razão a crença de que
deve existir um código de regras indutivas válidas? A resposta fica clara quando o autor
se refere ao “grande número de pessoas que ignoram ou rejeitam a regra da ciência,
entre os quais os seguidores de ligas contra a vacinação e seguidores da astrologia. É

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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inútil discutir com eles: não posso obrigá-los a aceitar os mesmos critérios de indução
válida nos quais acredito – o código científico”. Essa passagem deixa bem claro que a
“indução válida” é usada aqui como critério de demarcação separando a ciência da
pseudociência.

É óbvio que a regra da “indução válida” não chega a ser metafísica: ela
simplesmente não existe. Não há regra que possa garantir uma generalização inferida de
observações verdadeiras, por maior que seja a sua regularidade. (O próprio Born não
acredita na verdade da física newtoniana, a despeito do seu êxito, embora ele acredite
que ela se baseia na indução.) Por outro lado, o êxito da ciência não se fundamenta em
regras indutivas mas depende de sorte, do engenho dos cientistas e das regras puramente
dedutivas do raciocínio crítico.

Poderia, portanto, sintetizar da seguinte forma algumas das minhas conclusões:

1) A indução – isto é, a inferência baseada num grande número de observações – é um


mito: não é um fato psicológico, um fato da vida corrente ou um procedimento
científico.

2) O método real da ciência emprega conjecturas e salta para conclusões genéricas, às


vezes depois de uma única observação (conforme o demonstram Hume e Born).

3) A observação e a experimentação repetidas funcionam na ciência como testes de


nossas conjecturas ou hipóteses – isto é, como tentativas de refutação.

4) A crença errônea na indução é fortalecida pela necessidade de termos um critério de


demarcação que – conforme aceito tradicionalmente, e equivocadamente – só o método
indutivo pode fornecer.

5) A concepção de tal método indutivo, como critério de verificabilidade, implica uma


demarcação defeituosa.

6) Se afirmarmos que a indução leva a teorias prováveis (e não certas) nada do que
precede se altera fundamentalmente. (Vide em especial o cap. 10 deste livro.) (p.82-83)

[...] De qualquer modo, estou ainda a espera de uma crítica simples, lúcida e clara
à solução que propus pela primeira vez em 1933, na carta ao editor de Erkenntnis,
reproduzida mais tarde em The Logic of Scientific Discovery.

Como é natural, é possível inventar novos problemas relacionados com a indução,


diferentes dos que formulei e solucionei (sua formulação representou já um bom passo
para a solução). Mas ainda não encontrei qualquer reformulação do problema que não
possa ser solucionada facilmente a partir da velha solução que propus. Vamos examinar
aqui algumas dessas reformulações.

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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Uma indagação que se pode fazer é a seguinte: como “saltamos” de uma


afirmativa derivada da observação para uma teoria?

Embora a pergunta pareça ser mais psicológica do que filosófica, é possível


respondê-la de forma até certo ponto positiva sem invocar a psicologia. Podemos dizer,
em primeiro lugar, que o “salto” não se dá a partir de uma afirmativa derivada da
observação, mas de uma situação-problema; a teoria precisa permitir a explicação das
observações que criaram o problema (isto é: precisa permitir sua dedução da teoria,
juntamente com outras teorias aceitas e outras afirmativas derivadas da observação –
conjunto a que chamamos de “condições iniciais”). Isso significa que há um número
muito grande de possíveis teorias – “boas” e “más” –, o que parece indicar que nossa
pergunta não foi ainda respondida.

Por outro lado, fica bem claro que, quando propusemos nossa pergunta, tínhamos
em mente mais do que chegamos a perguntar (“De que forma saltamos de uma
afirmativa derivada da observação para uma teoria?”). Aparentemente o que queríamos
perguntar era: “Como saltamos de uma afirmativa derivada da observação para uma
“boa” teoria?” A resposta seria: “Saltando primeiro para uma teoria qualquer; depois,
testando essa teoria, para ver se ela é boa ou má – isto é, aplicando reiteradamente o
método crítico, de modo a eliminar muitas teorias inadequadas e inventando muitas
teorias novas”. Nem todos são capazes disso, mas não há outro meio.

Há outras perguntas que são também propostas. Já se disse que o problema


original da indução é o da sua justificação – como justificar a evidência indutiva. Se
respondermos alegando que a chamada “inferência indutiva” é sempre inválida – que,
portanto, não pode ser justificada – surge imediatamente um novo problema: como
justificar o método das tentativas. A resposta será: esse método elimina as teorias falsas
por meio de afirmativas derivadas da observação; sua justificação é a relação puramente
lógica da dedutibilidade, que nos permite afirmar a falsidade de assertivas universais se
aceitamos a verdade de afirmativas singulares.

Outra pergunta que também se ouve é a seguinte: Por que razão é razoável preferir
afirmativas que não foram refutadas a outras que puderam ser refutadas? Tem havido
respostas bastante peculiares a essa pergunta – por exemplo, resposta pragmáticas. Do
ponto de vista pragmático, porém, o problema não existe, já que as teorias falsas muitas
vezes são eficazes; assim, por exemplo, muitas das fórmulas usadas em engenharia e em
navegação são reconhecidamente falsas, mas como oferecem excelentes aproximações e
são fáceis de usar são empregadas com toda a confiança por pessoas que não ignoram
sua falsidade.

A única resposta correta, portanto, é a mais direta: porque estamos sempre


buscando a verdade (embora nunca possamos ter a certeza de havê-la encontrado) e
porque a falsidade das teorias refutadas é conhecida ou aceita, enquanto as teorias ainda
não refutadas podem ser verdadeiras. Aliás, não é verdade que tenhamos preferência por
todas as teorias não refutadas – somente por aquelas que, à luz da nossa avaliação
crítica, parecem melhores do que suas concorrentes: as que resolvem nossos problemas,
foram bem testadas e a respeito das quais pensamos (melhor dito: conjecturamos ou
esperamos, tendo em vista outras teorias aceitas provisoriamente) que continuarão
resistindo à experimentação.

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Já se afirmou também que o problema da indução é o seguinte: “Por que é


razoável acreditar que o futuro repetirá o passado?” Uma resposta a essa pergunta
deveria deixar claro que essa crença é efetivamente razoável. Respondo que é sem
dúvida razoável acreditar que o futuro diferirá muito do passado sob vários pontos de
vista; por outro lado, é perfeitamente razoável agir com base na premissa de que ele
repetirá o passado em muitos aspectos; que as leis que foram bem testadas continuarão
em vigor (não temos uma premissa melhor na qual pudéssemos basear nossa conduta).
No entanto é também razoável admitir que essa conduta nos criará às vezes problemas
sérios, porque algumas das leis nas quais hoje temos confiança podem não merecê-la.
(Lembrem-se do “sol da meia-noite”!) Poder-se-ia mesmo dizer que, a julgar pela nossa
experiência passada e pelo conhecimento científico geral de que dispomos, o futuro não
será como o passado na maioria dos aspectos. A água algumas vezes não matará a sede
e o ar sufocará aqueles que o respirarem. Uma solução aparente para esta contradição é
afirmar que o futuro se assemelhará ao passado no sentido de que as leis naturais não se
alterarão – mas esta não é uma resposta elucidativa, porque só nos referimos a uma “lei
natural” quando estamos convencidos de que observamos uma regularidade imutável; se
descobrirmos alguma alteração na forma como ela se manifesta não continuaremos a
chamá-la de “lei natural”. Como é natural, nossa busca pelas leis naturais indica que
esperamos encontrá-las; acreditamos que elas existem. Nossa crença em qualquer lei
natural específica só pode ter como fundamento o fracasso das tentativas críticas feitas
para refutá-la. (p. 85, 86) [...]

