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Mikhail M.

Bakhtin

3ª Edição

PARA UMA FILOSOFIA


,
DO ATO RESPONSA VEL

Organizado por Augusto Ponzio e Grupo de Estudos


dos Gêneros do Discurso - GEGE/UFSCar

Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello


& Carlos Alberto Faraco

Pedro & João Editores


2017
© Copyright - Augusto Ponzio; Pedro & João Editores e Grupo de
Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGE/UFSCar

Título Original: "K filosofii postupka", 1920-24.


Primeira edição em Filosofija i sociologia nauki i techniki, Ezegodnik 1984-
85, Moscou, Nauka 1986.
Edição revisada em Bakhtin, Sobranie socinenij [Raccolta delle opere],
vol I, Moscou, Russkie slovari, 2003. A tradução italiana que aqui foi
utilizada é a partir desta edição. Tradução do russo de Luciano Pon zio
© 2009 PensaMultimedia s,.r.I., Lecce, Itália.
Todos os direitos reservados. Qualquer parte desta obra pode ser re-
produzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta
os direitos.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich.

Para uma filosofia do Ato Responsável. [Tradução aos cuidados


de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2017. 160 p.

ISBN 978-85-7993-468-1

1. Ato Responsável. 2. Discurso e Ética. 3. Filosofia moral. 4. Lin-


guagem e vida . 5. Autor. I. Título.
CDD-410

Capa: Marcos Antonio Bessa-Oliveira


Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
& Valdemir Miotello

Conselho Científico: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley


Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral
(UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria
da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir
Miotello (UFSCar/Brasil.

Pedro & João Editores


pedroejoaoectitores@terra.com.br
13568-878 - São Carlos - SP
2017
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como dar um passo
Augusto Ponzio

Para uma filosofia do ato responsável 41


Mikhail M. Bakhtin ( . :'.:_ · .J - •

Um posfácio meio impertinente 147


Carlos Alberto Faraco
A concepção bakhtiniana do ato

como dar um passo


INTRODUÇÃO

A concepção bakhtiniana do ato


como dar um passo

Augusto Ponzio

"K ftlosofti postupka" é o título dado por Sergei


Bocharov a este texto, do início dos anos vinte, des-
provido de título e das primeiras oito páginas (das
complexas cinquenta e duas, conforme a numera-
ção do autor), quando o publicou em 1986.
Nas traduções italianas anteriores, por mim
organizadas (1994 e 1998), diferentemente daquela
em Mastroiani 1993 ("Para uma filosofia do ato",
pp. 103-164), foi dado o título "Para uma filosofia
da ação responsável". "Ação" não é uma boa esco-
lha: Trata-se de um ato, como nas expressões "no
ato de ... ", "ato de fala", "ato falho". Bakhtin, neste
texto, fala de "ato de pensamento, de sentimento,
de desejo" e diz que "tudo é um ato meu, também
o pensamento e o sentimento".
No uso que foi feito na Itália, "filosofia do ato"
leva a pensar na filosofia de Giovanni Gentile. No
âmbito anglófono Philosophy of the act leva a pensar
na obra do filósofo americano George H. Mead, de
1938, que tinha esse título. Todavia a tradução da
edição americana é "Toward a Philosophy of the Act"
(1993, 2a.ed. 1995;).
"Postupok'', ato, contém a raiz "stup" que signi-
fica "passo", ato como um passo, como iniciativa, '

9
movimento, ação arriscada, tomada de posição. "Os
dados estão lançados", "coup de dés". Na língua
francesa referir-se ao passo é na negação (ou dene-
gaçao : ne ... pas , pas du t ou t" .
- ) " " li

Na sua relação com "dar um passo", "postupok"


lembra uma outra expressão que Bakhtin usa, a
partir do texto "O autor e o herói na atividade esté-
tica", (também dos anos 20), e que assume uma im-
portância central para a delineação do seu conceito
J. '
· de "extralocalização", de "exotopia", "vnenakodi-
most'', o achar-se fora ou o colocar-se fora de uma
maneira única, absolutamente outra, não equipará-
vel, singular. "Transgrediente", de fato, significa
também dar um passo, um passo fora de qualquer
alinhamento, combinação, sincronia, semelhança,
identificação. Este termo vem do latim transgredo; e
em inglês equivale a step across, step over, "passar
através de", "passar além de".
"Postupok" é um ato, de pensamento, de senti-
mento, de desejo, de fala, de ação, que é intencional,
e que caracteriza a singularidade, a peculiaridade, o
monograma de cada um, em sua unicidade, em sua
impossibilidade de ser substituído, em seu dever
~(. __ __E..e spo_nder, resp_çmsavelmente, a partir do lugar que
~cupa, sem álibi e sem ~x5eção. Bakhtin, em relação
a postupok, utiliza o verbo postupat' como agir, no
sentido do que acabamos de apresentar, de dentro e
em consideração ao lugar próprio, único, singular.
Na edição que aqui se apresenta, demos ao texto
o título: "Para uma filosofia do ato responsável".
"Ato responsável" é uma expressão recorrente no
texto de Bakhtin. Ela indica um conceito central da
reflexão bakhtiniana. Responsável também no senti-
do de "responsivo". Também em russo otvestvennyi
(responsável) lembra otvetnyj, responsivo. Na obra

10
' .

de Bakhtin se encontra frequentemente o conceito de


"compreensão responsiva que salienta a conexão
entre compreensão e escuta, escuta que fala, que
responde, mesmo que não imediata e diretamente;
por meio da compreensão e 'pensamento participan-
te' ucastnoe myslenie, 'pensamento participante"'.
"Para uma filosofia do ato responsável" é, sem
dúvida, interessante, além do seu intrínseco valor
teórico, por abarcar a obra completa de Bakhtin e
ter em si todo o significado complexo do seu itine-
rário de investigação que chega até a primeira me-
tade dos anos 70.
Mikhail Bakhtin (1895-1975) é geralmente con-
siderado um crítico literário ou um teórico da lite-
ratura, particularmente na Itália, malgrado [ou,
'não obstante'] quase toda sua obra, aí incluídos os
textos do assim chamado "Círculo de Bakhtin", ter
sido traduzida para o italiano por volta da metade
dos anos 70 (o livro sobre Dostoiévski, na edição de
1963, já tinha sido, contudo, publicado em italiano
em 1968). Bakhtin, ele mesmo, fazendo um balanço,
nos últimos anos de sua vida, sobre seu trabalho de
estudo e investigação, define-se "filósofo", e este
texto sobre "filosofia do ato", que se coloca no iní-
cio de sua produção, o confirma plenamente.

D: Mas o senhor não era também um classicista? ..


B: Eu era já... Eu era um filós ofo. Veja, eu diria assim ...
D: O Sr. era mais filósofo que filólogo?
B: Filósofo, mais que filólogo. Filósofo. E assim permaneci
até hoje. Sou um filósofo. Sou um pensador.

Este diálogo faz parte da primeira de seis con-


versas realizadas no período de 22 de fevereiro a 23
de março de 1973, entre Bakhtin (B.) e Victor D.
Duvakin (D), e que foram publicadas em russo em

11
primeira edição em 1996, e em segunda edição em
2002 (trad. it. M. Bakhtin, In Dialogo, 2008:120. Tra-
dução em português: Mikhail Bakhtin em diálogo -
conversas de 1973 com V. Duvakin . Pedro & João Edi-
tores, 2008:45).
O tema deste texto está estreitamente ligado
com o amplo trabalho de Bakhtin, mesmo com
aquele do início dos anos 20, publicado na coletâ-
nea dos escritos de Bakhtin, Estetika slovesnogo tvor-
cestva, de 1979, com o título "O autor e o herói na
atividade estética", em especial com seu primeiro
capítulo. Este primeiro capítulo que, por seu caráter
fragmentário, foi excluído daquela publicação e da
correspondente tradução italiana (1988), foi publi-
cado, no original russo, também no volume de
1986, organizado por Bocharov. Sua primeira tra-
dução italiana apareceu no volume de 1993, organi-
zado por Jachia e Ponzio, Bacthin e... Averincev, Ben-
jamin, Freud, Greimas, Marx, Peirce, Valéry, Welby,
Yourcenar, com o título "O Autor e o Herói na ati-
vidade estética. Fragmento do primeiro capítulo" (a
tradução inglesa deste fragmento encontra-se em
Bakhtin, Art and answerability, pp. 208-231).
A associação entre estes dois textos, "Para uma
filosofia do ato responsável" e o "Fragmento do
primeiro capítulo" de "O autor e o herói", além de
decorrer do fato de ambos pertencerem a um mesmo
projeto de pesquisa, no qual o segundo é a continua-
ção do discurso do primeiro, é imediatamente visí-
vel pela repetição de alguns passos e pela escolha do
mesmo texto literário como objeto de análises, ou
seja, a poesia de Pushkin, "Razluka" ("Separação").
"Para uma filosofia do ato responsável", que é
somente o início de um vasto projeto filosófico, con-
siste de dois amplos fragmentos: a introdução (pri-

12
-ada de algumas páginas iniciais) provavelmente,
ao tal projeto, que aqui parece especificar-se como a
:realização de um livro de filosofia moral, e uma ou-
::ra seção intitulada pelo autor "Primeira parte".
Isto deve ser dito antes de tudo, até porque
aqui se apresenta um trabalho de tradução, e a lin-
agem deste texto é bastante peculiar.
Em grande parte é uma linguagem construída
por Bakhtin sobre as pegadas da linguagem filosó-
- ca contemporânea (e também obviamente, da lin-
f!"llagem clássica de onde parte) da Europa Ociden-
:.al, particularmente a alemã. Bakhtin constrói em
russo a linguagem filosófica que adota neste texto,
:nventa o próprio idioma, fazendo ele mesmo um tra-
alho de tradução. Desse modo a tradução dos
termos e expressões presentes no texto russo para
ser transposta, no nosso caso, para o italiano [e para
o p ortuguês] deve, de qualquer maneira, fazer re-
. são aos termos e às expressões dos quais os
rermos e expressões de Bakhtin são já uma tradu-
ção - uma tentativa de ajuste de contas. O trabalho
solitário de Bakhtin não diz respeito apenas ao pe-
ríodo do seu exílio, mas também a sua pesquisa
toda, dado o seu caráter pioneiro.
A propósito da linguagem em sua relação com
o ato, na sua singularidade de ato responsável,
Bakhtin observa (esta e outras citações sem referên-
cia são de "Para uma filosofia do ato responsável",
resente neste livro):

Historicamente a linguagem desenvolveu-se a serviço do


pensamento participante e do ato, e somente nos tempos
recentes de sua história começou a servir ao pensamento ~J
abstrato. A expressão_ ~º ato a _partir do interio.[ e a ex-
pressão do existir-evento único no qual se dá o ato exi-
gem a inteira plenitude da palavra: isto é, tanto o seu as-

13
pecto de conteúdo-sentido (a palavra-conceito), quanto o
emotivo-volitivo (a entonação da palavra), na sua unida-
de. E em todos esses momentos a palavra plena e única
pode ser responsavelmente significativa: pode ser a ver-
dade (pravda), e não somente qualquer coisa de subjetivo
e fortuito. Não é necessário, obviamente, supervalorizar o
poder da linguagem: o existir-evento irrepetível e singu-
lar e o ato de que participa são, fundamentalmente, ex-
primíveis, mas de fato se trata de uma tarefa muito difícil,
e uma plena adequação está fora do alcance, mesmo que
ela permaneça sempre como um fim .

Bakhtin usa frequentemente a expressão sobytie


bytia (traduzimos bytia como "existir" ou, em certos
casos, existência" : v. nota 1), existir-evento",
/1 /1

"existir como evento", "evento no curso do existir",


do alemão Seins-gescheben, conceito fenomenológi-
co. Coloca em campo palavras compostas, como
bytie-sobytie ("o existir-evento", "o existir como
evento"); soderzhanie-smysl, "conteúdo-sentido",
"conteúdo como sentido"; akt-diatel'nost', uma ati-
vidade que se exprime em uma ação; introduz o
conceito de venakodimost, exotopia, que ocupa um
papel central em sua concepção estética e moral.
Um termo-chave de todo o discurso de Bakhtin
é Edinstvennji, singular, único, irrepetível, excepci-
onal, incomparável, sui generis, correspondente ao
alemão einzig. Lembra o título da obra de Max Stir-
ner, Der Einzigeund sein Eigentum (1844); mas aqui,
diferentemente do indivíduo egoísta de Stirner, a
referência é a uma unicidade, a uma singularidade,
aberta a uma relação de alteridade consigo própria
e com os outros, uma singularidade em ligação com
a vida do universo inteiro, que inclui em sua fini-
tude o sentido do infinito, e que, por certos aspec-
tos, lembra "o singular" de Soeren Kierkegaard,
autor bem conhecido por Bakhtin (como ele próprio

14
aiz, em sua conversa com Duvakin, antes mesmo
:me fosse traduzido para o russo). "Muito cedo ...
antes de ser traduzido para o russo, já conhecia Soe-
-en Kierkegaard. [...] Dostoiévski é incrível, a pro-
lemática era quase a mesma, quase com a mesma
• rofundidade" (Bakhtin em diálogo, 2008:40-1).
Bakhtin faz uso da palavra russa obraz para
significar o que em alemão é Bild, Gebild, "ima-
em", "configuração".
Usa znachimost', "validade", para significar o
mesmo expresso em alemão por Geltung, Gelten;
ennstnaia znacimost' para Wertgeltung.
Emprega dolzenstvovanie para referir-se ao de-
·er no sentido do Sollen kantiano, o que me obriga;
mas aqui, diferente de Kant, como veremos, não em
sentido universal, mas ao contrário, no sentido [de]
que eu sozinho, e nenhum outro no meu lugar, de-
YO responsavelmente fazer, de maneira não formal,
não farisaica, não como uma impostura.
Retoma o conceito husserliano de Erlebnis, co-
mo experiência vivida orientada, e que está inti-
mamente ligada ao conceito de postupok; usa usta-
novka, atitude, no sentido de Einstellung.
Introduz a expressão ucastnoe myslenie, pensa-
mento participante, não indiferente, em alemão tei-
lnehemendes Denken;
Distingue "dannost" e "zadanost", o que é dado,
e o que é dado para ser feito, para ser alcançado, o
que é dado como tarefa, equivalente, em língua
alemã, a aufgegeben e gegeben.
Retoma o conceito de Lebensphilosophie, filosofia
d a vida, mas tomando-o em uma direção bem dife-
rente do "vitalismo contemporâneo", título de seu
ensaio publicado em 1926, em uma revista de bio-
logia, sob o nome de seu amigo biólogo Kanaev, no

15
qual, também com relação a Bergson, tinha trans-
formado -o em objeto de crítica, mas sempre apre-
sentando-a de maneira construtiva.
Confere à "arquitetônica", também um termo
usado por Kant, e à estrutura ou construção (stro-
nie), que algumas vezes o acompanha, um caráter
dinâmico e suscetível de renovação, além de singu-
lar e irrepetível, concebendo-o como evento: estrutu-
ra arquitetônica do mundo como evento.
Kant, Hegel, Kierkegaard, Husserl, Rickert,
Spengler, Bergson, Dilthey, Simmel, Schopenhauer,
Nietzsche, Cohen, Cassirer, estes são alguns dos
autores de referência direta ou indireta, de cuja lei-
tura Bakhtin traz não só o seu pensamento original,
mas a linguagem própria necessária para concebê-
lo em seu idioma, e para apresentá-lo.
Em sua parte introdutória, Bakhtin apresenta o
problema da possibilidade de apreender o "caráter do
evento" (sobytijnost') único, singular, irrepetível, que
caracteriza o ato, aquela unidade basilar da existência
de cada um, no seu valor e na sua unidade de vivo
devir e de autodeterminação. No momento em que, a
partir de um ponto de vista teórico - científico, filosó-
fico, historiográfico - ou estético, se determina o sen-
tido de tal ato, este último perde o caráter de evento
único, que o é efetivamente como ato vivido, e assu-
me um valor genérico, um significado abstrato.
Mas a questão não é simplesmente se é possí-
vel o conhecimento da singularidade, se é possível
uma mathesis singularis, ou antes inevitavelmente,
apenas uma mathesis universalis. Questão bastante
inusitada, dado que 5 esulta óbvio que o conheci-
~1}'.lento deva ser necessariamente conhecimento d,o
geral, procedendo por conceitos, por classificações,
por montagem, sobre a base de conjuntos, de gêne-

16
, nos quais o singular, de um modo ou de outro,
:eaparece sob a forma de indivíduo identificado
_ o pertencimento a este ou àquele conjunto, a este
àquele gênero.
Trata-se também de uma questão que toca dire-
ente a vida de cada um e que produz um profun-
-o impacto sobre ela, de uma questão em que entra
jogo a qualidade da vida, o reconhecimento da
_,. -erença singular de cada um, pelo fato de que a or-
.2allização social mesma, a modelagem cultural mes-
da vida, funciona sobre a base de classificações,
-e fechamentos, de atribuições de pertencimento, re-
rre ao gênero, ao universal como condição da iden-
- ~ cação, da diferenciação, da individuação.
Em "Para uma filosofia do ato responsável",
3akhtin rejeita a concepção bastante arraigada e
aceita da verdade como composta de momentos
erais, universais, como algo reiterável e constante,
separado e contraposto ao singular e ao subjetivo.
Ele faz uma distinção entre a verdade, "istina", co-
o valor abstrato, a veracidade, o verdadeiro, co-
o ideal universalmente incontestável, mas do
al não há no ato o reconhecimento efetivo, e a
-erdade, "pravda", como entonação do ato, como a
sua afirmação, ou seja, para o qual tende e pelo
qual é aferida e o afere.
11
A unidade da consciência real, que age de ma-
eira responsável", diz Bakhtin, "não deve ser con-
cebida como permanência conteudística de um prin-
'pio, do direito, da lei e menos ainda do ser": uma
ara tomada de posição contra qualquer forma de
absolutização dogmática, aí inclusa a ontológica.
_ ·enhum princípio ou valor subsiste como idêntico e
autônomo, como constante, separado do ato vivo do
seu reconhecimento como princípio válido ou valor.

