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Lê o seguinte poema de Álvaro de Campos e responde às questões.

Datilografia

Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,


Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,


5 O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!


Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias


10 (Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
André Mare, A Datilógrafa, 1922.
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

15 Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.


O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:


A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;
20 A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes.


Há só ilustrações de infância:
25 Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
30 Neste momento, pela náusea, vivo na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.


Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.
Álvaro de Campos, Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes),
2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 485-486.

.
1. Explicita a relação existente entre o espaço em que o sujeito poético se encontra e o seu
estado de espírito.

2. Apresenta uma interpretação devidamente fundamentada para o verso «Temos todos duas
vidas» (v. 17), tendo em conta a globalidade do poema.

3. Explica a temática do poema, associando-a à dicotomia passado/presente.

4. Indica duas características da linguagem e estilo da poesia de Álvaro de Campos presentes


na composição poética.

5. Infere o valor expressivo da onomatopeia «tic-tac».

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