Outra maneira de propor o problema da indução é fazê-lo em termos


probabilísticos. [...]

Em The Logic of Scientific Discovery expliquei por que acredito que essa
abordagem seja fundamentalmente errônea.1 Para tornar isso bem claro, introduzi uma
distinção entre probabilidade e grau de confirmação (ou corroboração) – o termo
“confirmação” tem sido de tal forma usado e abusado nos últimos tempos, que decidi
abandoná-lo aos verificacionistas, passando a usar exclusivamente a expressão “grau de
corroboração”; já o termo “probabilidade” é melhor empregado em algum dos muitos
sentidos que satisfazem o conhecido cálculo de probabilidade – axiomatizado, por
exemplo, por Kaynes, Jeffreys e por mim mesmo. Naturalmente, a escolha da
terminologia não será decisiva, desde que não se presuma, de forma acrítica, que o
“grau de corroboração” deva ser também uma probabilidade – isto é, que precise
satisfazer o cálculo de probabilidade.

No meu livro expliquei por que razão nos interessamos por teorias que apresentam
um grau de corroboração elevado. Expliquei também por que seria um erro concluir daí
que estamos interessados em teorias altamente prováveis, lembrando que a
probabilidade de uma afirmativa (ou de um conjunto de afirmativas) é tanto maior
quanto menos ela informar; é o inverso do seu conteúdo ou poder dedutivo – e, por
conseguinte, da sua capacidade de explicação. Por isso, toda afirmativa interessante e
poderosa terá necessariamente uma probabilidade reduzida e vice-versa. Assim, uma
afirmativa de alta probabilidade terá pouco interesse científico, porque dirá pouco e terá
pouca capacidade de explicação. Embora procuremos teorias com um elevado grau de
corroboração, como cientistas não estamos interessados em teorias de alta
probabilidade, mas sim em explicações; isto é: queremos teorias poderosas e

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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improváveis. O ponto de vista oposto – de que a ciência procura a alta probabilidade – é


um desenvolvimento característico do verificacionismo; se não podemos verificar uma
teoria, ou certificar-nos dela por meio da indução, voltamo-nos para a probabilidade
como uma espécie de Ersatz, de substituição da certeza, na esperança de que a indução
poderá nos dar pelo menos uma garantia. (p. 87,88)

3. Ludwig Wittgenstein (1889-1951)


Wittgenstein nasceu na Áustria, mas boa parte
da sua reputação foi construída na Inglaterra,
mais precisamente em Cambridge. É
inegavelmente o nome mais importante da
chamada filosofia analítica, tendo
influenciado todo o Círculo de Viena,
inclusive aquele que antes fora seu professor,
Bertrand Russell, que, como ele, é citado pelo
grupo como referência. Publicou um único
livro em vida: o Tractatus Logico-Filosófico,
tendo desistido temporariamente da filosofia
em função, dentre outros fatores, das teses
expostas nesse livro. Pretendeu nesse livro, a
partir de um exame da estrutura lógica da
linguagem, estabelecer uma demarcação
nítida entre o que pode e o que não pode ser
dito com significação objetiva. Acabou
retomando o trabalho filosófico depois de
alguns anos, sendo sua mais relevante
contribuição nesse período as Investigações Filosóficas, publicadas postumamente em
1953. Nesse livro refere-se a si mesmo na terceira pessoa, como “o autor do
Tractatus”, e afasta-se dos aspectos puramente lógicos da análise da linguagem, na
direção de análises pragmático-semânticas, geralmente ligadas à sua original teoria
dos “jogos de linguagem”.

Obras principais

Tractatus Logico-Philosophicus (1918/21)

Gramática Filosófica (1931)


Livro Azul (1933/34)
Livro Marrom (1934)
Investigações Filosóficas (1936/49)
Anotações sobre os Fundamentos da Matemática (1937)
Sobre a Certeza (1951)

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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L. Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, tr. M. Lourenço


(ligeiramente modificada), Lisboa, Gulbenkian, 1995.

Prólogo – Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez
ele próprio já pensado os pensamentos que nele são expressos – ou pelo menos
pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria alcançado se
desse prazer a quem o lesse compreendendo.
O livro trata dos problemas da Filosofia e mostra – creio eu – que a posição de
onde se interroga esses problemas repousa numa má compreensão da lógica da nossa
linguagem. Todo o sentido do livro pode ser resumido nas seguintes palavras: o que é
de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo de que não se pode falar, guarda-
se em silêncio.
O livro também desenhará a linha de fronteira do pensamento ou, melhor
ainda – não do pensamento, uma vez que para desenhar a linha de fronteira do
pensamento deveríamos ser capazes de pensar ambos os lados desta linha (deveríamos
ser capazes de pensar aquilo que não deixa ser pensado). Assim, a linha da fronteira só
poderá ser desenhada na linguagem, e o que jaz para lá da fronteira será simplesmente
não-sentido.
Não quero julgar em que medida meus esforços coincidem com os dos outros
filósofos. De fato, o que escrevi não contém, em particular, nenhuma pretensão à
novidade; e assim não indico quaisquer fontes porque me é indiferente se o que pensei
já foi pensado por outrem antes de mim. Quero apenas mencionar que os meus
pensamentos foram em grande parte sugeridos pelas grandes obras de Frege e pelos
trabalhos o meu amigo, o senhor Bertrand Russell.
O valor deste trabalho, se o tiver, consistirá em duas partes. A primeira é que
nele se exprimem pensamentos e este valor será tanto maior quanto melhor os
pensamentos forem expressos. Quanto mais se acertar na cabeça do prego. Estou
consciente de ter ficado muito aquém das possibilidades. E isto apenas porque os meus
poderes para a realização do trabalho são escassos. Possam outros aparecer e fazer
melhor. Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me a mim
intocável e definitiva. Sou por isso da opinião de, essencialmente ter encontrado a
solução final dos problemas. E se nisso não estou enganado, então a segunda parte do
valor deste trabalho consiste em que ele mostra quão pouco se consegue com a solução
destes problemas.

Viena, 1918, L.W.

------------------------------------------------------------------------------------------------------

4.05 – Compara-se a realidade com a proposição.

4.06 – A proposição só pode ser verdadeira ou falsa por ser uma imagem da realidade

[…]

4.11 – A totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade
das ciências da natureza).

