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ny CULTURA, TRADUGAO E VIVENCIA DO SIGNIFICADO Aires Graca Docente da Universidade Nova de Lisboa Linguas e Culturas 0s dons, cuits stem o qu en tas sabe ala > Nig eves Condos! Do ponio de vista da pita de tradugan, a cultura é, num sentido ‘mais lato, o lugar do conhecimento intersubjetivo que permite actua lizar, cada ver com mis eficdcia, uma relago de equivalent intern ‘gual A cultura permite intuit, reconhecer,experimenta ou investigaros habits inguisticns eexalingustics, as idossincrasias eos mecanis mos inconscientes que podem estar por ders da producio e recepcio do texto de partida edo texto de cheguda. Este lugar de operacionalidade 6 componente insubstitufel da competéneia do tradutor. Num sentido mais restrito, cultura aparece-nos também como tum contexto que permite, face a plurssignifiacio,selecionar alter- natvas ranstatrias nos casos em que o context linguisticoe ocontex- to situaional nada podem fazer, especialmente a nivel das conotagoes eda eftto, onde constantemente se actualizam horizontes de expecta: tiv ideoligca, lica, emocional evextual. Em ambos 05 cass, do ponto de vista da prética da traducdo,acul- ‘ura manifstase sempre como espago de interculturaliade e inter- subjectividade, como espago de busea do outro, da alteridade perida ou recacada 1 intersubjectiva e intercultural 0 significado como vivéne ‘os anos 50, as eiéncia da traduo fem passr adel de que a tradugio ode ser um proceso de corespondéncia mecinica(grama- tical e lesa. Sequem as tendncias da lnguistica que pretende afir- ‘mare como ciénciae que, soba influéncia do clenismo, do objec- tvsmo e do formalism da épcs, vai acentuar 0 lado reodfcaio). ‘Anda hoje, ogande pblico lara na dia de que paa se wade basta saber falar dus linguas, saber a correspondéncia das palavas, da sgumdtica eds idomatismos, gnorando que & preciso um bom exer- cio de itersubjectvidade. A caicatura desta ideia€aquela outa de «que para setraduzir basta ter um dcionrio, Quem nose lembra das frases cam que professors e alunos exorizavam pelo so a miséria ie ns in perce tbs se he 201, 5 teanslaconal que se revelava na aprendizagem das inguas: «Aver sons par ic. Encore bien que ete trowel» (Cam que entio por aqui. Aida bem que te enconto!); Dont make me lat Fm myelin inks fr you's (io me chateesEstou-me nas tinas para ti). ‘Seri abordagem inguistco-comunicacinal qu i apesentar 4 tradugio segundo os princpios de uma equivaléncia dinimica {A twalugio no € vista como um acto puramente linguistco de rmudanga de cédigo, mas coma um acto comunicatno em que a rmudanga de lingua € wan entre muitos ouzesaspetos.£ aentuado 0 carder arbirroe no fs do sig ingusteo, que depende des co texas para se eliza. 0s problemas semantco passam para prisiro plano, endo relacionades com o comportamentohumano, a psicoo- 3,2 filologia. 0 receptor aparece também como metida do processo de tradi, A lingua e a cultura toram:se um bindmio insepardvel? Tadas a abordagens posterires da tradutologia foram dando novos contribatos para uma eonscincia da complexidae do fenémeno da tradugio? .