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O OUTONO DA IDADE MEDIA ESTUDO SOBRE AS FORMAS DE VIDA E DE PENSAMENTO DOS SECULOS XIV E XV NA FRANGA E NOS PAISES BAIXOS JOHAN HUIZINGA ENSAIOS Peter Burke e Anton van der Lem ENTREVISTA Jacques Le Goff IcoNOcRArIA Anton van derLem TRADUCAO Francis Petra Janssen REVISAO TECNICA Tereza Aline Pereira de Queiroz A veeméncia da vida Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tuo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nitidos que os de hoje. Entre a dor ea alegria, o infortinio ea felicidade, a distancia parecia maior do que para nds; tudo que o homem vivia ainda possuia aque le teor imediato ¢ absoluto que no mundo de hoje s6 se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enfiticas ¢ expressivas, realcado pela sole- nidade de um estilo de vida rigido e perene. Os grandes fatos da vida — © nascimento, 0 matriménio, a morte - eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divino. Mas também os meno- res - uma viagem, uma tarefa, uma visita — eram acompanhados de mil béngios, ceriménias, ditos e convencdes. Contra as calamidades ¢ as privacdes, havia menos lenitivos do que agora: e elas eram mais opressivas e cruéis. O contraste entre a doenca e a satide er: do inverno eram males mais pungentes. Honra ¢ riqueza eram des- maior; 0 frio severo ¢ a escuridao medonha frutadas com mais intensidade, mais avidez, pois destacavam-se da pobreza e da degradacao circundantes com maior veeméncia do que hoje, Um manto de pele, um fogo brilhante na lareira, bebidas, pilhéria e uma cama macia ainda conservavam aquele alto apreco pelos prazeres da vida, que o romance inglés soube perpetuar vivi- damente. E todos os elementos da vida mostravam-se abertamente, com alarde e crueldade. Os leprosos chacoalhavam suas matracas € saiam em procissdo, os mendigos lamuriavam-se nas igrejas ¢ expunham suas deformidades, Cada estamento, cada ordem, cada oficio podia ser reconhecido por seus trajes. Os grandes senhores, venerados e invejados, jamais se deslocavam sem um aparato pom- poso de armas ¢ librés. Julgamentos, transacdes comercia mentos ¢ enterros, tudo se anunciava sonoramente com procissées, Casa gritos, lamentos e miisica. O amante levava o simbolo de sua dama; os membros de uma irmandade, seu emblema; um vassalo, as cores ¢ os brasdes de seu senhor. Também entre a cidade ¢ o campo imperava um nitido contraste, A cidade nao se estendia, A maneira das nossas, em subtirbios des- mazelados de fabricas enfadonhas ¢ casas humildes. Ao contrério, fechava-se em seus muros, era compacta e ericada com numerosas torres. [1.1] E por mais altas ou macicas que fossem as casas de pedra dos nobres ou dos comerciantes, 0 vulto altaneiro das igrejas domi- nava a silhueta da cidade. 1.2] Assim como 0 contraste entre 0 verdo e 0 inverno era mais severo do que para nés, também o era o contraste entre a luz ¢ a escuri- dio, 0 siléncio eo ruido. A cidade moderna praticamente desconhece a escuridao ¢ 0 siléncio profundos, assim como o efeito de um lume solitario ou de uma voz distante. O contraste continuo e as formas simbdlicas com as quais tudo se imprimia na alma conferiam a vida cotidiana uma excitacao ¢ um poder de stigestdo que se manifestavam nos animos instveis de emo- tividade tosca, crueldade extrema e ternura intima entre os quais se movia a vida urbana medieval. Havia um unico ¢ inconfundivel som que vencia sempre o clamor da vida agitada e que, por mais difuso que sasse, por um momento clevava tudo a uma esfera de ordem: o dobrar dos sinos. Na vida coti- diana, os sinos eram como espiritos protetores cujas vozes familiares ora MENCIA DA VIDA anunciavam 0 luto, a alegria, a paz ou a desordem; ora conclamavam, ora advertiam. Litam conhecidos por apelidos: a gorda Jacqueline, 0 pontual Rolando, Conhecia-se o significado dos toques. Ninguém era indiferente a esses sons, a despeito de seu uso exces- sivo, Durante o escandaloso duelo entre dois cida- daos de Valenciennes que, no ano de 1455, deixou em estado de alerta toda a cidade € toda a corte da Borgonha, o sino maior ressoou “horrorosament lluquelte fait hideux & oyr| durante toda a luta, como diz Chastellain.’ Nas torres da igreja de Nossa Senhora de Antuérpia ainda se encontra o velho sino de alarme de 1316, chamado Orida, isto & horrida, “horrivel”? [1.3] Diziasse *sonner Veffray” ou “faire leffroy” a propésito dos dobres de emergéncia;’ a palavra, que significava originalmente “discérdia” exfredius—, passou a desig- nar oantincio desse tipo de circunstancia por meio de sinos e, finalmen- te, a emergencia e o terror, Com que espanto formidavel nao se ouviam inos da manhé a noite, todas as igrejas e mosteiros de Paris soando seus jo de um papa que por fim ao Cisma ou um tratado de paz entre a Borgonha e os Armagnac. e ainda a noite inteira, para anunciar a ele Também as procisso 's exerciam um efeito profundamente como- veclor. Fm tempos de medo, ¢ esses eram frequentes, havia procisses didrias, semana apés semana. Em 1412, quando a disputa fatal entre as casas de Orléans e Borgonha finalmente conduziu a uma guerra civil aberta e 0 rei Carlos vi empunhou a auriflama para lutar ao lado de Jodo sem Medo contra os traidores Armagnac aliados a Inglaterra, orde- naram-se procissdes diarias por toda a Paris enquanto 0 rei estivesse em territério inimigo. [1.4] Duraram do final de maio até julho, a cargo de diferentes grupos, ordens, guildas, a cada vez por mais ras, com mais reliquias: “as procissdes mais piedosas jamais vistas na histéria” [les plus piteuses processions qui oncques eussent été veues de aage de homme, Todos caminhavam, os pés descalcos ¢ 0 estomago vazio, os membros do Parlamento ao lado de pobres burgueses; quem podia levava uma vela ou uma tocha; ¢ sempre havia muitas criangas pequenas. Também. das aldeias ao redor de Paris vinham camponeses pobres, caminhando grandes distancias a pé. Todos participavam ou assistiam “aos prantos, com muitas légrimas, em grande devocao” [en grant pleur, en grans lermes, ent grant devocion]. Quase sempre chovia torrencialmente, 13 Osinod i TONAL Havia ainda as entradas triunfais dos principes, preparadas com toda a maestria alusiva de que se dispunha. E, numa sequéncia inin- terrupta, as execugies, O fascinio cruel e a compaixio grosseira dian- te do patfbulo eram um elemento de peso na dieta espiritual do povo. [1.5] Era um espetdculo da moral, Para crimes hediondos, a justia inventara punicdes horriveis; em Bruxelas, um jovem incendiario e assassino foi acorrentado a uma estaca giratéria no meio de um ciz- culo de feixes de madeira em brasa, Com palavras comoventes, ele se apresentou como exemplo ao povo € tanto “enterneceu os coracdes, que todos se desfizeram em lagrimas de compaixdo, e seu fim foi ¢ fit attendrir les coeurs que tout le monde fondoit en larmes de compassion, et fus sa fin considerado 0 mais belo que jamais se vira” let teller recommandée la plus belle que l'on avait oncques vuel. Em 1411, 0 senhor Mansart du Bois, um armagnac, decapitado em Paris durante 0 regi- me de terror dos duques da Borgonha, nao somente perdoou de bom grado o carrasco (como este Ihe rogara, seguindo a tradicio), como ainda pediu que The desse um beijo: “havia uma multidao, € qua- se todos choravam lagrimas calidas” [joison de peuple y avoit, qui quasi tous ploroient & chaudes larmes).” Muitas vezes, as vitimas eram grandes senhores; entao 0 povo se deliciava ao testemuntar o rigor da justica ea severa adverténcia quanto A inconstincia das grandezas terrenas, 14» AVEEMENCIA DA VIDA mais vividamente do que em qualquer pintura ou danca macabra. As autoridades cuidavam para que nada faltasse ao efeito do espetaculo: os senhores faziam seu triste desfile levando os simbolos de sua grandeza. Jean de Montaigu, grand maitre @hotel do rei, vitima do édio de Joao sem Medo, dirigit-se ao cadafalso no alto de uma carroga, com dois arautos a frente; vestia seus trajes de gala, gorro, capa, calcas metade brancas, metade vermelhas ¢ esporas de ouro nos pés: ¢, ainda com as esporas de ouro, pendurou-se o corpo decapitado no patibulo. 0 abastado conego Nicolas d’Orgemont, viti- ma da vinganga do partido Armagnac em 1416, é conduzido por toda Paris em uma carrosa de lixo, trajando um gorro e um grande manto violeta, para assistir a decapitacao de dois companheiros, antes de ser ele mesmo condenado priso perpétua, a base de “pio da dor ¢ agua da angustia” [au pain de doleur et d eaue d’angoisse}. A cabeca de mestre Oudart de Bussy, que se negara a assumir um lugar no Parlamento, foi exumada a mando de Luis xt ¢ exposta na praga de Hesdin com um. gorro escarlate forrado de pele, “a maneira dos conselheiros do Parla- mento” [selon la mode des conselleilers de parlament), ¢ alguns versos expli- cativos. O proprio rei escreve sobre o caso com humor implacavel.* Mais raros que procissdes e execucdes eram os sermées dos prega- dores itinerantes que vinham vez por outra chocar 0 povo com suas palavras. Nos, leitores de jornal, mal conseguimos imaginar o efeeito violento da palavra sobre almas risticas e ignorantes. Em 1429, o frei Ricardo, pregador popular que teve a honra de servir como confessor de Joana d’Arc, pregou em Paris por dez dias consecutivos. Comegava s cinco horas da manhé e terminava entre dez e onze, quase sempre no Cemitério dos Inocentes - em cujas criptas foi pintado um mural com a cena famosa de Danga Macabra -, de costas para os ossudrio: ao redor, nas arcadas, empilhavam-se crinios a vista de todos. Ao iar que seu décimo sermao se \cdo para pregar, “os grandes e os humildes choraram to penosa e sofridamente como se tivessem presenciado o enterro ia 0 tiltimo, uma vez que expira- ra sua auto: de seus entes mais préximos, e ele também chorau’ [les gens grans et petitz plouroiont si piteusement et si fondement, commes s'ilz veissent porter en terre leurs meilleurs amis, et lui aussi|. Chegada a hora da partida de Paris, 0 povo imaginou que o frei ainda faria um sermao dominical us Mi em Saint Denis; em grandes hordas - talvez seis mil pessoas, segun- do o Burgués de Paris - deixaram a cidade na noite de sdbado para garantir um bom lugar e passaram a noite ao relento” ‘Também os sermées do frade franciscano Antoine Fradin foram proibidos em Paris, uma vez que ele se pronunciara drasticamente contra 0 mau governo. Por isso mesmo, era querido pelo povo. que fez vigilia noite e dia no mosteito dos Cordeliers; as mulheres ficaram de guarda, armadas de freixos e pedras. Todos riam da proclama que proibia a vigilia: o rei nao sabe de nada! Quando Fradin, finalmente exilado, teve de deixar Paris, 0 povo o acompanhou até a saida da gritando e suspirando por sua partida” ferians er soupirans moult fort son departement|.” Quando o santo dominicano Vicente Ferrer vem pregar, 0 povo. cidade, os magistrados, 0 clero - dos bispos aos prelados ~ recebem-no com cAnticos de louvor, Ele viaja com um séquito numeroso que todas as noites, depois que o sol se poe, circula em procissio com cantos ¢ flagelacdes. Em cada cidade, novos adeptos juntam-se ao grupo. Ferrer nomeava homens irrepreensiveis como intendentes ¢ assim fazia organizar cuidadosamente os alojamentos e a alimentacao do séquito, Lim grande niimero de padres de diferentes ordens viaja com cle, sempre 0 auxiliando na tarefa de ouvir as confissoes e celebrar a missa, Alguns notérios também o acompanham, para intervir € for- malizar 0 mais répido possivel a conciliacdo de disputas que o santo pregador promove em toda parte, 0 magistrado dla cidade espanhola de Orihuela declara em carta ao bispo de Murcia que teve de efetuar 123 reconciliagdes, das quais 67 eram casos de assassinato." Onde Ferrer prega, é preciso uma estrutura de madeira para proteger a ele ea seus seguidores da pressdio dos muitos que gostariam de beijar suas maos ou suas vestes. A rotina de trabalho ¢ interrompida quando cle faz seus sermées. Era raro que nao levasse 0s ouvintes ao pranto; e, quando falava do Juizo Final, das penas infernais ou da Paixao de Cristo, tanto Ferrer como os ouvintes choravam tao copiosamente que ele era obrigado a se calar por um bom tempo, até que 0 pram to cessasse. Malfeitores se jogavam. ao chao perante os presentes € confessavam em Jagrimas seus grandes pecados.” Em 1485. quando © famoso Olivier Maillard fez os sermées da Quaresma em Orléans, tanta gente subiu aos telhados das casas que foram necessarios 64 dias para os reparos."Temos aqui o mesmo carater dos revivals anglo~ -americanos ¢ do Exército de Salvagio, mas de forma desmesurada € 5 + A VEEMENCIA DA VIDA muito mais publica. Nao é 0 caso de pensar que, na descrigao do impacto que provocava Ferrer, seu biégrafo tenha introduzido algum exagero piedo- 50; 0 s6brio e seco Monstrelet [1.6] retrata quase da mesma maneira o efeito que, em 1428, um certo frei Tomas, fazendo-se passar por carmelita e mais, tarde desmascarado como impostor, causou com seus sermdes no norte da Franga e em Flandres. Também ele foi bem recebido pelos magistrados, enquanto os nobres seguravam as rédeas de sua mula; também foram muitos — mesmo alguns senhores cujo nome Monstrelet menciona - os que, a fim de segui-lo aonde fosse, deixavam para tras, casa e familia, Os burgueses mais distintos eleva- ram para ele um trono e 0 adornaram com os tape- tes mais suntuosos que podiam pagar. ‘Além da Paixdo e do Juizo Final, era contra o luxo e a vaidade que 08 pregadores populares mais falavam as pessoas comuns. 0 povo, diz Monstrelet, era grato ¢ devotado a frei Tomas por sua recusa da pompa e da ostentacao, e particularmente pela censura que lancava sobre a nobreza e o clero. Ele costumava incitar os meninos (com pro- messas de indulgéncia, alega Monstreiet) a provocar as damas que se arriscavam a se misturar a seu puiblico com arranjos de cabeca altos e pontudos, gritando: “au htennin, au hennin!”.* As mulheres perderam a coragem de usar hermins € andavam de touca a maneira dos beguinos. “Mas, seguindo 0 exemplo do caracol”, diz o cronista cheio de simpatia, “que recolhe as antenas quando alguém se aproxima e depois, quando nao ouve mais nada, as poe para fora, assim também fizeram estas damas. Pois to logo o pregador deixou o pais, tornaram as antigas maneiras e esqueceram a doutrinacdo, ¢ aos poucos retomaram suas velhas pompas, to grandiosamente ou ainda mais do que antes” [Mais 4 example du lymecon lequel quand on passe prés de luy retrait ses cornes par dedens et quand il ne ot plus riens les reboute dehors, ainsy firent yeelles. Car en «assez brief terme aprés que ledit prescheur se fust départy du pays, elles mesmes recomencérent comme devant et oubliérent sa doctrine, et reprinrent petit & petit leur viel estat, tel vu plus grant qu’elles avoient accoustumé de porter." Tanto frei Ricardo como frei Thomas acendiam a fogueira das vai- dades, assim como aconteceria em Forenca, sessenta anos depois, por vontade de Savonarola, em proporcées bem maiores e com enorme 1.6 Ccronista de Mor prejuizo para a arte. Em Paris e no Artois, em 1428 € 1429, queimavam- -se tio somente cartas, tabuleiros de jogos, dados, enfeites e joias, que homens e mulheres traziam de livre e espontanea vontade. Na Franca na Italia do século xv, essas piras eram um elemento frequente nos tumultos causados pelos sermées de pregadores."* Eram a forma ceri- monial em que se dava vazio ao arrependimento contrito pelas vaida- des e prazeres, eram a estilizagio de um sentimento profundo sob a forma de um ato social e solene, nesses tempos em que tudo tende 4 estilizacdo formal. Devemos tentar imaginar essa sensibilidade, essa propensao as Jagrimas e as reviravoltas espirituais, se quisermos captar 0 colorido € 0 vigor da vida de entao. Cenas de luto politico pareciam responder a verdadeiras calami- dades. No enterro de Carlos vii, 0 povo fica fora de si tao logo vé 0 féretro: todos os dignatdrios da corte “vestidos de luto fechado, que dava muita pena de ver; e a dor e a grande tristeza que se viam neles pela morte de seu senhor fizeram toda a cidade prantear e lamentar” |vestus de dueil angoisseux, lesquelz il faisoit moult piteux veoir; et de la grant tristesse et courroux qu'on leur veoit porter pour la mort de leurdit maistre, furent grant pleurs et lamentacions faictes parmy toute ladicte ville). Seis pajens do rei montavam cavalos cobertos de veludo negro, e “sabe Deus o penoso e piedoso luto que guardavam por seu senhor!” [et Diew de tao triste, um dos rapazes nao comia ou bebia havia quatro dias, comen- tava 0 povo enternecido.” Mas ndo s6 um grande luto, uma pregagio vigorosa ou os mistérios da fé levavam 0 povo ao pranto, Também nas solenidades profanas vertiamse torrentes de lagrimas. Um enviado do rei da Franga em visita a Filipe, o Bom, irrompe em ligrimas repetidas vezes em meio a seu pronunciamento, Quando o jovem Joao de Coimbra se despede da corte da Borgonha, todos caem no pranto, como nas boas-vindas ao delfim ou no encontro entre os reis da Inglaterra e da Franga em Ardres. Todos viram como Luis Xt chorou ao entrar em Arras; ¢ durante sua estada, ainda como delfim, na corte da Borgonha, Chas- tellain o descreve repetidamente aos solucos e ligrimas."* Certamen- te hd exagero nessas descrigdes; deve-se comparilas a alguma coisa como “todos ficaram de olhos marejados” numa noticia de jornal. Em sua descri¢ao do Congresso de Paz de Arras, em 1435, Jean Ger- main diz que, durante os discursos dos enviados, as pessoas caiam scet le doloreux et piteux dueil qu'ilz faisoient pour leur dit maistre! IB + AVEEMENCIA DA VIDA no chao, sem palavras do e chorando.” As coisas com certeza nao uspirando, solugan- devem ter sido assim, mas desse modo o bis- po de Chalons pensava que deviam ser: no exagero viase um fundo de verdade. Vale aqui o que vale para as torrentes de lagrimas sentimentais do século xvirt. O pranto era algo edificante e belo. De resto, quem de nés desconhece a comogao que um cortejo pode causar, por mais que o principe em questao nos deixe de todo indiferentes? Mas outrora uma tal emogao conjugava-se ao sentimento quase religioso de veneraciio pelo aparato e pela grandeza, provocando lagrimas sinceras. Um exemplo de outro dominio que nao o das ligrimas, a saber, 0 17 ‘abuleiro de xs0r da irascibilidade, talvez torne mais claro o contraste entre a sensibi- ° lidade do século xv e a do nosso tempo. E dificil imaginar um jogo 120 pacifico e calmo quanto o xadrez, [1.7] Mas De la Marche diz que as rixas sao comuns durante as partidas e que até “o mais calmo perde a paciéncia” [et que le plus saige y pert patience]. Uma querela entre filhos da casa real a propésito de uma partida de xadrez ainda parecia tio natural ao século xv quanto o fora nas cangées de gesta, A vida cotidiana ainda reservava um espaco ilimitado para a paixao ardente e a fantasia infantil, Desconfiando da veracidade das cronicas da época, 0 medievalista de hoje prefere se basear ao maximo em fon- tes oficiais e, com isso, corre as vezes 0 risco de cometer um erro grave Os documentos tém pouco a dizer sobre o colorido que tanto distingue aqueles tempos dos nossos, Les nos fazem esquecer o pathos vigoroso da vida medieval. Das paixdes que colorem a vida medieval, os docu- mentos em geral s6 conhecem duas: a cupidez.e a violéncia, Quem nao se surpreende diante da intensidade e da frequéncia com que a cupidez, as querelas, as vingancas figuram nas fontes juridicas da época! Esses tacos de comportamento so se tornam compreensiveis para nés em vista do tom geral de paixao que colore todos os dominios da vida. f por isso que os cronistas, por superficiais, vagos ou erréneos que sejam, permanecem indispensaveis para uma viséo clara da época. A vida ainda conservava o colorido das fibulas em varios de seus aspectos. Se os cronistas da corte, homens de educagao ¢ respeito, que conheciam seus principes de perto, nio eram capazes de ver e descrever as pessoas ilustres senao de forma arcaica e hieratica, qual nao tera sido o esplendor miigico da realeza aos olhos do ingénuo imaginsrio popular! Veja-se um exemplo desse colorido na obra de Chastellain. 