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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4.111 – A Filosofia não é uma das ciências da natureza. (A palavra filosofia tem que
denotar alguma coisa, que está acima ou abaixo das ciências da natureza, mas não ao
lado delas).

4. 112 – O objetivo da Filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos. A Filosofia


não é uma doutrina, mas uma atividade. Um trabalho filosófico consiste essencialmente
em elucidações. O resultado da Filosofia não é um conjunto de “proposições
filosóficas”, mas o esclarecimento de proposições. A Filosofia debe tornar claros e
delimitar rigorosamente os pensamentos que, doutro modo, são como que turvos e
vagos.

[…]

4. 113 – A Filosofia delimita o domínio controverso da ciência da natureza.

4. 114 – Ela deve delimitar o que é pensável e, assim, o impensável. Ela deve delimitar
assim o pensável, do interior, através do pensável.

[…]

4.52 – As proposições são tudo que se segue da totalidade das proposições elementares
(e, naturalmente, ocorre também de serem a totalidade das proposições). ( Assim poder-
se-ia dizer em certo sentido que todas as proposições são generalizações de proposições
elementares).

5 – A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. (A proposição


elementar é uma função de verdade de si própria.)

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

6.52 – Sentimos que mesmo que todas as possíveis questões fossem resolvidas, os
problemas da vida ficariam ainda intocados. É claro que não haveria mais questões; e
esta é a resposta.

6.521 – A solução do problema da vida nota-se no evanescimento do problema. (Não é


este o motivo pelo qual aqueles, para quem após longa dúvida o sentido da vida se torna
claro, não são capazes de dizer em que é que este sentido consiste?)

6.522 – Existe no entanto o inexprimível. É o que se revela, é o místico.

6.53 – O método correto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, i.é,
as proposições das ciências naturais – e, portanto, sem nada a ver com a Filosofia – e
depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas
proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o
método pareceria ser frustrante – uma vez que não sentiria que estávamos a ensinar
Filosofia – mas este seria o único método estritamente correto.

6.54 – As minhas proposições são elucidativas pelo fato de que aquele que as
compreende as reconhece, afinal, como falhas de sentido, quando por elas se elevou

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para além delas. (Tem que, por assim dizer, jogar fora a escada, depois de ter subido por
ela). Tem que transcender estas proposições, e então verá o mundo corretamente.

7 – Sobre daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

L. Wittgenstein: Investigações Filosóficas (1936-1949), tr. M. Lourenço


(ligeiramente modificada), Lisboa, Gulbenkian, 1995.

18– Não te deixes perturbar pelo fato de as linguagens (2) e (8) consistirem apenas em
ordens. Se queres dizer que, por esse motivo, não são completas, então pergunta-te se a
nossa linguagem é completa; – Se o era antes de a notação da Química e de a notação do
cálculo infinitesimal terem sido nela incorporados, uma vez que estes são, por assim
dizer, os subúrbios da nossa Linguagem. (E com quantas casas e ruas é que uma cidade
começa a ser cidade)? A nossa cidade pode ser vista como uma cidade antiga: um
labirinto de travessas e largos, casas antigas e modernas e casas com reconstruções de
diversas épocas; tudo isto rodeado de uma multiplicidade de novos bairros periféricos
com ruas regulares e as casas todas uniformizadas.

* 97– (...) Estamos debaixo da ilusão de que o peculiar, o profundo, o essencial da nossa
investigação, reside no fato de ela tentar captar a essência incomparável da linguagem,
isto é, a ordem que relaciona entre si os conceitos de proposição, palavra, inferência,
verdade, experiência, etc. Esta ordem é uma super-ordem entre, por assim dizer, super-
conceitos. Enquanto as palavras "linguagem", "experiência", "mundo", se têm uma
aplicação, ela tem que ser tão humilde como a das palavras "mesa", "candeeiro",
"porta".

* 106– Aqui torna-se difícil, por assim dizer, conservar a cabeça no lugar, de modo a
ver que temos que ficar pelos objetos do pensamento de todos os dias, para não cairmos
no desvio onde nos parece termos que descrever a sutileza suprema que, de fato, com
nossos meios não podemos descrever. Como se tivéssemos que reparar com os dedos
uma teia de aranha partida.

109– (...) E não devemos produzir nenhuma espécie de teoria. Na nossa investigação
não deve haver nada de hipotético. Toda a explicação tem que acabar e ser substituída
apenas pela descrição. E esta descrição recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos
problemas filosóficos. É claro que estes não são problemas empíricos, a sua solução
estará antes no conhecimento do modo como a nossa linguagem funciona, de maneira a
que, de fato, esse modo seja reconhecido – apesar de um instinto para não o
compreender. Estes problemas serão resolvidos não pela adição de novas experiências,
mas pela compilação do que é há muito conhecido. A Filosofia é um combate contra o
embruxamento do intelecto pelos meios da nossa linguagem.

309– Qual é a tua meta na Filosofia? Mostrar à mosca o caminho para sair do pega-
moscas.

66– Considera, por exemplo, os processos aos quais chamamos "jogos". Quero com isto
dizer jogos de tabuleiro, jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O

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que é que há de comum a todos eles? Não respondas: "Tem de haver alguma coisa em
comum, senão não se chamariam jogos" – mas olha, para ver se têm alguma coisa em
comum. – Porque quando olhares para eles não verás de fato o que todos têm em
comum, mas verás semelhanças, parentescos e em grande quantidade. Como foi dito:
não penses, olha! – Olha, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com seus múltiplos
parentescos. A seguir considera os jogos de cartas: encontras aqui muitas
correspondências com a primeira classe, mas desaparecem muitos aspectos comuns e
outros aparecem. Se considerarmos a seguir os jogos de bola, conserva-se muito em
comum, mas também muito se perde. São todos eles divertidos? Compara o do xadrez
com o jogo da cabra cega. Ou há sempre perder e ganhar e competição entre os
jogadores? Pensa nas paciências. Nos jogos de bola há perder e ganhar; mas quando
uma criança atira uma bola à parede e depois apanha, desaparece este aspecto. Olha para
o papel que desempenham a habilidade e a sorte. E quão diferente é a habilidade no
xadrez e a habilidade no jogo de tênis. Pensa agora nos jogos de andar à roda: tem-se
aqui o divertimento mas desaparecem muitos dos outros sinais característicos! E assim
podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver suas semelhanças surgir
e desaparecer. E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma rede
complicada de semelhanças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Semelhanças
de conjunto e de pormenor.