17
Não é o conteúdo da obrigação escrita que me obriga,
mas a minha assinatura colocada no final, o fato de eu ter,
uma vez, reconhecido e subscrito tal obrigação. E, no
momento da assinatura, não é o conteúdo deste ato que
me obrigou a assinar, já que tal conteúdo sozinho não
poderia me forçar ao ato - a assinatura-reconhecimento,
mas podia somente em correlação com a minha decisão
de assumir a obrigação - executando o ato da assinatura-
reconhecimento; e mesmo neste ato o aspecto conteudísti-
co não era mais que um momento, e o que foi decisivo foi
o reconhecimento que efetivamente ocorreu, a afirmação
- o ato responsável, etc.

A diferença oficialmente reconhecida é aquela


da identidade, da atribuição a um conjunto, uma
diferença indiferente à singularidade, à unidade, à
não intercambialidade de cada um. Nesta diferen-
ça, que geralmente funciona por oposição binária,
as diferenças singulares são canceladas, e o que
conta é a diferença do gênero, indiferente às dife-
renças singulares que engloba e que está constituti-
vamente em contraste, em oposição, com uma outra
diferença de gênero, como condição mesma da sua
identificabilidade.
As relações sociais, as relações culturais, aquelas
reconhecidas, oficialmente, codificadas, as relações
que contam juridicamente são relações entre identi-
dade do gênero, entre diferenças indiferentes à sin-
gularidade, relações estruturalmente estáveis por
contraste e, portanto, relações opositivas e conflitan-
tes, nas quais a alteridade de cada um é apagada, e
nas quais, na melhor das hipóteses, vigora a tolerân-
cia do outro, mas sempre como tolerância do outro
que pertence ao gênero, do outro em geral, cuja dife-
rença é a da identidade do conjunto a que pertence.
Cria-se assim a cisão entre dois mundos reci-
procamente impenetráveis e não comunicantes: o

18
mundo não oficial da vida vivida, da vivência (como
esta expressão soa em português evitando o parti-
cípio passado), e o mundo oficial, da cultura, do
social feito das relações entre identidades, entre
papéis, entre pertencimentos, entre diferenças indi-
ferentes, entre indivíduos que, como tais, são indi-
vidualizados por coordenadas que os assumem
como representativos deste ou daquele conjunto.
De um lado, a singularidade de cada um, a sua uni-
cidade, a sua insubstituibilidade, a peculiaridade
das suas relações, dos seus vividos, das suas coor-
d enadas espaçotemporais e axiológicas, a irrevoga-
bilidade da sua responsabilidade sem álibi - e é es-
ta singularidade, esta unidade, insubstituibilidade,
que cada um tem, nos afetos, nas relações relegadas
ao privado, nas relações de. amor e de amizade. Do
outro lado, as relações de troca entre indivíduos
que representam identidades, e, portanto, em cada
caso entre conjuntos, gêneros, pertenças, comuni-
d ades, classes, aglomerados, coletivos (a identidade
individual é inevitavelmente coletiva). Aqui o re-
conhecimento do outro no máximo alcança o nível
da imparcialidade, da paridade, da igualdade, da
justiça, do tratamento igual por todos os seus aná-
logos, pelos seus semelhantes, mas sempre de ma-
n eira não participativa, indiferente à singularidade,
a diferença de cada um - ou antes, com a interdição
a não indiferença nos seus confrontos.
Mas a singularidade, a unicidade, a alteridade
de cada um, com a sua participação e não indife-
..ença à singularidade dos outros, ao outro como
único e insubstituível, a singularidade com a sua
responsabilidade sem álibis, fica por enquanto re-
~egada ao privado, à base do oficial, do público, do

19
formal, do cultural, da identidade com a sua res-
ponsabilidade garantida e delimitada de álibis.
Tudo isso que é genérico adquire sentido e va-
lor a partir do lugar único do singular, do seu reco-
nhecimento, na base do seu "não-álibi no existir".
"Não-álibi" significa "sem desculpas", "sem esca-
patórias", mas também "impossibilidade de estar
em outro lugar" em relação ao lugar único e singu-
lar que ocupo no existir, existindo, vivendo.
Um valor igual a si mesmo, reconhecido como
universalmente válido, não existe, pois sua validade
é reconhecida e condicionada não pelo conteúdo
tomado abstratamente, mas pela sua correlação com
o lugar singular daquele que participa, determina e
reconhece. Por exemplo: falando genericamente, ca-
da homem é mortal, mas isso adquire sentido e valor
somente a partir do lugar único de uma pessoa úni-
ca, e o sentido e o valor da minha morte, da morte
do outro, do meu próximo, de cada homem real, da
humanidade inteira, varia profundamente caso a
caso, já que são todos momentos diversos do existir-
evento singular. Somente para um sujeito desencar-
nado, não participante, indiferente, todas as mortes
podem ser indiferentemente iguais. Mas ninguém
vive, diz Bakhtin, em um mundo em que todos são,
em relação ao valor, igualmente mortais.
Tudo isso que existe genericamente, como algo
abstratamente determinado, apaga a diferença sin-
gular, torna inútil, indiferente, aleatório, o ato sin-
gular, a peculiaridade sui generis, e transforma em
plausíveis questões do tipo "quem é o outro?",
"quem é o meu próximo?". Mas nenhuma validade
de sentido em si pode ser categórica e peremptória
sem o reconhecimento e a participação do singular,
nenhuma pode obrigar sem o seu consentimento.

20
Inevitavelmente é no mundo vivido como sin-
gularidade, no mundo da vivência única, que cada
um se encontra quando conhece, pensa, atua e de-
cide; é daqui que participa do mundo em que a vi-
da é transformada em objeto e situa a identidade
sexual, étnica, nacional, profissional, de status soci-
al, em um setor determinado do trabalho, da cultu-
ra, da geografia política, etc.
Por isso, o que unifica os dois mundos é o
evento único do ato singular, participativo, não in-
diferente.
Encontra-se aqui a mesma problemática expos-
ta naquele que é o primeiro escrito publicado de
Bakhtin, em 1919, intitulado "Arte e responsabili-
dade", onde a questão examinada é a da relação
entre arte e vida, e onde a solução é apresentada
nos mesmos termos. A ciência, a arte e a vida ad-
quirem unidade somente na pessoa que as incorpo-
ra na sua unidade. Mas esta ligação, como acontece
muitas vezes, pode se tornar mecânica, externa, já
que falta a unidade de uma dupla responsabilida-
de: a "responsabilidade especial", isto é, a respon-
sabilidade que decorre da pertença a um todo, rela-
tiva a um determinado setor da cultura, a um de-
terminado conteúdo, e a um certo papel e função, e,
portanto, uma responsabilidade delimitada, defini-
da, referida à identidade reiterável do indivíduo
objetivo e intercambiável; e, de outra parte, a "res-
onsabilidade moral", uma "responsabilidade ab-
soluta", sem limite, sem álibi, sem desculpa, que
por si só toma único, irrepetível o ato, enquanto
responsabilidade não transferível do indivíduo. O
ato é por isso, diz Bakhtin, "Um fano bifronte", ori-
entado em duas direções diferentes: a singularida-
e irrepetível, e a unidade objetiva, abstrata.

21
A ligação entre validade objetiva, abstrata, indi-
ferente e a unicidade irrepetível da tomada de posi-
ção, da escolha, não pode ser explicada a partir do
interior do conhecimento teórico, e pela ação de um
sujeito teórico, abstrato, de uma consciência gnoseo-
lógica, precisamente porque tudo isso tem uma vali-
dade formal, teórica, indiferente à ação responsável
do singular. São particularmente importantes as
considerações de Bakhtin sobre as consequências da
separação entre validade objetiva, abstrata, indife-
rente e a unicidade irrepetível da tomada de posição,
da escolha; sobre as consequências da autonomia do
que tem uma validade técnica, que se desenvolve
segundo suas próprias leis imanentes, adquirindo
um valor por si e um poder e um domínio sobre a
vida do sujeito, uma vez que tenha perdido sua uni-
ão com a viva unicidade do ato. Tudo o que tem va-
lor formal e técnico, uma vez separado da unidade
singular da existência de cada um e abandonado à
vontade da lei imanente de seu desenvolvimento,
pode tomar-se qualquer coisa de terrível e irromper
nesta unidade singular da vida de cada um como
força irresponsável e devastadora.
Viver a partir de si mesmo, de seu próprio lu-
gar singular, assevera Bakhtin, não significa viver
para si, por conta própria; antes, é somente de seu
próprio lugar único que é possível o reconhecimen-
to da impossibilidade da não-indiferença pelo ou-
tro, a responsabilidade sem álibi em seus confron-
tos, e por um outro concreto, também ele singular
e, portanto, insubstituível. Eu não posso fazer como
se eu não estivesse aí; não posso agir, pensar, dese-
jar, sentir como se eu não fosse eu, e cada identifi-
cação de si mesmo falha em sua pretensão de iden-
tificação com o outro. Mas, ao mesmo tempo, não

22
osso fazer como se o outro não estivesse aí, não
um outro genérico, mas o outro na sua singulari-
d ade que ocupa um lugar no espaço-tempo e na
medida dos valores que eu não posso ocupar, pró-
p rio pelo não-álibi de cada um no existir. Cada eu
ocupa o centro de uma arquitetônica na qual o ou-
tro entra inevitavelmente em jogo nas interações
d os três momentos essenciais de tal arquitetônica, e
portanto do eu, segundo a qual se constituem e se
dispõem todos os valores, os significados e as rela-
ções espaçotemporais. Esses são todos caracteriza-
d os em termos de alteridade e são: eu-para-mim,
eu-para-o-outro, o outro-para-mim. Os momentos
de tal arquitetônica são de Bakhtin. Esses são: eu-
para-mim, o-outro-para-mim, e eu-para-o-outro.
A singularidade, a unicidade, a que se refere
Bakhtin, de forma alguma tem relação com o indi-
viduo egoísta, conforme expresso no "único" de
Stirner, nem com um indivíduo associal, reduzido a
uma entidade puramente biológica, confinado na
esfera das necessidades fisiológicas, e no qual o
corpo mesmo tenha sido suplantado pela abstração
do organismo e a sua unidade tenha sido substituí-
d a pela divisão em órgãos.
A efetivação desta confusão, desta substituição,
desta redução depende mesmo da separação entre
o mundo não oficial da vida vivida, da vivência, da
diferença não-indiferente, e o mundo oficial feito de
relações entre identidades que expurgam, interdi-
tam, a diferença singular, e portanto do abuso deste
último sobre o primeiro. A unidade e, com ela, a
ingularidade do ato, não se deixam sufocar, mas,
em consequência da separação entre estes dois
mundos, se reafirmam de forma errada, distorcida,
d egradada.

23
A crise contemporânea, diz Bakhtin, não é so-
mente a crise do mundo da cultura, de seus valores:
é também a crise do ato contemporâneo.

Todas as forças de uma realização responsável


[otvetstvennoe svershenie] se retiram para o território autô-
nomo da cultura e o ato separado delas degenera ao grau
de motivação biológica e econômica elementar, perdendo
todas as suas componentes ideais: é esta precisamente a
situação atual da civilização. Toda a riqueza da cultura
está posta a serviço do agir biológico. A teoria deixa o ato
à mercê de uma existência estúpida, exaure-o de todos os
componentes ideais e o submete a seu domínio autônomo
fechado, empobrece o ato.

Bakhtin caracteriza a crise contemporânea co-


mo crise da ação contemporânea tornada ação téc-
nica; identifica esta crise na separação entre a ação,
com sua concreta motivação, e o seu produto, que,
desse modo, perde o sentido. Esta é uma interpre-
tação muito próxima daquela da fenomenologia
husserliana, sobretudo aquela trabalhada em Crise
da ciência europeia (publicada postumamente em
1954). Mas em Bakhtin o sentido não é conferido,
como em Husserl (no qual permanece um certo teo-
ricismo ), pela consciência intencional, por um sujei-
to transcendental, mas pela ação responsável que
exprime a unicidade do ser no mundo sem álibi.
Para Bakhtin "a filosofia da vida somente pode ser
uma filosofia moral".
Além disso, Bakhtin coloca em evidência como
a separação entre produto e ação responsável, entre
aparato técnico-científico e motivação concreta, en-
tre cultura e vida, produz não somente a deteriora-
ção do produto, a perda de sentido do mundo cul-

24
tural tornado domínio autônomo, o esvaziamento
de sentido dos saberes, mas também a degradação
da própria ação que, isolada dos significados da
cultura, empobrecida de seus momentos ideais, de-
cai para o patamar de motivações biológicas e eco-
nômicas elementares; portanto, parece que fora da
cultura objetiva não há nada mais que a individua-
lidade biológica nua, o ato-necessidade. Ao consi-
derar este aspecto, Bakhtin refere-se explicitamente
a Spengler, em quem nota a incapacidade de re-
conduzir a teoria e o pensamento à ação como seus
momentos, em vez de opô-los a ela. Isto, ao contrá-
rio, só é possível se a ação for assumida em toda
sua capacidade valorizante de ação responsável
una e única, e distinta da ação técnica com sua res-
ponsabilidade especial.
Para Bakhtin, reside na singularidade do ato a
possibilidade da religação entre cultura e vida, en-
tre consciência cultural e consciência viva. Diver-
samente, os valores culturais, cognitivos, científi-
cos, estéticos, políticos tornam-se valores em si e
perdem toda possibilidade de verificação, de funci-
onalidade, de transformação. Bakhtin deixa explíci-
to como esta discussão se liga a uma concepção
hobbesiana e tem sua clara consequência política: à
absolutização dos valores culturais corresponde a
concepção de que o povo escolhe uma única vez,
renunciando à própria liberdade, entregando-se ao
Estado e transformando-se, daquele momento em
diante, em escravo de sua livre decisão.
À delegação da responsabilidade, como dele-
gação política, Bakhtin retoma em um ponto de
"Para uma filosofia do ato responsável", quando se
refere à representação política, que, frequentemen-
te, seja em quem a atribui, seja em quem a assume,

25
perde, na tentativa de um tipo de alienamento da
responsabilidade política, o sentido do próprio en-
raizamento na participação pessoal única, sem áli-
bis, tomando vazia a responsabilidade especialista
e formal, com todo o perigo que tal desenraizamen-
to e a perda de sentido em cada caso comportam.
O meu "não-álibi no ser" comporta a minha
unicidade e insubstituibilidade, "transforma a pos-
sibilidade vazia em ação responsável real", confere
efetiva validade e sentido a cada significado e valor
de outra forma abstrato, "dá um rosto" para o
evento de outra maneira anônimo, faz de modo que
não exista a razão objetiva nem a subjetiva, mas
que "cada um tenha razão no seu próprio lugar, e
tenha razão não subjetivamente, mas responsavel-
mente", sem que isso possa ser entendido como
"oposição" a não ser "por alguma terceira consci-
ência, não encarnada, não participante" e na pers-
pectiva de uma dialética abstrata, não dialógica,
que Bakhtin explicitamente colocará em discussão
nos "Apontamentos de 1970-71".
O "não-álibi no ser" coloca o eu em relação
com o outro, não segundo uma relação indiferente
com o outro genérico e enquanto ambos exempla-
res do homem em geral, mas enquanto coenvolvi-
mento concreto, relação não indiferente, com a vida
do próprio vizinho, do próprio contemporâneo,
com o passado e o futuro de pessoas reais. Uma
verdade abstrata referida ao homem em geral como
"o homem é mortal", adquire sentido e valor, diz
Bakhtin, só do meu lugar único, como morte, neste
caso, do meu próximo, como minha morte, como
morte de uma comunidade inteira, ou como possi-
bilidade de aniquilação da humanidade inteira his-
toricamente real. "E, naturalmente, o sentido do

26
valor emotivo-volitivo da minha morte, da morte
do outro, do meu próximo, do fato da morte de ca-
da ser humano real, varia profundamente caso a
caso, já que são todos momentos diferentes do exis-
tir-evento singular. Para um sujeito desencarnado,
não participante, todas as mortes podem ser indife-
rentemente iguais. Mas nenhum vive em um mun-
do no qual todos são - em relação ao valor - igual-
mente mortais".
Desta responsabilidade sem álibi se pode cer-
tamente tentar fugir, mas mesmo as tentativas de
alienar-se desta responsabilidade testemunham o
seu peso e a sua presença inevitável. Cada papel
determinado, com a sua responsabilidade determi-
nada, especial, "não elimina", diz Bakhtin, "mas
simplesmente especializa minha responsabilidade
pessoal", ou seja, a responsabilidade moral sem de-
limitação e garantias, sem álibi. Separada dessa
responsabilidade absoluta, a responsabilidade es-
pecial perde o sentido, torna-se casual, uma res-
ponsabilidade técnica, e torna-se simples represen-
tação de um papel, simples execução técnica, a
ação, como "atividade técnica" se desrealiza ou se
torna impostura.
A filosofia moral, que Bakhtin qualifica como
"filosofia primeira", deve descrever "a arquitetôni-
ca concreta" em que a indiferença do indivíduo
abstrato, genérico, intercambiável, substituível na
sua responsabilidade estabelecida e circunscrita à
sua pertença a um todo, a um gênero, à sua adjudi-
cação a uma determinada tipologia substitui a não-
indiferença do indivíduo tornado único apenas por
ser absolutamente insubstituível na sua responsabi-
lidade diante da qual o acontecimento da sua exis-
tência, sem álibi, o põe.