\ nogo da cultura como lugar de intersubjective, onde cons. tantemente nos vemos através do otro evenaso outro através de ns, vem precisamente da priica da tradugo, no 6 deteaosconeoversos, retorcidos,desestruturantes, em que nas moveros como em campo tinado, mas também dos outros, periads ou mesmo burocrics; de diculdade em ser imparcal ou empitco (Fazer a viger cam 0 texto); das onsulas aos dicondries, ans losis, is encilopédias, 3 procura de um ponto de inersubjectvdade que asegure acompreea So; dos telefonemas aos amigas e conhecdos, para acetar pons de vista ou formas de dizer; das perguntas aos mais novos au 205 mals velhos, para saber como eles dizem, como pens, como entendem. Esa idea também jf vem de um tatado de Umberto co sobre semitea, onde ed wque a cultura como um todo, € urs fenémeno de signifcago ecomunicagio que humanidadee scidade 6 exis tem a partir do momento em que se estabeecem relagies de signif cao ¢ processos de comunicasiowt. verdade que esas relages e estes process no se eotam na lingua, mas na traducio passam sempre por ea ‘Quando falamos de cultura em tradugo estamos, or is, a falar de stelagdes de signifcagio © processos de comunicagion que evoent das Knguas, es vezes mats (como no caso das citagoes em lingua tereera, ds empréstmas, dos etrangeirismos), ada uma com as suas peculiaridadese habiosdvesficados, cada uma conemplan do variames pessoas (dilectas), grupais Gocolectos) repeals (Galares, calectas) e, as vezes, nacional, coninenais (europas, Grr a frie brates. a eg Wan Qual er 82 pe HS 23 gcse aria Tlagi lok Tends Rtn ‘ade do Seno, Dein Sade io La 17 4 td Semi one, Rapin 197,96 Cultura, africana, et) cada una com indmeras componente dadesrgiin- fusca ater em conta (agin, nica, a fonéia, a prosica, 2 morogca, a sina, a ec, a semntca, x pragidia, a ests tea a textual) todas signifcantes, cada componente potencialmente caracerizada ela plursigifieaio Metaorcamenteflando, otter no, merulhanos num cos, soo send de desordem, mas no sentido uzao pela cas ‘de ponta—de uma ordem que no dominamos, que somentegerimes, precariamente, com visa a assgurar a omunicago. O principio ter oe pessimist de que uma radugo€ sempre uma rao ni €pro- duro, pois parece negara posibildade de comunieago. aro 4 uma radu nunca € 0 orignal asim como a recep de um qual quer ato comunicaional nun éo exginal, nas una eiagio sobre um abjecto outro e, nessa dpica, também sempre ua tag. (Um trauma sobre uma palaea ou uma frase pode transformer uma decl- ‘agi sincera epacica de amor numa agesso e numa delaras de {guerra Mas ns coninuamos a comune. Produ, neste quar, 6 nog de cultura como lugar de inter- subjctvidade que permite actualizar com cadaver mais eficicia uma igual Como é que se manifesta no tad (@) Com capacidade receptivae de viglincia, no que di espeito 3s relies de igificagi eprocessos de comunicagio, ns lingua ¢ fora des. Como potencal de compreensio dessa relagiese deses proces- sos, alravés da eapacdade de adapacio a0s modelos dos outros, plo principio da semethanga. 2 compreensibidade que permite a raduabldadel Como expergncia directa ou indiestament via. Também indi reclamente, porque um lio, um filme ou wa noi que 0s toca pode fer para a consciéncia um efeto mais profundo que umn drama pessoal Como ntugio, que sabe, detect opera, sem racionalzar. i Opi- ‘mos autores radutore incapazes de verbalizar os seus processo! Como informagio adquirida que funciona como encielopéia Como capacidade activa de investiga, de fzerprgunta drc- cionadas ede selecconarrespostas Gomo capacidade de autora, semelhance & do psiguiara que rio mais deina de se pscanalsar. Muias ves, esta capacidade ‘manifesta se também como intincainersbjectva de autocen- sua (0 coegas, 0 rts, spate... ) © © 0 sta cultura €afinal a competéncia que se exge de tds os profs- sionais da intersubjectvidade: tradutores, professoces, psiquiatra, Piaggio do aie spice deans ss ongocns Aes rap Daa Pema rie, a Met ae ai Reta do (Gen drm de Fer 12 Jon. 1995. 