* 21– Pensa num jogo de linguagem em que B relata a A, e a pedido deste o número de
lajes ou blocos de uma pilha, ou as cores e as formas das pedras que estão num ponto
dado. – Um destes relatos poderia: "Cinco lajes". Qual é a diferença entre o relato ou a
asserção "Cinco lajes" e a ordem "Cinco lajes"? – Bem, é o papel desempenhado pelo
ato de pronunciar estas palavras no jogo de linguagem. Mas também será o tom em que
estas palavras são pronunciadas que será diferente, e a expressão facial e muitas outras
coisas. Mas também podemos pensar que o tom seja o mesmo, porque uma ordem e um
relato podem ser pronunciados numa multiplicidade de tons e com uma multiplicidade
de expressões faciais – e que a diferença reside apenas na aplicação. (É claro que
podíamos utilizar as palavras "asserção" e "ordem" para a designação de uma forma
gramatical de uma frase e de uma entonação; assim como chamamos a frase "Não está
hoje um tempo fantástico?" uma pergunta, embora seja empregada como asserção).
Podíamos conceber uma linguagem em que todas as asserções tivessem a forma e o tom
de perguntas retóricas; ou em que todas as ordens tivessem a forma de perguntas:
"Importas-te de fazer isto?" Dir-se-á então: "O que ele diz tema forma de pergunta, mas
é na verdade uma ordem" – isto é, desempenha da ordem na praxis da linguagem.
(Analogamente diz-se a frase "Tu farás isto", não como uma profecia, mas como uma
ordem. O que é que a torna numa coisa ou na outra?)

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1.3 Positivismo e Neopositivismo

Auguste Comte (1798 –1857)

Curso de Filosofia Positiva (1830-48)


Sistema de Política Positivista (1851-54)
Catecismo Positivista (1850)

4. O Círculo de Viena

Moritz Schlick (1882 – 1936)

Espaço e Tempo na Física Atual (1917)


Teoria Geral do Conhecimento (1925)
Problemas de Ética (1930)
Lei, Causalidade e Probabilidade (1938) póstumo
Filosofia da Natureza (1949) póstumo

Otto Neurath (1882 – 1945)

O Desenvolvimento do Círculo de Viena e o Futuro do Empirismo


Lógico (1935)
Ciência Unificada como Integração Enciclopédica (1938)
Fundamentos da Ciência Social (1944)

Rudolf Carnap (1891 –1970)

Conceituação Fisicalista (1926)


A Sintaxe Lógica da Linguagem (1934)
Significado e Necessidade (1947)
O Problema Lógico da Ciência (1944)
Os Fundamentos Lógicos da Probabilidade (1950)
Lógica Indutiva e Verossimilhança (1959)

MANIFESTO DO CÍRCULO DE VIENA

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A Concepção Científica de Mundo


Recortado de http://www.depressedmetabolism.com/the-scientific-conception-of-the-
world-the-vienna-circle/ e traduzido do inglês por Edgar Lyra.

[…] A concepção científica de mundo é caracterizada não tanto por teses


propriamente ditas, mas sobretudo pela sua atitude básica, por seu ponto de vista e
orientação de pesquisa. A meta a perseguir é a ciência unificada. A empresa é a de ligar
e harmonizar as realizações dos pesquisadores individuais dos vários campos da ciência.

Esse objetivo define a foco nos esforços coletivos e também naquilo que pode
ser captado intersubjetivamente; dele advém a busca por um sistema neutro de fórmulas,
por um simbolismo liberto do estorvo das linguagens históricas; e também a busca de
um sistema integral de conceitos. A ordem e clareza são tenazmente perseguidas; as
distâncias obscuras e as profundezas insondáveis são rejeitadas.

Em ciência não há “profundezas”; há superfície por toda parte: o conjunto das


experiências forma uma rede complexa, que nem sempre pode ser abrangida com a
vista, que pode ser compreendida somente em partes. Tudo é acessível ao homem, e o
homem é a medida de todas as coisas. Aqui há uma afinidade com os sofistas, não com
o platonismo; com os epicuristas, não com os pitagóricos; com todos aqueles que
defendem o estar na terra, o aqui e agora. A concepção científica de mundo desconhece
enigmas insolúveis. A clarificação dos problemas filosóficos tradicionais nos leva em
parte a desmascará-los como pseudoproblemas, em parte a transformá-los em problemas
empíricos e assim sujeitá-los ao juízo da ciência experimental. A tarefa do trabalho
filosófico reside na clarificação dos problemas e asserções, não na expressão de
pronunciamentos “filosóficos” especiais.

O método dessa clarificação é o da análise lógica; sobre ele diz Russell (em
Nosso Conhecimento do Mundo Exterior) que “se insinuou gradualmente na filosofia o
escrutínio crítico dos matemáticos … Isso representa, eu creio, o mesmo tipo de
progresso que foi introduzido na física por Galileo: a substituição por resultados
detalhados e verificáveis, passo a passo, das grandes generalidades não testadas,
respaldadas somente numa espécie de apelo à imaginação.

É o método da análise lógica que essencialmente distingue o empirismo recente


e o positivismo da versão mais antiga, mais biológica e psicológica em sua orientação.
Se alguém afirma que “existe um Deus”, ou que o “fundo primário do mundo é o
inconsciente”, ou que “existe uma enteléquia que é o princípio guia dos organismos
vivos”, nós não dizemos: “– O que você diz é falso”, mas perguntamos: “ – O que você
quer dizer com semelhantes enunciados?”

Torna-se visível o fato de haver uma fina linha de fronteira entre dois tipos de
enunciados. Num dos lados estão os enunciados feitos pela ciência empírica; seu
significado pode ser determinado pela análise lógica ou, mais precisamente, através da
sua redução lógica aos mais simples enunciados referenciáveis ao que é empiricamente
dado. Do outro lado estão enunciados, dentre os quais os anteriormente citados, que se
revelam vazios de significado quando tomados segundo propósitos metafísicos.

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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Pode-se, decerto, frequentemente reinterpretá-los como enunciados empíricos;


mas nesse caso eles perdem o conteúdo sentimental que é em geral essencial ao
metafísico. O metafísico e o teólogo acreditam, e por aí compreendem mal a si mesmos,
que seus enunciados dizem algo, ou que denotam um estado de coisas. A análise lógica
mostra, contudo, que esses enunciados não dizem nada, que meramente expressam
certos humores ou estados de espírito.

Expressar tais sentimentos durante a vida pode ser algo importante. Mas o meio
próprio para fazer isso é a arte, por exemplo, a poesia lírica e a música. É perigoso
escolher ao invés disso a roupagem linguística de uma teoria: posto que dessa forma
simula-se um conteúdo teórico onde nada disso existe. Se um metafísico ou teólogo
quiser reter o meio linguístico usual, então ele deve espontaneamente assumir e tornar
claro que não pretende fornecer descrições, e sim expressões, não teoria ou
comunicação de conhecimento, mas poesia ou mito. Quando um místico afirma que tem
experiências que estão acima e além de todos os conceitos, não é possível dizer que é
mentira. Mas o místico não pode falar sobre essas experiências, porque falar implica a
apreensão conceitual e a redução aos estados de coisas cientificamente classificáveis.
[…]

Caracterizamos a concepção científica de mundo essencialmente por dois


atributos. Primeiro ela é empirista e positivista: há conhecimento somente a partir da
experiência, apoiado no que é imediatamente dado. Isso estabelece limites para o
conteúdo da ciência legítima. Segundo, a concepção científica de mundo é marcada pela
aplicação de um certo método, chamado análise lógica.