0 jovem Carlos, Temerario, ainda conde de Charolais, chega de Sluis a Gorkum e fica sabendo que seu pai, 0 duque, retirou- Ihe a pensao e os beneficios. [1.8] Chas- tellain descreve entao como © conde man. da chamar todo 0 seu séquito, inclusive os ajudantes de cozinha, e Ihes conta st as desgragas num discurso comovente, em que manifesta respeito pelo pai equivo- cado, preocupagio com o bem-estar dos seus ¢ amor por todos eles. O conde insta aqueles que t¢m meios proprios a espe- rar com ele por tima fortuna melhor; aos mais pobres, diz que esto livres para par- tir; caso venham a ouvir que a sorte do conde se reverteu, pede que “voltai, tereis vosso lugar de volta e sereis bem-vindos e eut vos recom. pensarei a paci¢ncia que tivestes comigo". “Ouvitese entao o clamor de vozes ¢ lLigrimas, ¢ todos disseram de comum acordo: “Todos nés, todos nés, senhor, viveremos € morreremos com 0 senor" [Lors oyt on -l'on voix Tever et larmes espandre et clumeur ruer par commun accord: tous, nous tous, monseigneur, vivrons uyecques vous et mourrons"]. Profun- damente comovido, Carlos aceita sua lealdade: “Assim sendo, que vivam e softam; ¢ eu sofrerei por todos, antes que sintam falta de algo” [Or vivez doncques et souffrez; et moy je souffreray pour vous, premier que vous ayez faute|. Os nobres se adiantam e Ihe oferecem todas as suas posses, “dizendo um, ‘Tenho mil’, e 0 outro, ‘Tenho dez mil’, ¢ um terceiro, futuro” [disant Tun: jay mille, autre: dix mille, autre: jay cecy, ja “Lenho isto ou aquilo para vos dar e para esperar por vosso cela ‘pour mettre pour vous et pour attendre tout vostre advenir|, li assim tudo continuou como sempre, ¢ nao faltou sequer um frango na cozinha.” O aformoseamento da cena é obviamente de Chastellain. Nao sabe- mos até que ponto o relato estiliza o que realmente aconteceu. O que 20 + AVEEMENCIA DA VIDA importa é que ele vé o principe nas formas simples de uma balada popular; 0 acontecimento, narrado com sobriedade épica, ¢ integral- mente dominado pela motivagio mais primitiva de fidelidade mutua, A essa época, os mecanismos de governo ¢ administracio do Lista- do jé haviam assumido formas complexas, mas no espirito popular a politica ainda se materializa numas poucas figuras, simples e fixas. 0 imaginario politico vigente era o da cancio popular ¢ do romance de cavalaria. Os reis da época sao rotulados de acordo com um certo ntimero de tipos, cada qual mais ou menos correspondente a um motivo das cang6es oui das historias de aventura: o principe nobre e justo, o principe enganado por conselhos maldosos, o principe vin gador da honra de sua linhagem, o principe amparado no inforti- nio pela fidelidade de seus servos. Os stiditos do fim da Idade Média pagando impostos elevados mas sem direito a participar nas decisdes sobre seu uso, desconfiam sempre que seu dinheiro seré desperdi cado e nio servird ao bem comum da nacio. Essa desconfianca se icadas: 0 rei esti cercado de conselheiros ambiciosos, 0 luxo ¢ a opuléncia da corte real so a causa dos males expressa em imagens simpli da nacao. Desse modo, as questdes politicas ganham ares de fabula aos olhos do povo. Filipe, 0 Bom, sabia em que lingua falar ao povo. Em 1456, durante as festividades que promoveu em Haia, mandou expor num quarto ao lado do Salo dos Cavaleiros um requintado servico de louga no valor de 30 mil marcos de prata, a fim de impres- sionar os holandeses e frisios que talvez suspeitassem de sua falta de fundos para conquistar o bispado de Utrecht. Todos so convidados a 1.9] Além disso, foram trazidos de Lille dois ba Quem quisesse podia tentar levanté- admirar. de dinhei- r9. com 200 mil ledes de ouro. los ~ seria em vao. Pode-se imaginar uma mistura mais pedagégica de contas piiblicas com diversio de quermesse? A vida e os negécios dos principes ainda dispunham de um elemento fantastico que faz lembrar o calif das Mil ¢ uma noites. Por vezes, os herdis se movem em meio a negociagées politicas frias e calculis- tas com um impeto imprudente e um capricho pessoal que poem a perder sua vida e seus esforgos, Eduardo 111 arrisca a si proprio, ao principe de Gales e aos interesses de sua nacao para atacar uma frota mercante espanhola, como retaliacao a um ato de pirataria mariti- ma sem muita importincia.’ Filipe, o Bom, se empenha em ver um de seus arqueiros casado com a filha de um rico cervejeiro de Lille. Quando o pai nao consente e leva 0 caso ao Parlamento de Paris, 0 duque, tomado de ira, interrompe sem mais nem menos os traba- Thos que o retinham na Holanda e empreende uma perigosa viagem maritima de Rotterdam a Sluis, pouco antes da Pascoa, para que sta vontade fosse satisfeita** Numa outra ocasiao, furioso por causa de uma briga com seu filho, saiu cavalgando de Bruxelas como um meni no fugindo da escola € acabou passando a noite na floresta. Quando finalmente retorna, cabe ao cavaleiro Philippe Pot a perigosa tarefa de fazé-lo retornar ao juizo. O habil cortesio encontra as palavras certas: “Bom dia, meu senhor, bom dia. 0 que ocorre? O senhor € agora 0 rei Artur ou o cavaleiro Lancelote?™ [Bonjour monseigneur, bonjour, qu'est cecy? Faites-vous du roy Artus matntenant ou de messire Lancelot?" Quando os médicos prescrevem ao mesmo nobre que raspe a cabe- a, 0 duque, maneira de um califa, obriga todos os nobres a fazerem ‘o mesmo ¢ ordena a Peter van Hagenbach que corte os cabelos dos refratdrios.* Q jovem rei de Franga, Carlos v1, sai disfarcado com um amigo, ambos montados num s6 cavalo, mistura-se a multidao para a ‘stir 4 chegada de sua noiva, Isabel da Baviera, e acaba espancado pelos guardas.”” Um poeta do século xv censura os principes que elevam o bobo da corte ou o menestrel a condicdo de conselheiro ou ministro, como foi o caso de Coquinet, bufio da corte da Borgonha.* A politica ainda nao est4 completamente encerrada nos limites da burocracia e do protocolo: num piscar de olhos, 0 principe pode se livrar desses limites e tomar outro rumo. Assim, os monarcas do século Xv vao repetidamente buscar conselho em assuntos de gover- no junto a visionarios ascéticos e pregadores populares. Dionisio Cartuxo ou Vicente Ferrer faziam as vezes de conselheiros politicos: o espalhatatoso Olivier Maillard, pregador frances de Bruges, esteve envolvido nas negociacdes mais sigilosas entre cortes reais.” Assim sendo, um elemento de tensao religiosa mantém-se vivo nas mais altas esferas da politica. No final do século x1V € no inicio do século xv, o grande teatro dos principes parecia tomado por uma atmosfera sanguinolenta ¢ roma- nesca, cheia de quedas repentinas do alto da majestade e da gléria. Em setembro de 1399, 0 Parlamento inglés se reuniu em Westminster para ouvir que o rei Ricardo 11, derrotado e aprisionado por seu sobrinho de Lancaster, renuinciara A coroa; nesse mesmo més € ano, os eleitores reunidos em Mainz depuseram o rei Vencesiau de Luxemburgo - tio instavel de espfrito, to incapaz. de governar ¢ tao excéntrico de cardter 22 + AVEEMENCIA DA VIDA quanto seu cunhado inglés, mas com um fim menos trdgico. De fato, Venceslau viveu muitos anos ainda como rei da Boémia, enquanto que queda de Ricardo seguiu-se a sua misteriosa morte na prisio, o que fez pensar no assassinato de seu bisavd Eduardo 11, setenta anos antes. Accoroa nao era, afinal, uma possessio carregada de perigos? No tercei- To grande reino da cristandade, um louco, Carlos vr, ocupa 0 trono, ¢ © pais logo sera partido ao meio numa selvagem disputa entre faccdes. Em 1407, a rivalidade entre as casas de Orléans e Borgonha irrompeu em luta aberta: Luis de Orléans, irmio do rei, € morto por mercendrios contratados por seu primo Jodo sem Medo, duque da Borgonha. [10] ucXbourongcawuc dane ronefapnie Na ina prc lonquelige fd mpiiort mpult affedeccufaria SUC WHOA TANIA AlatvaTInon Dwyane nrettccven tyouraucnne mane ar ant anal fance one mictucfanenias fine wouchoseural woul Ww Mictéhns simnonfiwaw Doze anos mais tarde, a vinganga: em 1419, Joao sem Medo € assassina- do traicociramente durante um encontro solene na ponte de Montereatu {1111 Os dois assassinatos reais, com sua infindavel sequela de vingan- cas e combates, conferiram a um século de histéria francesa um tom geral de édio sombrio. 0 espfrito popular vé os desgovernos da Franca a luz desse grande motivo dramatico; nao poderia haver outras causas senao as de ordem pessoal e passional Nao bastasse isso, o perigo turco se fazia cada vez mais proximo e ameagador. Em 1396, eles haviam destruido na batalha de Nicopolis 0 maravilhoso exército de cavaleiros franceses que avancara audacio- samente sob 0 comando do mesmo Joao da Borgonha, que era entio conde de Nevers. Recorde-se, ainda, que a cristandade andava dividi- da pelo Cisma, que a essa altura jd durava um quarto de século: dois papas, cada qual apoiado fervorosamente por uma fragao dos paises do Ocidente. Mais tarde, em 1409, quando o concilio de Pisa falhou na tentativa de restituir unidade a Igreja, seriam trés a lutar pelo poder papal. “Le Pappe de la Lune”: assim chamavam o obstinado aragonés Pedro de la Luna, que sob o nome de Bento x111 vivia em Avignon: ‘como nao tera soado delirante essa alcunha, “Le Pappe de la Lune”, aos ouvidos do povo simples! Durante aqueles séculos, vagavam pelas cortes principescas mui tos reis destronados, na maioria das vezes de magros recursos, mas cheios de planos grandiosos, cercados pelo brilho do Oriente mara- vilhoso de onde vinham ~ Arménia, Chipre é logo Constantinopla -, cada qual encarnando um personagem da roda da Fortuna, que deita- 0 per- tencia a esse grupo, embora fosse também ele um rei sem coroa, Esti va por terra os reis, os cetros € os tronos. [1.12] René d’Anjou n va em posicao segura, com suas preciosas possessdes em Anjou e na Provenca. E, todavia, ninguém personifica a incerteza ¢ a inconstan- cia do destino real melhor que esse principe da famila real francesa, que sempre deixou passar as melhores oportunidades, que ambicio- nou as coroas da Hungria, da Sicilia e de Jerusalém e que nao obteve nada senao derrotas, fugas perigosas e longas prisdes. 0 rei-poeta sem trono, que se divertia com poemas pastorais ¢ miniaturas, devia ser de uma frivolidade profunda para que o destino nao a tenha curado, Viu morter quase todos os fillios, ¢ filha que Ihe restou teve um des- tino que superou as trevas de sua propria fortuna, Passional, cheia de espirito e de ambicio, Margarida de Anjou casou-se aos dezesseis anos de idade com o rei da Inglaterra, Henrique v1 ~ mentalmente, um 35 ica de Monstrel Bax final incapaz. A corte inglesa era um inferno de inimizades. Em nenhum lugar como na Inglaterra a vida politica era to eivada de suspeitas contra a familia real, acusagdes contra os poderosos da corte, assassi- natos secretos ou pablicos ~ perpetrados como medida de seguranca ou por mera intriga, Havia muito tempo Margarida vivia nesse clima de medo ¢ perseguicao, quando a querela entre York e Lancaster, a.casa de seu marido, irrompeu em luta aberta e sangrenta. Margarida perdeu a coroa e as posses. Os vaivéns da Guerra das Rosas (1445-85) fizeram-na conhecer o perigo ea pentiria, Finalmente a salvo na cor- te da Borgonha, contou em primeira mao a Chastellain, cronista da corte, sua historia de adversidades e peregrinacdes: como ela e 0 filhinho tiveram de se entregar 4 piedade de um ladrao; como ela, querendo fazer uma oferenda numa missa, tivera de pedir uma moe daa um arqueiro escocés, “que, meio que a contragosto, tirou um ceitil da bolsa eo emprestou a ela” [qui demy d dur et d regret luy tira tun gros d'Escosse de sa bourse et We Tuy presta}. © bom cronista, comovido, dedicou-the Temple de Bocace, “um pequeno tratada sobre a fortuna, sua inconstancia e sua natureza enganosa” [un petit traité de fortune, prenant pied sur son inconstance et déceveuse nature]; [123] seguindo as formulas da época, quis dar dnimo 4 filha do rei fazendo desfilar uma sombria galeria de infornimios reais. Nenhum dos dois tinha como saber que o pior ainda estava por vir: em Tewkesbury, no ano de 1471, 26 | AVEEMENCIA DA VIDA Ae pfenfenent vitugure tononptianee (clon She fake Jefinay Gocnce var many tore Reonlolation’. ala oyne tannery Alle avant toy Raa ens ale: 9 Ieee naa s Ducsher fev conrplaasfrcaatts sratyic syst Hare pare 08 Lancaster foram derrotados definitivamente: o tnico filho de Mar- garida foi morto na batalha ow assassinado logo depois, seu marido foi morto em segredo; ela mesma passaria cinco anos na Torre de Londres antes de ser vendida por Eduardo v1 a Luis x1, de quem se viu devedora e a quem teve de deixar toda a heranca do pai, o rei René. Se até a prole dos reis softia tal sorte, que mais poderia fazer o Bur- gués de Paris senao acreditar nas historias de coroas perdidas ¢ reis exilados com que os vagabundos por vezes buscavam atrair atengio e caridade? Em 1427 apareceu em Paris uma tropa de ciganos se fingin: do de penitentes, “um duque ¢ um conde e mais dez homens, todos a cavalo” [ung duc et ung conte et dix hommes tous & cheval]. Os demais, cerca tag Margarida de Anjoue de 120 pessoas, tiveram de ficar do lado de fora. Diziam vir do Egito © que o papa thes ordenara uma peniténcia por terem desertado a fé ctista: deviam errar pelo mundo durante sete anos, sem poder dormir em nenhuma cama. No comeco, eram 1200 pessoas, mas no cami nho tinham visto morrer seu rei, sua rainha ¢ muitos mais. Como tinico alivio, o papa determinara que todo bispo e abade thes desse dez libras tournois. Os parisienses vinham em grande mimero olhar aquele povo estranho e deixavam que suas maos fossem lidas pelas mulheres, que faziam o dinheito mudar de bolso, “por arte magica ou de outro modo” [par art magicque ou autrement).” Avic xdo que no era meramente fruto do imaginario popular. O homem ja dos principes acontecia numa atmosfera de aventura ¢ pat moderno mal consegue imaginar a que ponto o animo medieval podia ser desenfreado e inflamavel. Quando sé se consultam docu- mentos oficiais, tidos corretamente como a fonte mais confiavel de dados histéricos, pode-se bem chegar a formar uma imagem da his- t6ria medieval que nao difere essencialmente de uma descricao da vida dos ministros e embaixadores do século xv1tt. Mas falta a essa imagem um elemento importante: a paixdo onipresente que impe- Je 08 povos ¢ os principes. Certamente, ainda hoje hé um elemento passional na politica, que no entanto, excecdo feita aos momentos de revolugao ¢ guerra civil, encontra mais freios e impedimentos nos mecanismos complexos da vida social. No século xv, ele ainda afe- ta imediatamente 0 ato politico, que volta ¢ meia escapa ao céleulo objetivo. Quando a paixio ¢ o poder se encontram, como no caso dos principes, entdo tudo ganha intensidade redobrada, f Chastellain que 0 diz sem rodeios: nao € de surpreender que os principes vivam em inimizade, “porque os principes sao homens, seus negécios sao impor- tantes e incisivos, suas naturezas sao sujeitas a paixdes como o ddioe a inveja, que moram em seus coracées, devido ao orgulho em reinar” puisque les princes sont hommes, et leurs affaires sont haulx et agus, et leurs natures sont subgettes d passions maintes comme d haine et envie, et sont leurs coeurs vray habitacle d'iceltes d cause de leur gloire en régner|.* Nao sera isso 0 que Bureishardt chamou “das Pathos der Herrscha)t” [o pathos do poder}? Quem quiser escrever a histéria da casa real da Borgonha teri de fazer soar, como tom fundamental do relato, o motivo da vinganca, negro como 0 cadafalso, e que confere a todo ato, na corte como na batalha, o gosto amargo da vinganga sombria ¢ do orgulho ferido. Seria ingénuo querer voltar a visao simplista que o préprio século xv 28 » AVEEMENCIA DA VIDA tinha da historia. Nao seria o caso de reduzir a rivalidade secular entre a Franca e os Habsburgo a disputa entre Orléans e Borgonha, 0s dois ramos da casa dle Valois. Ainda assim, a par da pesquisa sobre as causas politicas ¢ econdmicas, deve-se ter sempre em conta que, para espectadores ¢ protagonistas, a vinganca de sangue era o motivo crucial das ages ¢ dos destinos dos principes e dos paises. Filipe, 0 Bom, [1.14] é par eles sobretudo o vingador, “aquele que, para vingar nos” © ultraje feito ao duque Jodo, sustentou uma guerra de dezesse uy qui pour vengier Voutraige fait sur la personne duu duc Jehan soustint 2 gherre seize ans)" Filipe impusera-se um dever sagrado: “buscar a vinganga do morto enquanto Deus Ihe permitisse, e nisso arriscar corpo ¢ alma, riqueza e poder, julgando mais santo e agradivel a Deus persegui- do que abandoné-la” en toute criminelle et mortelle aigreu ; il tireroit dla vengeance du mort, si avant que Dieu luy vouldroit permettre; et y mettroit corps et dme, substance et pays tout en l'aventure et en la disposition de fortune, plus réputant cewvre salutaire et agréable d Diew de y entendre que de le laisser]. E nao se saiu bem o dominicano ofician- te no funeral do duque assassinado, em 1419, que teve a ousadia de lembrar o dever cristao de perdoar."* Segundo De la Marche, a honra a vinganca deviam ser o ponto central da politica, e mesmo para os stiditos: todos os estados do duque clamavam por vinganca, diz ele. O tratado de Arras, que em 1435 pareceu trazer a paz entre a s pelo assassinato de Montereau; fundar uma capela na igreja de Montereau, onde Joao fora primeiramente enterrado e onde se deveria cantar um Franca e a Borgonha, comega com a estipulacdo de peniténci réquiem diario, por toda a eternidade; erigir na mesma cidade uma Fezar uma missa na igreja cartuxa de Dijon, onde os duques da Borgonha estao enterrados.* F tudo isso era apenas parte da peniténcia piiblica que o chanceler Rolin exigira em nome do duque: igrejas ¢ capitulos nao s6 em Montereau, mas também em Roma, Gent, Dijon, Paris, Santiago de Compostela e Jerusalém, com inscrigdes gravadas em cartuxa, uma cruz sobre a ponte em que se cometera 0 crim pedra que narrassem o acontecido.” Uma sede de vinganga revestida de formas to minuciosas devia ter que outra coisa o povo teria podido entender melhor que esses motivos simples e primitivos de dio ¢ vinganca a raizes fundas na alma. guiar a politica de seus principes? A devocdo ao principe tina ainda uma natureza infantil, impulsiva; era um sentimento espontaneo de fidelidade e comunidade, uma extensio da antiga concepeao que ligava 08 vassalos ao suserano, os homens a seu senhor, e que no calor da luta fazia arder uma paixdo desenfreada. [um sentimento de partido, nao um patriotismo. 0 fim da Idade Média é uma época de grandes lutas par- tidarias. Na Italia, os partidos se consolidam ja no século x11; na Franca € nos Paises Baixos, eles surgem no século xv. O estudioso da época no tarda a notar que os motivos politicos e econémicos nao explicam exaustivamente a huta entre partidos. As oposigées econdmicas nao so mais que construgées esquemit: mentos, nem com a melhor das intengdes, Ninguém tentaria negar a presenca de causas econémicas por tr: impossiveis de deduzir dos docu- ‘is desses grupos partidarios; mas somos tentados a indagar se o ponto de vista sociologico nao teria mais éxito que o politico-econémico em explicar o conflito partidario na Tdade Média tardia. 