EÇA DE QUEIRÓS
CAPÍTULO V
Promessa quebrada
O fidalgo da Torre reconheceu o José Casco dos Bravais. E seguia, como desatento, pela
orla do pinheiral, assobiando, raspando com a bengalinha as silvas floridas do valado. O outro
porém estugou o passo esgalgado, lançou duramente, no silêncio do arvoredo e da tarde, o
nome do fidalgo. Então, com um pulo do coração, Gonçalo Mendes Ramires parou, forçando
5 um sorriso afável:
— Olá! É você, José! Então que temos?
O Casco engasgara, com as costelas a arfar sob a encardida camisa de trabalho. Por fim,
desenfiando das cordas o marmeleiro que cravou no chão pela choupa:
— Temos que eu falei sempre claro com o fidalgo, e não era para que depois me faltasse à
10 palavra!
Gonçalo Ramires levantou a cabeça com uma dignidade lenta e custosa — como se
levantasse uma maça de ferro:
— Que está você a dizer, Casco? Faltar à palavra! em que lhe faltei eu à palavra?... Por
causa do arrendamento da Torre? Essa é nova! Então houve por acaso escritura assinada entre
15 nós? Você não voltou, não apareceu...
O Casco emudecera, assombrado. Depois, com uma cólera em que lhe tremiam os beiços
brancos, lhe tremiam as secas mãos cabeludas, fincadas ao cabo do varapau:
— Se houvesse papel assinado, o fidalgo não podia recuar!... Mas era como se houvesse,
para gente de bem!... Até V. Sra. disse, quando eu aceitei: «Viva! está tratado!» O fidalgo deu a
20 sua palavra!
Gonçalo, enfiado, aparentou a paciência de um senhor benévolo:
— Escute, José Casco. Aqui não é lugar, na estrada. Se quer conversar comigo apareça na
Torre. Eu lá estou sempre, como você sabe, de manhã... Vá amanhã, não me incomoda.
E endireitava para o pinhal, com as pernas moles, um suor arrepiado na espinha — quando
25 o Casco, num rodeio, num salto leve, atrevidamente se lhe plantou diante, atravessando o
cajado:
— O fidalgo há de dizer aqui mesmo! O fidalgo deu a sua palavra!... A mim não se me
fazem dessas desfeitas... O fidalgo deu a sua palavra!
Gonçalo relanceou esgazeadamente em redor, na ânsia de um socorro. Só o cercava
30 solidão, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara sob um resto de tarde, o carro de lenha, ao
longe, chiava, mais vago. As ramas altas dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e
remoto. Entre os troncos já se adensava sombra e névoa. Então, estarrecido, Gonçalo tentou
um refúgio na ideia de Justiça e de Lei, que aterra os homens do campo. E como amigo que
aconselha um amigo, com brandura, os beiços ressequidos e trémulos:
35 — Escute, Casco, escute, homem! As coisas não se arranjam assim, a gritar. Pode haver
desgosto, aparecer o Regedor. Depois é o tribunal, é a cadeia. E você tem mulher, tem filhos
pequenos... Escute! Se descobriu motivo para se queixar, vá à Torre, conversamos.
Pacatamente tudo se esclarece, homem... Com berros, não! Vem o cabo, vem a enxovia...
Então de repente o Casco cresceu todo, no solitário caminho, negro e alto como um
40 pinheiro, num furor que lhe esbugalhava os olhos esbraseados, quase sangrentos:
— Pois o fidalgo ainda me ameaça com a justiça!... Pois ainda por cima de me fazer a
maroteira me ameaça com a cadeia!... Então, com os diabos! primeiro que entre na cadeia lhe
hei de eu esmigalhar esses ossos!...
Erguera o cajado... — Mas, num lampejo de razão e respeito, ainda gritou, com a cabeça a
45 tremer para trás, através dos dentes cerrados:
— Fuja, fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo Mendes Ramires correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito, saltou
por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, numa carreira furiosa de
lebre acossada! Ao fim da vinha, junto aos milheirais, uma figueira-brava, densa em folha,
50 alastrara dentro de um espigueiro de granito destelhado e desusado. Nesse esconderijo de
rama e pedra se alapou o fidalgo da Torre, arquejando. O crepúsculo descera sobre os campos
— e com ele uma serenidade em que adormeciam frondes e relvas. Afoutado pelo silêncio, pelo
sossego, Gonçalo abandonou o cerrado abrigo, recomeçou a correr, num correr manso, na
ponta das botas brancas, sobre o chão mole das chuvadas, até o muro da Mãe d'Água. De novo
55 estacou, esfalfado. E julgando entrever, longe, à orla do arvoredo, uma mancha clara, algum
jornaleiro em mangas de camisa, atirou um berro ansioso: — «Oh! Ricardo! Oh! Manuel! Eh lá!
alguém! Vai aí alguém...?» — A mancha indecisa fundira na indecisa folhagem. Uma rã pinchou
num regueiro. Estremecendo, Gonçalo retomou a carreira até o canto do pomar — onde
encontrou fechada uma porta, velha porta mal segura, que abanava nos gonzos ferrugentos.
60 Furioso, atirou contra ela os ombros que o terror enrijara como trancas. Duas tábuas cederam,
ele furou através, esgarçando a quinzena num prego. — E respirou enfim no agasalho do pomar
murado, diante das varandas da casa abertas à frescura da tarde, junto da Torre, da sua Torre,
negra e de mil anos, mais negra e como mais carregada de anos contra a macia claridade da lua
nova que subia.
EÇA DE QUEIRÓS, A ilustre casa de Ramires, ed. Elena Losada Soler, Lisboa, IN-CM, 1999 [1900].
1. Tendo em conta as informações dadas no excerto, indique o motivo por que José Casco estava
profundamente indignado com Gonçalo Mendes Ramires.
3. Explicite as características psicológicas que Gonçalo Mendes Ramires evidencia neste excerto.
Gramática
1. Faça corresponder cada uma das orações da coluna A à sua classificação apresentada na coluna B.
A B