27
A filosofia moral, como "filosofia primeira",
deveria se ocupar de descrever o existir-evento co-
mo o conhece a ação responsável e não pode se va-
ler da concepção kantiana e da retomada neokantia-
na (Bakhtin faz referência explícita a Herman Co-
hen), que também deu ao problema da moral rele-
vância particular.
Bakhtin acusa de teoricismo, ou seja, de "abs-
tração do meu eu singular" a ética formal de Kant e
dos neokantianos:

Assim, o teoricismo fatal - a abstração do meu eu singu-


lar - ocorre também na ética formal: aqui, o mundo da ra-
zão prática é em realidade um mundo teórico, e não o
mundo no qual o ato é realmente executado.[ ... ] Aqui não
existe nenhuma aproximação possível com o ato vivo no
mundo real. O primado da razão prática é, na realidade, o
primado de um domínio teórico sobre todos os outros, e
isto se dá somente porque é o domínio da forma mais va-
zia e improdutiva do que é universal. A lei da conformi-
dade à lei é uma fórmula vazia do puro teoricismo. Nun-
ca uma razão prática semelhante pode fundar uma filoso-
fia primeira. O princípio da ética formal não é de fato um
princípio do ato, mas o princípio da generalização possí-
vel dos atos já dados na sua transcrição teórica.

A ética formal de Kant e dos neokantianos não


conseguiu libertar-se do defeito da ética material,
que consiste na concepção da universalidade do
dever ser. A categoria do dever, precisamente con-
siderada categoria da consciência, é entendida co-
mo categoria da consciência teórica, como categoria
universal, portanto teorecizada; o imperativo é con-
cebido como universal, e, como consequência, a fi-
losofia kantiana e neokantiana não são capazes de
dar conta do ato singular.

28
Em Kant e nos neokantianos, observa Bakhtin, o
imperativo categórico é subordinado à sua capacida-
de de ser universal; o ato singular é justificado por
sua capacidade de tomar-se norma de comportamen-
to geral; a vontade criativamente ativa no ato cria
uma lei a que se submete alienando-se no seu produ-
to. O mundo da razão prática da ética formal kantia-
na e neokantiana não é o mundo concreto do ato res-
ponsável, mas o mundo da sua transcrição teórica.
Bakhtin se opõe à ética kantiana não porque ela
pretende ser uma ética formal, uma filosofia do
primado da razão prática, nem porque ela se apre-
senta como baseada no método transcendental, mas
porque ela não consegue estar efetivamente à altura
deste programa, à altura da sua própria denomina-
ção. De modo que "uma filosofia moral do gênero
p ode e deve ser criada, mas certamente se pode e se
d eve criar uma outra, que mereça mais - ainda que
não exclusivamente - tal nome".
Na seção que, em "Para uma filosofia do ato
responsável", vem depois da introdução e que é
indicada como "Primeira Parte", Bakhtin afronta
concretamente a questão de como seria possível
considerar e descrever a arquitetônica segundo a
qual se constrói e organiza a unicidade e a unidade
de um mundo não abstratamente sistemático, mas
concretamente-arquitetônico sobre um plano avalia-
tivo e espaçotemporal, a partir do lugar único que
cada um ocupa de modo insubstituível, enquanto
centro participativo e não indiferente, na sua res-
onsabilidade sem álibi.
A compreensão de tal arquitetônica não seria
possível se efetuada pelo mesmo sujeito em tomo
do qual esta se organiza, se desdobrada pelo mes-
mo eu e, consequentemente, em um discurso per-

29
tencente ao gênero "confessional" ou a um gênero
qualquer do discurso direto, como tal incapaz de
ter dela uma visão total. Nem a sua compreensão
pode ser feita a partir de um ponto de vista cogni-
tivo, não emotiva e avaliativamente participativo,
de um ponto de vista objetivo, indiferente, que é
incapaz de compreender o que descreve e terminaria,
por isso, por empobrecê-lo, e com isso perder de
vista os detalhes que o deixam vivo e inacabado.
Mas também não pode basear-se na identificação
de si mesmo, que seria também esta, se fosse possí-
vel, um empobrecimento enquanto redução a uma
só visão do relacionamento de duas posições reci-
procamente externas e não intercambiáveis.
Para Bakhtin a interpretação-compreensão da
arquitetônica pressupõe que ela se realize a partir
de uma posição externa, extralocalizada, exotópica,
outra, diferente e ao mesmo tempo não indiferente,
mas participativa. Postam-se assim dois centros de
valor, aquele do eu e aquele do outro, que são "os
dois centros de valor da própria vida", em tomo
dos quais se constitui a arquitetônica do ato res-
ponsável. E é preciso que estes dois centros de va-
lor permaneçam reciprocamente outros, que se
mantenham como o relacionamento arquitetônico
de dois outros, por aquilo que diz respeito ao ponto
de vista espaçotemporal e axiológico.
Então, Bakhtin, em "Para uma filosofia do ato
responsável", identifica como exemplo de uma vi-
são deste tipo aquela que se realiza na arte, especi-
ficamente na arte verbal, na literatura, que é tam-
bém uma visão arquitetônica organizada em tomo
daquele centro de valor que é o ser humano singu-
lar em sua unicidade, insubstituibilidade, precarie-
dade, mortalidade, em relação à qual expressões

30
rnrno antes, depois, ainda, quando, nunca, tarde, no fim,
á, necessário, obrigatório, além, perto, longe perdem,
diz Bakhtin, todos os seus significados abstratos e
se enchem a cada vez - em relação à situação emo-
-, o-volitiva deste centro participativo - de um sen-
!::ido concreto.
Portanto, na escrita literária, Bakhtin encontra
realizada a compreensão da arquitetônica que sua
filosofia moral, ou filosofia primeira, se propõe: es-
ta instaura uma relação que permite a manutenção
d a alteridade do centro de valor de tal arquitetôni-
ca, que é considerado de um ponto de vista trans-
vrediente, extralocalizado, exotópico, por sua vez
único e outro. Trata-se exatamente do relaciona-
mento autor e herói no âmbito do texto literário.
Para melhor clarear a disposição arquitetônica
d a visão da escrita literária, Bakhtin a analisa em
uma obra determinada, a poesia de Pushkin
"Razluka" ("Separação").
A partir daqui inicia-se o percurso sucessivo da
p esquisa de Bakhtin que, tendo encontrado no pon-
to de vista da escrita literária a possibilidade da
descrição da arquitetônica assim como pretendia
apresentá-la, se dedicará a estudar este ponto de
vista, de tal maneira que aquilo que aqui era para
ser apenas um exemplo, acabará por ocupá-lo pelo
resto de sua vida.
É importante também notar que Bakhtin dá início
à sua aproximação com a visão literária a partir do gê-
nero lírico e reencontra originariamente nele a relação
de alteridade dialógica entre pontos de vista diferentes.
Isto põe por terra a errônea interpretação que vê Bakh-
tin como sendo pouco atento ao gênero lírico e que lhe
atribui a contraposição entre gêneros que seriam mo-

31
nológicos, como em especial o gênero lírico, e gêneros
dialógicos, como em particular o romance.
À luz do texto sobre a filosofia do ato respon-
sável torna-se, além do mais, plenamente compre-
ensível o percurso que conduziu Bakhtin à sua mo-
nografia, publicada em 1929, sobre Dostoiévski, em
que "filosofia", constituída, evidentemente, por
Bakhtin, não a partir de determinadas concepções,
de posições determinadas dos heróis de seus ro-
mances, de certos conteúdos das suas obras, mas no
movimento abrangente de reorientação a partir do
princípio dialógico como efetiva estrutura da obra,
Bakhtin reencontra a arquitetônica proposta em seu
escrito sobre a filosofia moral. O "romance polifô-
nico" de Dostoiévski obtém uma descrição da per-
sonagem não mais como poderia descrevê-la um eu
que a assuma como objeto, mas enquanto centro
"outro", segundo o qual se organiza o seu mundo.

Não é por acaso que Dostoiévski obriga Makár Diévu-


chkin a ler O Capote de Gógol e encará-lo como novela so-
bre si mesmo, como um "pasquirn" de si mesmo.( ... )
Dostoiéski realizou urna pequena revolução copemicana,
fazendo do que era urna estável e completa determinação
do autor um momento da autodeterminação da persona-
gem. ( ... ).
( ... )Na figura da personagem do Capote, Devuskin se vê,
por assim dizer, avaliado, medido e definido em profun-
didade: você está todo aqui, e em você não há mais nada,
e de você não há outra coisa para dizer. Ele se sente irre-
mediavelmente predeterminado e acabado, como já mor-
to antes de morrer, e ao mesmo tempo sente também a
falsidade de urna tal atitude. ( .. .)
O sentido sério, profundo desta revolta pode-se exprimir
assim: não se pode transformar o homem vivo em objeto
mudo de um conhecimento exterior completamente defi-
nidor. No homem há sempre alguma coisa que só ele pode des-

32
cobrir no ato livre da autoconsciência e da palavra, que não se
sujeita à determinação externa e exteriorizante.
( ... )A verdadeira vida da pessoa é acessível apenas a um
enfoque dialógico diante do qual ela se revela livremente
em resposta (Bakhtin, 1963, trad. It: 66 e seg.)

É este então o itinerário de Bakhtin que se confi-


gura desde o seu primeiro trabalho até a publicação
em 1929 da monografia sobre Dostoiévski: ele parte
de uma refundação da filosofia e percebe que as exi-
gências estabelecidas nos seus prolegômenos para
uma filosofia do ato responsável têm a efetiva possi-
bilidade de realização na escrita literária, enquanto
esta é mais ou menos capaz, segundo os gêneros e
u bgêneros literários, de colocar-se fora da dimensão
de identidade e da diferença-indiferença e delinear,
de um ponto de vista participativo e não indiferente,
uma arquitetônica da alteridade. Um itinerário que
passa também pelo trabalho do Círculo Bakhtiniano
(como aparece nos escritos recolhidos em Bakhtin,
Kanaev, Medvedev, Voloshinov, 1995, e naqueles pu-
blicados por Voloshinov na segunda metade dos anos
20); e que, baseado no interesse inicial por uma filoso-
fia do ato responsável, alcança, coerentemente, o inte-
resse por uma filosofia da escrita literária, onde da
crita literária é genitivo subjetivo: não uma visão fi-
losófica à qual submeter tal escrita, mas uma perspec-
tiva filosófica que a arte verbal toma possível.

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38
PARA UMA FILOSOFIA DO
,
ATO RESPONSAVEL
Para uma filosofia do ato responsável

<... > Também a atividade estética não consegue


ligar-se a esta característica do existir 1 que consiste
na sua contingência e no seu caráter de evento 2
aberto; e o produto da atividade estética, no sentido
que lhe é próprio, não é o existir em seu efetivo de-
vir, e, no que concerne à sua existência, ele se inte-
gra no existir mediante o ato histórico de uma ativa
percepção estética. A percepção estética não conse-

1 Bytie: existir. Significa também ser, mas aqui a referência é ao


existir. As traduções espanhola e francesa usam "ser" (ser, être);
mas, aqui e ali, usam também, respectivamente, existência e exis-
tence. Na tradução inglesa, Being, Ser, com maiúscula. A sombra
de Heidegger! Além disso, existe uma passagem do texto de
Bakhtin em que há uma tomada de posição avant la lettre contra
a ontologia de tipo heideggeriano. Bytie, existir, e sobitye, evento.
Sobytijnost, "carácter de evento", ao qual preferimos a "eventici-
dade". Esta e outras notas são do curador 'e m colaboração com o
tradutor italiano, levando em conta as notas de rodapé do texto
em russo de Bakhtin, Sobranie socinenij [Coletânea das obras], vol. I,
e das traduções precedentes italianas e estrangeiras. As referên-
cias às traduções inglesa, espanhola e francesa dizem respeito,
respectivamente, à edição americana, 1993 (2º ed. 1995), à caste-
lhana de 1997 e à francesa de 2003: v., também para as referên-
cias às traduções italianas precedentes de 1994 e de 1998, a biblio-
grafia da '1ntrodução" neste livro.)
2 Sobytijnost': eventicidade; trad. Inglesa: event-ness; francesa:
éveneméntialite; espanhola: carácter de acontecer.

41
gue também apreender a unicidade do evento sin-
gular, porque as imagens que configura são objeti-
vadas, ou seja, são retiradas, em seu conteúdo, do
devir efetivo e singular3, e não participam dele
(participam somente como momento da consciência
viva e vivente do contemplador).
A característica que é comum ao pensamento
teórico discursivo4 (nas ciências naturais e na filoso-
fia), à representação-descrição histórica e à percepção
estética e que é particularmente importante para a
nossa análise, é esta: todas essas atividades estabele-
cem uma separação de princípio entre o conteúdo-
sentido de um determinado ato 5-atividade e a reali-
dade histórica de seu existir, sua vivência realmente
irrepetível; como consequência, este ato perde preci-
samente o seu valor, a sua unidade de vivo vir a ser e
autodeterminação. Somente na sua totalidade tal ato é
verdadeiramente real, participa do existir-evento6; só
assim é vivo, pleno e irredutivelmente, existe, vem a
ser, se realiza. É um componente real, vivo, do existir-
evento: é incorporado na unidade singular do existir
que se vai realizando, mas esta incorporação não pe-
netra em seu aspecto de conteúdo-sentido7, que rei-

3 Edinstvennji, singular, único, irrepetível, excepcional, incom-


parável, sui generis corresponde ao alemão einzig.
4 Teórico: especulativo (do grego theoretikós). Discursivo: adje-
tivo que corresponde ao sentido da palavra grega dianoia, e
designa o proceder, no raciocínio, derivando conclusões a
partir de premissas e tendo a ver com "causas e princípios"
(Aristóteles, Metafisica, v, 1, 1025 b 25).
5 Aqui, como logo adiante, é akt, não postupok.
6 Bytie-sobytie. Também "existir como evento" .
7 Soderzanie-smysl: Conteúdo-sentido. "Sentido" como "signifi-
cado contextual" . Em Voloshinov, 1929 (Marxismo e filosofia
da linguagem), encontramos a diferença Znacenie e smysl,
significado abstrato e sentido atual.

42
vindica a completa e definitiva autodeterminação na
unidade de um determinado domínio de sentido - da
ciência, da arte, da história: embora, como mostra-
mos, esses domínios objetivos, fora do ato que os en-
volve, não são, em si, reais. Como resultado, dois
mundos se confrontam, dois mundos absolutamente
incomunicáveis e mutuamente impenetráveis: o
mundo da cultura e o mundo da vida (este é o único
mundo em que cada um de nós cria, conhece, con-
templa vive e morre) - o mundo no qual se objetiva o
ato da atividade de cada um e o mundo em que tal
ato realmente, irrepetivelmente, ocorre, tem lugar. O
ato da atividade de cada um, da experiência que cada
um vive8, olha, como um Jano bifronte, em duas dire-
ções opostas: para a unidade objetiva de um domínio
da cultura e para a singularidade irrepetível da vida
que se vive, mas não há um plano unitário e único em
que as duas faces se determinem reciprocamente em
relação a uma unidade única. Somente o evento sin-
gular do existir no seu efetuar-se pode constituir esta
unidade única; tudo o que é teórico ou estético deve
ser determinado como momento do evento singular
do existir, embora não mais, é claro, em termos teóri-
cos e estéticos. O ato deve encontrar um único plano
unitário para refletir-se em ambas as direções, no seu
sentido e em seu existir; deve encontrar a unidade de
uma responsabilidade bidirecional, seja em relação ao
seu conteúdo (responsabilidade especial), seja em re-
lação ao seu existir (responsabilidade moral), de mo-
do que a responsabilidade especial deve ser um mo-
mento incorporado de uma única e unitária respon-

8 Experiência vivida: em espanhol e em português existe vivên-


cia, palavra peculiar e sem ser particípio passado: o Erlebnis
de Edmund Husserl.