0 que as fontes permitem ver sobre o surgimento dos partidos é mais ou: menos o seguinte: nos tempos feudais, veem-se 30 « AVEEMENCIA DA VIDA em toda parte rixas locais, sem outro moti- vo econémico além da inveja pela proprie- dade alheia. Nao somente pela proprieda- de alheia, mas também pela gléria alheia. Orgulho de familia e desejo de vinganga, mais a fidelidade apaixonada dos segui: dores, sio aqui as motivagdes primérias. A medida que o poder do Estado se consoli- da e expande, as disputas fimmiliares veem- -se ligadas 4 autoridade soberana e, num proceso de aglomeraciio, dao origem aos partidos, que se baseiam tao somente em termos de solidariedade e honra comum, Entenderemos melhor esse fundamento se postularmos oposigdes econémicas? Quan- do um contemporaneo perspicaz declara que nao ha motivo racional para 0 édio entre os Hoeksen e os Kabeljauwsen,* ndo temos por que dar de ombros com desdém e tentar ser mais sabios que ele. Nao ha de fato nada que explique bem por que os de Egmond cram Kabeljauws. 05 de Wassenaar cram Hoeks. Pois as diferencas econdmicas entre as linhagens sao, em primeira instancia, produto de suas posicdes em relacao ao principe como seguidores de um ou de outro partido.” A cada pagina da histéria medieval pode-se ler a que ponto a fide- lidade aos principes podia chegar. O poeta do mistério Marieken van Nimwegen nos mostra como a tia maldosa de Marieken, depois de discutir furiosamente com as vizinhas sobre a disputa entre Arnold e Adolf de Gelre, pée a sobrinha para fora de casa e, mais tarde, arre- pendida, acaba por cometer suicidio quando 0 velho duque ¢ liberta- do da prisao, 1.15] O poeta quer advertir contra os perigos do espitito de partido; seu exemplo é extremo, sem diivida, mas da conta do carater passional desse espirito. Ha exemplos mais reconfortantes. No meio da noite, os magistra- dos de Abbeville fazem soar os sinos, pois um mensageiro de Car- Jos de Charolais acaba de chegar, pedindo que se reze pela cura do duque de Borgonha. Os burgueses assustados enchem as igrejas, acen- dem centenas de velas, ajoelham-se ou caem por terra, em ligrimas, enquanto os sinos dobram sem parar."” Em 1429, quando a populacio de Paris, ainda favordvel & Borgonha, descobre que frei Ricardo ~ que havia pouco Ihes tocara Inglaterra e 3 aalma com suas pregacdes - dedica-se a ganhar cidades para o partido Armagnac, passa a maldizé-lo por Deus e todos os santos; em vez da moeda de estanho com o nome de Jesus, que ele Ihes dera, levam agora a cruz de Santo André, sim bolo do partido da Borgonha. 116 e117] Os parisienses voltam a pritica dos jogos de azar, tio abominados por frei Ricardo, “a despcito dele” Jen despit de tuy].* Seria de se esperar que o cisma entre Avignon e Roma, nao envolvendo nenhum artigo de fé, ndo despertaria paixdes reli- giosas, pelo menos em paises distantes de ambos os centros, onde s6 se sabia © nome dos papas e onde nao havia nenhum envolvimento direto com eles. Mesmo nesses casos, 0 cis- ma logo ganha ares de caso partidério ou, mais ainda, de oposiclo entre fidis ¢ inféis, Quando Bruges se submeteu ao papa de Avignon, um bom contingente abandona casa e cidade, negécio ou prebenda, para ir viver em Utrecht, Liége ou alguma outra drea obediente a Urbano.“ Antes da batalha de Rozebeke, em 1382, 0 comando do exército francés hesita em desfraldar diante dos rebeldes flamengos aauriflama, o estandarte real que s6 podia ser usado em guerras san- tas. A decisao é afirmativa: os flamengos sao partidarios de Urbano ¢, portanto, infiéis.* Em visita a Utrecht, 0 politico e escritor francé: Pierre Salmon nao péde encontrar nenhum padre que Ihe permitisse celebrar a Pascoa, “pois diziam que eu era cismatico e fiel a Bento, © antipapa” [pour ce qu'ls disofent que je estoie scismatique et que je créoie en Benedic !antipupe), de modo que ele vai se confessar sozinho numa capela, fingindo estar diante de um padre, e depois ouve a missa no convento dos cartuxos.* O sentimento de partido ¢ a fidelidade ao soberano eram reforca ores, emblemas, dos pelo efeito sugestivo e poderoso dos simbolos, divisas ¢ gritos de guerra que muitas vezes amunciavam assassinatos & que raras vezes eram sinal de ocasides mais felizes. Em 1380, cerca de 2 mil pessoas foram ao encontro do jovem Carlos v1 em sua entrada em Paris, todas vestidas de verde e branco, Entre 1411 ¢ 1423, trés vezes Paris trocou de simbolo: primeiro capuzes violeta com a cruz de AVEEMENCIA DA VIDA Santo André, depois capuzes brancos e, por fim, novamente capuzes violeta. Mesmo 0 clero, as mulheres e as criangas se vestiam assim Em 1411, durante o reinado de terror dos duques da Borgonha em Paris, 0s sinos tocavam todo domingo para as excomunhées de par- tidarios dos Armagna mos, persignavam-se na diagonal, seguindo a cruz de Santo André."* ; e houve padres que, nas missas ou nos batis- A paixio cega pelo senhor e por seus interesses nao deixava de exprimir também a certeza inquebrantavel de que cada ato exige sua recompensa ou puniclo, 0 sentimento de justica, sélido como um muro e duro como uma pedra, que era préprio do homem medi ral, O sentimento de justiga ainda era tes quartos pagao. Consistia em uma sede de vinganca. A Igreja tentara temperar as modalidades de punicio, insistindo na mansuetude, na paz, na cleméncia, a0 mesmo tempo que exasperava a sede de justica, acrescentando-lhe 0 horror a0 pecado. Para o espirito violento, o pecado passa a ser aquilo que 0 inimigo faz. A ansia por justica chegou a seu ponto maximo impul- sionada tanto pela nocao barbara de “olho por olho, dente por dente” 147 curd como pelo horror religioso ao pecado; a0 mesmo tempo, o dever do "°°" Estado de punir severamente parecia uma necessidade urgente. No fim da Idade Média, torna-se crdnico o sentimento de inseguranca, 0 medo que, a cada crise, exige das autoridades um reinado de terror. A idcia de que alguém possa se redimir de seus crimes aos poucos perde lugar, para se tornar um resquicio quase idilico de uma boa indole antiga, a medida que se arraigava mais fortemente o conceito de que um crime era ao mesmo tempo uma ameaca para a sociedade euma violéncia 4 majestade divina. O fim da Idade Média foi a época de ouro da justica severa ¢ da crueldade judicidria. Ninguém duvi dava um instante que o criminoso merecia sua pena; todos ficavam profundamente satisfeitos quando o proprio principe ditava uma sentenca. Volta ¢ meia, 0 governo se lancava em campanhas de jus- tica severa, ora contra ladrées e salteadores, ora contra bruxas e fei- ticeiros, ora contra a sodomia. © que nos impressiona na crueldade judiciiria do fim da Idade Média é menos a perversidade doentia que a alegria animalesca embrutecida do povo, a atmosfera de quermesse. As pes compram o lider de um bando de ladrées a bom preco, para ter 0 prazer de esquartejé-lo, “com que o povo ficou mais feliz do que ont Te peuple fust plus Joyeulx que st un nouveau corps sainct estoit ressuscité”).** Durante a prisdo oas de Mons se 0 corpo de um santo tivesse ressucitado” (" 1x8 Mavimilie s partidérios Desenha 5 a ec lorito-em Historie Fri et Mairifian’ de joss de Maximilian em Bruges, em 1488, a bancada de tortura foi insta- lada na praca central, sobre uma plataforma elevada, para que o rel pudesse vé-la; [1.18] ¢ 0 povo parece nao se fartar de ver as torturas aplicadas aos magistrados suspeitos de traigio, clamando para que a execugao fosse retardada, a fim de desfrutar de novos tormentos.” ‘A mistura de crenca ¢ desejo de vinganca podia levar a extremos nada cristdos, como prova o habito, vigente na Franga e na Inglater- ra, de negar ao condenado a morte nao sé 0 viatico, mas também 0 direito & confissao: nao se tratava de salvar-lhes a alma, mas sim de agravar a agonia diante da certeza das penas infernais. Em 1313, 34 > AVEEMENCIA DA VIDA | © papa Clemente v instruira em vao que se permitisse o sacramento da peniténcia. Philippe de Méziéres insistiu mais de uma vez no pon- to, primeiro junto a Carlos v da Eranga, depois junto a Carlos v1. Mas © chanceler Pierre d’Orgemont, que Mézitres chama de “forte cervell mais dificil de mover que uma pedra de moinho, dizia-se contra, ¢ Carlos v, 0 rei sdbio ¢ pacifico, decidiu que, enquanto ele estivesse vivo, o habito nao seria mudado, Foi 6 quando a voz de Jean Gerson juntowse a de Mézires que foi promulgado o edito real de 12 de fevereiro de 1397, permitindo a confissdo dos condenados. Em Paris, Pierre de Craon, a quem se devia a decisfo, mandou erguer uma cruz de pedras perto do cadafalso, onde os franciscanos poderiam assistir 08 criminosos arrependidos.* Ainda assim, o antigo habito ndo desa- pareceu da moral popular: pouco depois de 1500, o bispo de Paris, Etienne Ponchier, foi forcado a reeditar o estatuto de Clemente v. Em 1427, enforca-se na cidade um jovem salteador de sangue nobre Na hora da execuco, 0 tesoureiro do Regente vem manifestar todo © sett 6dio ao acusado e nao permite que se faca a confissio. Ele sobe a escada atris do condenado, insulta-o, bate nele com um por- Tete € espanca o carrasco que exorta a vitima a pensar na salvacdo da alma. O carrasco assustado se apressa; a corda se rompe, o pobre criminoso cai por terra, quebra perna e costelas, e assim mesmo tem de novamente subir a escada.” A Idade Média ignora os sentimentos que tornaram nossa nocao de justica mais timida e hesitante nogao de atenuantes, a nogao de falibilidade, a responsabilidade social, a ideia de emendar em vez de punir. Ou quem sabe esses sentimentos nao faltassem, mas se exprimissem nos sitbitos impulsos de compaixdo e perdio que por vezes refreavam a aplicaco cruel da justica. Em vez de penas menos severas, baseadas na nocao de culpa parcial, a justiga medieval s6 reconhece dois extremos: a punicao e o perdio. E, quando se perdoa, nao se pergunta se o culpado merece a graca por algum motivo espe- cial: todo crime, mesmo o mais flagrante, pode ser objeto da graga. Na pritica, nem sempre a compaixao era o elemento decisivo. F sut- preendente a indiferenca com que os contemporaneos contam como a intervengao de um parente propicia uma “lettre de rémission”, Ainda assim, a maioria dessas cartas trata de gente pobre do povo, que nao tinha acesso a intermediérios importantes. © contraste entre dureza e compaixdo também rege a moral medieval fora do ambiente judiciario, De um lado, a mais apavorante severidade para com os necessitados e desvalidos, de outro uma indi- zivel ternura, um sentimento profundo de comunhao com os doentes, pobres ¢ loucos, que encontramos, ao lado da crueldade, na literatura russa, O prazer nas execucdes justifica-se até certo ponto por um sen- timento de justiga cumprida. Mas na inacreditavel ¢ ing@nua dure za, na troca atroz. com que se observa a desgraca dos infelizes, falta qualquer elemento enobrecedor de justica. 0 cronista Pierre de Fenin concluia histéria do fim de um bando de ladrdes com as palavras: “e pois tratava'se de gente pobre” [et fusoit-on grant risée, pour co que cestoient tous gens de povre estat]. todos riam a solta Em Paris, no ano de 1425, organiza-se um “ sbatement” de quatro cegos armados que devem lutar por um porquinho, Um dia antes, os quatro desfilam pela cidade em armadura completa, conduzidos por um gaiteiro e um homem que leva um grande estandarte, em que estava pintado um porquinho.# Velazquez conservou para nés 0s rostos profundamente tristes das ands que faziam as vezes de bobos da corte na Espanha. Essas muthe- res eram muito procuradas como objeto de diversao nas cortes do século xv. Durante os “entremets” das grandes festas da corte, elas expunham suas habilidades e suas deformidades. Madame d'Or, a and de cabelos loiros de Filipe da Borgonha, era muito famosa: faziam com que lutasse contra 0 acrobata Hans.’ Durante as celebracdes do casamento de Carlos, 0 Temerario, com Margarida de York, em 1468, entra Madame de Beaugrant, “la naine de Mademoiselle de Bourgogne”, fantasiada de camponesa, montada num ledo dourado, maior que um cavalo. O ledo abre e fecha a boca e canta uma cancao de boas- -vindas, a pequena camponesa é presenteada a jovem duquesa e posta “Se nao nos chegaram queixas sobre o destino dessas sobre a mesa. pequenas mulheres, temos pelo menos os livros de contabilidade, que tém muito a dizer. Eles contam, por exemplo, como uma duque- sa mandou buscar uma ana da casa dos pais dela, como a mae ou 0 pai vieram traz¢-la, como os dois as vezes vinham visitéla e, nessas ocasides, recebiam uma gorjeta. “Ao pai de Belon, a louca, que veio ver sua filha” [Au pere de Belon la folle, qui estoit venu veoir sa fille]. O pai voltava feliz para casa, orgulhoso da filha que servia na corte. No mesmo ano, um chaveiro de Blois produz para a duquesa dois colares de ferro, um “para prender Belon, a louca, outro para amarrar 0 pescoco da macaca da senhora duquesa” [pour attacher Belon la folle at Vautre pour metire au col de la cingesse de madame la Duchesse].°> 36 + A VEEMENCIA DA VIDA Podemos imaginar o tratamento que se dispensava aos loucos a Partir de uma crénica a respeito de Carlos v1, que, sendo rei, certa- mente foi objeto de um cuidado privilegiado, melhor do que aquele a que os outros estavam sujeitos, Ninguém pensara em nada melhor do que surpreendé-lo com doze homens pintados de negro, como diabos que viessem busci-lo.* Ha na insensibilidace daqueles tempos algo de “ingénuo”, que qua- se nos impede de condens-los. No meio de uma epidemia da peste que afligia Paris, os duques da Borgonha e de Orléans propéem instalar guisa de distracao. horrendos assassinatos dos Armagnacs cm 1418, 0 povo de Paris ins. uma “cour d’amours” Numa pausa em meio aos titui na igreja de Saint-Eustache a irmandade de Santo André; todos, padres ¢ leigos, levavam uma guirlanda de rosas vermelhas: a igreja se enchia de um perfume, “como se a tivessem lavado com agua de rosas” [comme s'il fust avé d'eau rose]. Com o fim dos processos de bru xaria que, em 1461, haviam assolado Arras como uma praga diabilica 08 burgueses celebraram a vit6ria da justica com uma competigao de folies movalisées. Primeiro prémio, uma flor de lis prateada; quarto prémio, um par de capuzes; as vitimas torturadas ja estavam mortas havia muito tempo.” Dura e colorida, a vida era capaz de tolerar o odor misturado de sangue e rosas. Os homens, gigantes com cabeca de crianca, viviam entre os terrores infernais ¢ a diversio infantil, entre a dureza cruel e a ternura mais comovente. Era uma vida de extremos, entre a remin- cia completa a toda alegria mundana e 0 amor mais delirante ao bom ao prazeroso, entre 0 édio sombrio ¢ a bondade risonha. Potico nos chegou do lado claro dessa vida, como se toda a docura feliz e serenidade de espirito do século xv se houvessem fundido em sua pintura e cristalizado na pureza etérea de sua grande mtisica, O riso daquelas geracées pereceu, sua generosa vontade de viver e sua felicidade despreocupada persistem apenas na cangao popular © na farsa, E o bastante para adicionar a nossa nostalgia da beleza efémera de outros tempos um anseio pelo brilho solar do século dos Van Eyck. Mas quem se aprofunda no estudo desses tempos logo per- cebe que ¢ dificil prender-se ao aspecto feliz. Pois fora da esfera da arte reina a escuridao, Nas adverténcias dos sermées, nos suspiros cansados da literatura erudita, no relato monétono das crénicas e documentos oficiais, de todos os lados gritam os terriveis pecados ese lamenta a miséria. Desde a Reforma, os pecados capitais de soberba, ira e avareza niio sao mais vistos com a sanguinoléncia pirpura e a auddcia sem pudor com que passeavam entre a humanidade no século xv. A desmedida soberba da Borgonha! A hist6ria inteira dessa linhagem — desde os feitos de bravura cavaleiresca com que tem inicio a fortuna do pri- meiro Filipe, passando pela amarga inveja de Jo3o sem Medo e pelo sombrio desejo de vinganca apés sua morte, através do longo vero daquele outro Magnifico, Filipe, o Bom, e até a louca obstinagao com que 0 ambicioso Carlos, o Temerério, cai — nao seria esse um poema de soberba heroica? Seus paises foram os mais fortes do Ocidente: Borgonha, dotada de um carter pesado como seu vinho, “Ia colérique Picardie”, a voraz e rica Flandres. Enquanto, nas mesmas terras, 0 esplendor da pintura, da escultura e da musica floresce, 0 mais baixo direito de vinganga e a mais violenta barbérie grassam livremente entre nobres ¢ burgueses."* Nenhum mal foi tao conhecido daqueles tempos quanto a avare- za, Se a soberba € 0 pecado dos tempos antigos, a avareza é 0 pecado dos novos tempos. A soberba é 0 pecado da era feudal e hierérquica, em que propriedade ¢ riqueza eram pouco méveis, O poder nao est incondicionalmente ligado a riqueza; 0 poder € mais pessoal e, para ser reconhecido, deve se manifestar em grandes demonstracdes, em s¢quitos numerosos, em aparato. A sensacao de superioridade ¢ ali- mentada continuamente no pensamento feudal e hierarquico por formas vividas: vénias e homenagens, juras de fidelidade e pompa impostada, que, juntas, dao a ver a preeminéncia como alguma coisa de real e de justificada. A soberba é um pecado simbélico e teoldgico, que esta na raiz das concepgies de vida e de mundo. A soberba era a origem de todo 0 mak; a soberba de Licifer fora o comego e a causa de sua perdicdo. [1:9] Assim pensara Santo Agostino, e todos os que 0 sucederam: a soberba €a fonte de todos os pecados, eles brotam dela como a raiz ¢ 0 tronco.” Mas além da passagem dos Evangelhos que confirmava e “A superbia initum sumpsit omnis perditio" -, havia uma outra: “Radix e ver a avareza visio - ommnium malorum est cupiditas” A partir dat, podis como raiz de todo o mal. Pois a cupiditas, que no tem lugar na série dos pecados capitais, era entendida como avaritia. O século x11 pare- ce acreditar que a avareza desenfreada é a perdictio do mundo, desban- cando assim a soberba como o primeiro e mais nefasto dos pecados. A antiga preeminéncia teolégica da superbia recua diante do coro de 38.» AVEEMENCIA DAVIDA vores, sempre mais volumoso, que culpa a avareza por toda a desgraca dos tempos. E como Dante a amaldicoou: “La cieca cupidigia!”