A finalidade dos esforços científicos é alcançar como meta a ciência unificada


através da aplicação da análise lógica ao material empírico. Uma vez que o significado
de cada enunciado da ciência deve ser passível de redução a um enunciado sobre algo
dado, concomitantemente o significado de qualquer conceito, não importando a que
ramo da ciência pertença, deve ser passível de redução a outros conceitos, passo a
passo, em direção a conceitos de nível mais baixo, até que se refira ao dado.

Se tal análise fosse levada adiante para todos os conceitos, eles seriam dispostos
num sistema reduzido, um “sistema constitutivo”. As investigações em direção a um tal
sistema constitutivo, à “teoria constitutiva”, formam o quadro de referência da análise
lógica aplicada pela concepção científica de mundo. Tais investigações mostram muito
rapidamente que a lógica tradicional, de base aristotélica e escolástica, é bastante
inadequada para esse propósito.

Somente a moderna lógica simbólica (“logística”) é bem-sucedida em ganhar a


precisão adequada às definições de conceitos e enunciados, e em formalizar o processo
intuitivo de inferência do pensamento ordinário, levando-o a uma forma
automaticamente controlada por meio de um mecanismo simbólico. As investigações na
direção da teoria constitutiva mostram que as camadas inferiores do sistema constitutivo
contêm conceitos da experiência e qualidades da psiquê individual; nas camadas acima
estão os objetos físicos; e a partir destes são constituídas as outras mentes e por último
os objetos das ciências sociais.

A ordenação dos conceitos dos vários ramos da ciência no sistema constitutivo


já pode hoje ser antevista num esboço, mas muito resta a ser feito no nível do detalhe.

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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Com a prova da possibilidade e o esboço da forma geral do sistema integral de


conceitos, a referência de todos os enunciados ao dado e com ela a estrutura geral da
ciência unificada se tornará também reconhecível. […]

5. Apêndice: Brian Greene e Stephen Hawking


Concepções metodológicas de grandes físicos

Por abstratas que possam parecer e, aparentemente defasadas em relação ao atual


momento da ciência, as posturas epistemológicas do neopositivismo e do falibilismo
popperiano estão ainda muito presentes no discurso de cientistas contemporâneos
importantes como Brian Greene e Stephen Hawking. As duas passagens selecionadas
e transcritas a seguir visam a dar conta dessa atualidade.

In “Der Spiegel”, nº 39 – 20.09.2004 (“Warum ist nicht nichts?”: Gesprach mit


Brian Greene, trad. Edgar Lyra)

Por que há algo e não nada?

O físico de partículas e escritor Brian Greene fala sobre a fragmentação (Zersplitterung)


do espaço, a natureza do tempo e o nascimento do Universo a partir de um grão
inimaginavelmente diminuto.

[...] Spiegel: Soa bastante maluco. Depois de a física moderna ter decomposto o átomo
em partículas cada vez menores, ela começa agora, mais uma vez, a fragmentar o
espaço e o tempo. Será que esse processo de ir em busca de um fundamento sempre
mais fundamental chega, em algum momento, propriamente a um fim?

Greene: Incondicionalmente. Em algum momento serão encontrados os componentes e


as leis fundamentais da realidade. Pois cada passo em direção a um “pavimento” mais
profundo – de Newton a Einstein, à mecânica quântica e assim por diante – foi um
passo em direção a uma simplicidade crescente.

Spiegel: ... falando honestamente, “simples” não parece o conceito de todo adequado ao
que o senhor aqui expõe.

Greene: Pode assim parecer aos “leigos” (Auβenseiter) – como se tudo se tornasse mais
complicado. Mas está resolvido que nós dependemos de um número cada vez menor de
ideias e princípios. E quem considerar esse progresso em direção à simplicidade

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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crescente dificilmente poderá se opor à ideia de que a busca em algum momento


chegará a um fim.

Spiegel: O senhor divisará, afinal, quando tiver chegado ao mais fundamental de todos
os princípios?

Greene: Isso será evidente, uma vez que o tenhamos encontrado. O mais satisfatório de
todos os pensáveis resultados da viagem de 3000 anos em busca da Verdade seria a pura
consistência lógica: a prova de que o mundo não pode ser mesmo diferente do que é.

Spiegel: Senhor professor, muito obrigado por essa conversa.

(Com Johann Grolle, no campus da Universidade de Columbia)

In Stephen Hawking: Uma Breve História do Tempo, trad. Maria Helena Torres,
Rocco, Rio de Janeiro, 1988 (1ª ed. Orig. 1988)

Qualquer teoria física é sempre provisória, no sentido de que não passa de uma
hipótese: não pode ser comprovada jamais. Não importa quantas vezes os resultados de
experiências concordem com uma teoria, não se pode ter certeza de que, da próxima
vez, o resultado não vá contradizê-la. Por outro lado, pode-se rejeitar qualquer teoria ao
se descobrir uma única observação que contrarie suas previsões. Como filósofo da
ciência, Karl Popper enfatizou que uma boa teoria é caracterizada pelo fato de ser capaz
de fazer um número de previsões que possam, em princípio, ser rejeitadas ou frustradas
pela observação. Cada vez que novos experimentos comprovam as previsões, a teoria se
mantém e o nosso nível de confiança nela aumenta; mas se uma nova observação a
contradisser, é necessário que seja abandonada ou modificada. Pelo menos é o que
supõe que aconteça, embora sempre se possa questionar a competência de quem
realizou as observações.

Na prática, costuma ocorrer que uma nova teoria seja sempre formulada como
extensão de outra, prévia. Por exemplo, observações bastante precisas do planeta
Mercúrio revelaram uma pequena diferença entre seu movimento e as previsões da
teoria da gravidade de Newton. A teoria geral da relatividade de Einstein previa um
movimento ligeiramente diferente da teoria de Newton. O fato de que as revisões de
Einstein viessem de encontro ao que era observado, enquanto as de Newton não, foi um
dos elementos cruciais de confirmação da nova teoria. Entretanto, ainda utilizamos a
teoria de Newton para todos os objetivos práticos, porque a diferença entre as suas
previsões e aquelas da teoria da relatividade geral é muito pequena nas situações com
que normalmente lidamos. (A teoria de Newton apresenta, sobretudo, a grande
vantagem de ser muito mais simples de se aplicar que a de Einstein!)

O objetivo eventual da ciência é prover uma teoria única que descreva todo o
universo. Entretanto [...]

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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Provou-se que é muito difícil descobrir uma teoria que descreva todo o universo.
Por isso divide-se o problema em diversas partes e inventam-se inúmeras teorias
parciais. [...]

Atualmente os cientistas descrevem o universo através de duas teorias parciais


básicas: a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que são as duas grandes
contribuições intelectuais da primeira metade deste século. A teoria geral da relatividade
descreve a força da gravidade e a macroestrutura do universo [...] A mecânica quântica,
por outro lado, lida com fenômenos em escalas extremamente pequenas, tais como um
trilionésimo de centímetro. Infelizmente, entretanto, sabe-se que estas duas teorias são
incompatíveis entre si; não podem estar ambas corretas. [...]