43
sabilidade moral. Somente assim se pode superar a
perniciosa separação e a mútua impenetrabilidade
entre cultura e vida.
Cada um de meus pensamentos, com o seu
conteúdo, é um ato singular9 responsável meu; é
um dos atos de que se compõe a minha vida singu-
lar inteira como agir ininterrupto, porque a vida
inteira na sua totalidade pode ser considerada co-
mo uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a
minha vida, e cada ato singular e cada experiência
que vivo são um momento do meu viver-agir. Tal
pensamento, enquanto ato, forma um todo integral:
tanto o seu conteúdo-sentido quanto o fato de sua
presença em minha consciência real de um ser hu-
mano singular, precisamente determinado e em
condições determinadas - ou seja, toda a historici-
dade concreta de sua realização - estes dois mo-
mentos, portanto, seja o do sentido, seja o histórico-
individual (factual), são dois momentos unitários e
inseparáveis na valoração deste pensamento como
meu ato responsável. Mas se pode retirar dele, por
abstração, o momento de conteúdo-sentido, isto é, o
pensamento como juízo de validade universal. Para
este aspecto abstrato do sentido, o aspecto históri-
co-individual - o autor, o tempo, as circunstâncias e
a unidade moral de sua vida - é totalmente indife-
rente: tal juízo de validade universal se refere à
unidade teórica do domínio teórico corresponden-
te, e o lugar que ocupa nesta unidade define a sua
validade de modo totalmente exaustivo. A valora-
ção do pensamento como ato individual leva em
consideração e contém em si, de forma plena, o
momento da validade teórica do pensamento-juízo;

9 Aqui é postupok, como também nas ocorrências que seguem.

44
a valoração do significado do juízo constitui um
momento necessário na efetivação do ato, apesar de
não exaustivo. Para a validade teórica do juízo, por
outro lado; é totalmente indiferente o momento his-
tórico-individual, momento da transformação do
juízo em ato responsável de seu autor. Eu, que re-
almente penso e sou responsável pelo ato [akt] do
meu pensar, não tenho lugar no juízo teoricamente
válido. O juízo teoricamente valido é, em todos os
seus momentos, impenetrável para a minha ativi-
dade [aktivnost'] individualmente responsável. Se-
jam quais forem os momentos que distinguimos no
juízo teoricamente válido - a forma (as categorias
da síntese) e o conteúdo (o assunto, os dados expe-
rimentais e sensoriais), o objeto e o conteúdo - a
validade [Znacimost'] de todos estes momentos ex-
clui, de maneira totalmente impenetrável, o mo-
mento do ato individual, o ato de quem pensa.
A tentativa de compreender o dever [Dolzhens-
tvovanie] 10 como a mais alta categoria formal (a
afirmação-negação de Rickert11 ) baseia-se num
equívoco. O dever pode fundar a presença real de
um dado juízo em minha consciência em dadas cir-
cunstâncias, isto é, a concretude histórica de um
fato individual, mas não a veracidade [istinnost']
teórica em si do juízo. O momento da veracidade
teórica é necessário para que o juízo seja um impe-
rativo para mim, mas não é suficiente; um juízo
verdadeiro não é já, por isso mesmo, também um
ato [postupok] imperativo do pensamento. Permi-

10 No texto em russo [em Bakhtin, Sobranie socinenij (Coletânea


das obras), vol 1] este não é um parágrafo, como está aqui; pa-
ra agilizar a leitura, decidimos organizar desta forma .
11 "Bejahung-Verneinung". A referência é ao livro de Heinrich

Rickert (1863 - 1936) Der Gegestand der Erkenntnis (1882).

45
tam-me uma analogia um pouco grosseira: a irreto-
cável correção técnica do ato não resolve ainda a
questão de seu valor moral. Em relação ao dever a
veracidade teórica é exatamente de ordem técnica.
Se o dever fosse um momento formal do juízo, não
haveria ruptura entre vida e criação cultural, entre
ação como ato [act-potupok] - momento da unidade
do contexto da minha vida singular - e o conteúdo-
sentido do juízo, parte de uma unidade teórica ob-
jetiva da ciência: e isso significaria que existiria um
só e único contexto de cognição e vida, de cultura e
vida, o que, naturalmente, não é o caso. Afirmar o
juízo como verdadeiro é relacioná-lo a uma certa
unidade teórica, unidade que não é, de modo al-
gum, a unidade histórica singular de minha vida.
Não há sentido em falar de algum dever teórico
especial, do tipo: posto que penso, devo pensar ver-
dadeiramente [istinno ]; a veracidade [istinnost'] é o
dever do pensamento. Mas, será mesmo o caso que o
dever é momento inerente da verdade mesma? De
fato, o dever se revela apenas na correlação da ver-
dade (válida em si mesma) com a ação cognitiva real
de cada um de nós, e tal momento de correlação é
historicamente um momento único, é sempre um ato
individual, que não afeta em nada a validade teórica
objetiva do juízo - é um ato que é avaliável e impu-
tável no contexto único da vida real única de um su-
jeito. Para o dever não é suficiente apenas a veraci-
dade, <é necessário> o ato de resposta do sujeito, que
provém do seu interior, a ação de reconhecimento da
veracidade do dever, e também esta ação não pene-
tra, de modo algum, na composição teórica e no sig-
nificado do juízo. Por que, enquanto penso, devo
pensar verídicamente? Da definição teórico-
gnoseológica da veracidade não resulta totalmente o

46
dever; tal momento não está contido em sua defini-
ção e dela não é dedutível: ele só pode ser dado e
fixado desde o exterior (Husserl). Em geral, nenhu-
ma definição e nenhuma proposição teórica pode
incluir em si o momento do dever, nem ele é delas
dedutível. Não existe um dever estético, científico e,
ao lado deles, um dever ético: há apenas o que é es-
tética, teórica e socialmente válido e ao qual se pode
agregar um dever a respeito do qual todas estas va-
lidades são de caráter técnico, instrumentais. Tais
posições adquirem sua validade no interior de uma
unidade estética, científica, sociológica; enquanto
adquirem o dever na unidade de minha vida singu-
lar e responsável. Em geral, como veremos detalha-
damente mais adiante, não se pode falar de nenhu-
ma norma moral, ética, de nenhum dever como ten-
do um determinado conteúdo. O dever não possui
um conteúdo definido e especificamente teórico. O
dever pode estender-se sobre tudo o que é conteu-
disticamente válido, mas nenhuma proposição teóri-
ca conterá, em seu conteúdo, o momento do dever,
nem se funda nele. Não existe um dever científico,
estético etc., nem tampouco existe um dever especi-
ficamente ético, entendido como conjunto de normas
com um conteúdo determinado. Tudo o que é válido
dá fundamento relativamente à sua validade a di-
versas disciplinas específicas, e nada sobra para a
ética (as ditas normas éticas são geralmente regras
sociais e, quando as correspondentes ciências sociais
forem fundamentadas, elas serão de sua competên-
cia). O dever é uma categoria original do agir-ato
[postuplenie-postupok] (e tudo é um ato meu, inclusive
o pensamento e o sentimento), é uma certa atitude
[ustanovka] da consciência, cuja estrutura nos pro-
pomos desvendar fenomenologicamente. Não exis-

47
tem normas morais determinadas e válidas em si,
mas existe o sujeito moral com uma determinada
estrutura (não, obviamente, uma estrutura psicoló-
gica ou física), e é sobre ele que necessitamos nos
apoiar: ele saberá em que consiste e quando deve
cumprir o seu dever moral ou, mais precisamente, o
dever (porque não existe um dever especificamente
moral).
O fato de que a minha atividade responsável
não penetra no aspecto de conteúdo-sentido do juí-
zo parece ser contraditado pelo fato de que a forma
do juízo, o momento transcendente na formação do
juízo, é também momento da atividade da nossa
razão, pelo fato de que é cada um de nós que pro-
duz as categorias da síntese. Esquecemo-nos da
empreitada copernicana de Kant12 • Todavia, a ati-
vidade transcendente é deveras atividade histori-
camente individual da minha ação, pela qual sou
individualmente responsável? Ninguém, certamen-
te, afirmará tal coisa. A descoberta de um elemento
transcendente a priori em nossa consciência não cri-
ou uma saída desde o interior do conhecimento,
isto é, desde seu aspecto de conteúdo-sentido, em
direção ao efetivo ato cognitivo histórico-
individual; não superou a sua separação e mútua
impenetrabilidade, e para essa atividade transcen-
dente foi preciso inventar um sujeito puramente
teórico, historicamente inexistente, uma consciência
em geral, uma consciência científica, um sujeito
gnosiológico. Mas, certamente, este sujeito teórico

12 " [ . . . ]
conheci muito cedo Kant, comecei muito cedo a ler a sua
Crítica da razão pura[ ... ] em alemão. Não em russo. Em russo
eu li Os Prolegômenos" (Bakhtin, M. & Duvakin, V. Mikhail
Bakhtin em diálogos. Conversas de 1973 com V. Duvakin. p.
40.

48
deveria a cada vez encarnar-se em um ser humano
real, efetivo, pensante para incorporar-se, com o
mundo todo do existir que lhe é inerente enquanto
objeto de seu conhecimento, no existir do evento
histórico real, simplesmente como seu momento.
E, assim, enquanto separamos um juízo da
unidade da ação-ato historicamente real de sua
atuação e o relacionamos a uma unidade teórica
qualquer, do interior de seu conteúdo-sentido, não
há saída que conduza ao dever no evento real sin-
gular do existir. Qualquer que seja a tentativa de
superar o dualismo entre consciência e vida, entre o
pensamento e a realidade concreta singular é, do
interior do conhecimento teórico, absolutamente
sem esperança. Uma vez separado o aspecto do
conteúdo-sentido do conhecimento do ato histórico
de sua realização podemos sair em direção ao de-
ver somente por meio de um salto; procurar a ação-
ato cognitivo real no conteúdo de sentido separado
dele é como tentar levantar-se puxando-se pelos
cabelos. Do conteúdo separado do ato cognitivo
apropriam-se suas próprias leis imanentes, com
base nas quais ele se desenvolve sozinho, autono-
mamente. Inseridos neste conteúdo, consumado
um ato de abstração, estaremos à mercê de suas leis
autônomas; mais exatamente, cada um de nós não
está mais presente nele como ativo no sentido indi-
vidual e responsável. Dá-se, então, o que ocorre no
mundo da tecnologia, que conhece sua própria lei
imanente a que se submete em seu impetuoso e ir-
restrito desenvolvimento, não obstante já há tempo
tenha se furtado à tarefa de compreender a finali-
dade cultural desse desenvolvimento, e acabe con-
tribuindo para piorar notavelmente as coisas em
vez de melhorá-las; assim, com base nas suas leis

49
internas, aperfeiçoam-se instrumentos que, como
resultado, se transformam de meio de defesa racio-
nal em uma força terrificante, letal e destrutiva. É
aterrorizante tudo o que é tecnológico, quando abs-
traído da unidade singular do existir de cada um e
deixado entregue à vontade da lei imanente de seu
desenvolvimento; ele pode repentinamente irrom-
per nesta unidade singular da vida de cada um co-
mo força irresponsável, deletéria e devastante.
Enquanto o mundo autônomo teórico, abstrato,
alheio por princípio à historicidade viva singular,
permanece fechado em suas próprias fronteiras, a
sua autonomia é justificada e inviolável; são igual-
mente justificadas disciplinas filosóficas especiais
como a lógica, a teoria do conhecimento, a psicolo-
gia do conhecimento, a biologia filosófica, que obje-
tivam descobrir - teoricamente, isto é, segundo o
conhecimento abstrato - a estrutura do mundo teo-
ricamente cognoscível e seus princípios. Mas o
mundo como objeto de conhecimento teórico pro-
cura se fazer passar como o mundo como tal, isto é,
não só como unidade abstrata, mas também como
concretamente único em sua possível totalidade; o
conhecimento teórico visa, assim, construir uma
filosofia primeira (prima philosophia) na forma de
gnosiologia ou de <? Palavra ilegível no original> teó-
rico (de variado tipo biológico, físico, etc.). Seria
absolutamente injusto pensar que esta seja a ten-
dência predominante na história da filosofia: é an-
tes, podemos dizer, a característica específica da
época moderna, dos séculos XIX e XX em especial.
O pensamento participativo [usastnoe myslenie]
predomina em todos os grandes sistemas filosófi-
cos, de modo consciente e explícito (em particular
no período medieval), ou inconsciente e latente

50
(nos sistemas do século XIX e XX). Podemos notar
hoje um particular abrandamento dos próprios
11 11
termos existir" e realidade". O exemplo clássico
de Kant contra a prova ontológica - de que cem
táleres [moeda alemã] reais não equivalem a cem
táleres somente pensados - deixou de ser convin-
cente; de fato, o que é realmente existente no plano
histórico e que é irrepetível, na realidade determi-
nada por mim de uma maneira única, é incompa-
ravelmente mais pesado; mas, se é medido com pe-
sos teóricos, ainda que com o acréscimo do reco-
nhecimento teórico de sua existência empírica, abs-
tração feita de seu valor histórico único, dificilmen-
te resultará mais pesado do que aquilo que é ape-
nas pensado. Isto que existe como singular e histo-
ricamente real tem volume e peso maior do que
qualquer unidade de ordem teórica e científica, mas
esta diferença de peso, evidente para a consciência
viva que a experimenta, não pode ser entendida
por meio de categorias teóricas.
O conteúdo-sentido que foi abstraído da ação-
ato pode ser integrado a um certo existir aberto e
único, mas, naturalmente, não é aquele existir único
em que· cada um de nós vive e morre, em que se
desenrola o ato responsável de cada um: tal existir
é, por princípio, estranho à viva historicidade. Eu
não posso incluir o meu eu efetivo e a minha vida
como um aspecto do mundo das construções da
consciência teórica, mundo obtido por abstração do
ato histórico responsável-individual; o que é neces-
sário, se se parte do pressuposto de que este mun-
do é o mundo todo, o existir total (total em princí-
pio ou em consideração à sua finalidade, isto é, sis-
tematicamente, também se pode, por certo, deixar
aberto o próprio sistema do existir teórico). Em um

51
tal mundo apareceríamos determinados, predeter-
minados, prontos e acabados, fundamentalmente
não viventes; nós nos retiraríamos da vida, conce-
bida como devir-ato responsável, arriscado, aberto,
para um existir teórico indiferente, por princípio
concluso e completo (não no sentido de que é con-
cluído e determinado apenas no processo cognitivo,
mas como um existir já determinado justamente
enquanto dado). É claro que isso só é possível fa-
zendo abstração do que no ato é absolutamente ar-
bitrário (responsavelmente-arbitrário), absoluta-
mente novo, que vem sendo criado, que tem a ver
com a ação, isto é, fazendo abstração precisamente
de tudo aquilo de que vive a ação. Nenhuma orien-
tação prática da minha vida no mundo teórico é
possível: nele não é possível viver, agir responsa-
velmente, nele não sou necessário, nele, por princí-
pio, não tenho lugar. O mundo teórico se obtém
por uma abstração que não leva em conta o fato da
minha existência singular e do sentido moral deste
fato, que se comporta "como se eu não existisse"
[kak esli by menja ne bylo ]; e tal conceito de ser, que é
indiferente ao fato, para mim central, da minha en-
carnação concreta e singular no existir (aí estou
também eu), não pode, por princípio, acrescentar
nada a ele, nem tirar nada dele, já que este mundo
teórico permanece igual e idêntico a si mesmo no
próprio sentido e significado, exista eu ou não; ele
não pode oferecer nenhum critério para a minha
vida como agir [postuplenie] responsável, não pode
fornecer nenhum critério para a vida da práxis, pa-
ra a vida do ato, porque nele eu não vivo: e se fosse
tal mundo o único, eu não existiria.

52
Todavia13, é a isso que conduz o confinamento
de si e da própria vida em um existir cientificamen-
te cognoscível congelado; mas nós fazemos isso
somente teoricamente e sem refletir até as últimas
consequências, de outra forma nós nos bloquearía-
mos na nossa vida; o que nos salva é que o próprio
ato historicamente singular deste confinamento não
faz parte deste existir que se congela, mas perma-
nece na unidade singular de nossa vida responsá-
vel, o que significa que o mundo no qual se efetua
realmente este pensamento-ato não corresponde,
apesar de tudo, ao produto abstrato deste pensa-
mento, ou ao mundo teórico; no momento do ato, o
mundo se reestrutura em um instante, a sua verda-
deira arquitetura se restabelece, na qual tudo o que
é teoricamente concebível não é mais que um as-
pecto. Esta duplicidade se torna para nós coisa fa-
miliar, e nós somos realistas a tal ponto não ingê-
nuos, que a nossa consciência não se preocupa com
esta mentira interior: ou seja, situar, localizar a mi-
nha vida singular real, efetiva, em um mundo indi-
ferente que só é concebível teoricamente, e o mun-
do real, vivido de maneira singular, em um mundo
não vivido, mas somente concebível enquanto seu
componente. Mas certamente, na vida real, prática,
não é em relação a isso que pode orientar-se o ato
de cada um de nós. O realismo ingênuo é próximo
da verdade, na medida em que ele não constrói teo-
rias, e a sua prática poderia ser assim formulada:
vivemos e agimos no mundo real, mas o mundo de

13 Este parágrafo inteiro, a partir do início desta linha, não está


incluído nas traduções precedentes citadas, com exceção da
francesa, e corresponde ao texto original de Obras completas
(vol I, pp.13-14).