999.28. tradugdo e vivéncia... ns corres , Rov de Humanidades Tenokigis A 2 anaes e Terao 2. psicdlogos, méicos, juizes... De uma perspectva rites, 0 exercicio a cultura manifesta-se como busca de alteridade, como consciencia Tira do subjecivo em busca do intersubjecivo. " Contexto cultural ¢ desambiguagio Passemos agora alr a cultura, no sentido restrto, como estratéia de desambiguasio, com vista actualizagio do significado, in dos grandes problemas da acividade translatiria advém do fenémeno da plrissignficago, isto €, da caractristica de uma mesma ‘unidade (paar ou expresso) poder ter mais que um significado, por ‘ezes mesmo signiicados contraitérios ou antaginicos.Apereebemo- os imeditamente disso quando folheamos um diconéro, cus entradas, por vezes de piginas, apresentam a véras alternatives de significado, Ora ns casos de plrissigficaglo a selecso do significa do fare através do content Imaginem que alguém, sem dar o contexto em que a palavra aparece, perguna o significado de slat» em ings. A respostas6 por sorte no sari wm disparate e isto por uma duplaondem de aes que, para alm daplurisiniicagdo lexical (rela do sign Fingu tico com viros referentes exralinguistics, coisas ou ides), existe ainda uma plurssgnfcago gramatial (como uma unidade poder ter as valéncias «substantivs, «serbor, «24 pessoa, «transtvs, etc) Pensamos no geal somente na primeira, esquecendo que a segunda turnbém pode ser considerdve, Neste cas, a segunda miplica a con Plexidade da primeira por quatro, pois o dcionrio’ arbi ela pelo en quatovalénciasgramaticis:«substanivoe, vadjectvon, wadvér- bios esterbo>. $6 depois deresovermas, pelo context, o seu signif cado> gramatical & que poderemeos chegar, também pelo conteto, 20 seu significa lexical Hrs tipos de contexts de desambiguacio: 1) 0 contexto Hinguistico, ov co-texto, isto €, oura puavra ou sequéncia de palaras, uma frase, um texto que fazem a desam: biguagio. Em «she bas ala yr, aposigio entre artigo eo subs- tantvo seleciona a valencia gramaticaleadjctvo», para o qual 0 diciondro adanta uma série de alternatias de signifeago lexical dicioniro contempla ainda leques de signficago lexi! para outros ssignfcades»gramaticas como esubstanino> (apardamen- ‘to! palma \de miol/ lado [de linia de espada/ baisio/ebarco) bemoll ete), «advécbioe (nilidament francamente/ etc) € serbos (aisar/achataratenuar/ ec) Gr nea dectnent ses cps, oa ses rae. odin sua Dion dt Ils, Pro, Po Uo 194 Howl. Nas ‘Dionne, Pe, dani Brea 197 act Od Detonary, sr 198 Linguas e Culturas Enquanto «adjective, o conteso lingustica de flat» (dado entre paréntsis) poderdselecionar, por esemplo, os significado (Good (vine, party) (Geet) = choco ie) = evdente (te) = em bao (urado ou vazio) (efusa) = taxativo (ete) = ee ‘Mesmo na posivel trad da fase por «Ela fem: um pew em baivos, subsste uma plurssgnifeagio {furado? vazio?) que sé 0 sragistapoderd desambiguar. 2) O context situacionl, isto é a sitealo eonereta da comuniagio. Tratase de um contextoexralingusio que define o significado nos «casos de plurssgifcago em queo context lingusico nao aud £0 contest situacional que nas diz se uma fase como «Exow lipo» sigitia of me lave (criangaasir do banho,paraconvencer oad. to), «Continuo sem me drogars (toxicodependente numa reuni de andnimos), «No tenbo cadastro Gnquirigio numa esquadradapol- cht, aPerdi todo 0 dinkero que tina (indvidvo numa mest de jog), ee. ste contexo & do dominio da Pragmatica, que estuda as regrasprinciios que regula a lingua em situaio de uso»? 