. Falta 4 avareza o carter simbélico e teolégico da soberba; ela é um pecado natural e material, um puro impulso terreno. Ela é 0 pecado de uma época em que a circulagao monetéria transformou o exerci- cio do poder, em que a dignidade humana se reduziu a um caleulo aritmético. Abriu-se um campo mais vasto a satisfaio dos desejos ¢ A acumulagao de tesouros. E esses tesouros ainda nao possuem a intan- gibilidade fantasmagérica que os bancos modernos deram ao capital: © ouro ainda domina as imaginacdes. F 0 uso da riqueza ainda nio tem o carater automatico e mecanico do investimento continuo de capital: a satisfacdo ainda se move entre os extremos da avareza e da dissipacdo. Na dissipagao a avareza se une a antiga soberba, que ain- da se mantinha forte e viva: 0 pensamento hierdrquico feudal ainda nao perdera seu esplendor, o desejo de brilho e pompa, refinamento e magnificéncia continuava a arder. Justamente o vinculo com a soberba confere a avareza do fim da Idade Média um carter imediato, passional e exasperado que parece ter se perdido nos tempos posteriores. O protestantismo e 0 Renas cimento deram-Ihe um contetide ético: ela foi legalizada como fator de prosperidade. Ela perdeu seu estigma na mesma medida em que perdeu prestigio o desdém pelos bens terrenos. Em contraste, 0 espi- Tito medieval s6 podia pensé-la nos termos de uma oposicao insoltivel entre avareza pecaminosa e caridade ou pobreza voluntarias. Na literatura ¢ nas crénicas da €poca, no ditado popular como no tratado religioso, ressoam o ddio amargo aos ricos, o protesto contra a avareza dos grandes. Por vezes, hd um vago premincio da nocao de luta de classes, expressa nos termos da indignago moral. A esse Tespeito, tanto os documentos oliciais como as fontes narrativas nos transmitem um mesmo tom da vida ~ pois em todos os autos de pro- cessos se evidencia a mais impiedosa avareza. Em 1436, os servicos de uma das igrejas mais frequentadas de Paris foram interrompidos por 22 dias, depois de dois mendigos terem se envolvido numa briga e profanarem o templo com seu sangue; 0 bispo nao quis reconsagré-la enquanto no recebesse uma certa quantia dos miseraveis, que nao tinham um tostio. O bispo, Jacques du Chatelier, tinha reputacao de “homem muito pomposo, ambicioso, mais mundano do que sua posicao pediria” jung homme trés pompeus, convoicteux, plus mondain que son estat ne requeroit]. Mas tudo se repetiu em 1441, sob seu sucessor, Denys de Moulins: dessa vez, os enterros e as procissdes no Cemitério dos Inocentes, o mais famoso e procurado de Paris, 0 bispo exigia mais do que a Igreja podia pagar. Esse bispo passava por um “homem de pouca misericérdia, e dizia-se que tinha mais de cinquenta processos no Parlamento, pois dele néo se conseguia nada sem processo” [homme trés pou piteux d quelque personne, sil recevott foram suspensos por quatro meses, pois 40 + AVEEMENCIA DAVIDA argent ou aucun don qui le vaulsist, et pour vray on disoit qu'il avait plus de cinquante proces en Parlement, car de lui n'avoit on rien sans procés]®° E pre- ciso ter em mente a historia dos nouveaux riches daquele tempo, de uma certa familia d’Orgemont, por exemplo, com toda a stia baixeza © ganancia, para que se possa entender 0 dio do povo e a ita dos pregadores e poetas.“ © povo nao podia ver sua prépria sorte e os acontecimentos daque- les dias senao como uma sequéncia infinita dle abuso e extorsio, guer- ras e pilhagem, carestia, miséria e pestiléncia. A forma crénica que @ guerra costumava assumir, a inseguranca na cidade e 0 campo em maos de malfeitores, a ameaca perpétua de uma justica dura e par- cial e finalmente 0 medo do Infer mantinham vivo um sentimento de incerteza geral que conferia tons no ¢ apenas a vida dos pobres ¢ desvalidos que parece precaria; também entre os nobres e magistra- dos as reviravoltas mais dristicas e os perigos continuos sao quase a regra. Mathieu d'Escouchy, natural da Picardia, é um historiador como tantos que o século xv produziu: sua cronica, simples, precisa, 10, dos demé6nios e das bruxas sombrios ao cendrio da vida. imparcial, cavaleiresca e moralizante, faz pensar num autor honrado que dedicou seus talentos ao trabalho historiogrifico. Mas que vida io veio a tona por obra do editor de sua obra!” Mathieu d'Escouchy comeca a carreira de magistrado como conselheiro, notario, jurado, aguazil da cidade de Péronne, entre 1440 ¢ 1450. Ele logo se envolve numa disputa com a familia do procurador da cidade, Jean Froment, que resulta em uma série de processos. Por sua vez, o procurador Persegue D'Liscouchy por fraude ¢ assassinato, e ainda por “excessos ¢ abusos” [excez et uttemptaz]. O aguazil revida, abrindo um process de bruxaria contra a vitiva do inimigo; mas a mulher consegue um mandado que forca D'Escouchy a entregar a investigacdo a justica. 0 caso chega ao Parlamento de Paris, e 0 historiador € encarcerado pela primeira vez. Nos 0 encontraremos seis outras vezes na prisio; numa outra ocasido, serd prisioneiro de guerra, Trata-se sempre de crimes sérios, e mais de uma vez ele sera posto a ferros. A escala- da de acusagdes entre as duas familias acaba num embate violento, quando o filho de Froment fere D'Escouchy. Cada qual contrata mer- cendrios para por fim a vida do outro, Quando os documentos final- mente se calam sobre essa querela, tem inicio outras mais. O aguazil € ferido por um monge; surgem novas acusacdes, até que, em 1461, D'Escouchy se muda para Nesle, sob suspeita de vai ‘ios crimes. 0 que nao o impede de fazer carreira: ele chega a ser aguazil de Ribemont, procurador do rei em Saint Quentin, e finalmente ganha um titulo de nobreza, Depois de novos ferimentos, prisdes e penas, nds o encon- tramos em vestes militares: em 1465, ele luta pelo rei em Montlhéry contra Carlos, o Temerario, ¢ cai prisioneiro. Volta mutilado e se casa, sem por isso comegar uma vida tranquila. Damos com ele a caminho de Paris, para onde é levado sob acusacio de falsificar selos reais ¢ “como ladrdo e assassino” [comme ladron et murdrier], numa nova dispu- ta com o magistrado de Compiégne; submetido a tortura, ele confessa sua culpa sem possibilidade de recurso, é condenado, reabilitado e novamente sentenciado, quando entao os rastros de sua existéncia de Gdio e perseguigao desaparecem dos documentos oficiais. Onde quer que se investigue a biografia das pessoas mencionadas nas fontes da época, surgem imagens de uma vida terrivelmente agi- tada. Leiam-se, por exemplo, as informacdes que Pierre Champion colecionou sobre as figuras que Villon menciona em seu Testamento®* 11.20] ow as anotagées de Tuetey no Didrio do Burgués de Paris. Sio pro- cessos. crimes, disputas e perseguigdes sem fim. E essas siio vidas comuns, saidas de documentos juridicos ou religiosos. Cronicas como a de Jacques du Clercq ~ uma colecao de crimes - ou ditirios como 0 de Philippe de Vigneulles, cidadao de Metz,° talvez. deem uma idcia negra demais do que foi a época; e mesmo as “lettres de rémission”, que péem a mu a vida cotidiana com tanta precisa e vividez, bem podem, por seu contexto judicial, iluminar exclusivamente o lado ruim da vida, Mas cada novo exemplo, tirado dos materiais mais variados, confirma essa imagem negra Esse é um mundo mau. A chama do édio e da violéncia arde vigo- Tosamente, a injustica reina, o dem@nio cobre com suas asas negras a terra em trevas. Todos esperam o fim iminente de tudo, Mas a humani- dade nao se converte; a Igreja combate em vao, e em vao se lamentam © exortam os pregadores e os poetas. 42 + AVEEMENCIA DA VIDA Notas Georges Chastellain, Oeuvres, Kervyn de Letten- hove (ed,), # vols. Bruxelas: 1869-66, v.11. p. 44 ‘Anttwerpen’s Onze-Lieve-Vrouwe-Toren. Antuéxpia, 1927, pp. Xt, 23. 3. Chastellain, op, cit, v.11, p. 267: Olivier de la Marche, Mémoires, Beaune e d’Arbaumont (ed) Paris: Société de histoire de la France, 1883-88, WI, p. 248, Journal d'tun bourgeois de Paris, A. Tuetey (ed.). Paris: Publications de la Société @*histoire de Paris, doc. n. 11, 1883, pp. 5, 56. 5 Id., ibid., pp. 20-24; Cf. também Journal de Jean de Raye, dite Chronique scandaleuse, B. de Mandrot (ed), Paris: Société de Vhistoire de la France, 1894-96, ¥. 1, P. 330. Chastellain, op. cit. v.11, pp. 403, 462 Jean Juvenal des Ursins, Chronique (2.412), Michaud e Poujoulat (eds. Nouvelle collection des mémoires, si. v.11, p. 474 8 Journal d'un bourgeois de Parts, op. cit., pp. 6. 70: Jean Molinet, Chronique, Buuchon (ed,), Coll. de chorn, nat., 1827-28, v.11, p. 235 Lettres de Louis x1, Vaesen, Charavay, de Mandrot (eds), Patis: Société de histoire de la France, 1883-1909, 2 vols., 20 abr. 1477. v. Vi. p. 158; Chronique scandaleuse. op. cit.. v.11. Pp. 47, 364 9 Journal d’un bourgeois de Paris, op. cit., pp. 23437. to Chronique scandaleuse, op. cit.,¥. 1, PP. 70, 72. 11 Apud M. M. Gorce, Saint Vincent Ferrier. Paris, 1924, P. 175, 12 “Vita auct. Petro Ranzano 0. P.” [1455), Acta sam torum Apr. t 1. pp. 494 58. 13 J. Soyer, “Notes pour servir l'histoire littéraire. Du suceés de la prédication de fiére Olivier Maillart & Orléans en 1485", in Bulletin dela société archéalogique et historique de VOrléanais, v. xvitt, 1919, apud Revue historique, t CxXX1, p. 351. 44 Penteado cOnico, sobre o qual se jogava um véu. s.r] 45 Enguerrand de Monstrelet, Cihromiques, Doué't dAreq (ed.), Paris: Société de Mhistoire de la France, 1857-63. v. IV, pp. 302-06 16 Wadding, Annales Minorum, v. x, p. 72: K. Heféle, Der heilige Rerahardin von Siena und dle franziska- nische Wanderpredigt in Itaten, Feeiburg: Herder, 1912, pp. 47, 80, 17 Chronique scandaleuse, op. cit., v. 1, pp. 22, 1461; Jean Chartier, Histoire de Charles vit, D. Godefroy (ed,). 1661, p. 320. 18 Chastellain, op. cit, v. 11, pp. 36. 98, 124-25. 210, 238-39, 247, 474; Jacques du Clereq, Mémoires [2448-1467], de Reiffenberg (cd) Bruxelas, 1823, ¥.1¥, p. 40, v.11, pp. 280, 355. ¥.111, p. 109; Jean Juvenal des Ursins, op. cit, PP. 405, 407. 420; Molinet, op. cit., v. 111, PP. 36, 314. 29 Jean Germain, “Tiber de virtutibus Philippi ducis Burgundiae”, in Kervyn de Lettenhove (ed.), Chroniques Relatives d I Histoire de la Belgique sous la domination des dues de Bourgondie. Collection des chroniques beiges, 1876, V. 11, p. $0. 20 De la Marche, op. cit.,v.1. p. 61. 21 Chastellain, op. cit. v.1¥, pp. 333 ss. 22 Id. ibid.,v. 111, p92. 23 Jean Froissart, Chroniques. S. Luce e G. Raynaud (eds). Paris: Société de histoire de la France, 1869-99, ¥. TV, pp. 89-93. 24 Chastellain, op. cit.,v. 11, pp. 85 88. 25 Id, ibid, v. 11, p. 279. 26 De la Marche, op. cit. tL, p. 421. 43 a7 Jean Juvenal des Ursins. op. cit. p. 379. 28 Martin le Franc, Le Champion des dames, apud. G. Doutzepont, (a Littérature frangaise d la cour d dues de Bourgogne. Paris: Champion, 1909, p. 304. ag Acta Santorum, ¥. 1, p. 496; A. Renauidet, Pré réfirme et humanisme & Paris, 1494-1517. Paris Champion, 1916, p. 163, 30 Chastellain, op. cit., ¥1V, pp. 300 58. ¥, Vil, P-73:¢f. Thomas Basin, De rebus gests Caroll vir et Lud, x1 historfarum libri x1r, Quicherat (e.) Paris: Société de l'histoire de la France, 185559. Vet, D. 158. 31 Journal d'un bourgevis de Paris, op. ciL., p. 239. 32 Chastellain, op. cit.. ¥. 1. p. 30. 33 De la Marche, op. cit. ¥. 1. D. 85. 34 Chastellain, op. cit., v1, p. 82, 79: Monstrelet, op. cit, tt, p. 361 35 De la Marche, op. cit... t, p- 202, 36 Id. ibid., v.1, p. 207. 37 Chastellain, op. cit. v.1. p. 196 38 Basin, op. cit.. v.11, D. 74. 39 Minha concepgao nao exch absolutamente os fatores econdmicos e nio deve set lida como protesto contra a explicagio historica de inspi- ragdo econdmica; vale citar as palavras de Ja rs: “Mas as Tuas de classes nao so tudo na historia, hi também as inras de partidos. Pois, para além dos antagonismos e das afinidades econdmicas, formam-se agrupamentos movidos pela paixdo, pelo prestigio, pelo dominio, que disputam o cenitio hist‘vico e causam grandes comocies”. CL. Jean Jaurds, Histoire socialite de la Revolution francaise, Paris: J. Houll. vv. p. 245 40 Chastellain, op. cit..¥ 1v, p. 201; Cf. meu ensaio “Uit de voorgeschiedenis van ons 44 - AVEEMENCIA DA VIDA national beset”, in Tien Studien. Haarlem: H.D. ‘Tjeenk Willink & Zoon, 1926 41 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit., p. 24: cf Monstrelet, op. cit. v. 1. P. 34 42 Jan van Dixmude, Cronike, Lambin (ed.|. Ypres 1839, 783. 43 Froissart, op. cit. v. x1, p. 52. 44 Mémoires de Pierre le Fruicter dit Salmon, Buchon (ed), 3 suppl. de Froissart, v. xv, p. 22. 45 Clironique du Religieux de Saint Denis, Bellaguer led.) Collection des dacuments inédits, 1839752, 6 vols.. v1, p. 34: Jean Juvenal des Ursins, op. ci pp. 342. 467-71; Journal d'un bourgeois de Parts, op. cit. pp. 12, 34, 44 46 Molinet, op. cit, v.11 p. 487. 147 Td, ibid, ¥. 111, pp. 226, 241, 283-287; De la Marche, op. cit..v. 11, pp. 289, 302. 48 Clementis v constitutiones, Livro V. titulo 9, €. 15 Ioannis Gersonis opera omitia, E. Dupin (ed), 1728, walt, p. 427; Ordonnances des rots de France, t. VIII, Pp. 123; N, Jorga, Philippe de Mézieres et la croisade ‘au xiv" siécle, Paris: Bibliotheque de Ecole des Hautes Etudes, fase. 110, 1896, p. 438; Chronique du Religieux de Saint Denis, op. Cit. V.t1, B. 533. 49 Journal d'un bourgeois de Paris, op. cit.. Pp. 223. 229. 50 Jacques du Clercq, op. cit, v.1¥, p. 265; Petit Dutaillis, Documents nouveaux sur les mioeurs popu Tires et le drmit de vengeance dans les Pays-Bas au xv" side. (Bibl du XV" si€cle) Paris: Champion, 1908, pp. 7. 24 51 Pierre de Fenin, Mémoires, Michaud ¢ Pou joulat eds.) Petitot, Nouvelle collection des amémoires viii, v.11, p. 593: ¢L. © relato do butio assassinado & p. 619. 52 Journ 53 Jean Lefévre de Saint Remy, Chronique, F Morand (ed,), Paris: Société de Mhistoire de la France, 1876. v.11, p. 168; Laborde, Les Duss de Bourgogne, Evudes sur es lettres, les arts er Pindustrie penclant le XV" siéle. Paris, 1849-1853, ¥. 11, p. 208 54 De li Marche, op. cit, v. 111, p. 133; Laborde d'un bourgeois de Paris, op. cit., p. 204 op. cit..v. 1, p. 335. 55 Laborde, op. cit. ¥. 14, p. 355, 398; Id. Le Moyen Age, xx, 1907, pp. 194-201 56 Jean Juvenal des Ursins, op. cit.. pp. 438. 1405: cf. ainda Chronique du Reiigieun de Saint Denis op. cit. ¥. 111, p. 349, 57 A. Piaget, in Romania xx (1893), p. 417, exxx1 (1902), pp. 597-603. 58 Journal d'un boungevis de Parts, op. cit. p. 95. 59 Jacques du Clercq. op. cit. ¥. 111, p. 262 60 Id., ibid: PetitDutaillis. op. cit. p. 131 61 Hugo de Sao Vitor, De jrictibus carnis et spritus, Migne (ed), in Patrologia latina, c1xxv1, p. 997. 62 Tobias. 1v, 13 63 1 Timoteo, v1, 10 64 Pedro Damiao, Fpist Ldb.1, 15, in Migne (ed). Patroingia latina ¢xutv, p. 233; Contra pliflargyri: am, Migne (ed.), Patrotogia latina xiv. p. 533: Pseuudo-Bernardo. Liber de modo bene vivendi, Mig- ne (¢d.). Patrologia latina crxxxrv, p. 1266. 65 Journal d’un bourgeois de Paris, op. cit., pp. 325. 343; 357. 66 1. Mirot, Les D'Orgemont, eur origine, leur fortune, Paris: Champion, 1913; P. Champion, Frangois Villon, sa vie et son temps. Paris: Champion, 1913, VMI. pp. 2305. 67 Mathieu d'Escouchy, Chronique, G. du Fresne de Beaucourt (ed), Paris: Société de l'histoire de la France, 18634, v. 1, pp. 1W-xxx11L 68 P, Champion, op. cit 69 0 didrio foi editado por H. Michelant (Sturt gart: Bibliothek des literarischen Vereins zu Stuttgart, 1852); hd uma nova edicao, aos cui- dados de C. Bruneau, 1a Chronique de Philippe de Vigneulles. Metz, 1927-29, que contém 0 diario, _tfene Saree ot fee h cuchicee dt ante pictone de mautyca% sgallee ct Oe) ullenvs en tine bateullee tour ] pict tym feferentjueatte pour cfix mome foulcs au befous comme dit eff Incontment qual ixp lee franane ayprodner 3l- commands. gue tort home fe leuagy 5 fe lencurnt oDorneement et wns Le fire Be hie Pe fu liebp Le fax de bagfer Lc i famtaubriy £¢ - eg fooicitk gent Folge moule bel o¢ Ricement pore con poster ba lle Dus prritee fil beFon segues 4 Done dens foto Suideene prs Iufguce duane ebatulles ke anglers sSeufep sone Genorent Lon deuane = bite TaretfmedD.. =a O anseio por uma vida mais bela ‘Toda época anseia por um mundo mais belo. Quanto mais profundos © desespero ¢ a consternagio diante de um presente incerto, tanto maior serd esse desejo, No periodo final da Idade Média, 0 tom geral da vida é de amarga melancolia. A alegria de viver e a confianca na capacidade dos grandes atos, como ocorre na histéria renascentista na iluminista, mal so notadas na esfera franco-borguinha do sécu- lo xv. Sera que essa sociedade foi de fato mais infeliz do que outras? As vezes pode-se acreditar nisso. Onde quer que se procure o legado dessa Epoca ~ nos historiadores, nos poetas, nos sermées, nos trata- dos religiosos e em documentos notariais -, com poucas excecdes, encontramos apenas lembrancas de brigas, 6dio, maldade, ganan- cia, selvageria e miséria. Pergunta-se: essa época apreciava apenas crueldade, altivez e intemperanga; sera que para ela nunca houve uma doce alegria e uma felicidade tranquila? E bem verdade que cada época deixa mais rastros de seu softimento do que de sua feli- cidade. Suas desgracas se tornam sua histéria. Uma conviccao talvez instintiva nos diz que a soma total de paz ¢ de felicidade destinadas as pessoas nio pode variar muito de uma época a outra. Eo brilho da felicidade do final da Idade Média também nao passou despercebido: ele sobreviveu na cangao popular, na musica, nos horizontes quietos da pintura de paisagem e nos rostos sobrios dos retratos. Mas no século xv ainda nao era costume, dir-se-ia até que ainda nao era de bom-tom, louvar a vida e o mundo. Aqueles que enfrentavam a dura rotina didria e decidiam expressar sua opiniao sobre a vida, costumavam somente citar tristeza e deses- pero. Viam 0 tempo tendendo ao fim e tudo © que € terreno, A per- dicdo. O otimismo, que brotara no Renascimento para festejar o seu auge no século xvitt, ainda era estranho ao espirito francés do século XV. Quem siio os que pela primeira vez se expressam com esperanca € satisfacio a respeito do préprio tempo? Nao foram os poetas, muito 4 2.5 Avitdvis dus ingleses sobre bataihe de Crécy (1146) Min Bresiou aocramade Froissart menos os pensadores religiosos ou os governantes, mas sim os estu- diosos, os humanistas. E a gléria da redescoberta da sabedoria antiga que primeiro arranca dos espiritos o jbilo sobre o presente: é um triunfo intelectual. 