53
nosso pensamento é o seu reflexo, dotado de um
valor técnico. O mundo real se reflete somente por
meio do pensamento, mas ele, por seu turno, não se
pensa no seu existir, isto é, cada um de nós, com
todos seus próprios pensamentos e seus conteúdos,
somos nele, e é nele que nós vivemos e morremos.
Um tal relacionamento recíproco entre pensamento
e realidade é muito próximo da verdade.
Mas, obviamente, daí não decorre, em absolu-
to, a validade de qualquer relativismo que negue a
autonomia da verdade e que procure fazer dela
qualquer coisa de relativo e condicionado, um
momento - da vida prática ou outra - alheio a essa
verdade precisamente na sua veracidade e importân-
cia. Do nosso ponto de vista, o caráter autônomo da
verdade, a sua pureza metodológica e a sua autode-
terminação são totalmente preservados; por conta
da condição de sua pureza, a verdade pode partici-
par responsavelmente do existir-evento: uma ver-
dade intrinsecamente relativa não é necessária à
vida-evento. A validade da verdade é uma sua ca-
racterística autônoma, é absoluta e eterna, e a ação
responsável da cognição leva em conta esta sua
particularidade, é esta a sua essência. A validade de
uma asserção teórica não depende absolutamente
do fato de ser ou não conhecida por alguém. As leis
de Newton eram válidas em si antes mesmo de se-
rem descobertas por Newton e não foi esta desco-
berta que as tornou válidas pela primeira vez; mas
tais verdades não existiam como momentos conhe-
cidos, incorporados ao existir-evento único, o que é
de essencial importância, porque é isso que consti-
tui o sentido do ato que as conhece. Seria um erro
grosseiro pensar que estas verdades eternas em si
existissem primeiro, antes de serem descobertas

54
por Newton, do mesmo modo como a América
existia antes de ser descoberta por Colombo; o cará-
ter eterno da verdade não pode ser contraposto à
nossa temporalidade [dando origem a um aparente
paradoxo ]1 4 como duração infinita para a qual todo
nosso tempo não é mais que um momento, um
segmento.
A temporalidade da lústoricidade real do existir
não é mais que um momento da lústoricidade co-
nhecida de maneira abstrata. O momento abstrato
da validade extratemporal da verdade pode também
ser contraposto ao momento abstrato da temporali-
dade do objeto da cognição lústórica: mas toda a
contraposição não sai dos confins do mundo teórico,
e só neste tem sentido e validade. A validade extra-
temporal de todo o mundo teórico da verdade, por
sua vez, entra por completo na lústoricidade real do
existir-evento. Evidentemente, não entra aí tempo-
ralmente ou espacialmente (todos estes são momen-
tos abstratos), mas como momento que enriquece o
existir-evento. Somente aquilo que da cognição per-
tence a categorias científico-abstratas é, por princí-
pio, teoricamente alheio ao sentido conhecido abs-
tratamente. O ato real de cognição - não do interior
de seu produto teórico-abstrato (isto é, desde o inte-
rior de um juízo universalmente válido) mas como
ato responsável - incorpora cada significado extra-
temporal no existir-evento singular. Todavia, a con-
traposição habitual entre a verdade eterna e a nossa
temporalidade imperfeita possui um sentido não
teórico; tal asserção inclui em si certo sabor axiológi-

14 Trata-se, neste e no outro segmento entre parênteses quadra-


dos, de anotações que aparecem na margem do manuscrito
de Bakhtin.

55
coe assume um caráter emotivo-volitivo: eis aqui a
verdade eterna (e isso é bom), e eis aqui a nossa im-
perfeita vida temporal, transitória, efêmera (e isso é
mau). Mas temos aqui o caso de um pensamento
participativo, sustentado em um tom penitente, que
busca superar o próprio caráter dado, em favor do
que se coloca como algo que está para ser alcançado;
mas tal pensamento participativo se desenvolve
propriamente dentro da arquitetônica do existir-
evento do qual estamos falando. Tal é também a
concepção de Platão.
Teoricismo ainda mais grosseiro é a tentativa
de incluir o mundo da cognição teórica no existir
único, assumindo-o como entidade psíquica. O psí-
quico é um produto abstrato do pensamento teóri-
co, e é inaceitável conceber a ação-ato do pensa-
mento vivo como processo psíquico, que está situ-
ado no mundo teoricamente concebido junto a tudo
o que está aí contido. O psíquico é um produto abs-
trato como o é qualquer validade transcendente.
Neste caso, incorremos em um absurdo considerá-
vel, desta vez sobre o plano puramente teórico: tor-
namos o mundo teórico grande (o mundo como
objeto do conjunto das ciências, de toda a cognição
teórica) um momento do mundo teórico pequeno (a
realidade psíquica como objeto da cognição psico-
lógica). A psicologia se justifica quando, permane-
cendo dentro das suas fronteiras, considera o co-
nhecimento só como processo psíquico, e traduz na
língua do psíquico, seja o momento do conteúdo -
sentido do ato cognitivo, seja a responsabilidade
individual da realização do ato; quando, em vez
disso, pretende ser conhecimento filosófico e apre-
senta sua transcrição psicológica para o existir co-
mo se fosse realidade singular, não admitindo junto

56
de si a possibilidade de uma igualmente legítima
transcrição segundo uma lógica transcendente, co-
mete um erro grosseiro, seja do ponto de vista teó-
rico, seja do ponto de vista do filosofar concreto 15 •
Em minha vida-como-ato nada absolutamente
tenho a ver com o psíquico (a não ser quando atuo
como psicólogo-teórico). Em matemática, quando
se realiza um ato responsável e produtivo - ocu-
pando-se, por exemplo, com um teorema - , é con-
cebível, mas totalmente irrealizável, a possibilidade
de operar com um conceito matemático como se se
tratasse de uma instância da ordem psíquica. Neste
caso, certamente, o trabalho do ato não se realizará:
o ato se desenvolve e vive em um mundo que não é
um mundo psíquico. Quando me ocupo com um
teorema, concentro-me em seu sentido, que respon-
savelmente coloco em relação com os conhecimen-
tos adquiridos (que é o objetivo real da ciência),
sem saber e sem ter que saber nada sobre a possível
transcrição psicológica deste meu ato real e respon-
sável, embora esta transcrição seja para um psicó-
logo, do ponto de vista de seus objetivos, correta16 .
Formas análogas de teoricismo são também as
várias tentativas de reunir o conhecimento teórico e
a vida em sua irrepetibilidade, concebendo esta úl-
tima segundo categorias biológicas, econômicas
etc.: ou seja, todas as várias tentativas de tipo
pragmatista. Nestes casos, uma teoria se converte

15 À critica da função fundante da psicologia, com referência


direta sobretudo a Wilhelm Dilthey, é dedicado todo o capí-
tulo III de Marxismo e filosofia da linguagem, o livro de Bakhtin
em colaboração com V. N . Voloshinov publicado em 1929 sob
o nome deste último.
16 Estas considerações estão em consonância com a crítica do

psicologismo de Edmund Husserl.

57
em um aspecto de uma outra teoria em vez de ser
um momento do existir-evento real. É necessário
reconduzir a teoria em direção não a construções
teóricas e à vida pensada por meio destas, mas ao
existir como evento moral, em seu cumprir-se real -
à razão prática - o que, responsavelmente, faz
quem quer que conheça, aceitando a responsabili-
dade de cada um dos atos de sua cognição em sua
integralidade, isto é, na medida em que o ato cogni-
tivo como meu ato faça parte, com todo o seu con-
teúdo, da unidade da minha responsabilidade, na
qual e pela qual eu realmente vivo e realizo atos.
Todas as tentativas de alcançar a existência-evento
real a partir do interior do mundo teórico são sem
esperança; não é possível do interior da cognição
em si abrir um caminho no mundo conhecido teori-
camente para alcançar o mundo real em sua singu-
laridade e irrepetibilidade. Mas, partindo da ação-
ato e não de sua transcrição teórica, há uma abertu-
ra voltada para seu conteúdo-sentido, que é intei-
ramente admitido e incluído desde o interior de tal
ato, já que o ato se desenvolve realmente no existir.
O mundo como conteúdo do pensamento cien-
tífico é um mundo particular, autônomo, mas não
separado, e sim integrado no evento singular e úni-
co do existir através de uma consciência responsá-
vel em um ato-ação real. Porém, tal existir como
evento singular não é algo pensado: tal existir é, ele
se cumpre realmente e irremediavelmente através
de mim e dos outros - e, certamente, também no
ato de minha ação-conhecimento; ele é vivenciado,
asseverado de modo emotivo-volitivo, e o conhecer
não é senão um momento deste vivenciar-asseverar
global. A singularidade única não pode ser pensa-
da, mas somente vivida de modo participativo. A

58
razão teórica em sua totalidade não é senão um
momento da razão prática, isto é, da razão decor-
rente da direção moral de um sujeito único no
evento do existir singular. Este existir não é defirú-
vel pelas categorias de uma consciência teórica não
participante, mas somente pelas categorias da par-
ticipação real, isto é, do ato, pelas categorias do efe-
tivo experimentar operativo e participativo da sin-
gularidade concreta do mundo .
O traço característico da filosofia contemporâ-
nea da vida, que busca incluir o mundo teórico na
unidade da vida em devir, é uma certa estetização
da vida que de alguma forma mascara um pouco a
inadequação bastante evidente do teoricismo puro
(a inclusão do mundo teórico grande em um mun-
do pequeno, ainda que teórico) . Frequentemente, os
elementos teóricos e estéticos se fundem nestas
concepções da vida. Assim ocorre na tentativa mais
significativa de construir uma filosofia da vida -
aquela de Henry Bergson. O principal defeito de
suas construções_filosóficas, várias vezes destacado
pela literatura que se ocupa delas, é a falta de justi-
ficativa metodológica dos momentos heterogêneos
de sua concepção. Metodologicamente, não é clara
também sua definição da intuição filosófica, que ele
contrapõe ao conhecimento racional e analítico.
Não há dúvida, todavia, que o conhecimento racio-
nal reaparece como elemento necessário (teoricis-
mo) na intuição, da maneira como esta noção é efe-
tivamente empregada por Bergson. Isso foi mostra-
do com exaustiva clareza por Lossky no seu exce-
lente estudo sobre Bergson17. Se tais elementos raci-

17 Nikolaj O. Lossky, Intuitivnaia filosofiia Bergsona (A filosofia da


intuição de Bergson, Moscou, Put', 1922).

59
anais são extraídos da intuição, o que permanece
nela é a pura contemplação estética, com um aden-
do insignificante, uma dose homeopática, de pen-
samento efetivamente participante. Mas também o
produto da contemplação estética é abstraído do
ato efetivo da contemplação e não é essencialmente
necessário a ele: então, também para a contempla-
ção estética resta inapreensível o existir-evento úni-
co em sua singularidade. O mundo da visão estéti-
ca, que se obtém fazendo abstração do sujeito real
desta visão, não é o mundo real no qual eu vivo,
ainda que seu lado conteudístico pertença a um su-
jeito vivo. Mas entre o sujeito e a sua vida, objeto da
visão estética, e o sujeito portador do ato de tal vi-
são, há a mesma incomunicabilidade de princípio
que no conhecimento teórico.
No conteúdo da visão estética não encontrare-
mos a ação-ato daquele que vê. O reflexo bilateral
único de um ato único, que ilumina e traz a uma
única responsabilidade, seja o conteúdo, seja o exis-
tir-realização da ação-ato em sua indivisibilidade,
não penetra no lado conteudístico da visão estética:
do interior desta visão não há saída em direção à
vida. O que não está absolutamente em contradição
com o fato de que eu mesmo e a minha vida pos-
samos nos tomar conteúdo de minha contemplação
estética; o ato-ação mesmo desta visão não penetra
no conteúdo, a visão estética não se transforma em
confissão - ou, se chega a isso, deixa de ser uma
visão estética. E, com efeito, existem obras que se
situam na fronteira da estética e da confissão (ori-
entação moral no existir singular).
Momento essencial (mas não o único) da con-
templação estética é a empatia [vizivanie] com o ob-
jeto individual da visão, a visão deste último do

60
interior de sua própria essência. Ao momento da
empatia segue sempre o da objetivação, ou seja, o
de situar fora de si mesmo a individualidade com-
preendida através da empatia - separando-a de si
mesmo, e retomando a si mesmo. Somente tal
consciência que retoma a si mesma confere forma
estética, do seu próprio lugar, à individualidade
apreendida desde o interior mediante a empatia,
como individualidade unitária, íntegra, qualitati-
vamente original. E todos estes momentos estéticos
- singularidade, integridade, autossuficiência, ori-
ginalidade - são transgredientes18 em relação à
mesma individualidade que está sendo determina-
da: do interior de si mesma, e para si mesma, estes
momentos em sua vida não existem, ela não vive
para esses momentos - mas vive para si. Esses
momentos têm sentido e são realizados por quem
se identifica, situado fora da individualidade, dan-
do forma e objetivando a matéria cega da empatia.
Em outras palavras, o reflexo estético da vida viva
não é por princípio autorreflexo da vida em movi-
mento, da vida em sua real vitalidade: tal reflexo
pressupõe um outro sujeito da empatia, que é ex-
tralocalizado19. Naturalmente, não há necessidade
de pensar que ao puro momento da empatia segue
cronologicamente o momento da objetivação, da
formação; ambos são, na realidade, inseparáveis: a
pura empatia é um momento abstrato do ato unitá-
rio da atividade estética, que não deve ser pensado
como período temporal: os momentos da empatia e

18 Termo empregado nas primeiras obras de Bakhtin; indica um


"exceder", um "transcender", uma capacidade de extravasar.
19 Extracolocado, exotópico. Exotopia é um dos conceitos prin-

cipais da filosofia bakhtiniana.

61
da objetivação se interpenetram. Eu vivo ativamente
a empatia com uma individualidade, e, por conse-
guinte, nem por um instante sequer perco comple-
tamente a mim mesmo, nem perco o meu lugar
único fora dela. Não é o objeto que se apodera de
mim, enquanto ser passivo: sou eu que ativamente o
vivo empaticamente; a empatia é um ato meu, e
somente nisso consiste a produtividade e a novida-
de do ato (Schopenhauer e a música20 ). Mediante a
empatia se realiza algo que não existia nem no obje-
to da empatia, nem em mim antes do ato da empa-
tia, e o existir-evento se enriquece deste algo que é
realizado, não permanecendo igual a si mesmo. E
esta ação como ato, que cria algo de novo, já não
pode mais ser um reflexo estético em sua essência,
porque isso a tornaria exterior ao sujeito que age, e
à sua responsabilidade. A empatia pura, a coinci-
dência com o outro, a perda de meu lugar único na
singularidade do existir, pressupõem o reconheci-
mento de que a minha singularidade e a unicidade
do meu lugar não são um componente essencial,
não influem no caráter essencial da existência do
mundo. Mas tal reconhecimento da irrelevância da
própria singularidade para a concepção do existir
no mundo comporta inevitavelmente também a
perda da singularidade do existir, e assim nós ob-
temos a ideia do existir somente como possível e

20 Bakhtin se refere às reflexões de Arthur Schopenhauer sobre


a música no terceiro livro de O mundo como vontade e como re-
presentação (1818), tradução italiana aos cuidados de A. Vigli-
ani, introdução de G. Vattimo, Milão, Mondadori, 2000, e ao
capítulo 39 do mesmo livro "Sobre a metafísica da música"
(tradução italiana cit. pp. 1322- 1336). O livro foi traduzido
para o português por Jair Barboza, e publicado pela Editora
da UNESP, 2005, 695p.

62
não essencial, real, singular, irredutivelmente real.
Mas um tal existir não pode vir a ser, não pode vi-
ver. O sentido de um existir para o qual o meu lu-
gar único na vida é reconhecido como não -essencial
não poderá nunca conferir a mim um sentido; não é
esse o sentido do existir-evento.
De outro lado, em geral, uma empatia pura não
é possível. Se eu me perdesse verdadeiramente no
outro (neste caso, no lugar de dois participantes,
haveria um só - com o consequente empobrecimen-
to do existir), ou seja, se eu cessasse de existir na
minha singularidade, então este momento do meu
não existir não poderia nunca se tornar momento
de minha consciência; o meu não existir não pode
voltar a entrar no existir da minha consciência co-
mo seu momento de existência - simplesmente não
existiria para mim; isto é, o existir, neste dado mo-
mento, não se realizaria através de mim. Uma em-
patia passiva, o ser possuído, a perda de si, não têm
nada em comum com a ação-ato responsável do re-
nunciar a si mesmo ou da abnegação: na abnegação
eu sou maximamente ativo e realizo completamen-
te a singularidade do meu lugar no existir. O mun-
do no qual eu, do meu lugar, no qual sou insubsti-
tuível, renuncio de maneira responsável a mim
mesmo não se torna um mundo no qual eu não es-
tou, um mundo indiferente, no que diz respeito ao
seu sentido, à minha existência: a abnegação é uma
realização que abraça o existir-evento. Um grande
símbolo de ativa abnegação, Cristo 21 que nos dei-
xou, sofrendo na eucaristia, na doação de seu corpo

21 O que segue daqui até o ponto não se acha nas traduções


precedentes citadas, com exceção da francesa, e corresponde
ao texto original das Obras Completas (v. I, p. 19).