Devido ao fato de as teorias parciais que existem serem suficientes para se fazer
previsões acuradas em todas as situações, exceto as extremas, é difícil justificar no
campo prático a busca da teoria final do universo. (É importante observar, então, que
argumentos similares podem ser usados contra ambas, relatividade e mecânica quântica,
e que estas teorias nos deram tanto a energia nuclear quanto a revolução
microeletrônica!) A descoberta de uma teoria unificada e completa, portanto, talvez não
ajude a sobrevivência de nossa espécie. Pode até mesmo não afetar nosso estilo de vida.
Mas, desde os primórdios da civilização o homem não se satisfaz em observar os
eventos isolados e sem explicação; necessita de uma compreensão da ordem subjacente
ao mundo. [...] (p.29-34)

In Stephen Hawking: O Universo numa Casca de Noz, trad. Ivo Korytowski, rev.
técnica Augusto Damineli, Ed. ARX, São Paulo, 2002 (1ª ed. orig. 2001)

Em 1988, quando Uma Breve História do Tempo foi originalmente publicado, a


definitiva Teoria de Tudo parecia despontar no horizonte. Como a situação mudou
desde então? Estamos mais perto da nossa meta? Como será descrito neste livro,
avançamos muito desde então. Mas a viagem continua e o final ainda não está à vista.
Segundo o velho ditado, é melhor viajar com esperança que chegar. Nossa busca de
descobertas alimenta nossa criatividade em todos os campos, não apenas na ciência. Se
chegássemos ao fim da linha, o espírito humano definharia e morreria. Mas não creio
que um dia sossegaremos: aumentaremos em complexidade, senão em profundidade., e
seremos sempre o centro de um horizonte de possibilidades em expansão. (p. viii)

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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6. Paul Feyerabend (1924 - 1994)

Feyerabend nasceu na Áustria, mas construiu sua


reputação filosófica em Berkeley, nos Estados
Unidos. Sua obra mais conhecida chama-se
“Contra o Método” e traz uma tomada de
posição explícita em favor de um anarquismo
epistemológico. O livro seria escrito a quatro
mãos, junto com Imre Lakatos, a quem
confrontaria na sua tentativa de salvar o
“racionalismo crítico” popperiano. Só que
Lakatos faleceu antes da realização do projeto,
que Feyrabend acabou enfrentando sozinho e
dedicando ao amigo. É famosa a sua afirmação
de que “em ciência, o único princípio que não
inibe o progresso é: tudo vale.”

Obras Principais

Summary of Wittgenstein's Philosophical Investigations (1955)


Review of Popper's Conjectures and Refutations (1965)
Consolations for the Specialists (1970)
Contra o Método (1975)
Science in a Free Society (1978)
Philosophical Papers (1981) – 2 vols.
Adeus à Razão (1987)
Contra o Método (1988) – 2ª edição revisada
Three Dialogues on Knowledge and beyond Reason (1991) – Festschrift
Matando o Tempo: Autobiografia de Paul Feyerabend (1995) – póstumo.

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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Contra o Método

Este ensaio é a primeira parte de um livro a propósito do anarquismo que seria


escrito por Lakatos e por mim. Cabia-me atacar a posição racionalista; Lakatos, por seu
turno, reformularia essa posição para defendê-la e, de passagem, reduzir meus
argumentos a nada. Juntas, as duas partes deveriam retratar nossos longos debates em
torno desse tema – debates que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas,
chamadas telefônicas, artigos, até quase o último dia da vida de Imre, e se
transformaram em parte de minha rotina diária. A origem do ensaio explica o seu estilo:
trata-se de uma carta, longa e muito íntima, escrita para Imre, e cada frase perversa que
contém foi escrita antecipando frase ainda mais ferina do meu companheiro. Também é
claro que o livro, como se apresenta, está lamentavelmente truncado. Falta-lhe a parte
mais importante, a réplica da pessoa para quem foi elaborado. Publico-o, entretanto,
como testemunho da forte e estimulante influência que Imre Lakatos exerceu sobre
todos nós.

Paul K. Feyerabend (1975)

Índice Analítico
que é, ainda, um resumo do argumento principal.

Introdução (p. 17)

A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo


teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do
que suas alternativas representadas pela ordem e pela lei.

I (p. 27)

Isso é demonstrado seja pelo exame de episódios históricos, seja pela análise
da relação entre ideia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é:
tudo vale. [anything goes]

XV (p.267)

Enfim, a exposição feita nos capítulos VI-XIII atesta que a versão do


pluralismo de Mill, dada por Popper, não está em concordância com a
prática científica e destruiria a ciência, tal como a conhecemos. Existindo a
ciência, a razão não pode reinar universalmente, nem a sem-razão pode ver-
se excluída. Esse traço da ciência pede uma epistemologia anárquica. A

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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compreensão de que a ciência não é sacrossanta e de que o debate entre


ciência e mito se encerrou sem vitória para qualquer dos lados empresta
maior força ao anarquismo.

XVI (p.283)

Também não escapa a essa conclusão a engenhosa tentativa de Lakatos,


feita no sentido de erigir metodologia que a) não emite ordens, mas b)
coloca restrições a nossas atividades ampliadoras do conhecimento. De fato,
a filosofia de Lakatos só se afigura liberal porque é um anarquismo
disfarçado. E seus padrões, abstraídos a partir da ciência moderna, não
podem ser vistos como árbitros imparciais na pendência entre a ciência
moderna e a ciência aristotélica, o mito, a mágica, a religião, etc.

XVIII (p.447)

Dessa forma, a ciência se aproxima do mito muito mais do que uma filosofia
científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de
pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor.
Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente superior aos
olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a uma certa
ideologia ou que já a tenham aceitado, sem sequer examinar suas
conveniências e limitações. Como a aceitação e a rejeição de ideologias
devem caber ao indivíduo, segue-se que a separação entre Estado e Igreja há
de ser complementada por uma separação entre Estado e a ciência, a mais
recente, mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação
será, talvez. A única forma de alcançarmos a humanidade de que somos
capazes, mas que jamais concretizamos.

Texto (capítulo XV)

A incomensurabilidade que examinarei em seguida relaciona-se estreitamente ao


problema da racionalidade da ciência. De fato, uma das mais comuns objeções não
apenas ao uso das teorias incomensuráveis, mas até mesmo à ideia de que existem
teorias incomensuráveis na história da ciência, é o temor de que elas restrinjam
fortemente a eficácia do argumento tradicional, não-dialético. Examinemos, pois, um
pouco mais atentamente os padrões críticos que, ao ver de alguns, constituem o
conteúdo de um argumento racional. De maneira particular, examinemos os padrões da
escola de Popper, cuja raciomania, aqui, mais de perto nos interessa. Isso nos preparará
para o estágio final do debate da questão que põe, na ciência, de um lado, as
metodologias que se prendem às regras e à ordem e, de outro, o anarquismo.