0 conhecido grito de alegria de Ulrich von Hutten, Ossaeculum, 0 Titerae! Juvat vivere! [O século, 6 letras, viver é um prazer'], geralmente ¢ interpretado de uma forma muito ampla. Trata-se antes do entusiasmo de um literato do que de um homem médio frente as coisas do mundo, Seria possivel citar varios gritos de jibilo semethan- tes provindos do inicio do século xv1, que falam sobre 0 esplendor da época se exclusivamente a um mundo intelectual restaurado e, de forma nenhuma, a manifestacdes ditirambicas da alegria de viver em toda a sua plenitude. Também a disposicao de viver do humanista se vé ainda mas sempre se chegaria A conclusio de que se referem qua moderada pelo antigo distanciamento espiritual do mundo. Mais do que pelas palavras tao citadas de Hutten, pode-se conhecéla por meio das cartas de Erasmo, escritas por volta de 1517. Mas esse otimismo, que nele provocava aqueles tons alegres, rapidamente enfraqueceria “E bem verdade”, Erasmo escreve no comeco de 1517 a Wolfgang Fabricius Capito,’ “que ndo me apego tanto assim a vida, porque jé vivi do modo que quis quase o suficiente ~ pelo menos entrei no meu quinquagésimo primeiro ano de vida -, talvez seja por eu nao ver nada tio maravilhoso ou desejado nesta vida, algo fora do comum, que possa ser buscado por alguém que realmen- te acreditou no ensinamento da fé crista de que uma vida muito mais feliz aguarda aqueles que abracaram a devogao com todas as suas forcas. Porém, hoje, eu gosta- tia de voltar a ser jovem por algum tempo, pela simples razdo de que vejo surgir uma era dourada no futuro proximo.” Em seguida, ele descreve como todos os sobe- ranos da Europa sao unanimes ¢ inclinados a paz (tio preciosa para ele) ¢ continua: “Eu me vejo compelido a & ter uma esperanca firme de que nao 6 a ética honesta € a devogio crista, mas também as letras puras e verda deiras’ e as ciéncias muito genuinas, vio reviver e desa- brochar”. Sob a protesao dos soberanos, ¢ claro. “Gracas ( A sua vontade piedosa é que vemos em todo lugar 0 despertar ¢ o desabrochar de mentes espléndidas, como em resposta a um dado sinal e, conspirando entre si para restaurar as boas letras [ad reiituendas optima literas)’ 48 + 0 ANSFIO POR UMA VIDA MAIS BELA Essa 6 a expresso pura do otimismo do século xv1, 0 Animo funda- mental do Renascimento ¢ do Humanismo, algo bem diferente daque- le prazer de viver imoderado, que normakmente consideramos a tonica do periodo, A aceitacdo de vida de Erasmo ¢ timida e de certa forma Tigida, e sobretudo extremamente intelectual. E, de todo modo, trata- -se de uma voz ainda pouco ouvida no século xv fora da Irdlia. Os espi- ritos na Franca e nas terras borguinhas por volta de 1400 ainda gostam de lamentarse em excesso da vida e de seu tempo. F curiosamente (mas no sem um paralelo: basta pensar no byronismo), ¢uanto mais Perto estavam da vida mundana, mais negro o seu énimo. A expresso mais forte desse pessimismo, préprio da época, no foi obra daqueles que se isolaram para sempre em mosteiros out em estudos, dando as costas ao mundo. Sao sobretudo os cronistas ¢ os poctas das cortes que, carentes de cultura mais elevada e sem perspectivas de conseguir elucidar os mistérios da vida, queixam-se com frequencia da corrupgao do mundo e duvidam da paz e da justica, Ninguém deplorou tanto a perda das boas coisas do mundo quanto Eustache Deschamps. Temps de doteur et de temptacion, Tempo de der e tentacio, Aages de plour, denvieet de tourment, Fpoca de pranto, inveja e termento, Temps de langour et de demonacion, Tempe de langor e danagao, Aages meneur pres du definement, Epoca que se aproxima do fim, Temps plains dorreur qui tout fait fousserent, Tempo cheio de horror, que tudo faz errado, ‘Aages menteur, plain darquell et emvie, Epoca de mentiras, cheia de orguiho einveja, Temps sanz honeur et sane vray jugerent, Tempo sem honra e sem julgamento verdadeiro, Aage en tristour qui obrege la vi, Epoca de tristeza, que abrevia a vide Foi nesse tom que cle escreveu dezenas de suas baladas, vari monGtonas ¢ pouco entusiasmadas de um tema melancélico. Uma melancolia muito intensa deve ter reinado entre as classes mais altas para que a nobreza fizesse o seu poeta do cotidiano repetir esse tema tantas vezes. Toute léesse deffout, Todaa alegria falta Tous cueurs ont prins par assaut Todos os coracdes foram tamados de assalto Tuistesse et merencalie. Por tristeza emelancolia Trés quartos de século depois de Deschamps, Jean Meschinot ainda canta no mesmo tom. O miserable ettrés dolente viel vida miseravel e tao infeliz! La guerre avons, mortalité, famine; Temos guerra, mortee fome: Le fioid, le chaud, le jour, a nuit nous mine; Calore frio nos minam noite e dia Puces,cirons et tant dautre vermine Pulgas, sama e outros vermes Nous querrayent. Bref, misere domine Nao param de nos atacar. Em suma, a miséria domina Naz mechans corps, dont le vive est tr8s court. Nosso corpo insignificant, cuja vida é muito curta ‘Também ele expressa outra vez a amarga conviccio de que tudo vai mal no mundo: a justica esta perdida, os grandes exploram os peque- sua hipocondria, segundo suas nos, € os pequenos uns aos outro: le descreve a si mesm« palavras, chega a levé-lo a beira do suicidio. Etje, le powvre escrivain, Eeu, opobreescritor, Au cueur triste, faible et vain, Com o coragao triste, fracoe vao, Voyant de chascun le dueil, Avera dor decadaum, ‘Soucy me tient en sa main; A preocupacao toma conta de mim, Toujours les larmes 2 roe, Sempre lagrimas nos olhos Rien fors mourir je ne vue. Nao quero sendo morrer. ‘Todas as manifestagdes do espirito de vida das classes elevadas tes- temunham uma necessidade sentimental de vestir de negro a propria alma. Quase todos declaram nao ter visto nada além de desgraga, e que o pior ainda esta por vir, que nao gostariam de refazer o caminho jd trilhado. “Eu, homem triste, nascido nas trevas do eclipse, chu- va espessa de lamentagio” [Moi douloreux homme, né en eclipse de téné- bres en espesses bruynes de lamentation], assim se apresenta Chastellain.* “Tanto sofreu La Marche” [Tant a souffert La Marche|, foi o que 0 poeta da corte e cronista de Carlos, 0 Temerdrio, escolheu como aforis- mo; para ele a vida tem um gosto amargo, ¢ seu retrato nos mostra 08 tragos sombrios que tanto prendem a nossa atengio em diversos retratos dessa época.’ [2.1] Nenhuma vida desse tempo parece estar tio repleta de soberba terrena e ostensiva avidez— e, 20 mesmo tempo, tio coroada de suces- sos ~ quanto a de Filipe, 0 Bom. [2.2] Mas sob a sua gléria também esconde-se 0 desanimo frente a vida. Quando Ihe informaram sobre a morte do filho de um ano de idade, ele disse: “Tivesse Deus também querido que eu morresse to jovem, eu me consideraria feliz"* E notavel o fato de que, nessa época, os significados de tristeza, reflexio séria ¢ fantasia fundem-se na palavra “melancolia”. A ponto © + OANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA de parecer que qualquer ocupagio séria do espirito precisaria levar a um estado sombrio, Froissart diz sobre Filipe de Artevelde, que estava refletindo sobre uma noticia que acabara de receber: “Depois de ter melancolizado |= meditado] por algum tempo, ele resolveu enviar uma resposta aos comissdrios do rei da Franea” (quant il eut merancoliet une espasse, ils’ avisa que il rescriproit aus commissaires dou roi de France| Deschamps fala de algo cuja feiura supera qualquer poder de imagi- nagao: nenhum pintor é “merencolieux" o suficiente para ter condigdes de pintar a melancolia.’ [2.3] No pessimismo desses individuos saturados, desiludidos e cansa- dos, existe um elemento religioso, mas de pouca importancia. Cer- tamente 0 seu desgaste com a vida também é reflexo da espera pelo fim do mundo, o qual, devido ao ressurgimento da pregacio popular das ordens mendicantes por todos os cantos, havia se precipitado nos dnimos com uma nova ameaga e imaginagio realgada. Os tem- pos sombrios ¢ confusos, a miséria crénica das guerras eram bem apropriados para reforcar essa ideia, Parece que nos iltimos anos do século xtv houve uma crenca popular de que, desde 0 Grande Cis ma, ninguém mais havia sido aceito no paraiso." A aversio ao culto vaidoso das aparéncias da vida na corte amadurecia, preparando as pessoas para dizer adeus ao mundo, Mas esse estado de depressio, expresso por quase todos os ministros da corte ¢ cortesios, quase nao tinha teor religioso. No maximo, as nocdes religiosas imprimi. ram um pouco de cor a uma sensacdo geral de malestar. A inclinacio para escarnecer da vida ¢ do mundo é um choro distante de wi conviccio religiosa verdadeir. . O mundo, diz Deschamps, € como um velho senil; primeito cra inocente; depois, por um longo tempo, tornou-se sabio, justo, honesto ¢ valente: rest laches, chetis et malz, Agora eleé frouxo, mesquinho emole, Viewty, convoiteus et ma) parlant: Velho, ganancioso emaledicente Jere voy que foies et folz S6 vejo loucos e loucas, Lafin sapproche, en verité (O fim seaproxima, na verdade Tout va mal Tudo vai mal Nao € s6 o desinimo coma vida, mas também 0 medo de viver, a recu- sa da vida diante das profundas e inevitaveis tristezas que a acom- panham, a postura do espirito que, no budismo, forma a base de sua filosofia: um irresoluto dar-as-costas as dificuldades do dia a dia, medo e horror frente a preocupagées. doenga e velhice. Os feridos partitham esse medo com aqueles que nunca fraquejaram diante das tentacdes do mundo, porque sempre se esquivaram da vida. Os poemas de Deschamps esto repletos dessa difamagio mesqui- nha contra a vida, Felizes daqueles que nao tém filhos. pois criancas pequenas nao passam de gritaria, fedor, cansaco e preocupagao; preciso vestilas, calcii-las e alimenté-las; estdo sempre correndo risco de cafrem e se machucarem. Elas adoecem e morrem, ou cres- cem e tornam-se mas; elas acabam na prisdo. Nada além de traba- Iho ¢ tristeza, nenhuma felicidade compensa as preocupacées, difi- culdades ¢ gastos com a criagio. E nada pode ser pior do que ter criangas deformadas. 0 pocta nio emprega uma palavra sequer de amor: o deformado tem um coracdo mau, o que ele alega com base a vida com uma nas Escrituras. Feliz daquele que nao é casado, pois mulher ruim é um inferno e, com uma boa, passa-se o tempo todo receando perdé-la, Deve-se evitar o infortiinio assim como se afastar da boa fortuna. Na velhice, esse poeta nao enxerga nada além de sofrimento ¢ repugnancia, a lamentavel decadéncia fisica e espiritual, 0 ridiculo e o desagradavel. O ser humano envelhece cedo, a mulher aos trinta ¢ o homem aos cinquenta, ¢ sessenta é o seu limite.” Quio distantes estamos da idealizagdo serena com que Dante descrevera a dignidade do nobre idoso em seu Convivio.” Uma tendéncia a devogio, pouco presente em Deschamps, pode de certo modo tornar mais elevadas reflexes como essas sobre o medo de viver, mas mesmo assim o animo geral da maioria é certamente dominado pela desilusio e pelo pessimismo. De toda maneira, repro- vagdes sérias a uma vida santa ecoam mais um elemento negativo do que uma vontade genuina de santificagao. Quando 0 irrepreensivel chanceler da Universidade de Paris e luminar da teologia, Jean Gerson, escreve um tratado destinado as suas irmas, defendendo a exceléncia da virgindade, a sua argumentagio inclui uma longa lista de softimen- tos ¢ desastres ligados ao casamento, marido podia ser um bébado, um trapaceiro ou um avarento. E se fosse bom e justo, uma desgraga, a perda do gado ou um naufrdgio poderiam despojé-lo de todas as suas posses. E que situagio mais desgracada é a gravidez, quantas mulhe- Tes nao morrem na hora do parto! E quanto de sono tranquilo uma mie que amamenta tem? E quanto de verdadeira alegria? As criangas podiam nascer deformadas ou desobedientes; o homem podia acabar ‘morrendo, deixando a mae como uma vitiva pobre e carente." Um profundo pessimismo em relacao as coisas terrena: animo com que se encara a realidade didria, to logo a alegria de viver pueril ou o prazer cego desaparecem diante da reflexdo, Onde esta esse 0 aquele mundo mais belo, que todas as épocas costumam desejar? anseio por uma vida mais bela sempre teve trés caminhos que apon- tavam para esse objetivo distante e feliz, O primeiro levava direta- ‘mente para fora do mundo: o caminho da rentincia. Aqui parece que essa vida ideal somente pode ser alcancada do outro lado, mediante a libertacao de tudo o que é terreno; toda a atencao dispensada ao mun- do atrasa a prometida bem-aventuranga. Todas as grandes civilizacbes uilharam esse caminhi forma muito veemente, 0 ideal de rentincia como propésito da vida individual e base da cultura, o que por muito tempo impediu quase completamente os homens de trilhar o segundo caminho. Esse segundo caminho era aquele que apontava para a melhora e ctistianismo jé inculcara nos homens, de © aperfeigoamento do préprio mundo. A Idade Média mal conheceu essa aspiracdo. Para os homens dessa época, 0 mundo era tao bom e tdo ruim como ele podia ser; ou seja, enquanto criagio de Deus, todas as coisas terrenas eram boas; mas era o pecado dos seres humanos 5A» OANSEIO PORUMA VIDA MAIS BELA que mantinha 0 mundo em situacdo de miséria. O pensamento e as ages da época nao conheciam uma busca consciente por melhora e reformulacio das instituigdes sociais e politicas. A virtude do préprio. trabalho é a tinica coisa que pode ter algum significado para o mundo, €, mesmo assim, 0 objetivo verdadeiro continua sendo a outra vida. Mesmo onde quer que tenha sido realmente criada uma nova forma social, ela inicialmente é considerada um restabelecimento do bom e velho direito, ou uma luta contra abusos por uma delegaciio proposital do poder puiblico protetor. A cria fato como novos € pouco comum, inclusive no intenso trabalho legis- lativo que a monarquia francesa empreendia desde Luis 1x, 0 Sao Luis de Franca, e que os duques da Borgonha imitaram nas terras herdadas. Eles ainda no percebiam, ou mal percebiam, que esse trabalho real consciente de organismos tidos de mente implicava o desenvolvimento da organizacao do Estado com formas mais efetivas. Ainda nao veem diante de si um futuro para isso, uma aspiracao; ainda promulgam decretos e instalam conseThos mumicipais como parte do exercicio imediato de seu poder, ¢ do cum- primento de sua funcio para o bem comum, em primeiro lugar. Nada contribuiu tanto para essa atmosfera de temor a vida e de dtivida em relacdo aos tempos futuros quanto a auséncia de uma determinacao firme de tornar o préprio mundo melhor e mais feliz. Naquele mundo nao havia qualquer promessa de coisas melhores. Quem ansiava por algo melhor, mas ndo conseguia se despedir do mundo e de toda a sua magnificéncia, s6 podia cair em desespero; nao conseguia mais enxergar em nenhum lugar a esperanca ou a alegria; restava pouco tempo para o mundo, e a desgraga era tudo que o aguardava. No momento em que se envereda pelo caminho de uma melhora Positiva do proprio mundo, tem inicio uma nova era, na qual a cora- gem e a esperanga tomam o lugar do temor A vida. Na verdade, esse conceito s6 ird surgir no século xvit1. O Renascimento extraiua sua nogio enérgica de vida de outras formas de satisfagao. Foi apenas no século xviit que a perfeicéo do ser humano e da vida em sociedade tornourse um dogma central, e a busca economica e social do século seguinte s6 perde a ingenuidade, mas nio a coragem nem o otimismo, O terceiro caminho para um mundo mais belo € 0 do sonho. fo caminho mais ficil, mas que mantém o objetivo igualmente dis- tante. Quando a realidade terrena é t4o perdidamente trigica e a rentincia ao mundo tao dificil, ndo nos resta nada além de colorir a vida com um brilho claro, vivé-la no pais dos sonhos, temperar a realidade com o éxtase do ideal. Basta um tema simples, um tinico acorde, para se deixar levar pela fuga fascinante: um olhar para a felicidade sonhada de um passado mais belo jé ¢ suficiente, um olhar para o seu heroismo e sua virtude, ou entéo para os alegres raios de sol da vida na natureza. E sobre esses poucos temas - 0 do herois- mo, 0 da sabedoria ¢ 0 do bucolismo ~ que toda a cultura literdria € estruturada desde a Antiguidade. A Idade Média, 0 Renascimento, os séculos xviii @ XIX, todos eles juntos nao sio muito mais do que variacdes novas de uma velha cangao. Seria o terceizo caminho para um mundo ideal, a fuga da dura rea- lidade para um mundo de aparéncia bela, apenas uma questo da cul- tura literdria? Sem diivida é mais do que isso. Ele atinge a forma e 0 contetido da vida comunitaria do mesmo modo que as duas outras aspi- rages, e quanto mais primitiva for a cultura, mais forte isso se torna, O impacto dessas trés mentalidades na vida real difere bastante O contato mais préximo e consistente entre as atividades da vida co ideal constitui-se quando a ideia aponta para a methoria e a perfeigao do mundo em si. Nessas instancias a ousadia e a forca inspiradora desaguam no préprio trabalho material, a realidade imediata é car- regada de energia; realizar a obra da sua vida também € um modo de lutar pelo ideal de um mundo melhor. Se assim quisermos, também aqui um sonho de felicidade é 0 motivo inspirador. Até certo ponto, toda cultura almeja tornar real um mundo imaginario mediante a recriacao das formas socia is. Ao passo que em outras instancias isso somente se refere a uma recriacdo espiritual, a proposigao de uma perfeicdo iluséria, oposta 8 dura realidade que se quer esquecer, aqui 0 objeto do sonho éa propria realidade. ft ela que se quer remodelat, purificar ¢ melhorar; 0 mundo parece estar no caminho certo para 0 ideal, basta o ser humano continuar trabalhando. A forma de vida ideal parece estar bem pouco distanciada da existéncia ativa; $6 exis- te uma ligeira tensao entre realidade ¢ sonho. # consideravelmente pouco o que se exige da arte de viver ali onde ja se cansou de aspirar pela mais alta producio e pela diviso mais justa dos bens, onde 0 contetido do ideal é prosperidade, liberdade e cultura. Nao ha mais necessidade de acentuar que o ser humano ¢ um ser nobre [nobleman], ou.um herdi, ou um sabio, ou um cortesfio de boas maneiras. No caso da primeira das trés mentalidades, a influéncia na vida real é bem diferente: tratase da remiincia ao mundo. 0 sentimento de 59 = Q ANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA falta da felicidade eterna torna o desenvolvimento e a forma da exis- téncia terrena indiferentes, ainda que a virtude seja cultivada e man- tida. Aceitam-se as formas de vida e as da sociedade pelo que clas si0, mas tenta-se permeé-las com uma moralidade transcendente, Com isso, a rejei¢ao do mundo pela sociedade terrena nao exerce uma acdo puramente negativa por abnegacao e rentincia, mas também difunde-se em trabalho piedoso e caridade pratica. E como ¢ 0 impacto da terceira mentalidade sobre a vida: a busca por uma vida mais bela segundo um ideal sonhado? As formas da vida so recriadas em formas artisticas. Mas nao apenas nas obras de arte em si se expressa 0 sonho de uma vida bela, pois ela quer enobrecer a prdpria vida com beleza ¢ preencher a sociedade com jogos e formas. E é justamente aqui que se fazem as maiores exigén cias a arte de viver das pessoas, exigencias que somente podem ser satisfeitas por uma elite, em vida Iiidica artificiosa, Nem todos podem viver como herdis ¢ sdbios; é uma diversao cara colorir a vida com uma tintura heroica ou idilica e, além disso, nem sempre da cetto. A dnsia pela concretizacao do sonho de beleza nas formas da prépria sociedade tem um cariter aristocratico impresso no seu vitiuum origins. Com isso, aproximamo-nos do ponto sob 0 qual a civilizagao do fim do perfodo medieval deve ser visto: a ornamentagao da vida aristo- critica com as formas do ideal, isto é, a luz artificial do romantismo cavaleiresco sobre a vida, com o mundo trajado maneira da Tavola Redonda. A tensao entre as formas de vida e a realidade 6 incrivel mente forte; a luz é artificial ¢ ofuscante. O anseio por uma vida mais bela é considerado, normalmente, a caracteristica fundamental do periodo renascentista. A satisfacao da sede de beleza dé-se tanto na arte quanto na propria vida; nesse momento, como nunca dantes, a arte serve A vida e a vida & arte, Mas também aqui o limite entre o periodo medieval e 0 renascentista foi tragado de forma nitida demais. 0 desejo passional de revestir a pré- pria vida com beleza, o refinamento da arte de viver, 0 efcito colori- do de uma vida vivida segundo um ideal, tudo é mais antigo do que © Quattrocento italiano, Nao passam de antigas formas medievais os Préprics motivos usados pelos florentinos para o embelezameto da vida: Lorenzo de Médici, assim como Carlos, 0 Temerario, homena- geava 0 antigo ideal cavaleiresco como a forma mais nobre de vidas apesar do esplendor birbaro, sob muitos aspectos, ele vé até mesmo os duques da Borgonha como um modelo. A Italia descobriu novos horizontes da beleza da vida, deu a vida um novo tom, masa postura frente a ela ~ 0 desejo de estruturar a prépria vida ou mesmo elevi- la a uma forma artistica -, uma invengao vulgarmente considerada tipica do Renascimento, de modo algum foi criada nessa época. A grande ruptura na concep¢ao do belo se dé, segundo muitos, entre o Renascimento e os tempos modernos. 0 ponto da virada situa-se ali onde a arte ¢ a vida comecam a se separar, quando nao mais se desfruta da arte em meio A vida, como uma parte nobre do prazer de viver em si, mas fora da vida, como algo a ser altamente venerado, ao qual as pessoas se voltam em momentos de exaltacao ou de tranquilidade. Com a separacdo entre arte e vida, revive-se 0 velho dualismo que separava Deus ¢ 0 mundo. ‘Tragou-se uma linha separando os prazeres da vida. Eles foram partidos em duas metades, uma inferior e uma superior, Para o individuo medieval, juntas, elas constitufam um pecado; agora, todas elas sao aceitaveis, mas com diferentes niveis de respeitabilidade, de acordo com 0 seu caréter mais ou menos espiritual. As coisas que tornam a vida prazerosa permanecem as mesmas. Tan- to agora como antes sao: a leitura, a musi gosto pela natureza, esportes, a moda, vaidades corporativas (ordens de cavaleiros, cargos de honra, reunides) ¢ a exaltacdo dos sentidos. 