63
e do seu sangue, uma morte permanente, permane-
ce vivo e ativo no mundo dos eventos, mesmo
quando deixou o mundo; é próprio de sua não-
existência no mundo que nós vivamos reforçados
em comunhão com ele. O mundo que Cristo deixou
não poderá mais ser o mesmo, como se ele nunca
tivesse existido: é, fundamentalmente, um outro
mundo.
Este mundo, o mundo em que se completou,
enquanto fato e sentido, o evento da vida e da mor-
te de Cristo, é, por princípio, indeterminável, seja
mediante as categorias teóricas, seja através das ca-
tegorias do conhecimento histórico, seja por meio
de uma intuição estética. No primeiro caso, de fato,
conhecemos o sentido abstrato, mas perdemos o
fato singular do efetivo cumprir-se histórico do
evento; no segundo, conhecemos o fato histórico,
mas perdemos o sentido; no terceiro, temos tanto a
existência do fato quanto o seu sentido como mo-
mento de sua individualização, mas perdemos a
nossa posição em relação a ele, perdemos a nossa
participação respondente àquilo a que somos cha-
mados. Em nenhum caso temos a completude da
realização, na unidade e na interpenetração do fato-
realização-sentido-significado único e da nossa par-
ticipação Gá que um e único é o mundo de tal reali-
zação).
Tentar encontrar a si mesmo no produto do ato
da visão estética significa querer se lançar dentro
do não existente, tentar renunciar à atividade pró-
pria do próprio lugar único, extralocalizado com
relação a cada ser estético, à própria realização ple-
na no existir-evento. A ação-ato da visão estética se
eleva acima de cada ser estético - seu produto - e
entra em um outro mundo, isto é, na unidade real

64
do existir-evento, incorporando, como um de seus
momentos, também o mundo estético. A pura em-
patia seria, de fato, o dissolver-se do ato no seu
produto - o que é certamente impossível. A visão
estética é uma visão justificada, se não ultrapassa as
próprias fronteiras. Se, ao invés disso, ela tem a
pretensão de ser uma visão filosófica do existir úni-
co e singular no seu caráter de evento, então é inva-
riavelmente condenada a apresentar uma parte abs-
tratamente isolada como se fosse o todo efetivo.
A empatia estética (quer dizer, não a empatia
pura, na qual me perco a mim mesmo, mas aquela
objetivante) não pode fornecer o conhecimento do
existir singular no seu caráter de evento; ela pode
fornecer somente a visão estética do que é colocado
externamente ao sujeito (e do próprio sujeito como
colocado fora da sua atividade, isto é, na sua passi-
vidade). A empatia estética com aquele que partici-
pa de um evento não significa ainda alcançar a ple-
na compreensão do evento. Por mais que eu conhe-
ça a fundo uma determinada pessoa, assim como
eu conheço a mim mesmo, devo, todavia, compre-
ender a verdade 22 da nossa relação recíproca, a ver-
dade do evento uno e único que nos une, do qual
nós participamos. Isto é, eu e o objeto da minha
contemplação estética precisamos ser definidos na
unidade do existir que de maneira igual nos abarca,
e na qual transcorre o ato de minha contemplação
estética; mas este existir não pode ser mais de or-
dem estética. Somente a partir do interior de tal ato
como minha ação responsável, e não de seu produto
tomado abstratamente, pode haver uma saída para

22 Aqui e logo depois, pravda, verdade, em contraste com istn-


nost', veracidade.

65
a unidade do existir. Somente do interior de minha
participação pôde ser compreendida a função de
cada participante. No lugar do outro, como se esti-
vesse em meu próprio lugar, encontro-me na mes-
ma condição de falta de sentido. Compreender um
objeto significa compreender meu dever em relação
a ele (a orientação que preciso assumir em relação a
ele), compreendê-lo em relação a mim na singula-
ridade do existir-evento: o que pressupõe a minha
participação responsável, e não a minha abstração.
Somente do interior de minha participação posso
compreender o existir como evento, mas este mo-
mento de participação singular não existe no interi-
or do conteúdo visível, na abstração do ato enquan-
to ato responsável.
Todavia, o ser estético está mais próximo da
unidade real do existir-como-vida do que está o
mundo teórico; por isso mesmo é bastante convin-
cente a tentação do esteticismo. No existir estético
pode-se viver - e tem quem aí viva, mas vivem os
outros e não eu - é a vida passada dos outros con-
templada amorosamente, e tudo isso que se coloca
fora de mim se correlaciona com essas pessoas; ali
eu não encontrarei a mim mesmo, mas somente o
meu duplo que se faz passar por mim; nessa vida
eu não posso senão interpretar um papel, isto é,
vestir, como uma máscara, a carne de um outro -
de um morto. Mas, na vida real, permanece a res-
ponsabilidade estética do ator e do indivíduo hu-
mano em relação à oportunidade da interpretação,
dado que a interpretação na sua totalidade é, em
geral, um ato responsável seu - do ator, do intér-
prete, e não da pessoa representada, do herói. O
mundo estético na sua totalidade não é senão um
momento do existir-como-evento, faz precisamente

66
parte dele através de uma consciência responsável
- o ato de quem dele participa. A razão estética é
um momento da razão prática.
E, desse modo, nem o conhecimento teórico
nem a intuição estética podem oferecer uma apro-
ximação ao existir real único do evento, já que entre
o conteúdo-sentido (o produto) e o ato (a real efeti-
vação histórica) não existe unidade nem interpene-
tração, em consequência da abstração fundamental
de mim mesmo enquanto participante da afirmação
do sentido e da visão. É isso que leva o pensamento
filosófico, que por princípio tende a ser puramente
teórico, àquele estado particular de esterilidade no
qual, sem dúvida, ele atualmente se encontra. O
acréscimo de certa dose de esteticismo cria a ilusão
de uma vitalidade maior, mas se trata tão somente
de uma ilusão. Para quem deseja e sabe pensar de
modo participante (sem separar o próprio ato do
produto de tal ato, e sim colocando ambos em rela-
ção entre si, procurando defini-los no contexto uni-
tário e singular da vida como inseparáveis) parece
que a filosofia, que deveria resolver as questões úl-
timas (isto é, colocar as questões no contexto do exis-
tir unitário e singular na sua totalidade), de qual-
quer modo, não fala do que deveria. Mesmo que as
suas proposições tenham certa validade, não são
elas, todavia, capazes de determinar o ato e o mun-
do no qual este ato real e responsavelmente se rea-
liza uma e somente uma vez.
Aqui não se trata somente de diletantismo, de
incapacidade de apreciar a grande importância das
conquistas da filosofia contemporânea no campo da
metodologia de setores particulares da cultura. Po-
de-se e deve-se reconhecer que, no domínio de suas

67
tarefas específicas, a filosofia contemporânea (so-
bretudo o neokantismo) alcançou um nível eviden-
temente alto e soube, enfim, elaborar métodos per-
feitamente científicos (coisa que o positivismo em
todas as suas formas, com o pragmatismo aí incluí-
do, não soube fazer). Não se pode negar à nossa
época o grande mérito de ter se aproximado do
ideal da filosofia científica, mas tal filosofia científi-
ca não pode ser mais que uma filosofia especializa-
da, isto é, uma filosofia dos diversos domínios da
cultura e de sua unidade, sob a forma de uma
transcrição teórica desde o interior dos objetos em
si da criação cultural e da lei imanente de seu de-
senvolvimento. Portanto, esta filosofia teórica não
pode pretender ser uma filosofia primeira, isto é,
uma doutrina não sobre a criação cultural unitária,
mas sobre o existir-evento unitário e singular. Tal
filosofia primeira não existe e parecem estar esque-
cidos os caminhos de sua criação. Daí, precisamen-
te, a profunda insatisfação em relação à filosofia
contemporânea por parte daqueles que pensam de
modo participante; insatisfação que leva alguns
destes a se orientar por concepções como o materia-
lismo histórico que, com todos os seus limites e su-
as lacunas, atrai uma consciência participante pelo
fato de que procura construir o seu mundo de tal
modo que um ato determinado concretamente, his-
tórico e real encontre um lugar nele; por isso, uma
consciência que tem um propósito e age 23 se desco-
bre em tal mundo . Nós podemos, aqui, deixar de
lado a questão <palavra ilegível> particular e das
inadequações metodológicas por meio das quais o

23
O que segue, daqui até o fim do parágrafo, não estava incluí-
do na edição original de 1986.

68
materialismo histórico realiza a sua saída do mun-
do teórico mais abstrato para entrar no mundo vivo
do ato como realização histórica responsável. O que
conta para nós aqui é que nesse mundo tal saída
acontece; e é nisso que está sua força, o motivo de
seu sucesso. Outros procuram satisfação filosófica
na teosofia, na antroposofia e em outras doutrinas
semelhantes. Estas doutrinas absorveram muito da
sabedoria real do pensamento participativo medie-
val e oriental, mas, consideradas como concepções
unitárias e não como simples compilações de visões
particulares do pensamento participante através
dos séculos, são absolutamente insatisfatórias, e
cometem o mesmo pecado metodológico do mate-
rialismo histórico, o da indiscriminação metodoló-
gica do que é dado e o que é posto como tarefa, en-
tre o que é e o que está ainda por ser realizado.
Para uma consciência participante e exigente, é
claro que o mundo da filosofia contemporânea, o
mundo teórico e teorizado da cultura, é, em certo
sentido, real e tem validade, mas é igualmente claro
que tal mundo não é aquele mundo no qual ela vi-
ve de fato e no qual o seu ato, responsavelmente, se
realiza. Estes dois mundos não se comunicam entre
si, e não existe um princípio que sirva para incluir e
envolver o mundo válido da teoria e da cultura teo-
rizada no existir-evento singular da vida. O ser
humano contemporâneo se sente seguro, com intei-
ra liberdade e conhecedor de si, precisamente lá
onde ele, por princípio, não está, isto é, no mundo
autônomo de um domínio cultural e da sua lei
imanente de criação; mas se sente inseguro, priva-
do de recursos e desanimado quando se trata dele
mesmo, quando ele é o centro da origem do ato, na

69
vida real e única. Ou seja, agimos com segurança
quando o fazemos não partindo de nós mesmos,
mas como alguém possuído da necessidade ima-
nente do sentido deste ou de outro domínio da cul-
tura. O percurso da premissa à conclusão se cum-
pre de maneira impecável e inatacável, mesmo
porque nele eu mesmo não estou; mas como e onde
se pode inserir este processo do meu pensamento
que se apresenta assim intrinsecamente irrepreen-
sível e puro, plenamente justificado em sua totali-
dade? Na psicologia da consciência? Ou talvez na
história de alguma ciência apropriada? Talvez no
meu relatório material, remunerado com base na
exata quantidade de linhas com que é formado? Ou
na ordem cronológica do meu dia, como ocupação
das cinco às seis? Em minhas obrigações de ordem
científica? Mas todas estas possibilidades e contex-
tos empregados para encontrar um sentido flutuam
neles mesmos, em uma espécie de espaço sem ar, e
não estão enraizados em nada de unitário e singu-
lar. A filosofia contemporânea não fornece princí-
pios para tal união, e nisso consiste a sua crise. O
ato aparece cindido em um conteúdo de sentido
objetivo e um processo subjetivo de realização. Do
primeiro fragmento, cria-se uma unidade sistemáti-
ca da cultura, única e verdadeiramente altiva na
sua rigorosa clareza; do segundo, se não é descar-
tado como absolutamente inservível (privado, de
fato, do conteúdo-sentido, ele é pura e inteiramente
subjetivo), pode-se, no melhor dos casos, extrair e
admitir alguma coisa de estético e teórico, do tipo
da durée do élan vital de Bergson, <12 palavras ilegí-
veis>. Mas, em ambos os casos, não há lugar para
uma realização-ação real e responsável.

70
Todavia, a filosofia contemporânea conhece
também a ética e a razão prática. Mesmo o primado
kantiano da razão prática é devotamente seguido
pelo neokantismo contemporâneo. Quando falamos
do mundo teórico, contrapondo-o ao ato responsá-
vel, nada dizemos sobre as construções éticas con-
temporâneas, as quais de fato têm a ver com o ato.
Na realidade, a presença do sentido ético na filoso -
fia contemporânea não acrescenta nada de novo
<palavra ilegível>; quase toda a crítica ao teoricis-
mo pode ser também estendida aos sistemas éticos,
por isso não entraremos em uma análise detalhada
das doutrinas éticas existentes; falaremos, em mo-
mento oportuno de nosso trabalho sobre as concep-
ções éticas particulares (o altruísmo, o utilitarismo,
a ética de Hermann Cohen24, etc.) e das questões
específicas a elas relacionadas. Aqui, devemos so-
mente mostrar como a filosofia prática, nas suas
orientações principais, distingue-se da chamada
filosofia teórica apenas por seu objeto, não pelo mé-
todo ou pelo modo de pensar; também ela é intei-
ramente impregnada de teoricismo e, na solução da
tarefa que se propõe, não existe diferença entre os
seus encaminhamentos particulares.
Todos os sistemas éticos são frequentemente
distinguidos, justamente, em materiais e formais.
Contra a ética material (conteudística) temos duas
objeções de princípio; contra a ética formal, uma. A

24 Hermann Cohen (1842 - 1918), fundador da escola de Mar-


bourg com o qual tinha estudado um dos participantes do
Círculo de Bakhtin a ele mais próximo, F.F. Matvej I. Kagan.
Ver, a este propósito "Mikhail Bakhtin em diálogo. Conver-
sas de 1973 com Viktor Duvakin". Pedro & João Editores,
2008, p. 43-45.

71
ética material procura encontrar e fundar normas
conteudísticas morais especificas, normas às vezes
de validade universal, às vezes primordialmente
relativas, mas em qualquer caso gerais, aplicáveis a
todos. Um ato é ético somente quando é governado
inteiramente por uma norma moral apropriada,
que tenha determinado conteúdo de caráter geral.
A primeira objeção de princípio contra a ética ma-
terial ou conteudística, objeção a qual já tivemos
ocasião de sinalizar, consiste nisto: não existem
normas especificamente éticas. Cada norma con-
teudística encontra o seu fundamento específico na
sua validação pela disciplina científica correspon-
dente: a lógica, a estética, a biologia, a medicina, ou
qualquer uma das ciências sociais. Claro que, na
ética, tiradas todas as normas que encontraram um
fundamento em uma disciplina apropriada, resta
certa quantidade de normas (frequentemente pas-
sando por fundamentais) que não acham funda-
mento em parte alguma - para as quais seria tam-
bém difícil dizer qual disciplina poderia em geral
fundá-las - e que, todavia, soam convincentes. Na
sua estrutura, entretanto, tais normas em nada dife-
rem das normas científicas, e o acréscimo do epíteto
11
ético" não diminui a necessidade de demonstrar
cientificamente que elas são verdadeiras. Em rela-
ção a tais normas, o problema permanece, inde-
pendentemente do fato de ser ou não resolvido:
cada norma de conteúdo deve se elevar ao nível de
uma proposição científica especial; até então a
norma segue sendo somente uma generalização
praticamente útil ou uma conjectura. As futuras
ciências sociais, fundadas filosoficamente (no mo-
mento atual estão em um estado deplorável), redu-

72
zirão consideravelmente o número de tais normas
errantes, não enraizadas em nenhuma unidade cien-
tífica (a ética em si não pode ser tal unidade cientí-
fica; pode apenas ser contemplação de proposições
praticamente necessárias, às vezes não demonstra-
das) . Na maioria dos casos, tais normas éticas re-
presentam um conglomerado metodologicamente
não articulado de diversos princípios e valorações.
Assim, a posição suprema do utilitarismo está su-
jeita à competência e à crítica, quanto à sua valida-
de científica, de três disciplinas especiais: psicolo-
gia, filosofia do direito e sociologia. O dever en-
quanto tal, a transformação de uma posição teórica
em uma norma, permanece, na ética material, to-
talmente infundado. Na ética material não se acha
nem mesmo um meio de aproximar-se dele: afir-
mando a existência de normas éticas especiais, ela
admite cegamente que o dever moral seja próprio
de algumas proposições conteudísticas enquanto
tais, que ele decorre diretamente de seu conteúdo-
sentido, ou seja, que, a partir de certa proposição
teórica (o supremo princípio da ética), possa ser,
por seu próprio sentido, uma proposição de dever -
depois de ter, obviamente, pressuposto a existência
do sujeito, do ser humano. O dever ético é acresci-
do a partir do exterior. A ética material é realmente
incapaz de entender o problema que aqui se escon-
de. As tentativas de fundar biologicamente o dever
são inadequadas e realmente não merecedoras de
consideração. Daqui deveria resultar claro que to-
das as normas conteudísticas, assim como aquelas
demonstradas pela ciência, serão relativas em rela-
ção ao dever, já que ele lhes é agregado do exterior.
Como psicólogo, sociólogo, jurista ex-cathedra, pos-

73
so estar de acordo com uma ou outra proposição,
mas afirmar que, por isso mesmo, ela se toma uma
norma que controla a minha ação significa passar
por cima do problema fundamental. Também para
o fato mesmo da minha real concordância com a
validade da proposição dada ex-cathedra - como
meu ato - é insuficiente não só a validade em si da
proposição, mas também a minha capacidade psi-
cológica de compreensão. É necessário, ainda, al-
guma coisa que tenha origem em mim, pre~isamen­
te a orientação do dever moral de minha consciên-
cia em relação à proposição em si teoricamente vá-
lida. É justamente essa orientação moral da consci-
ência que é ignorada pela ética material, a qual pas-
sa mesmo por cima do problema que aqui se es-
conde, sem vê-lo. Nenhuma proposição teórica po-
de fundar diretamente, na sua real completude,
uma ação, nem mesmo uma ação-pensamento. Em
geral, o pensamento teórico não tem de conhecer
norma alguma. A norma é uma forma especial de
livre arbítrio de um em relação aos outros e, en-
quanto tal, é essencialmente peculiar apenas ao di-
reito (a lei) e à religião (os mandamentos), onde sua
real obrigatoriedade - como norma - é validada
não do ponto de vista de seu conteúdo -sentido,
mas do ponto de vista da autoridade real da sua
fonte (livre arbítrio) ou da autenticidade e exatidão
da transmissão (referências a leis, escrituras, textos
canônicos, interpretações, verificações de autentici-
dade ou - mais essencialmente - as bases da vida,
as bases do poder legislativo, a comprovada inspi-
ração divina das escrituras). Sua validade de conteú-
do-sentido funda-se somente sobre o livre arbítrio
(da parte do legislador, da parte de Deus), mas, no