O racionalismo crítico, a metodologia positivista mais liberal hoje existente, ou é


uma ideia penetrada de significado ou não passa de uma coleção de frases feitas (como
“verdade”, “integridade profissional”, “honestidade intelectual” e assim por diante), que
têm por objetivo intimidar oponentes pusilânimes. (Quem teria coragem ou mesmo

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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perspicácia para declarar que, talvez, a “verdade” não seja importante e talvez chegue a
ser indesejável?).

No primeiro caso, há de ser possível apresentar regras, padrões, restrições que nos
permitam distinguir o comportamento crítico (pensar, cantar, escrever peças) de outros
tipos de comportamento, de modo a dispormos de meios para descobrir as ações
irracionais e corrigi-las com auxílio de sugestões concretas. Não é difícil apresentar os
padrões de racionalidade defendidos pela escola popperiana.

Esses padrões são padrões de crítica: o debate racional consiste em tentativa de


criticar e não em tentativa de demonstrar ou de tornar provável. Cada passo dado no
sentido de proteger da crítica certa concepção, de fazê-la segura ou “bem fundada”, é
passo que afasta da racionalidade. Cada passo que a torne vulnerável é passo desejável.
Além disso, recomenda-se abandonar ideias que hajam sido consideradas vazias e é
proibido conservá-las em face da crítica severa e bem-sucedida, a menos que se possa
encontrar contra-argumentos adequados. Desenvolva suas ideias de maneira que elas
possam ser criticadas, ataque-as impiedosamente; não tente protegê-las e sim exibir seus
pontos fracos. Elimine-as tão logo esses pontos fracos se hajam posto manifestos – são
essas algumas concepções propostas pelos racionalistas críticos.

Essas regras se tornam definidas e pormenorizadas quando nos voltamos para o


campo da filosofia da ciência e, especialmente, para o campo da filosofia das ciências
naturais.

No domínio das ciências naturais, a crítica associa-se ao experimento e à


observação. O conteúdo de uma teoria é a soma total dos enunciados básicos que a
contradizem (which contradict it) [podem contradizer?]; é a classe de seus falseadores
potenciais. Maior conteúdo equivale a maior vulnerabilidade e, consequentemente, as
teorias de amplo conteúdo são de preferir às teorias de conteúdo reduzido. É desejável o
aumento de conteúdo, cabendo evitar o decréscimo desse conteúdo. Uma teoria que
contrarie um enunciado básico aceito deve ser abandonada. Proíbem-se as hipóteses ad
hoc – e assim por diante. Uma ciência que aceita as regras de um empirismo crítico
dessa espécie desenvolver-se-á da maneira a seguir exposta. [...] (p. 271)

Sintetizando essa parte da doutrina de Popper: a pesquisa começa a partir de um


problema. O problema é o resultado de um conflito entre uma expectativa e uma
observação que, por sua vez, se constitui da expectativa. É transparente que esta
doutrina se afasta da doutrina indutivista, para a qual fatos objetivos penetram no
espírito passivo e ali deixam seus traços. Foi preparada por Kant, Poincaré, Dingler e
por Mill (On Liberty).

Formulado o problema, procura-se resolvê-lo. Resolver um problema equivale a


inventar uma teoria relevante, falseável (em grau maior que qualquer teoria alternativa),
porém ainda não falseada. [...] (p. 272)

Em seguida surge a crítica da teoria elaborada para tentar solver o problema.


Cítica bem-sucedida afasta a teoria de uma vez por todas e cria um problema novo, a
saber, o de explicar (a) por que a teoria se manteve até aquela data?; (b) por que deixou
de satisfazer? Para tentar resolver este problema, precisamos de uma nova teoria que

Edgar Lyra – Filosofia da Ciência 2021.1


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preserve as consequências aceitáveis da anterior, afaste seus erros e faça previsões


anteriormente inexistentes. Aí estão algumas das condições formais a que deve
satisfazer a adequada sucessora de uma teoria refutada. Acolhendo essas condições
procede-se por conjectura e refutação, passando de teorias menos gerais para teorias de
maior generalidade, expandindo, assim, o conteúdo do conhecimento humano.

Fatos em crescente número são descobertos (ou construídos com auxílio de


expectativas) e, a seguir, explicados por teorias. Não há garantias de que o homem
venha a resolver todos os problemas e a substituir cada teoria refutada por sucessora
capaz de satisfazer as condições formais. A invenção de teorias depende de nosso
talento e de outras circunstâncias fortuitas, como, digamos, uma vida sexual equilibrada.
Contudo, enquanto esses talentos se manifestarem, o esquema referido fornece correta
versão do crescer de um conhecimento que satisfaz as regras do racionalismo crítico.
Ora, a esta altura, desejo levantar duas indagações:

1. É desejável viver segundo as regras de um racionalismo crítico?

2. É possível ter, ao mesmo tempo, a ciência tal como a conhecemos e essas regras?

----------------------------------------------------------------------------------------------------------
No que me toca, entendo ser a primeira questão muito mais importante que a
segunda [...] (p. 272-273)

O racionalismo crítico nasceu da tentativa de solver o problema de Hume e de


compreender a revolução einsteiniana, sendo, depois, estendido para o campo da
política e até mesmo para o da conduta na vida privada. (Parece, portanto, justificada a
posição de Habermas e de outros que veem Popper como positivista.) Esse
procedimento poderá satisfazer um filósofo de escola, que olha a vida através das lentes
de seus próprios problemas técnicos e só reconhece o ódio, o amor, a felicidade na
medida em que se fazem presentes nesses problemas. Contudo, se considerarmos os
interesses do homem e, acima de tudo, a questão de sua libertação (libertação da fome,
do desespero, da tirania de emperrados sistemas de pensamento e não a acadêmica
‘liberdade do querer’), então, estaremos procedendo da pior maneira possível.
Com efeito, não é admissível que a ciência, tal como a conhecemos, ou a “busca
da verdade”, no estilo da filosofia tradicional, venha a criar um monstro? Não é
admissível que prejudique o homem, transformando-o em máquina miserável, hostil,
egoísta, desprovida de encanto e humor? [...] (p. 274)

----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Não são esses, porém, os problemas que desejo agora examinar. No presente
ensaio, limitar-me-ei à segunda pergunta e indagarei: é possível ter, ao mesmo tempo, a
ciência tal como a conhecemos e as regras de um racionalismo crítico tal como o
descrito? A essa pergunta a resposta parece ser um firme e sonoro Não.

Para começar, vimos, embora de passagem, que o real desenvolvimento das


instituições, ideias, práticas e assim por diante não ocorre a partir de um problema [...]
(p.275)

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Em segundo lugar, como também vimos, nos capítulos VIII-XII, que um princípio
estrito de falseamento ou um ‘falsear ingênuo’ como o denomina Lakatos, eliminaria a
ciência tal como a conhecemos e nunca haveria permitido que ela tivesse início.
A exigência de conteúdo crescente também não se vê satisfeita. [...] (p. 275)

Enfim, já se percebeu claramente a necessidade de hipóteses ad hoc (p.278).