0 limite entre o superior e 0 inferior, ainda hoje, para a maioria, pare- as belas-artes, viagens. 0 ce recair entre 0 gosto pela natureza e 0 esporte. Mas esse limite nao é fixo, Provavelmente o esporte, dentro em breve, pelo menos na medida em que ele é a arte da forca fisica e da coragem, passara outra vez a ser considerado superior. Para o individuo medieval, a fronteira estava, no maximo, no ato da leitura; mesmo o prazer da leitura s6 podia ser a ansia pela virtude da sabedoria; e na masica ¢ nas belas-artes, somente se reconhecia positivamente como servis- sacralizado se mostra: sem a fé; o prazer por si sé era um pecado. O Renascimento conseguiu livrar-se da recusa do prazer de viver, considerado um pecado em si mesmo, mas ainda nao havia estabelecido uma nova separacao entre © prazer de viver superior e 0 inferior; cle queria um desfrute desem- baracado da vida como um todo. Tal ruptura é 0 resultado do compro- misso entre o Renascimento ¢ o puritanismo, sobre o qual se assenta a postura espiritual moderna. Foi uma capitulacao de ambos os lados, em que um insistiu na salvagao do belo € outro na condenaco do pecado. 0 puritanismo radical, assim como ocorria na Idade Média, ainda con- siderava na base de sua doutrina que toda a esfera de embelezamento 0 ANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA da vida era pecaminosa e terrena, a nao ser que assumisse as formas religiosas citadas e se sacralizasse pelo uso a servico da fé. Somente A medida que a visdo puritana do mundo foi se desgastando € que a aceitacdo renascentista da alegria de viver ganhou novamente espago; & talvez mais espaco do que antes, pois desde o século xvitt cresce a ten- déncia de enxergar o natural per se como um elemento do que era eti- camente bom. Quem agora tentasse tracar a linha de separagdo entre © prazer superior e o inferior de viver, de acordo com a nossa conscién- cia ética, ndo mais separaria a arte da devassidao, o prazer natural dos exercicios fisicos, o eleyado do natural, mas separaria somente 0 ego- tismo, mentiras ¢ a vaidade da pureza. No periodo final da Idade Média, quando um novo espirito jd esta- va em vias de surgir, existia somente, em principio, a velha escolha entre Deus e o mundo: o completo desprezo de toda a maravilha e beleza das coisas terrenas e da vida ou a sua aceitacdo ousada, colo- cando a alma em perigo. A beleza do mundo, por seu reconhecido carater pecaminoso, acabava sendo uma tentacdo dupla: uma vez ren. dido a ela, entdo, significava desfruté-la com uma paixao desenfreada, Mas aqueles que nao conseguiam prescindir da beleza e nao queriam se render ao mundo precisavam enobrecé-la. Todo 0 conjunto da arte € da literatura, em que o essencial do prazer era a admiracio, podia ser \cralizado, desde que posto a servico da fé. Ainda que o diverti- mento da cor e da linha realmente inspirasse os amantes da pintura e das miniaturas, foram os temas sacros que retiraram o carimbo de pecado do prazer da arte Mas a beleza com um alto teor de pecado? A divinizacio do corpo no esporte cavaleiresco ¢ na moda da corre, a soberba e a ganancia por postas ¢ honras, as intensidades extasiantes do amor, como era pos sivel enobrecer ¢ elevar tudo que fora condenado e rejeitado pela fe? Para isso servia o caminho intermedidrio que levava ao mundo dos sonhos: revestia-se tudo com a bela aparéncia dos ideais antigos ¢ fantasticos. A caracteristica que liga a cultura franco-cavaleiresca do século x11 ao Renascimento é precisamente o intenso cultivo de uma vida bela sob as formas de um ideal heroico. A veneracao pela natureza ainda era muito incipiente para que, com conviccao, fosse possivel servir-se da beleza terrena desnuda, tal como o espirito grego o fizera; 0 con- ceito de pecado era forte demais para isso; a beleza s6 podia tornar-se cultura se estivesse envolvida nas vestes da virtude. ‘Toda a vida aristocratica do periodo final da Idade Média, quer se pense na Franca, na Borgonha ou em Florenca, é uma tentativa de encenar um sonho. Sempre 0 mesmo sonho, aquele dos velhos herdis e sabios, do cavaleiro e da virgem, do pastor simples e alegre. A Franca e a Borgonha continuam a encenar a peca a mancira antiga; sobre o mesmo tema, Florenca apresenta uma pega nova e mais bela. A vida nobre e soberana foi embelezada até o maximo da expressi- vidade; seus atos foram alcados ao nivel dos mistérios, enfeitados com cor e adornos, disfargados de virrudes. Os acontecimentos da vida ¢ as emoges que eles despertam sao enquadrados em formas belas ¢ ele- vadas. Sei bem que esse estado de espirito nao é especifico da época medieval tardia; ele jé crescia nos estagios primitivos da civilizacio; também se poderia chamé-lo de chinoiserie ou bizantinismo, ¢ nao desaparece com a Idade Média, como prova 0 Rei-Sol. A sociedade de corte é o terreno em que essa estetizacao da vida péde se desenvolver completamente. Sabe-se muito bem a importan- cia que os duques da Borgonha deram ao esplendor e a pompa de suas cortes. Depois das glérias da guerra, diz. Chastellain, a sociedade de corte é 0 primeiro assunto para o qual a atencdo se volta, ¢ cujas regulamentacio ¢ boa aplicacao sao da maior necessidade.” Olivier de la Marche, 0 mestre de cetiménias de Carlos, 0 ‘Temerario, a pedido do rei inglés Eduardo rv, escreveu seu tratado sobre a sociedade de corte do duque, para oferecer ao rei o modelo de cerimonial e de etiqueta a serem copiados."* Os Habsburgo herdaram da Borgonha um estilo de vida na corte finamente desenvolvido ¢ o levaram para Espanha e Austria, que permaneceram até ha pouco tempo como o seu baluar- te. A corte da Borgonha era exaltada por todos como sendo a mais tica e mais organizada que se poderia encontrar.” Sobretudo Carlos, o Temerario, homem de espirito violento em nome da ordem ¢ das regras, mas que 86 deixava rastros de desordem atras de si, era apaixo- nado pelas mais formais modalidades de a qual o préprio soberano ouvia as queixas ca gente pobre e simples la. A velha ilu: (0, segundo © as julgava no mesmo instante, fora fomentada por ele de forma grandiosa, Duas ou trés vezes por semana, apés a refeigao, ele conce- dia uma audiéncia publica, momento em que qualquer um poderia aproximar-se dele com um pedido por escrito. Todos os nobres de sta casa precisavam estar presente dadosamente separados conforme a hierarquia, eles se sentavam de ambos 0s lados do corredor que conduzia até 0 trono alto do soberano. ninguém ousava se ausentar, Cui- 0 POR UMA VIDA MAI A seus pés, ajoelhados, havia dois muistres de requestes, 0 audieneier e 0 sectetdrio, que liam os pedidos e despachavam, conforme as ordlens do soberano. Atris de balaustradas que circundavam o salio, ficavam os membros inferiores da corte. Em aparéncia, diz Chastellain, era “algo magnifico e de grande valor” [ure chose magnifique et de grand los}. mas 05 espectadores, que ali estavam por obrigagdo, se aborveciam tremendamente, ¢ ele possuia ld suas dividas quanto aos bons frutos dos tais vereditos; tratava-se de algo que, na época, Chastellain jamais havia visto da parte de um soberano,”* Para Carlos, o emerdrio, o lazer tinha de se revestir de formas solenes: Uma parte do dia ele deixava de lado todos os seus afa- espaldaralta, os nobresa sua frente, enquanto thes ofe- zeres sérios ¢, entre brincadeiras e sorrisos, divertia-se _recia todo tipo de discurso de acordo como tempoea com discursos muito banitos € com exortaces oraisa —acasido, £, coma saberano e superior de todos, sempre pratica da vircude por seus nobres. E com esse intuito, estava vestida de forma rica e maravilhosa, acima de muitas vezes ele era visto sentado em um tana. com — todos os demais, Esse esforco consciente da arte de viver, apesar das formas rigidas e ingénuas, é totalmente renascentista. O que Chastellain chama de “alta magnitude do coragio, porque ele era visto ¢ admirado nas coisas especiais” [haute magnificence de cocur pour estre vu et regardé en singulté- res choses}, & a caracteristica mais marcante do homem renascentista de Burckhardt. As ordenagées hiersirquicas da administragao da corte so de uma suculéncia pantagruél A mesa da corte de Carlos, 0 Temerario, regida por uma respeitabi- lidade quase livingi acarne, enchiam os copos, ¢ com seus mestres de cozinha, assemelha- a no que diz respeito a refeicbes e cozinha. . com seus servicais que serviam 0 pao, cortavam va-se 4 apresentacio de um grande e solene espetculo teatral. Toda a corte comia em grupos de dez, em salas separadas. servides como © seu senhor, tudo ordenado por hierarquia e posicao relativa, Tudo era tio bem organizado que todos 0s grupos apos as refeigoes tinham ainda tempo de cumprimentar o duque, que continuava a sua mesa, “para prestar-Ihe as honras” [pour iuy donner gloire]." 0 narrador anénimo do jantar do tltimo dia do carnaval em Thann, 21 de junho de 1469, oferecido pelo duque Sigismundo aos comissdrios borguinhdes por ocasiao da tomada do condado de Pfirt, sentitse muito superior aos modos alemaes a mesa: “em seguida veio 0 caboz assado, com o qual o meu abencoado senhor da Austria sujou toda a mesa”. “Ei necess4rio notar que, tio logo a comida era posta na mesa, todos comeca- vam a comer e, as vezes, 0 primeiro era aquele que ocupava a posicio inferior."*! Na cozinha (imaginemos a cozinha de dimen- ‘Ses heroicas, a tinica que restou conservada no palicio do duque de Dijon, com suas sete torres gigantescas) [2.4], est4 0 cozinheiro encarregado em um lugar entre a chaminé e 0 bufé, de onde ele pode supervisionar toda 2 operagao. Fle preci- sa segurar uma colher de pau “que The serve para duas coisas: uma delas, para provar sopas e mothos, ea outra, para tocar os ajudantes de cozinha para fora, para que cumpram com as suas obrigacdes, ¢, se necessario, bater neles”. As vezes, em raras ‘ocasides, o proprio cozinheiro servia a mesa, com um trunfo em suas maos como, por exemplo, as primeiras trufas ou o primeiro arenque. Para o distinto cortesio que tudo isso nos descreve, tratase de mistérios sagrados, dos quais ele fala com respeito e com uma ceria cientificidade escolastica. “Quando fisi pajem”, diz La Marche, “eu era ainda muito jovem para compreender as questdes de apresentagao e cetimonial.”* Ele apresenta aos seus leitores questoes relevantes sobre precedéncia e servico da corte, para resolvé-las segundo o seu conhe: mento maduro, Por que o cozinheiro cuida das refeigdes dos senhores e nao 0 “écuyer de cuisine”? Como o cozinheiro deve ser contratado? Quem deve substituilo em sua auséncia: 0 mestre das carnes (hauteur) ou o mestre das sopas (potagier)? Eu respondo, diz o sabio homem: quando é necessario ter um cozinheiro na corte do duque, os mestres de cozinha (maitres dhotel) devern chamar os ajudantes-mores da cozi ha (escuiers de cuisine) e todos aqueles que trabalham na cozinha, um pos 0 outro; e nessa escolha solene, feita por cada um sob juramen- to, 0 cozinheiro sera contratado. E quanto a segunda questio: nem 0 mestre de carnes nem 0 mestre de sopas podem substituir o cozinhei 0, pois 0 substituto dele devera passar por um processo de escolha similar, Por que os servidores de pio ¢ os enchedores de copo esto na primeira e segunda posicao, acima dos cortadores de carne e coz nheiros? Porque a sua tarefa refere se ao pao e ao vinho, coisas santas sobre as quais incide a virtude do sacramento *# OANSEIC MA VIDA MAIS BELA oantig Percebe-se que aqui existe uma ligacdo de fato entre as esferas da f8 eda etiqueta da corte. Nao é exagero dizer que no conjunto das for- mas de vida nobres e belas estd contido um clemento littirgico, que as eleva a um plano quase religioso. Apenas isso esclarece a impor- tncia extraordindria que (ndo somente no fim do periodo medieval) é atribuida a todas as questées de precedéncia e etiqueta. No antigo Império Russo, antes dos Romanov, querelas a respeito de precedéncia levaram ao estabelecimento de um servico regular na secretaria de Estado. Os Estados ocidentais da Idade Média nao conhe- ciam esse tipo de disputa, mas neles a inveja também ocupa um papel importante nas disputas sucess6rias. Seria ficil reunir os exemplos disso, mas se trata mais de mostrar como as formas de vida foram elaboradas enquanto jogos edificantes e belos, ¢ o crescimento descon- trolado desses jogos levou a uma ostentagao vazia. De fato, a forma as vezes € tao preponderante que o objetivo se perde completamente, Um pouco antes da batalha em Crécy, quatro cavaleiros franceses reconhe- ceram a ordem de ataque dos ingleses, O rei, que aguarda impaciente 0 relatério deles, vai avancando lentamente pelo campo e para quan- do os vé voltar. Eles atravessam a multidao de guerreiros até estarem diante do soberano. O que ha de novo, senhores?, ele pergunta. Eles se entreolharam sem dizer uma palavra sequer, pois nenhum queria falar antes do companheiro. E ficavam dizendo de um para 0 outro: -v6s, senhor, falai com o rei, Nao falarei antes de vés”. H assim ficaram Dizei se debatendo por algum tempo, pois nenhum queria “ter a honra” de comegar a falar. Até que o rei ordenou que um deles falasse.* A obje- tividade teve de recuar ainda mais diante da beleza da forma no caso do messire Gaultier Rallart, o chevalier du guet de Paris, em 1418. Esse chefe de policia nunca costumava fazer a ronda sem que trés ou quatro miisicos seguissem 8 sua frente, soprando alegres seus instrumentos, levando 0 povo a dizer que, na verdade, ele estava avisando os malan- dros: fujam, pois estou chegando.* 0 caso nao ¢ tinico. Em 1465, vé-se novamente como o bispo de Evreux, Jean Balue, faz a ronda notur- na em Paris com clarins, trompetes ¢ outros instrumentos musicais, “o que nao é normal para pessoas que fazem a guarda” |qui n’estoit pas ‘acoustumé de faire d gens faisans guet|* Mesmo no cadafalso a honra ea posicdo so levadas rigotosamente a sério: 0 do condestavel de Saint Pol ¢ ricamente decorado com lirios, as almofadas de oracio ea venda de veludo carmim, 0 carrasco é alguém que nunca realizou uma execugao, um privilégio um tanto quanto duvidoso para o condenado.* 63 ‘A competicao por quem tinha as melhores maneiras, que agora adquiriu um carter pequeno-burgués, era especialmente desenvol- vida na vida da corte do século xv. Era uma vergonha insuportivel nao ceder o lugar apropriado a alguém mais importante. Os duques borguinhées meticulosamente dao a preferéncia aos seus pares reais, da Franga. Jo8o sem Meco sempre demonstrou um respeito exagerado 4 sua jovem nora Michelle de Franca; ele a chamava de senhora ¢ sem- pre lhe fazia uma reveréncia de joellos, oferecendo-se para servila © tempo todo; ela, porém, nao estava preparada para isso."* Quando Filipe, o Bom, ficou sabendo que seu sobrinho, o delfim, havia fugido de Brabante devido a um conflito com 0 pai, ele interrompe o cerco de Deventer, que deveria ser 0 comeco da expedicao que colocaria a Frisia sob sett poder, ¢ volta as pressas para Bruxelas, para dar as boas-vindas ao héspede importante. Conforme 0 encontro vai se aproximando, surge uma verdadeira competicao para ver quem serd o primeiro a homenagear o outro. Filipe est apavorado com a ideia de o delfim cavalgar até ele; esporeando violentamente seu cavalo, ele segue a toda velocidade e envia um mensageiro atras do outro para convencer 0 delfim a esperé-lo onde esta. Jurara que se 0 filho do rei viesse a0 seu encontro, ele voltaria e cavalgaria para tao longe, que esse jamais © encontraria em lugar algum, pois isso seria para ele, 0 duque, moti- vo de deboche e desonra que faria 0 mundo Jembré-lo para sempre, Abandonando modes- tamente a habitual demonstracao de pompa, Filipe adentra Bruxelas cavalgando; desmon- ta rapidamente a frente do palacio, entra ¢ 0 atravessa correndo, La, ele vé o delfim, que havia deixado 0 seu comodo acompanhado da duquesa ditigindo-se ao seu encontro no patio interno, de bracos abertos. Instanta neamente o velho duque descobre a cabeca, ajoelha-se por um instante e, em seguida, continua a andar apressadamente. A duque- sa segura o delfim, para que este ndo dé mais nenhum passo; o delfim tenta, em yao, evi- tar que o duque se ajoelhe, e tenta fazé-lo se levantar, sem sucesso. Ambos choraram de emogao, diz Chastellain, assim como todos que estavam a sua volta. OR UMA VIDA MAIS BELA Durante todo o periodo em que hospedou esse homem 0 qual em breve, como rei, haveria de ser o pior inimigo de sua casa-o duque excedeurse em demonstracées de servilidade chinesa. [2.6] Chama a si e a0 filho de “essas pessoas que nao valem nada” |de si meschans gens], molha a sua cabega sexagenaria na chuva, oferece todas as suias terras ao delfim.”* “Aquele que se rebaixa diante de seu superior aumenta ¢ multiplica a sua propria honra, e a bondade desse ato resplandece de volta em sua prdpria face” (Celuy qui se humilie devant son plus grand, celuy accroist et multiplie son honneur envers soy-mesme, et de quoy la bonté mesme luy resplend et redonde en face]. Com essas palavras Chastellain conclui o relato, depois de contar como 0 conde de Cha- rolais inflexivelmente se recusava a lavar as mios antes das refeigdes no mesmo lavatorio da rainha Margarida da Inglaterra e seu jovem filho. Os nobres falaram disso o dia inteiro; o caso foi apresentado ao velho duque, que fez com que dois nobres argumentassem com os prs e os contras da atitude de Carlos. 0 sentimento de honra feudal ainda era tio vivo que coisas como essa realmente eram consideradas importantes, belas e dignificantes. Como, de outro modo, se poderia entender que possam ter durado mais de quinze minutos as reen- sas em aceitar a precedéncia como regra?" Quanto maior o tempo de durag Alguém a quem se destina um beijo na mio » da recusa, mais impressionadas ficam as pessoas presentes. a esconde para escapar dessa honra, Assim, a rainha da Espanha esconde a sua mao diante do jovern arquiduque Filipe, o Belo; [2.7] este aguarda por algum tempo e, assim que vé uma oportunidade, agarra a mo de surpre- sae a beija. Dessa feita a séria corte espanho- a rainha ja la explodin em gargalhadas, poi: nao esperava por aquele gesto. Todas as manifestacdes espontaneas de ternura sdo cuidadosamente formalizadas. Prescreve-se de forma precisa quais damas da corte devem andar de maos dadas. E nao apenas isso, mas também se uma pessoa pode ou nao tomar essa iniciativa. Esse esti- mulo ~ acenarem-se mutuamente (Hiucher) para caminhar em conjunto-¢, para avelha dama da corte que descreve o cerimonial borguinhao, um conceito téenico.” A formalidade de obstar um hos- pede que deseja partir é exercida até o extremo da inconveniéncia. Por alguns dias, a esposa de Luis x1 foi héspede de Filipe da Borgo- nha; o rei havia estabelecido um determinado dia para a volta dela, mas 0 duque recusou-se a deixéla partir, apesar de todas as stiplicas de seu séquito e por mais que ela mesma temesse a ira de seu mari- do. Goethe disse: “es gibt kein dusseres Zeichen der Hoftichkeit, das nicht einen tiefen sittlichen Grund hatte” [nao ha nenhum sinal externo de cortesia que nao posstiisse um profimdo motivo moral): “virtue gone to seed” [virtude levada ao extremo| foi como Emerson chamou as boas maneiras. Talvez ndo se possa afirmar com toda a certeza que esse fundamento moral ainda pudesse ser percebido no século xv, mas sem dtivida o valor estético se situava entre a manifestacdo pura de afeto ea avida forma social. Nao € preciso dizer que essa minuciosa ornamentacio da vida tem seu lugar sobretudo nas cortes dos soberanos, onde havia tempo e espaco para isso, Mas também permeavam as esferas inferiores da sociedade - algo comprovado pelo fato de que essas formas sociais (sem falar nas proprias cortes). 