74
processo de sua criação, - da valoração da sua vali-
dade teórica e prática - a norma, na consciência de
quem a cria, não é ainda norma, mas constitui uma
determinação teórica (a forma do processo de valo-
ração poderia ser a seguinte: será tal coisa certa ou
útil, isto é, é vantajosa para alguém?). Em todos os
outros domínios, a norma é simplesmente a forma
verbal que notifica as condições de adequação con-
vencional de algumas teses teóricas a uma finalida-
de determinada: se você quer ou precisa disso ou
daquilo, então, visto que ... (a tese teoricamente vá-
lida é invocada neste ponto), então você deve agir
de tal e tal maneira. Aqui não há nenhum livre arbí-
trio, e, por conseguinte, nenhuma autoridade: todo
o sistema está aberto: se você quiser. O problema de
um livre arbítrio com autoridade (que cria a norma)
é um problema de filosofia do direito, de filosofia
da religião, e também um dos problemas de uma
filosofia moral efetiva, enquanto ciência primeira,
filosofia primeira (o problema do legislador).
A segunda falha da ética material é a sua uni-
versalidade - a suposição de que o dever possa ser
estendido, possa aplicar-se a qualquer um. Esse er-
ro deriva, certamente, do precedente. Do momento
em que o conteúdo das normas é retirado de um
juízo cientificamente válido e a sua forma é assimi-
lada à do direito e dos mandamentos, a universali-
dade das normas passa a ser inevitável. A universa-
lidade do dever é também um defeito da ética for-
mal, que passamos agora, então, a considerar. À
ética formal é estranho o defeito fundamental da
ética material por nós individuado (apenas, porém,
em princípio, enquanto observação formal, e não na
sua realização concreta, real, na qual costuma acon-

75
tecer habitualmente uma espécie de abrandamento
de todos os princípios e um aportar de normas de
conteúdo particular, também em Kant). A ética
formal parte da ideia, perfeitamente correta, de que
o dever é uma categoria da consciência, uma forma
que não pode ser derivada de algum conteúdo ma-
terial determinado. Mas a ética formal, desenvolvi-
da exclusivamente no terreno do kantismo, pensa
em seguida a categoria do dever como categoria da
consciência teórica, isto é, a teoriza; como conse-
quência, perde o ato individual. Mas o dever é jus-
tamente uma categoria do ato individual; ainda
mais do que isso, é a categoria da própria individu-
alidade, da singularidade do ato, de sua insubsti-
tuibilidade e não intercambialidade, do seu caráter,
para quem o executa25, da necessidade e da não
derrogabilidade, de seu caráter histórico. Ora,
mesmo através do dever a ética formal julga estabe-
lecer o caráter da validade universal do ato. A cate-
goricidade do imperativo cede lugar à sua univer-
salidade, pensada pelo modelo da verdade teórica.
O imperativo categórico determina o ato como
lei de validade universal, mas é desprovido de um
determinado conteúdo positivo particular. Ele é a
lei mesma enquanto tal, a ideia da pura legalidade,
isto é, o conteúdo da lei consiste na própria legali-
dade, o ato deve ser conforme a lei. Tal concepção
contém dois aspectos válidos: 1) o ato deve ser to-
talmente não casual; 2) o dever assume efetivamen-
te para mim um caráter totalmente necessário, ca-
tegórico. Mas a noção da legalidade é incompara-
velmente mais ampla e, além dos aspectos indica-
dos, contém outros mais que são totalmente in-

25 N uditel'nost '.

76
compatíveis com o dever: a universalidade jurídica
e a transferência para o nosso contexto de seu
mundo da validade teórica universal. Estes aspec-
tos da legalidade submetem o ato à pura teoria, à
justificação puramente teórica do juízo, e é justa-
mente nesta sua justificação teórica que reside a
legalidade do imperativo categórico enquanto geral
e universalmente válido. É exatamente isso que
Kant exige: a lei que regula o meu ato deve ser jus-
tificada enquanto capaz de tornar-se norma de
conduta universal. E como acontece tal justificação?
Obviamente, apenas por meio de determinações
puramente teóricas: sociológicas, econômicas, esté-
ticas, científicas. O ato é atirado no mundo teórico
com base no requisito vazio da legalidade.
O outro defeito da ética formal é o seguinte: a
vontade se autoprescreve a lei e, automaticamente,
faz da pura conformidade à lei a própria lei ima-
nente. Podemos ver, aqui, uma analogia plena com
a edificação <palavra ilegível> estável do mundo
autônomo da cultura. A vontade-ato cria uma lei a
que se submete e, por isso, enquanto vontade indi-
vidual, morre em seu produto. A vontade traça um
círculo e se fecha dentro dele, excluindo a atividade
individual real e histórica da ação. Trata-se da
mesma ilusão da filosofia teórica: no caso da filoso-
fia teórica, temos a atividade da razão, com a qual
nada tem em comum a minha atividade histórica
individualmente responsável e para a qual tal ati-
vidade categorial da razão se toma passivamente
obrigatória; acontece a mesma coisa no caso da
vontade. Tudo isso altera radicalmente o real dever
moral e não fornece de fato uma aproximação à rea-
lidade do ato. No ato, a vontade é ativa de modo

77
efetivo e criativo, mas não fornece, de modo algum,
uma norma, uma fórmula universal. A lei é obra de
um ato especial - um ato-pensamento, mas mesmo
o ato-pensamento não é ativo no aspecto conteudis-
ticamente válido de uma fórmula. O ato-pensamento
é produtivamente ativo somente no momento da
incorporação da verdade válida em si no ser histó-
rico (aspecto realmente constitutivo do conhecer,
do aprender): o ato é ativo no produto real único
que ele criou (em uma ação real efetuada, em uma
palavra dita, em um pensamento pensado, onde,
além disso, a validade abstraída de si da lei jurídica
real não é mais que um momento). A respeito da lei
considerada em sua validade de sentido, a ativida-
de do ato se manifesta somente em um reconheci-
mento realmente efetuado, em um juízo efetiva-
mente expresso.
Assim, o teoricismo fatal - a abstração do meu
eu singular - ocorre também na ética formal: aqui,
o mundo da razão prática é em realidade um mun-
do teórico, e não o mundo no qual o ato é realmen-
te executado. O ato já realizado no mundo pura-
mente teórico, que requer somente um exame de
ordem teórica, poderia ser descrito e compreendido
- e mesmo assim apenas post factum - do ponto de
vista da ética formal de Kant e dos kantianos. Aqui
não existe nenhuma aproximação possível com o
ato vivo no mundo real. O primado da razão práti-
ca é, na realidade, o primado de um domínio teóri-
co sobre todos os outros, e isto se dá somente por-
que é o domínio da forma mais vazia e improduti-
va do que é universal. A lei da conformidade à lei é
uma fórmula vazia do puro teoricismo. Nunca uma
razão prática semelhante pode fundar uma filosofia

78
primeira. O princípio da ética formal não é de fato
um princípio do ato, mas o princípio da generaliza-
ção possível dos atos já dados na sua transcrição
teórica. A ética formal, em si, não é produtiva e é
simplesmente um domínio da moderna filosofia da
culh1ra. Contudo, o discurso muda quando a ética
tende a ser a lógica das ciências sociais. Nesse caso,
o método transcendental pode tornar-se muito mais
produtivo. Mas então por que chamar ética a lógica
das ciências sociais e falar do primado da razão
prática? Por certo não vale a pena discutir sobre os
termos: uma filosofia moral do gênero pode e deve
ser criada, mas certamente se pode e se deve criar
uma outra, que mereça mais - ainda que não exclu-
sivamente - tal nome.
Reconhecemos, então, como infundados e es-
sencialmente sem esperança todas as tentativas de
orientar uma filosofia primeira, a filosofia do exis-
tir-evento uno e único, em relação ao aspecto do
conteúdo-sentido, de produto objetivado, fazendo
abstração da ação-ato singular e do seu autor -
aquele que pensa teoricamente, contempla esteti-
camente e age eticamente. Somente do interior do
ato real, singular - único na sua responsabilidade -
é possível uma aproximação também singular e
única ao existir na sua realidade concreta; somente
em relação a isso pode orientar-se uma filosofia
primeira.
O ato - considerado não a partir de seu conte-
údo, mas na sua própria realização - de algum mo-
do conhece, de algum modo possui o existir unitá-
rio e singular da vida; orienta-se por ele e o consi-
dera em sua completude - seja no seu aspecto con-
teudístico, seja na sua real facticidade singular; do

79
interior, o ato não vê somente um contexto único,
mas também o único contexto concreto, o contexto
último, com o qual relaciona tanto o seu sentido as-
sim como o seu fato, em que procura realizar res-
ponsavelmente a verdade 26 única, seja do fato seja
do sentido, na sua unidade concreta. Por isso é ne-
cessário, evidentemente, assumir o ato não como
um fato contemplado ou teoricamente pensado do
exterior, mas assumido do interior, na sua respon-
sabilidade. Essa responsabilidade do ato permite
levar em consideração todos os fatores: tanto a va-
lidade de sentido quanto a execução factual em to-
da a sua concreta historicidade e individualidade; a
responsabilidade do ato conhece um único plano,
um único contexto, no qual tal consideração é pos-
sível e onde tanto a validade teórica, quanto a fac-
tualidade histórica e o tom emotivo-volitivo figu- ·
ram como momentos de uma única decisão. Além
disso, todos esses momentos - que, de um ponto de
vista abstrato, parecem ter um significado diverso -
em vez de serem empobrecidos, são admitidos em
toda a sua plenitude e verdade; em consequência, a
ação tem um único plano e um único princípio que
os compreende em sua responsabilidade. Somente
o ato responsável supera toda hipótese, porque ele
é - de um jeito inevitável, irremediável e irrevogá-
vel - a realização de uma decisão; o ato é o resulta-
do final, uma consumada conclusão definitiva; con-
centra, correlaciona e resolve em um contexto único
e singular e já final o sentido e o Jato, o universal e o
individual, o real e o ideal, porque tudo entra na
composição de sua motivação responsável; o ato

26 Pravda. Também em seguida.

80
constitui o desabrochar da mera possibilidade na
singularidade da escolha uma vez por todas.
Não se deve, de fato, temer que uma filosofia
do ato recaia no psicologismo e no subjetivismo. O
subjetivismo e o psicologismo são correlativos pre-
cisos do objetivismo (lógico) e <palavra ilegível>
aparecem somente quando o ato é abstratamente
dividido, de um lado, em sentido objetivo, e, de
outro, em processo subjetivo da sua realização. Do
interior do ato mesmo, tomado em sua integridade,
não existe nada de subjetivo e de psicológico; na
sua responsabilidade, o ato coloca diante de si sua
própria verdade como verdade que une ambos os
seus aspectos, assim como une o aspecto do univer-
sal (a validade universal) e do individual (o real).
Esta verdade unitária e singular do ato é posta co-
mo tarefa enquanto verdade sintética.
Não menos infundado é o temor de que esta
verdade sintética unitária e singular do ato seja ir-
racional. O ato na sua integridade é mais que racio-
nal - é responsável. Em se tratando da responsabilida-
de, a racionalidade é somente um momento seu
<uma ou duas palavras ilegíveis>, uma luz que é
como um brilho de "uma lâmpada em uma clara
manhã" (Nietzsche).
Toda a filosofia contemporânea nasceu do ra-
cionalismo e está inteiramente impregnada do pre-
conceito do racionalismo - inclusive lá onde delibe-
radamente procura se liberar dele - segundo o qual
somente o que é lógico é claro e racional - quando,
ao contrário disso, o lógico é espontâneo e obscuro
fora da consciência responsável, como é próprio de
tudo que existe para si. A claridade e a necessária
coerência lógica, separadas do centro unitário e

81
singular da consciência responsável, são forças obs-
curas e elementares, precisamente por causa da lei
da necessidade imanente própria do que é logica-
mente válido. O mesmo erro do racionalismo se
reflete também na contraposição entre o que é obje-
tivo, enquanto racional, e o que é subjetivo, indivi-
dual, singular, enquanto racional e fortuito. Ao que
é objetivo, abstratamente separado do ato, se atri-
bui a racionalidade inteira do ato (certamente inde-
levelmente empobrecida), enquanto o que é fun-
damental e permanece do que lhe é subtraído, é
declarado<?> como processo subjetivo. Na realida-
de, toda a unidade transcendental da cultura obje-
tiva é, ao contrário, obscura e elementar, uma vez
que esteja totalmente separada do centro único e
singular da consciência responsável; uma total se-
paração é na realidade impossível e, enquanto re-
almente pensamos aquela unidade, ela brilha com a
luz refletida da nossa responsabilidade. Somente
assumido do exterior como fato fisiológico, biológi-
co e psicológico, pode o ato se apresentar como
primordial e obscuro, como tudo o que é abstrato;
mas do interior do ato aquele que age responsa-
velmente conhece uma luz clara e distinta, na qual
se orienta. O evento no seu realizar-se pode ser cla-
ro e evidente, a cada momento, para aquele que
participa de seu ato. Acaso isso significa que ele o
compreende logicamente? Vale dizer, que lhe seri-
am claros somente os aspectos e as relações univer-
sais passíveis de transcrição sob a forma de concei-
tos? Não, ele vê claramente seja as pessoas indivi-
duais, únicas, que ele ama, seja o céu e a terra, e
estas árvores <nove palavras ilegíveis> e o tempo; e
simultaneamente lhe é dado o valor, concreta e re-

82
almente afirmado, destas pessoas, destes objetos,
dos quais intui a sua vida íntima e os seus desejos;
e fica-lhe claro também o sentido real e o sentido
que merece consideração por conta das relações
recíprocas entre ele, estas pessoas e estes objetos, -
a verdade (pravda) de um determinado estado de
coisas - e seu dever inerente ao ato, não a uma lei
abstrata do ato, mas sim o dever real, concreto,
condicionado pelo lugar que somente ele ocupa no
contexto dado do evento. E todos estes momentos,
que compõem o evento na sua totalidade, são-lhe
dados e colocados como tarefa sob uma única luz,
em uma única consciência responsável, e se reali-
zam no ato responsável unificante e singular. E este
evento na sua totalidade não pode ser transcrito em
termos teóricos, para não perder o sentido mesmo
de seu caráter de evento, o sentido do que precisa-
mente o ato sabe de maneira responsável e a rela-
ção para a qual se orienta. Seria inexato crer que
esta verdade concreta do ato, que aquele que age
no ato singular da ação responsável vê, sente, expe-
rimenta e compreende, seja inefável, que, de qual-
quer modo, só se possa experimentá-la no momen-
to em que se age, mas que não seja possível enun-
ciá-la de maneira clara e distinta. Tenho para mim
que a linguagem seja muito mais adaptada para
exprimir exatamente esta verdade do que para re-
velar o aspecto lógico abstrato na sua pureza. Na
sua pureza, o que é abstrato, é verdadeiramente
inefável: cada expressão é muito concreta para o
sentido puro, e deforma e ofusca sua validade e a
pureza do sentido em si. Por isto no pensamento
abstrato não pegamos nunca uma expressão em
toda a sua completude.