3) O contexto cultural, que algumas vezes eradament se confunde com o siuacional, € aquele em que a desambigiacio se faz um nivel que no é nem o do co-texto, nem o da situagio,Atravess-0s por vezes, mas clocase para além dees, ois resulta de um conhecimento que preesste 20 momento dos outros dois contexts. E aferdo intersubjectiamente e sujet a constante actualizaco, Situa-se mum terreno em que os ritéiossio votes, a0 sabor de habits e modas que se afirmam, se esfumam e reressam. Um traduor experimentado detecta, no ger, a lacuna provocada pela austin desse conhecimentoe vai adquito Embora nem de muito longe nelas se esgote oexerccio do contex- ‘0 cultural, & nas conotagdes que conseguimos encontrar wm om ‘exerplo de como este funciona, Para podermas exporo tena, or ‘05 como base uma sisematizacio das conotagées de Werner Koller, que _alaptaremas e preencherernos com grande lberdade® ‘As conotages sfo marcas valorativas que eiferenciam sindnimos ‘ou quase sinénimos: @) Por exeimplo, perecer,fenecer,falecer, morrer, uinar, espichar, io sin6nimos, mas divergem nas conotagies que, neste caso, TG a pied do nance Ita igi Ga ‘ete Fat a bore Pie, ne Dare, Cae AM Coe {ihe 2 cia 156 9 585. Gp mr tater 2 define nes de inguagem, por ordem, de linguager eleva, poéica,padrio, comum, cabo e ordindria © reconhecimento da conotagio especfica no depende, como vemos, de conte linguistic ou stuaiona.£ poss, no meio dle uma elocugio sublime, usar tertmas da inguagem eomurn, 0, sn melo de uma elocugioondndri, termos de linguagem pote. As conotagbes detectam-se, sim, através de um confecimento, intersubjctivo que se possi, oe vestige que precisa de ser constantemente ead Aerescentemos lista finarse, esticar o per, apagar-se, defi. tar baterabta, ee. Tae apineira sree alas no lente tos problemas de aceiacio quanto 3s correspond&cias fe masa sivas pode tomar-se agora mais contrvesa Haver sinta finarse como cali (agente mais nova), outres sentem-na ‘como elevad ou poético, Haver quem sinta xticaro ern ema ‘nino, otros 6 emo cal. Kassim por diate seonotagies ‘ariam com o tempo, com a engi, cm os grups, com sin vidvo, eo tadutoe tem de estar alertae decir pelo coneto e seficinten, exentualmente asociados a0 bem-etar dos outros. 0 resultado podria ser: «Organtzadore adm nitrador extremamente hii, esmerado eeficaz, revel ua sur roendente capacidade de trabalho » £0 conhecimento ds contests cultura do texto de partdae do ‘exo de chegada que condiconam a selecgio conotata. A ignorincia deste contemo pode produzir walugies monstrosas, no caso de palaras que penitem ennoicioe signfeagioantnimas como, por exemplo, 0 adjeco lero «ungebeuers(exraorindro, monstruo 0). Ua frase desconextualzada como «/Die SS war] Insiranent eines ungebeuren Experiments moderner Brbgut-Manipaations tanto pode dara taducio ws 8 foram instrument de uma fabuosa eperiénca de manipulaio genética moderna, com «85 SS foram Instrumento de uma monsirunsa experiéncia de manipulacio genética dos tempos modemos» Fara con, e pelo que vines, um autor «sem cultura ter ifuldades em deserpentar seu papel Como wadutre com pes- soa, Tendo anda em mente a citago de Umberto Eco, a cultura no & sé primir passo para ese humano, so, para se poder valrzar 4 humanidae, omo também, enguantoexercicio de intersubjective ade, oprimeizo pass para aaprendizagem da democracia, sto € para aro 20 outro, mesmo quando ea no ressoaa nossa. Parase se ni rersal ou inclsio,o€ para no exc, fala eercitaraempati, aque € a capacidade de se pr n lugar do outro, constantemente Linguas e Culturas

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