0 convite reiterado para servir-se de mais continuam preservadas hoje justamente na pequena burguesi comida, a insisténcia para que a pessoa fique mais um pouco, a recu- sa em passar na frente de alguém desapareceram em grande parte do comportamento social da alta burguesia na titima metade deste século, No século xv, essas formas esto em pleno vigor. Ainda quan- do penosamente observadas, sao objeto de satira mordaz. Encontrase sobretudo na Igreja o teatro das cerimonias longas ¢ belas. Durante 0 ofertério, ninguém quer ser o primeiro a levar a sua esmola ao altar. Passez.- Non fray. -Or avant! Pode passar.~Ah, no, obrigada ~Por favor! Ccertes si ferez, ma cousine Sem ddvida vs irels, prima Non feay. - Huche2no vosine —Nao, eu nao.—Chamea vizinha, Quelle doit mieux devant offi £ melhor que oferte primeiro. =Veus ne le deuriez south, — Vos ndo deveis tolerar, Dist 1a voisine:Wappartient Dizavizinha: Nem me passa pela cabeca: Armoy:offez, quia vous netient COfereceilogo, pois depende s6 de vos (Que ti pres tres ne se devre.* Para que o clérigo continue Quando finalmente o superior dentre todos jd havia passado, sob o tes- temunho humilde de sé fazé-lo para por um fim a paralisia, segue-se 66 + oan! | POR UMA VIDA MAIS BELA mais uma vez junto a almofada do 2.8e2.9 a mesma discussao, que come “paesberd”, “la paix", [2.8 e 2.9] a placa de madeira, prata ou mérmo- 7 2) paleo} Te que passara a fazer parte da missa, no final do periodo medieval, depois do Agnus Dei, em substituicao ao beijo da paz dado de boca em boca. O fato de 0 paix ser passado de mao em mao entre os presen. tes, sob a recusa educada de ser o primeiro a beijé-lo, wransformara-se num transtorno demorado ¢ rigido para o andamento dos servicos Respondre doit lajulene fame ‘A jovem mulher precisa responder dame —Pegai, eu nao pegarei Prenez, je ne prenciray nhora ~ Siferez, prenez, douce amie —Mas por favor, pegai, querida amiga ie le prendtray Certamente, nao sou eu que vou pe: F que vou p it pouru Haveriam de me considerarlouca rote Passai-o senhorita Marote dammaiselle ¥ 0a mim, Deus me quarde! t t men gart =Non feray, Portez ama dame Ermagart Passal-o a senhora Ermage pegai,~Santa Maria /r, senor ncte Marie, Dame, prenez Porter la paix alo bali Passai 0 paix ao funcionario. ‘Non, mais a la gouverneresse* — Nao, a mulher do governador esta, por fim, o aceita. Mesmo um homem san- to, que renunciara ao mundo, como Francisco de Paula considera uma obrigagao sua participar des- sas altercagées,”” algo que {oi reconhecido por seus admiradores piedosos como marca de verdadeira humildade, provando que 0 contetido ético des- sas formas ainda nao havia se desfeito totalmente. A importancia dessas formalidades, lids, tornase mais evidente no fato de que a precedéncia, que as pessoas tao civilizadamente impunham umas 4s outras na Igreja, era por outro lado a causa de que- relas voliteis e obstinadas.® A precedéncia décil era uma rentincia bela ¢ louvdvel da arrogincia Durguesa ou nobre que ainda se sentia vivamente. Dessa forma, as missas pareciam um minueto, pois na saida da igre- ja Tepetia-se a querela; depois vinha a competicao para deixar o indivi duo mais importante do lado direito, para dar a preferéncia na hora de atravessar uma tabua por cima de um fosso ou seguir por uma ruela. a Chegando em casa, do mesmo modo que continua a exigir a etiqueta espanhola, deve-se convidar todo o grupo para entrar e beber alguma coisa, a que os outros devern recusar desculpando-se educadamente; depois, dev € tudo isso sob educados protestos dos que foram acompanhados.”* se acompanhar 0s outros por uma parte do caminho, Todas essas formas frivolas nos parecem algo tocantes se pensar- mos que florescem da luta séria de uma raca raivosa e passional con- tra a sua propria altiver célera. Muitas vezes a rentincia formal do orgulho fracassa. A rudeza agressiva acaba irrompendo através das formas ornamentadas. Joao da Baviera se hospeda em Paris; [2.10] os grandes senhiores dao festas pomposas, e numa delas 0 bispo eleito de Liege ganha de todos 0 dinheiro apostado no jogo. O principe nao se contém e exclama: “Mas que diabo de padre ¢ esse? Como? Sera que ele vai arrancar todo 0 nosso dinheiro2”. E Jodo responde: “Nao sou um padre, e nao necesito de vosso dinheiro”, E ele acaba por pegar 0 dinheiro e jogi-lo ao redor de todo o grupo, “de forma que muitos ficaram abismados com a sua grande generosidade” [Dont y pluseurs orent grant mervelle de sa grant liberaliteit]."” Hugo de Lannoy [2.1] bate com uma luva de ferro num homem que estd ajoelhado diante do ; 0 cardeal de Bar acusa um padre de mentir na duque para acusé presenca do rei e o chama de cao traigoeiro." 88 - OANSEIO POR UMA VIDA MAIS 5 Fieit tara once cde Hola a O sentimento formal de honra é tao forte, que uma transgressio da etiqueta, como até hoje acontece em muitos povos orientais, era considerada um ultraje mortal, pois destruia a bela ilusio de uma vida elevada e pura, que no entanto sucumbe a qualquer realidade desvelada. Para Joao sem Medo era uma alronta indelével que Cape- Iuche, o carrasco de Paris, que o encontra em trajes régios, o cum- primentasse como a um nobre, tocando-Ihe a mao; somente a morte do carrasco poderia reparar esse ultraje.* No banquete da coroacao de Carlos v1, em 1380, Filipe de Borgonha se colocou a forga entre o rei eo duque de Anjou para sentarse no lugar que lhe cabia como doyen des pairs; disso resultam gritos de ambos os lados ¢, quando a disputa ameaga se resolver pela forga, o rei a apazigua, concedendo a exigéncia do borguinhao."' Também na seriedade da vida do campo nao ¢ tolerado nenhum descuido nas formas: o rei da Inglaterra fica muito ofendido quando L'Isle Adam aparece diante dele em um traje “blanc gris” e The olha nos olhos.* [2.12] Um capitio inglés manda um parlamentar da Sens sitiada barbear-se antes de recebé-lo.* 69 A espléndida ordem da corte da Borgonha, prezada pelos contem- poraneos," revela seu verdadeiro significado apenas comparada 4 confusao que costumava reinar na antiga corte francesa. Deschamps queixa-se em intimeras baladas sobre o tédio da vida na corte, e seus lamentos sao um pouco mais do que a desaprovagao habitual pela vida dos cortesdos, sobre o que falaré mais tarde. Comida e aloja- mentos ruins, ruido e confusdo permanentes, brigas e xingamentos, inyeja e desprezo, um antro de pecados, uma porta para o inferno. Apesar da respeitosa veneragao a realeza e da organizacao orgulhosa de grandes ceriménias, o decoro lamentavelmente deixa de existir em algumas das ocasides mais solenes. Por ocasiio do enterro de Carlos v1 em Saint Denis, em 1422, hé uma grande querela entre os monges da abadia ¢ a guilda dos oficiais da gabela (henowars) de Paris acerca da tinica ¢ outras roupagens que deveriam cobrir 0 corpo real; cada partido reclama 0 direito sobre isso: cada um puxa para o seu lado e quase se pegam a tapa, mas o duque de Bedford poe a solucio do conflito nas maos da justica, “e o corpo foi enterrado” [et {fut le corps enterré|.* A mesma querela repete-se em 1461, no enterro de Carlos vir. A caminho de Saint Denis, chegados a Croix aux Fiens, 08 henouars, apds uma discussio com os monges da abadia, recusaram- -se a continuar carregando 0 corpo real se nao Ihes fossem pagas trés libras de Paris, a que reclamavam ter direito, Fles largam 0 atatide no meio da rua € 0 cortejo fica suspenso por um bom tempo. Os cidadios de Saint Denis ja estavam se propondo a assumir 0 encargo, quando 0 grand écuyer promete pagar aos henouars do préprio bolso, com o que o cortejo pade seguir adiante para somente chegar a igreja por volta das oito horas da noite. Logo apés o enterro, segue-se uma nova disputa sobre a tinica real entre © préprio grande écuyer real e 0s monges.*” De certo modo, tumultos semelhantes pela posse dos utensilios de uma solenidade cram rotineiros; a quebra da forma ja havia se tornado uma forma.” piblico em geral, cuja presenca era obrigatéria até o século xvt1 em todos os acontecimentos importantes na vida real, fazia com que justamente nas solenidades maiores muitas vezes faltasse toda e qual quer ordem. No banquete de coroagao de 1380, a confusdo de especta- dores, participantes e servicais foi tao grande, que estes tltimos tive- ram de servir 0 condestavel o marechal de Sancerre a cavalo. Quan- do Henrique vi da Inglaterra foi coroado rei da Franca em Paris em 1431, bem cedo pela manha 0 povo invade 0 grande salao do palacio 7 + OANSEIO onde sera realizado o banquete para olhar, roubar e se empanturrar, Os lordes do Parlamento, da universidade, o prévit des marchands ¢ 0 conselheiro municipal mal conseguem chegar ao salio do banquete e, uma vez ld, encontram as mesas destinadas a eles ocupadas por intimeros artesdos. Tentow-se retird-los das mesas, “mas quando um ou dois se levantavam, seis ou oito sentavam-se do outro lado” [mais quant on en faisoit lever ung ou deus, il s'en asscoit v1 ow vias d'autre coste Na coroacao de Luiz x1 em 1461, adotouse a precaucao de fechar vigiar as entradas da catedral de Reims, de modo que nao houvesse mais pessoas na igreja além das que o coro pudesse acomodar com seguranca. Mesmo assim, as pessoas invadiram de tal maneira 0 entor- no do altar onde ocorria a ungao que os prdprios prelados auxiliares do arcebispo mal tinham como se mexerem, ¢ os principes de sangue, em seus assentos de honra, acabaram correndo riscos.** A Igreja em Paris tolerou (até 1622) com dificuldade a ideia de que ainda era subordinada ao arcebispado de Sens. Faz-se com que © arcebispo note de todas as maneiras que a sua autoridade nao era apreciada, ¢ ha referéncias constantes a uma isencao concedida pelo papa. Em 2 de fevereiro de 1492, o arcebispo de Sens celebrou a missa na Notre Dame de Paris na presenca do rei. Com o soberano ainda na igreja, o arcebispo, abencoando o povo, retira-se com a cruz sacerdotal a sua frente. Dois conegos entram com um grande ntimero de eclesidsticos, agarram com violéncia a cruz, tirando-a das mos do carregador, ¢ a danificam, criando um tumulto em que os cabe- los dos auxiliares do arcebispo sio arrancados. Quando 0 arcebispo tentou acalmar o entrevero, “sem Ihe dizer uma palavra, foram para cima dele, Lhuillier (dedo da Catedral) deu uma cotovelada em seu estémago, 0 outro arrebentou 0 seu chapéu pontifical e seus cordoes 0 outro cénego vai atris do arcebispo “falando todo tipo de impre- cagio e enfiando o dedo na cara dele, e o agarron de tal forma pelo brago que 0 roquete acaba se rasgando; e se nao tivesse se protegido com a mao, teria levado uma bofetada na cara” [sans lui mot dire, vin rent prés de lui Lhuillier Tui baille du coude dans "estomac, les autres rompirent Je chapeau pontifical et les cordons d'icelluy. (..) disant plusicurs injures en luy mectant le doigt au visage, et prenant son bras tant que dessira son rochet; et eust esté que n’eust mis sa main au devant, Veust frappé au visage). Seguin -se uum processo de treze anos. O espirito apaixonado e violento, ora duro, ora condescendente, oscilando entre uma desesperanca profunda em relagao ao mundo ¢ 4 um festejo por sua beleza colorida, nao podia existir fora do mais estri- tamente formalizado comportamento, Era essencial que a excitagio fosse fixada em uma moldura rigida de formas-modelo, Apenas assim a vida poderia alcangar uma ordenagao regular. Com isso, a prépria experiéncia se transformou em uma bela, intelectualmente aprazivel representagio; desfrutavase da exibicio exagerada de softimento e alegria sob uma luz artificial, Ainda faltam os meios para uma expres- so espiritual pura; apenas a conformacio estética das emogées per- mitia atingir o alto grau de expresso exigido nesse tempo. Isso nfo significa que tais formas de vida — sobretudo as que cer amento cam as grandes e antigas coisas sagradas do nascimento, € morte ~ fossem instituidas com esse objetivo. Costumes ¢ cerimo- nias surgiram a partir de crencas ¢ cultos primitivos. Mas seu sentido original havia muito ja tinha se tornado inconsciente, e no lugar dele as formas adquiriram um valor estético novo. No luto, a encenagao do pesar assumiu sua forma mais sugesti- va. Havia um campo ilimitado para a maravilhosa hiperbolizacao da dor, que € 0 oposto da hiperbolizagao da alegria nas incriveis fes- tas da corte, Aqui ndo queremos oferecer uma descricao detalhada de toda essa ostentagdo sombria de trajes negros, de toda essa pompa dos servigos mortuarios que acompanham a morte de cada soberano, Elas nao sao exclusivas do final da Idade Média; as monarquias as mantém até os dias de hoje, e também o carro filnebre burgués ainda € uma remanescéncia disso. A sugestividade do preto, que por oca- sidio da morte de um soberano nao s6 a corte trajava mas também os magistrados, os membros das guildas ¢ o povo comum, deve ter cons- tituido um contraste ainda maior frente ao colorido vive da vida urba- na medieval. A pompa do funeral de Jodo sem Medo, assassinado, foi claramente talhada para provocar um forte efeito (em parte, politico) [213] A comitiva de guerreiros com que Filipe marcha ao encontro dos reis da Franga e da Inglaterra brilha com duas mil bandeirolas negras, com estandartes da mesma cor e flamulas de sete jardas, com franjas de seda preta e tudo bordado ou decorado com brasdes dou- rados, 0 trono e os carros de viagem do duque foram pintados de preto para.a ocasido.® Em uma espléndida reuniao em Troyes, Filipe acompanha as rainhas da Franga e da Inglaterra em uma roupagem de veludo de luto, que pende até o chao ao longo do lombo de seu cavalo.” Ele e seu séquito continuam a se vestir de preto ainda por um bom tempo. 72 « O ANSEIO POR LIMA VIDA MAIS BELA As vezes, uma excecio em meio a todo aquele preto podia realgar o impacto: en- quanto toda a corte, inclusive a rainha, tra- java o preto, o rei da Franca expressava 0 huto em vermelho.* E em 1393 0 patisien- ses viram, abismados, toda a pompa bran- ca do cortejo fiinebre do rei da Arménia, Leao de Lusignan, que morreu no exilio.” Sem diivida alguma aquele preto mui las vezes ocultava uma intensidade de dor verdade' horror 4 morte, os lacos familiares for- ‘a e passional. O grande tes ea intima dependéncia do senhor transformavam a morte de um sobera- no hum acontecimento verdadeiramen- te chocante. E, como no assassinato do duque da Borgonha em 1419, se além do mais fosse dilacerada a honra de um povo orgulhoso e evocada a vingan- Ga como uma obrigacdo santa, entao a expresso hiperbélica de dor seria pro- porcional em pompa ¢ em animo a dor deveras sentida. Chastellain lidou profu samente com a estética dessa noticia de morte; no estilo pesado e arrastado de sua retérica distinta, ele inventa 0 longo discurso com 0 qual 0 bispo de Tournay em Gent lentamente prepara o jovem duque para a terrivel noticia, imaginando mesmo as lamtirias solenes do préprio Filipe e de sua esposa, Michelle de Franca. Mas o amago da histéria 6 bem real: nao resta diivida de que ao receber a noticia 0 jovem duque teve um colapso nervoso, sua esposa desmaiou e uma tremenda confusao se instalou na corte, com gritos de softimento pela cidade, numa expressio descontrolada da dor. Também o rela- to de Chastellain sobre a expresso da dor de Carlos, o Temerario, Por ocasido da morte de Filipe, em 1467, tem elementos de verdade © choque, aqui, foi bem menos intenso; o estado do velho duque, bastante senil, havia muito jd vinha se deteriorando; nos tiltimos anos, a rela¢ao mitua entre ele e o filho tinha deixado de ser cordial, de modo que 0 proprio Chastellain nota que todos ficaram pasmos quando viram Carlos aos prantos, a gritar, torcer as maos e cair no chao junto ao leito de morte do pai, “e nao houve regra nem medida, e de tal maneira que causou espanto sua dor desmesurada’ [et ne tenvit régle, ne mesure, et tellement qu'il fit chacun s‘ ‘Também na cidade de Bruges, onde o duque morreu, “era comovente ouvir todo tipo de smerveiller de sa démesurée douleur| gente gritar ¢ chorar e soltar varios lamen- tos ¢ expressées de tristeza” |estoit pitié de ayr toutes maniéres de gens crier et plorer et faire leurs divers es lamentations et regrets)" F dificil distinguir até que ponto nesse eem relatos semethantes estamos diante do estilo da corte, que considera adequada e elegante uma demonstragio ruidosa da dor, ou de uma intensa e verdadeira emotividade prépria da Sem chivida, hé um forte elemento pri époc mitivo: o pranto alto pelo morto, na voz de mulheres carpideiras, ¢ expresso artisticamen: te nos plourants, que nessa época emprestam uma emogio muito forte a escultura tumular, elemento cultural muito antigo. [2.14] A combinacao do primitivismo com essas demonstragées emo- tivas também pode ser vista no grande medo em comunicar um falecimento a alguém. Por muito tempo oculta-se da condessa de Charolais, enquanto ela estava gravida de Maria da Borgonha, a mor- te do pai; nao se ousava comunicar a Filipe, o Bom, que estava aca- mado, nem um unico caso de morte que de alguma forma pudesse atingi-lo, de modo que Adolfo de Cleves nao péde usar luto pela morte da esposa. [2.15] Mas quando 0 duque, mesmo assim, ouviu rumores da morte de seu chanceler Nicolas Rolin (Chastellain até usa a expressao: "avoit esté en vent un peu de ces te mort"), ele pergunta ao arcebispo de Tournay, que vai visitélo enquanto esta acamado, se era verdade que o chanceler havia falecido. "Meu senhor”, diz verdade € que morto ele ja esta, pois ele velho e © arcebispo, * alquebrado, ¢ nao vai mais viver por muito tempo.” “Déa!”, diz 0 duque, “nao é isso que estou perguntando, o que quero saber € se ele esta mort de mort el trespassé.” “Bem, meu senhor”, diz o bispo outra vez, “ele nao morreu, mas esta paralisado de um lado, portanto, 234M Attar ne PR aaa MOT UTE NaY i) praticamente morto.” 0 duque fica bravo: “Vechy merveilles! [papo furado!) agora diga-me claramente, se ele esti morto”. $6 ento é que © bispo diz: “Sim, meu senhor, é verdade, ele realmente morreu” fal maneira peculiar de participar um falecimento nao revelaria antes de tudo uma velha e supersticiosa forma do que apenas a con- sideragao por um doente, a quem toda essa hesitagio na verdade poderia irritar? Tudo isso fazia parte do tipo de pensamento que levava Luis x1 a nunca mais usar as roupas que vestia ou usar o mes- mo cavalo que montava no momento em que recebia uma noticia ruim; chegou até a mandar derrubar toda uma parte do bosque de Loches, onde recebeu a noticia da morte do filho, recém-nascido. *Senhor chanceler”, ele escreve em 25 de maio de 1483, “agradeco- -Ihe pelas cartas, mas vos peco que nao mais as envie por quem as mandou, pois achei que seu rosto mudou terrivelmente desde a liltima vez que 0 vi, ¢ juro pela minha fé que ele me incute grande medo; € adeus” [M, le chancellier, je vous mercye des lettres etc. mais je vous pry que ne m’en envoyés plus par celluy qui les m’a aportées, car je Tuy ay trouvé le visage terriblement changé depuis que je ne le vitz, et vous prometz par ma foy qu'il m’a fait grant peur; et adieu). Sejam quais forem os velhos tabus que possam estar por tras dos costumes do luto, seu valor cultural vivo é que da forma ao sofrimento, eles 0 mostram como algo bonito e elevado. Conferem ritmo a dor. Eles transferem a vida real para a esfera do drama e the calgam coturnos.