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Em resumo: para onde quer que olhemos, sejam quais forem os exemplos por nós
considerados, verificamos que os princípios do racionalismo crítico (tomar os
falseamentos a sério; aumentar o conteúdo; evitar hipóteses ad hoc; ‘ser honesto’ –
signifique isso o que significar; e assim por diante) e, a fortiori, os princípios do
empirismo lógico (ser preciso; apoiar as teorias em medições; evitar ideias vagas e
imprecisas; e assim por diante) proporcionam inadequada explicação do passado
desenvolvimento da ciência e são suscetíveis de prejudicar-lhe o desenvolvimento
futuro. Proporcionam inadequada versão da ciência, porque esta é mais ‘fugidia’ e
‘irracional’ do que sua imagem metodológica. E são suscetíveis de prejudicar a ciência,
porque a tentativa de torná-la mais ‘racional’ e mais precisa pode, como vimos, destrui-
la. A diferença entre ciência e metodologia, que é óbvio fato da história, indica,
portanto, insuficiência da metodologia e, talvez, também das ‘leis da razão’. Com efeito,
o que se afigura como ‘fugidio’, ‘caótico’, ‘oportunista’, quando posto em paralelo com
tais leis, tem importantíssima função no desenvolvimento daquelas mesmas teorias que
hoje encaramos como partes essenciais de nosso conhecimento acerca da natureza.
Esses ‘desvios’, esses ‘erros’ são pré-condições do progresso. Permite que o
conhecimento sobreviva no complexo mundo em que habitamos, permitem que nos
mantenhamos como agentes livres e afortunados. Sem ‘caos’ não há conhecimento. Sem
frequente renúncia à razão não há progresso. Ideias que hoje constituem a base da
ciência só existem porque houve coisas como o preconceito, a vaidade, a paixão; porque
essas coisas se opõem à razão; e porque foi permitido que tivessem trânsito. Temos,
portanto, que concluir que mesmo no campo da ciência, não se pode e não se deve
permitir que a razão seja exclusiva, devendo ela, frequentes vezes, ser posta de parte ou
eliminada em prol de outras entidades. Não há uma só regra que seja válida em todas as
circunstâncias, nem uma instância a que se possa apelar em todas as situações. [...] (p.
279)

A ciência não é sacrossanta. As restrições que impõe (e são muitas essas restrições,
embora não seja fácil relacioná-las) não são necessárias para que venhamos a alcançar
concepções de mundo gerais, coerentes e frutíferas. Há mitos, há dogmas de teologia, há
metafísica e há muitas outras maneiras de elaborar uma cosmovisão. Faz-se claro que
uma conveniente interação entre a ciência e essas cosmovisões ‘não científicas’
necessitará do anarquismo ainda mais que a própria ciência. E, assim, o anarquismo não
é apenas possível, porém necessário, tanto para o progresso interno da ciência, quanto
para o desenvolvimento da nossa cultura como um todo. E a razão, por fim, reúne-se a
todos aqueles outros monstros abstratos como Obrigação, Dever, Moralidade, Verdade e
seus antecessores mais concretos, os Deuses, que já foram usados para intimidar o
homem e restringir-lhe o livre e feliz desenvolvimento – e vai se desvanecendo... (p.
279-80)

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Com Feyerabend se completa, enfim, o balizamento das posturas epistemológicas


possíveis. Entre as pretensões do neopositivismo a uma ciência rigidamente unificada,
e a “iconoclastia” do anarquismo, contam-se posturas medianas como a popperiana
e, além dela, aquela de Imre Lakatos, com quem Feyerabend escreveria Contra o
Método, e, não é possível deixar de citar, a de Thomas Kuhn, com seu projeto de
descrever, valendo-se da histórica da ciência, como as coisas realmente se passam no
âmbito da pesquisa científica – e não como elas deveriam se passar. Tanto Kuhn, como
suas noções de paradigma, anomalia, ciência normal e revolução científica,
quanto|Lakatos, com seu diagnóstico sobre o refutabilismo ingênuo pensado por
Popper, e proposta de substituição das refutações popperianas por confrontações entre
programas de pesquisa, tentam, na verdade, tornar a epistemologia mais compatível
com a realidade histórica da prática científica.

7. Outros nomes relevantes ligados à questão do método


científico
Gaston Bachelard (1884 – 1962)
O Novo Espírito Científico (1934)
Le Psychanalyse du Feu (1937)
La Formation de l’Esprit Scientifique (1938)
L’eau et les Rêves (1941)
L’air et les Songes (1943)
La Terre et les Rêveries de la Volonté (1945)
La Terre et les Revêries du Repos (1948)
Le Rationalisme Appliqué (1948)
Le Materialisme Rationnel (1953)
A Poética do Espaço (1957)
La Poétique de la Rêverie (1960)

Alexandre Koiré (1892 - 1964)


Estudos Galileanos (1939)
Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (1961)
A Revolução Astronômica (1961)
Estudos Newtonianos (1965)
Estudos de História do Pensamento Científico (1966)

Georges Canguilhem (1904 - 1995)


La Connaissance de la Vie (1952)
La formation du concept de réflexe aux XVII ème et XVIII ème siècles (1955)
O Normal e o Patológico (1966)
Estudos de História e de Filosofia das Ciências (1968)
Introdução à História das Ciências (1970)

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Ideologia e Racionalidade na História das Ciências da Vida (1977)

Imre Lakatos (1922 – 1974)


The Changing Logic of Scientific Discovery (1970)
A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento (1970 – org. com A. Musgrave)
Proofs and Refutations (1971)
The Metodology of Scientific Research Programs (1973)

Thomas Kuhn (1922 - 1996)


The Copernican Revolution (1957)
A Estrutura das Revoluções Científicas (1962)
A Tensão Essencial: Estudos Selecionados sobre Tradição Científica e Mudança (1977)
Black Body Theory and the Quantum Discontinuity 1894-1912 (1978)
O Caminho desde a Estrutura (1993)

Larry Laudan (1941 - )


O Progresso e seus Problemas: rumo a uma teoria do crescimento científico (1977)
Science and Hypothesis (1981)
Science and Values: The Aims of Science and Their Role in Scientific Debate (1984)
Science and Relativism: Dialogues on the Philosophy of Science (1990)
The Book of Risks (1995)
Beyond Positivism and Relativism (1996)
Truth, Error and Criminal Law: An Essay in Legal Epistemology (2006)
The Law's Flaws: Rethinking Trials and Errors? (2016)

Digitale Rationalität und das Ende des kommunikativen Handelns (2013).


Im Schwarm. Ansichten des Digitalen. Matthes & Seitz Berlin (2013)
Psicopolítica, Relógio D'Água Editores (2014)
Die Errettung des Schönen (2015)
Close-Up in Unschärfe (2016)

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