* Em uma civilizacio mais primitiva - penso, por exemplo, na irlandesa - os costumes do luto ¢ a poesia funerdria ainda sio uma tmica coisa; entender o luto da corte na época da Borgonha é possivel apenas se 0 relacionarmos a elegia. O luto deve manifestar na forma bela quao de todo impotente diante do sofrimenta se encontra a pessoa. Quan- to mais alta a posi¢ao, tanto mais heroica prec sera demonstracio da dor. A rainha da Franca teve de ficar um ano intciro encerrada no quarto onde Lhe foi informada a morte do marido. P: as princesas, a regra eram seis semanas. Quando Madame de Charolais, Isabel de Bourbon, foi informada da morte de seu pai, ela chega a compare- cer ao funeral no castelo Couwenberg e, depois disso, fica reclusa por seis semanas em seu quarto, sempre deitada na cama, apoiada em almofadas, mas vestida com bariett2,** touca e manto. O quarto 6 todo revestido de preto. No piso, em vez de um tapete macio, ha um grande lencol preto, ¢ a grande antecamara esta igualmente revestida da mesma cor. As mulheres da nobreza ficam seis semanas de cama unicamente quando morre 0 marido. No caso da morte de pai ou mae so apenas nove dias, porém durante o resto das seis semanas ficam sentadas diante da cama, sobre um grande pano preto, Quando se tratava do irmio mais velho, ficava-se recolhida a0 quarto por seis semanas, mas nao restrita 4 cama.” Numa época em que se observava um cerimonial tao rigoroso, considera-se uma das circunstancias mais terriveis do assassinato de 1419, relembrado a toda hora, o fato de Joao sem Medo ter sido enterrado sem maiores cuidados, apenas com um casaco curto, calgas € sapatos.* 76 - CANSEIO PORUMAVIOA MAIS BELA O sentimento do luto, vestido ¢ assimilado nessas formas extre- mamente belas, torna-se mais ficil de ser vivido; a ansia por drama- uzar a vida cede espaco aos “bastidores”, onde 0 pathos nobremente ornaimentado pode ser recusado, Existe uma separacao ingénua entre status e vida real, a qual é caracteristicamente trazida a luz nos escri tos da velha dama da corre Aliénor de Poitiers, que ainda venera todas essas demonstragdes como se fossem elevados mistérios. A descri do esplendoroso luto de Isabel de Bourbon, ela acrescenta: “Quando madame estava em seus aposentos privados, isso nao queria dizer que estava sempre deitada na cama, e muito menos que ficava em um quarto” |Quand Madame estoit en son particulier, elle n’estoit point toujours couchée, ni en une chambre"|. Aqui, “en une chambre” ndo deve ser enten- dido como “num mesmo recinto”. Chambre significa um conjunte de decoracées de parede, vestnario, roupas de cama etc., que serve pa estofar um recinto, ou seja, um quarto pomposo especialmente ajei tado.” A princesa recebe visitas nessa condi¢dio, mas somente como uma bela formalidade. Assim, Aliénor também diz: 4 meméria do marido morto deve-se trajar o vestido de luto por dois anos, desde que “ndo se tenha casado novamente”’ K justamente nas posi¢des mais altas, a saber os soberanos, eles se casavam bem depressa novamen- te; o duque de Bedford, regente da Franca em nome do jovem Henri- que VI, j4 0 faz depois de cinco meses. Ao lado do tuto, o quarto da partu riente oferece uma ampla oportuni- dade para uma pompa séria e distin- GOes hierarquicas de ostentacio. Aqui, as cores tém um significado. O ve de, que até 0 século xrx era uma cor comum para 0 bergo burgués ¢ 0 vuur mand |secador das roupas do bebé|, no século xv era prerrogativa de rainhas € princesas. [2.16] O quarto de partu- riente da rainha da Franca é de seda verde; antigamente, era todo branco. Mesmo as duquesas nao é permitido ter “la chambre verte”. Tecidos, peles € cores de mantas e colchas dio pre definidos. Sobre o aparador hai sem: pre duas velas grandes brithando em 2.46 Pr candelabros de prata, pois as janelas do quar- to da parturiente somente sio abertas quator ze dias ap6s o parto, O que também chama a atengio sao as camas faustosas, vazias, assim, como as carruagens no enterro do rei da Espanha. A jovem mie, Isabel de Bourbon, fica deitada em um leito diante da lareira, ea crianga, Maria da Borgonha, em um berco no quarto do bebé; mas, além disso, no quarto da parturiente havia ainda duas camas gran- des ornadas de cortinas verdes, tudo ajeitado ¢ arrumado para alguém dormir, ¢ no quar- to da crianga outras duas camas grandes, tudo em verde e roxo e, mais uma vez, uma ‘ cama grande em uma antecimara, toda forra- da de seda carmim. Essa chambre de parement tinha um tapete com um sol bordado em fios dourados, que havia muito Jodo sem Medo tinha ganhado da cidade de Utrecht ¢ por isso era chamado de la chambre d’Utrecht. Nas solenidades batismais, as camas destinavam-se ao uso cerimonial.”” Essa estética das formas podia ser vista no aspecto diario da cidade e do campo: a rigida hierarquia de tecidos, cores e peles proporcio- nava as diversas classes um enquadramento externo que ao mesmo tempo elevava e protegia 0 sentimento de dignidade. A estética das emogées nao se limitava as alegrias e dores solenes nas ocasides dos partos, casamentos e morte, quando as procissdes exerciam uma funcao nas ceriménias obrigatérias. Cada acdo de natureza ética era preferencialmente vista em termos de uma forma lindamente este- tizada. Existe um elemento desse tipo na admiracio pela humildade ¢ autopunicao de um santo, pelo arrependimento do pecador, como a “moult belle contrition de ses péchés" |a mais bela contricdo de seus pecados] de Agnés Sorel.” [2.17] Todo relacionamento na vida pessoal é estilizado; no lugar da preocupacao moderna de esconder e varrer as relacées intimas, o homem medieval esforcava-se para expressé- -las em uma forma e transformé-las em um espetdculo também para outros. Assim, também a amizade possui ma vida do século xv a sua forma bela e elaborada. Além das antigas irmandades de sangue e de armas, honradas tanto entre 0 povo quanto entre a nobreza, conhece-se uma forma de amizade sentimental que ¢ expressa pela 78 + OANSEIO POR UMA VIDA MAls BELA 2a7 Agn palavra mignon, O mignon do principe é uma instituicao formalizada que se manteve por todo o século xvi e parte do século xvIt. Trata-se da relagao de Jaime 1 da Inglaterra com Robert Carr e George Villiers; também Guilherme de Orange deve ser visto sob esse aspecto na épo- ca da remincia de Carlos V. Twelfth Night [Noite de reis| somente pode ser entendida tendo-se em vista essa forma particular de amizade do duque com o suposto Cesario. A relacao é vista como um paralelo ao amor cortesao “Sy n’as dame ne mignon” [se no tens dama ou mignon] diz Chastellain.* Mas falta toda ¢ qualquer alusao que a levasse para © mesmo patamar da amizade grega. A franqueza com que é trata- da a amizade mignon, numa época em que o crimen nefandum era tao abominado, deve silenciar qualquer suspeita. Bernardino de Siena aponta como exemplo a seus compatriotas italianos, entre os quais a sodomia era bem difundida, a Franca e a Alemanha, onde ela nao era conhecida.* Apenas um soberano muito odiado seria acusado, vez por outra, de ter um relacionamento proibido com seu oficial favori- to, como aconteceu com Ricardo 11 da Inglaterra e Robert de Vere. Mas, em geral, tratase de um comportamento acima de qualquer suspeita, uma honra para o favorecido, a qual ele mesmo confessa. © proprio Commines conta como ele desfrutava da honra distinta de ser favorecido por Luis x1, por lhe ter permitido vestir-se como ele.” Pois esse € 0 sinal claro de uma relagao. O rei sempre tem um mignon entitre, usando os mesmos trajes, em quem se apoia por ocasiao das recepsoes.”” Muitas vezes sao dois amigos da mesma idade, mas de classes diferentes, que se vestiam de modo igual, dormiam em um mesmo quarto e as vezes até na mesma cama.* Uma amizade insepa- ravel existe entre o jovem Gaston de Foix e o seu irmio bastardo, que tem um fim tagico; entre Luis de Orléans (entdo ainda de Touraine) e Pierre de Craon,” ¢ entre o jovem duque de Cleves ¢ Jacques de Lalaing. Da mesma forma, as princesas tm wma amiga intima, que se veste como elas, e também ¢ chamada de mignonne.*” Todas essas formas de vida belamente estilizadas, que precisavam elevar a verdade crua a uma esfera de harmonia nobre, eram partes de uma grande arte da vida, sem que tivessem um impacto imediato na arte propriamente dita. As boas maneiras, com sua aparéncia amistosa de altruismo espontineo e verdadeiro reconhecimento dos outros. a pompa ea etiqueta da corte, com toda a sua seriedade e dignidade hie- ritica, a jovial decoracao das mipcias e do quarto da parturiente, toda essa beleza passou sem deixar rastros diretos na arte ¢ na literatura. O meio de expressdo que os une nao € a arte, mas a moda, Neste momento, a moda, de um modo geral, est4 muito mais préxima da arte do que a estética académica gostaria de admitir, Como uma acen- tuagao artificial da beleza e da movimentacao do corpo, ela apresenta uma ligacdo estreita com uma das artes: a danga. Mas, além disso, no século xv o dominio da moda, ou melhor dizendo, 0 codigo dos trajes, est muito mais perto da arte do que tendemos a imaginar. Nao somente pelo fato do uso frequente de joias e de metais trabalhados nos trajes de guerra, que Ihes conférem um elemento artesanal ime- diato. A moda partilha as mesmas caracteristicas essenciais da arte: estilo e ritmo também sao indispensdveis para ela. O periodo da Idade Média tardia sempre expressou no cédigo dos trajes uma medida do estilo de vida, algo que hoje em dia, mesmo em uma solenidade real, nao passa de uma pélida sombra. Na vida cotidiana as diferencas de peles e cores, capas e toucas indicavam a rigida ordem das classes, as dignidades esplendorosas, o estado de alegria ou softimento, a relacdo terna entre amigos e amantes. Em todos os campos da vida, a estética se desenvolvera da forma mais expressiva possivel. Quanto mais alto o contetido de beleza e moralidade, tanto mais se podia expressd-lo como verdadeira arte. ‘A cortesania e a ctiqueta cncontram sua expressdo bela apenas na prdpria vida, nas roupas e pompa. 0 Tuto, por outro lado, encontra sua expresso mais forte em uma forma artistica poderosa e dura- doura: 0 monumento funerério; o valor cultural do luto situava-se num patamar alto devido a sua ligacdo com a religiosidade. Mais rico ainda era o florescimento estético destes trés elementos da vida: bravura, honra € amor. BO » CANSEIO POR UMA VIDA MAIS BELA Notas 1 Allen n? 541, Antuérpia, 26 de fevereiro de 1516/17, comp. n. 542, 1. 566, n. 812, n. 967. Germanae, aqui, nao pode significar “alemao” 3. Fustache Deschamps, Gruvres completes, De Queux de Saint Hilaire eG, Raynaud (ed). Paris Société des anciens textes francais, 1878-1903. V1.1. 31 (1, p. 423), comp. ns. 85, 126, 152, 162, 176, 244. 366, 375, 386, 400, 933, 936, 1195, 1196, 1207, 1213, 1239, 1240 etc, ete; Chastel- lain, Oeuvres, Kervyn de Lettenhove (org.). Bruxe- las: 1863-66, ¥.1, pp.9, 27. IV. BD. 5, 56, V. VI. bp. 206, 208, 219, 295; Alain Chartier, Tuvres, ‘A. Duchesne (ed). Paris, 1617, p. 262: Alnus de Rupe, Sermo, in B Alanus redivivus, A. Coppens- tein (ed,), Népoles, 1642. v.11, p. 313. 4 Ke, ibid. n. 562, ¥1¥, p. 18, 5 A dela Borderie, Jean Meschinot, sa vie et ses oeuvres. Bibliotheque de I'Ecole des chartes, 1895, ¥. LVI, DP. 277, 280, 305, 310, 312, 623 ete. Chastellain, op. cit. v. 1p. 10. v. vm, p. 334. 7 Dela Marche, Mémoires, Reaune e d’Arbaumont (ca), Paris: Société de histoire de la France, 1883-88, v1, p. 186, 1v, p. EXXXIX; H. Stein, Etude sur Olivier de la Marche, historien, poete et diplomate, Bruxelas, Mém., couronnés ete. de Acad. royale de Belg,, 1888, t. XL1x, fron. lispicio. 8 Monstrelet, op. cit,,v. 1, p. 430. Uroissart, op. cit, v. x, p. 275; Deschamps, op. cit., n. 810, ¥.1V, p, 327: cf. Les Quinze joyes de mariage, Paris: Marpon et Flammarion, p. 54 (quinte joye): Le livre mossire Geaffrai de Charny, Romania, v. XxVI, 1897. p. 398 10 Joannis de Varennis responsiones ad capitula accusa- Hionum ete. § 17, por Gerson, Opera, v.1, p. 920. 11 Deschamps, op. cit.. n. 95, ¥.1. p. 203. 12 Deschamps, Le miroir de mariage. v. 1x. pp. 25 69, 81. m. 1004. ¥. V, p. 259: mais v.11, pp. 8, 183/87; ¥. 111. pp. 39, 373: Pp. 209 etc. Vil, By Bi We IX, 13 Convivi, livre tv, eap. 27. 28. 14 Gerson, Discours de Vexcellence de virginité, Opera V. 1, p. 382. Comp. Dionysius Cartusianns, De vanitate mundi, Opera omnia, cura et labore monachorum saer. ord. Cart., Monstrolii- Tornaci 1896-1913, 41 vols.. v.xxxIx, p. 472. 15 Chastellain, op. cit, v. v, p. 364. 16 La Marche, op. cit, v,1V, p. exIV, A velha tradugio holandesa de Estat dela maison du duc Charles de Bourgogne por Matthacus, in Analecta, V1, PD. 357-494 Christine de Pisan, Euvres podtiques, M. Roy (ed). Paris: Société des anciens textes francais, 1886-96, v.t, p. 251, m. 38: Leo von Rozmitals Reise, Schmeller (ed,). Stuttgart: Bibliothek des Uterarischen Vereins zu Stuttgart, v. vit, 1844, Pp. 24, 149. 48 Ta Marche, op. cit, v.1v, pp. 4 $s Chastellain, op. cit, v. , p. 370. 19 Tournoit toutes ses mar et es moeurs d sens une ‘part du jour, et avecques jeux et ris emtremestés, se Aatioit er beau pater et en amonester ses nobles di vert, comme un ovateur. ten cestuy regart, phusiews Sots, s'est trouve assis en un hautdos paré, et ses nobles devant Iuy, Ul ow i leur ft diverses remoastrances selon les divers temps et causes. Ft toujours, comme prince et chef sur tous, fat richement et magnifiquement habitué sur tous les autres, Chastellain, op. cit. v. v, p. 868. 20 La Marche, op. cit., v.1v, “Estat de la maison”, Pp. 3458 21 Nowvelles envoyees de la conté de Ferette par ceulx qui ‘en sont esté prendre la possession pour monseigneur de Bourgogne. in E, Droz. (ed.). Mélanges de philo- logie et d’histoire offerts ¢ M. Antoine ‘Thomas. Paris, 1927, D. 145, 22 LaMarche, op. cit, v1, p.277. 23 [d., ibid., v. 1V, “Estat de la maison”, pp. 34, 51, 20,31 24 Froissart, op. cit. Ht, p.172 25 Journal d’un bourgeois, v. 218. p. 105, 26 Chronique scandaleuse, vt, p. 33 a7 Molinet, op. cit. v. 1, p. 184; Basin, op. cit.,v. 11, P.378. 28 Alignor de Poitiers, Tes honmeurs de la cour, in La Curne de Sainte Palaye (ed.), Mémoires sur Puncienne chevalerie, 1781, v. 1. p. 201 29 Chastellain, op. cit, v. 1, p. 196-212, 290, 292, 308; v. 1V, pp. 412-14, 428: Alignor de Poitiers, op. cit.. pp. 209, 30 Alignor de Poitiers. op. cit., p. 210; Chastellain, ¥1v, p. 312; Juvenal des Ursins, op. cil. p. 405: La Marche, op. cit. v.1, p. 278: Froissart, v1, pp. 16, 22s 31 Molinet, op. 32 Alignor de Po’ op. cit, ¥ 1X, p. 190, 33 Chastellain, op. cit, vv, pp. 27-33. 34 Deschamps, op. cit, v. 1x, Le miroir de mariage, VY DP. 194, 192 ss, Op. cit, p. 199; Deschamps, PP. 100-10, 35 Varios exemplates de tais "paix" por Laborde, op. cit. v1. M5, 43. 45: 75: 126, 140, 5293. 36 Deschamps, op. cit. p. 300. comp. VI. P. 156, ballade n. 1462; Motinet, op. cit..¥. V, D. 195% Les cent nouvelles nouvelles, Th, Wright (org) ¥. 11, p. 123; comp. Les Quinze joyes de mariage, p. 185, 82 © OANSEIO POR LIMA VIDA MAIS BELA 337 Proceso de canonizagao em Tours, \cta Sancto- rum Apr, tt, pe 152. 38 Sobre essus querelas de sucesso na nobrezat ho- Jandesa, jd referidas por W. Moll, Kerkyeschiedenis ‘van Nederland widr de hervorming. Urecht, 1864.69, 2 partes (5 pecas), v.11, 3, p. 284, tratada detalha damente por H. Obreen, a pedido de Vad. Gesch. € Oudhk, p. 308; igualmente para a Bretanha por H, du Halgouét, Mémoires de la société histoire er dlarcheologte de Bretagne, v. 1, 1923. 39 Deschamps, op. cit... IX. pp. 111-14. 40 Jean de Stavelot, Chronique, Borgnet (e¢.), Coll, dees chron, belges, 1861, p. 96. 41 Pierre de Fenin, op. cit, p. 607: Journal d'un Ddourgevis. p. 9 42 Aldus Juvenal des Ursins, op. cil., p. 343: ‘Thomas Basin, op. cit., v.1. p.31. 0 Journal d'un bourgeois, p. 120, da ttm outro motive para a sentenga de morte, assim como fe livre des traht: suns, Kervyn de Lettenhove (ed,), Chiron. rel. & hist. de Belg. sous les dues de Bourg., v.11, p.138. 43 Rel. de S. Denis. op. cit., v.1, p. 30; Juvenal des Ursins, op. cit.. p.341 44 Pierre de Fenin, op. cit, p. 606; Monstrelet, v. lv. p9. Pierre de Penin, op. cit., p. 604. Christine de Pisan, v.1, p, 251, n. 38; Chustellain, V.¥. pp. 364 5s; Rozmitals Retse, pp. 24, 148. 47 Deschamps, op. cit. v. 1, m8. 80, 114, 118; ¥. 11, 1S. 256, 266; v. 1V, ns, 800, 803: ¥. V, NS. 1018, 1024, 1029; V. VIT, m. 253; ¥X, DS. 13, 14. 448 Relato andnimo do sécuilo xv no Journal de Vins, hist v.1v, p. 53. Cf Juvenal des Ursins, op, cit, 1. 369, Religieux de S, Denis, op. ct, v. v1. p. 492 Ba 49 Jean Chartier, Hist, de Charles vrr. D. Godefroy (ed) 1661, p. 318. 50 Entrada do delfim como duque da Bretanha em Rennes em 1532, por Th, Godefroy, Le eérémonial frangois, 1649, p. 619. 51 Rel. de S. Denis, op, cit... 1, p. 32. 52 Journal d'un bourgeois, op. cit.. p. 277. 53 Thomas Basin, op. cit. v.11. p. 9 54 A. Renaudet, Préréforme et humanisme a Paris, .11, baseuco nos documentos do processo. 55 De Laborde, Les dues de Bourgogne, v. 1, pp. 272, 177, 36 Livre des trakisons, op. cit. p. 156. 57 Chastellain, op. cit. v.1, p. 188 58 Aliénor de Poitiers, Les Honnewrs de la cour, op. cit, p. 254 59 Rel. de S. Denis, op. cit. vot, p. 14 60 Chastellain, op. cit, v. 1, p. 49, Vv, P. 240: ver La Marche, op. cit. ¥. 1, p, 201; Monstrelet, op. cit. Ve, p. 358: Lefevre de S. Remy, op. cit, v.1, p. 380. 61 Chastellain, op. cit.,v. v, p. 228, ver. tv, p, 210. 62 Chastellain, op. cit, v.11, p. 296. v.1¥, pp. 213. 216. 63 Chronique scundalewse, interpol. op. cit. v.11 p. 332. 64 Lettres de Las x1, op. cit., v.X,p. 110 65 Referéncia ao habito comum aos atores da tragédia grega 66 Uma fralda longa ¢ pendente que era presa em volta do queixo. [Nt] 67 Alignor de Poitiers. Les honnewrs de ta cour op. ciL., Pp. 254-56. 68 Lefevre de S. Remy, op. cit., v.11, p. 11; Pierre de Fenin, op. cit, pp, 599, Gos; Monstrelet, op. cit, v. 11, p. 347; Theod. Pauli, De rebus actis sub dueitus Burgundiae compendium, Kervyn de Lettenhove (ed,). Chron, rel. a Phist. de Belg. sous la dom, des dues de Bourg.,t.111, p. 267. 69 Ver F. M. Graves, Deux inventatres dé la Maison 'Or- ans, BibL du xv" siecle, n. 31, 1926, p. 26: A. Ware burg, Gesammiete Schriften 1, Leipzig, 1932, p. 225, 70 Aliénor de Poitiers, op. cit., pp. 217-45: Laborde. op. cit. ¥ 11, p. 267, Inventario de 1420. 71 Sucessor de Monstrelet, 1449 (Chastellain, op. cit, ¥. v. p. 367) 72 Ver Petit Dutaillis, Documents nouveaux sur les ‘moeurs popudatres etc, p. 14: La Cure de $. Pa- laye, Mémoires sur Vancienne chevalerie, v. 1, p. 272. 73 Chastellain, Le Pas de la mort, op. cit., v1, p. 61. 74 Hefele, Der, dernhardin v Siena etc, p. 42. Sobre a perseguicio da sodomia na Franca, ver Jacques du Cleceq, op. ci 337-38, 350, v.11, p. 15 75 Thomas Walsingham, Historia Anglicana, v.11, HLT Riley (ed), Rolls series, 1864, p. 148. No caso de Henrique 117 da Franca, nao ha diivida 111, pp. 272, 282, quanto ao cardter cuulpado dos mignons, mas isso acontece no fim do sécuilo xvt 76 Philippe de Commines, Mémoires, B. de Mandrot (ed), Coll. de textes pour servir a Fenseigne ment de l'histoire, 1901-03, 2 vols..v.1. p. 316. 7 La Marche, op. cit.: 11, p. 425: Molinet, op. cit., V. Il, pp. 29, 280; Chastellain, op. cit., v.tv, p. 41 78 Les cent nouvelles nouvelles, op. cit 11, p. 61; Frois- surt, op. cit, Kervyn (ed), v. x1, p. 93. ib. xa, p. 3185; Le livre des fits de Jacques de Lalaing, op, cit., pp. 29, 242 (Chas: tellain, op. cit. v, vilt); La Marche, op. eit. v.1, . 268; Lhystnire du pot Jehan de Saintré, exp. 47 80 Chastellain, op. cit., v.1V, p. 237. 79 Eroissart, op. cil,

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