83
Historicamente a linguagem desenvolveu-se a
serviço do pensamento participante e do ato, e so-
mente nos tempos recentes de sua história começou
a servir o pensamento abstrato . A expressão do ato
a partir do interior e a expressão do existir-evento
único no qual se dá o ato exigem a inteira plenitude
da palavra: isto é, tanto o seu aspecto de conteúdo-
sentido (a palavra-conceito), quanto o emotivo-
volitivo (a entonação da palavra), na sua unidade.
E em todos esses momentos a palavra plena e única
pode ser responsavelmente significativa: pode ser a
verdade (pravda), e não somente qualquer coisa de
subjetivo e fortuito. Não é necessário, obviamente,
supervalorizar o poder da linguagem: o existir-
evento irrepetível e singular e o ato de que partici-
pa são, fundamentalmente, exprimíveis, mas de
fato se trata de uma tarefa muito difícil, e uma ple-
na adequação está fora do alcance, mesmo que ela
permaneça sempre como um fim.
Disso resulta claro que a filosofia primeira, que
procura se aproximar do existir-evento como o co-
nhece o ato responsável - isto é, não o mundo cria-
do pelo o ato, mas aquele em que o ato toma cons-
ciência de si mesmo e se realiza de maneira respon-
sável - não pode construir conceitos universais,
proposições e leis gerais acerca deste mundo (coisa
que concerne ao ato na sua pureza teórico-abstrata),
mas pode ser somente uma descrição, uma feno-
menologia de tal mundo do ato. Um evento pode
ser descrito somente de modo participante. Mas
este mundo-evento não é somente o mundo do
existir, da dádiva; nenhum objeto, nem uma só re-
lação se dá aqui como simplesmente dado, como
simplesmente, totalmente, presente; é sempre dado

84
junto com alguma coisa a ser feita, a ser alcançada,
ao qual está ligado: deve-se ... , é desejável... Um
objeto absolutamente indiferente, totalmente óbvio,
não poderia se tornar alguma coisa realmente reco-
nhecida, efetivamente experimentada: quando te-
nho experiência direta de um objeto, quer dizer
quando de fato estou fazendo alguma coisa em re-
lação a ele, esse objeto entra novamente em relação
com alguma coisa que me coloco corno tarefa, e que
adquire densidade na minha relação com ele. Não
se pode viver a experiência de urna dádiva pura.
No momento em que realmente vivo a experiência
de um objeto - mesmo que apenas pense nele - o
objeto se torna um momento dinâmico daquele
evento em curso que é o meu pensá-lo-
experirnentá-lo; ele adquire, assim, o caráter de al-
guma coisa por se realizar, ou, mais precisamente,
ele me é dado no âmbito do evento na sua unidade,
dos quais são momentos inseparáveis o que é dado
e o que está para se cumprir, o que é e o que deve
ser, o fato e o valor. Todas estas categorias abstratas
são aqui momentos de urna unidade viva, concre-
tamente tangível, singular: o evento. Analogamente
também a palavra viva, a palavra plena, não tem a
ver com o objeto inteiramente dado: pelo simples
fato de que eu comecei a falar dele, já entrei em
urna relação que não é indiferente, mas interessado-
afetiva, e por isso a palavra não somente denota um
objeto corno de algum modo presente, mas expres-
sa também com a sua entonação (urna palavra re-
almente pronunciada não pode evitar de ser entoa-
da, a entonação é inerente ao fato mesmo de ser
pronunciada) a minha atitude avaliativa em relação
ao objeto - o que nele é desejável e não desejável -

85
e, desse modo, movimenta-o em direção do que
ainda está por ser determinado nele, torna-se mo-
mento de um evento vivo. Tudo o que é efetiva-
mente experimentado o é como alguma coisa que
concerne simultaneamente ao dado e ao por-fazer-
se, recebe uma entonação, possui um tom emotivo-
volitivo, entra em relação afetiva comigo na unida-
de do evento que nos abarca [entra em relação com
o autor-observador - e com o herói; eu ocupo uma
posição e o herói uma outra] . O tom emotivo-
volitivo é um momento imprescindível do ato, in-
clusive do pensamento mais abstrato enquanto
meu pensamento realmente pensado, isto é, na me-
dida em que o pensamento realmente venha a exis-
tir, se incorpore no evento. Tudo isso com que te-
nho a ver, me é dado em certo tom emotivo-
volitivo, já que h1do me é dado como momento do
evento, do qual eu sou participante. Se eu penso
num objeto, estabeleço com ele uma relação que
tem o caráter de um evento em processo. Na sua
correlação comigo o objeto é inseparável da sua
função no evento. Mas esta função do objeto na
unidade do evento real que nos abarca é o seu valor
real, afirmado, o seu tom emotivo-volitivo.
Ao separarmos abstratamente o conteúdo da
experiência direta da sua real vivência, o conteúdo
se nos apresenta como absolutamente indiferente a
respeito do valor enquanto valor real e afirmado;
até um pensamento sobre o valor pode ser separa-
do de uma avaliação real (posição de Rickert a res-
peito do valor). Todavia, para tornar-se realmente
realizado e incorporado ao ser histórico do conhe-
cimento real, o conteúdo válido em si de uma pos-
sível experiência vivida (de um pensamento) preci-

86
sa entrar em uma ligação essencial com a valoração
efetiva; somente como valor efetivo ele é por mim
experimentado (pensado), isto é, somente posso
pensá-lo verdadeira e ativamente em tom emotivo-
volitivo. Esse conteúdo não cai, de fato, na minha
cabeça por acaso, como um meteoro de outro mun-
do, ficando fechado e impenetrável, sem infiltrar-se
no tecido único do meu vivo pensar-experimentar
emotivo-volitivo como seu momento essencial. Ne-
nhum conteúdo seria realizado, nenhum pensa-
mento seria realmente pensado, se não se estabele-
cesse um vínculo essencial entre o conteúdo e o seu
tom emotivo-volitivo, isto é, o seu valor realmente
afirmado por aquele que pensa. Viver uma experi-
ência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de
modo algum, indiferente a ele, significa antes afir-
má-lo de uma maneira emotivo-volitiva. O verda-
deiro pensamento que age é pensamento emotivo-
volitivo, é pensamento que entoa e tal entonação
penetra de maneira essencial em todos os momen-
tos conteudísticos do pensamento. O tom emotivo -
volitivo envolve o conteúdo inteiro do sentido do
pensamento na ação e o relaciona com o existir-
evento singular. É este mesmo tom emotivo-
volitivo que orienta no existir singular, que orienta
e afirma realmente o conteúdo-sentido. A experiên-
cia real de um vivido possível é precisamente a sua
inserção, a sua colocação em comunhão com o exis-
tir-evento singular. A verdade em si deve tornar-se
verdade para mim. [A compreensão do elemento
emotivo-volitivo não deve ser psicológica. Os ter-
mos. O sistema de valoração (ou a relação ao valor)
na composição <?> em prosa e a sua arquitetônica,
o caráter de evento da valoração. O sistema de va-

87
!oração do autor deve ser uma posição arquitetôni-
ca, não deve sair dos limites do existir].
Pode-se, todavia, procurar afirmar que a liga-
ção entre a validade do conteúdo-sentido e seu tom
emotivo-volitivo seja não-essencial, casual, para
aquele que pensa ativamente. Verdadeiramente não
é possível que a força motriz emotivo-volitiva do
meu pensamento ativo seja apenas uma vontade
excessiva de glória ou ganância elementar, enquan-
to o conteúdo de tais pensamentos sejam constru-
ções gnosiológicas abstratas? Verdadeiramente um
mesmo pensamento não tem nuanças emotivo-
volitivas diversas nas diferentes consciências reais
daqueles que pensam aquele mesmo pensamento?
Um pensamento pode ser entrelaçado na trama da
minha viva consciência real emotivo-volitiva por
razões completamente estranhas, que não tenham
nenhuma relação necessária com o aspecto de con-
teúdo-sentido do pensamento dado. Não existem
dúvidas que fatos semelhantes sejam possíveis e
que verdadeiramente possam acontecer. Mas ver-
dadeiramente com base em que se pode concluir
que tal vínculo é por princípio não-essencial e for-
tuito? Isso significaria reconhecer que toda a histó-
ria da cultura é por princípio casual em relação ao
mundo criado por ela - o mundo de um conteúdo
objetivamente válido (Rickert e sua atribuição de
valor aos bens). Dificilmente alguém persistiria em
sustentar até às últimas consequências que o mun-
do do sentido realmente realizado seja fundamen-
talmente o resultado do acaso. A filosofia contem-
porânea da cultura tenta estabelecer uma ligação
essencial semelhante, mas do interior do mundo da
cultura. Os valores culturais são valores em si

88
mesmos, e uma consciência viva precisa adaptar-se
a eles, afirmá-los para si mesma, porque, em última
instância, a criação <?> é conhecimento. Enquanto
eu crio esteticamente, reconheço responsavelmente
com isso o valor do que é estético, e a única coisa
que preciso fazer é reconhecê-lo explicitamente,
realmente; com isso se reconstitui a unidade do mo-
tivo e da finalidade, da realização verdadeira e do
sentido do seu conteúdo. Este é o caminho pelo
qual uma consciência viva torna-se consciência cul-
tural, e uma consciência cultural se encarna em
uma consciência viva. Houve tempo em que o ser
humano afirmou realmente todos os valores cultu-
rais, e agora está ligado a eles. Assim o poder do
povo, segundo Hobbes, se realiza somente uma
vez, no ato de renúncia a si mesmo e da entrega de
si ao Estado; desde aquele momento o povo se tor-
na escravo da sua livre decisão. Na prática, este ato
da decisão originária, da afirmação do valor, se si-
tua naturalmente além das fronteiras de cada cons-
ciência viva: toda consciência viva encontra os va-
lores culturais como já dados a ela, e toda a sua ati-
vidade se resume a reconhecer a sua validade para
si. Uma vez reconhecido o valor da verdade cientí-
fica em todos os atos do pensamento científico, eu
sou já submetido à sua lei imanente: quem diz a,
deve dizer b, c e assim todo o alfabeto. Quem diz
um, deve dizer dois, a necessidade imanente da
série o arrasta (lei da série). Isso significa que o ex-
perimentar uma experiência e o tom emotivo-
volitivo podem adquirir a sua unidade somente na
unidade da cultura, e que fora dela são casuais; a
consciência real, para ser unitária, precisa refletir
em si a unidade sistemática da cultura com o res-

89
pectivo coeficiente emotivo-volitivo, que em rela-
ção a cada domínio dado não pode mais que ser
colocado entre parênteses.
Concepções semelhantes são radicalmente in-
consistentes pelas mesmas razões que já expusemos
acerca do dever. Um tom emotivo-volitivo, urna
valoração real, não se referem ao conteúdo enquan-
to tal, tornado isoladamente, mas na sua correlação
comigo no evento singular do existir que nos en-
globa. Não é no contexto da cultura que urna afir-
mação emotivo-volitiva adquire o seu tom; toda a
cultura na sua totalidade vem integrada no contex-
to unitário e singular da vida do qual eu participo.
Vão sendo integrados, seja a cultura no seu conjun-
to, seja cada pensamento singular, cada produto
individual do ato vivo no contexto unitário e singu-
lar do pensamento corno evento real. O tom emoti-
vo-volitivo interrompe o isolamento e a autossufi-
ciência do conteúdo possível do pensamento, in-
corpora-o no existir-evento unitário e singular. Ca-
da valor que apresente validade geral se toma re-
almente válido somente em um contexto singular.
O tom emotivo-volitivo se dá precisamente em
relação à unidade singular concreta no seu conjun-
to, expressa a inteira completude do estado-evento
em um momento preciso, e o expressa como o que
é dado e corno o que está por ser concluído - a par-
tir do interior de mim mesmo enquanto participan-
te obrigatório. Portanto ele não pode ser isolado,
separado do contexto unitário e singular de urna
consciência viva, corno se se conectasse a um objeto
particular enquanto tal; não se trata de urna valora-
ção geral de um objeto independentemente daquele
contexto singular no qual ele me é dado naquele

90
momento, mas expressa a verdade inteira da pro-
posição na sua totalidade, como momento único e
irrepetível do que tem caráter de evento.
O tom emotivo-volitivo, que abarca e permeia
o existir-evento singular, não é uma reação psíquica
passiva, mas uma espécie de orientação imperativa
da consciência, orientação moralmente válida e
responsavelmente ativa. Trata-se de um movimen-
to da consciência responsavelmente consciente, que
transforma uma possibilidade na realidade de um
ato realizado, de um ato de pensamento, de senti-
mento, de desejo, etc. Com o tom emotivo-volitivo
indicamos exatamente o momento do meu ser ativo
na experiência vivida, o vivenciar da experiência
como minha: eu penso-ajo com o pensamento. Esta
expressão é usada na estética, mas possui nesta um
significado mais passivo. Para nós é importante re-
lacionar uma dada experiência vivida a mim como
aquele que a vive ativamente. Este relacionar a ex-
periência a mim como ativo tem um caráter valora-
tivo-sensorial e volitivo-realizador e é, ao mesmo
tempo, responsavelmente racional. Todos estes
momentos são dados aqui em uma determinada
unidade, perfeitamente familiar a qualquer um na
experiência vivida do seu pensamento, do seu sen-
timento como seu ato responsável próprio, isto é, a
qualquer um que o experimenta ativamente. Essa
expressão retirada da psicologia que, fatalmente
para ela, aparece orientada ao sujeito que experi-
menta passivamente, não deve aqui induzir a erro.
O momento da atuação do pensamento, do senti-
mento, da palavra, de uma ação, é precisamente
uma disposição minha ativamente responsável -
emotivo-volitiva em relação à situação na sua tota-

91
lidade, no contexto de minha vida real, unitária e
singular.
O fato de que o tom emotivo-volitivo ativo,
que penetra em tudo o que é realmente vivido, re-
flita a inteira irrepetibilidade individual do mo-
mento dado do evento, não o toma, de modo al-
gum, impressionisticamente irresponsável e iluso-
riamente válido. É precisamente aqui que se acham
as raízes da responsabilidade ativa que é a minha
responsabilidade; o tom emotivo-volitivo busca ex-
pressar a verdade [pravda] do momento dado, o que
o relaciona à unidade última, una e singular.
É um triste equívoco, herança do racionalismo,
imaginar que a verdade [pravda] só pode ser a ver-
dade universal [istina] feita de momentos gerais, e
que, por consequência, a verdade [pravda] de uma
situação consiste exatamente no que esta tem de
reprodutível e constante, acreditando, além disso,
que o que é universal e idêntico (logicamente idên-
tico) é verdadeiro por princípio, enquanto a verda-
de individual é artística e irresponsável, isto é, isola
uma dada individualidade. No materialismo isso
leva à unidade teórica do ser: é uma espécie de
substrato estável, igual a si mesmo e constante,
uma unidade passiva <?> inteiramente dada, ou
uma lei, um princípio, uma força, que permanecem
idênticos a si mesmos. No idealismo, isso leva à
unidade teórica da consciência: eu sou uma espécie
de princípio matemático unitário da série da cons-
ciência, porque esta deve antes de tudo ser consti-
tuída pela identidade, concebida como igual a si
mesma. Mesmo quando se fala de um ato singular
em realização (um fato), pensa-se no conteúdo (o
conteúdo idêntico a si mesmo) e não no momento

92
da realização real, efetiva do ato. Mas esta unidade
- a igualdade de conteúdo, a identidade e a repeti-
ção constante deste momento idêntico (o princípio
da série) - é a unidade essencial do existir, o mo-
mento necessário ao conceito de unidade? Este
momento mesmo é, porém, abstrato e derivado, e,
como tal, ele já é determinado por uma unidade
singular e efetiva. Neste sentido o próprio termo
"unidade" deveria ser abandonado, porquanto é
muito teorizado; não a unidade, mas a singularida-
de de uma totalidade absolutamente irrepetível, e a
sua realidade; desse modo, para quem deseja pen-
sar teoricamente, esta totalidade singular exclui <?>
a categoria da unidade no sentido de algo que se
repete constantemente. Assim torna-se mais com-
preensível a categoria especial da consciência pu-
ramente teórica, em tudo isso absolutamente neces-
sária e determinada, mas a consciência que atua é
associada à singularidade real como componente
desta singularidade. Ao contrário, a unidade da
consciência real, que age de maneira responsável,
não deve ser concebida como permanência conteu-
dística de um princípio, do direito, da lei, e menos
ainda do ser; aqui a palavra que melhor pode carac-
terizar isto é fidelidade, como é usada em relação
ao amor, ao matrimônio, mas não entendendo o
amor do ponto de vista de uma consciência psico-
lógica passiva (em tal caso isso resultaria num sen-
timento sempre presente na alma, alguma coisa
como um calor constantemente percebido, enquan-
to na experiência real vivida desse sentimento não
existe um sentir permanente no sentido do conteú-
do). O tom emotivo-volitivo da consciência única
real é aqui melhor compreendido. De outro lado, na

93
filosofia contemporânea, nota-se certa tendência a
conceber a unidade da consciência e a unidade do
ser como unidade de certo valor, mas também aqui
o valor vem transcrito teoricamente, pensado como
conteúdo idêntico de valores possíveis ou como
princípio constante, idêntico, de valoração, isto é,
como uma determinada estabilidade do conteúdo
de uma possível valoração e de um valor, e o fato
do agir [Dejstvie] passa evidentemente para segun-
do plano. Mas, sem dúvida, aqui está toda a ques-
tão. Não é o conteúdo da obrigação escrita que me
obriga, mas a minha assinatura colocada no final, o
fato de eu ter, uma vez, reconhecido e subscrito tal
obrigação. E, no momento da assinatura, não é o
conteúdo deste ato que me obrigou a assinar, já que
tal conteúdo sozinho não poderia me forçar ao ato -
a assinatura-reconhecimento, mas podia somente
em correlação com a minha decisão de assumir a
obrigação - executando o ato da assinatura-
reconhecimento; e mesmo neste ato o aspecto con-
teudístico não era mais que um momento, e o que
foi decisivo foi o reconhecimento que efetivamente
ocorreu, a afirmação - o ato responsável, etc. O que
encontramos em cada caso é uma constante <?>
singularidade na responsabilidade, não a perma-
nência de um conteúdo, nem uma lei constante do
ato - todo o conteúdo não é mais que um compo-
nente, e somente um determinado fato real de re-
conhecimento, singular e irrepetível, emotivo-
volitivo e concretamente individual. É claro que se
pode transcrever tudo isso em termos teóricos e
expressá-lo como lei constante do ato, porque a
ambivalência da língua o permite, mas obteríamos
uma fórmula vazia, que necessitaria ela mesma de

94
urn real reconhecimento singular, para não retomar
nunca mais, na consciência, para a sua identidade
conteudística. Pode-se, evidentemente, filosofar à
vontade sobre isso, rnas só para conhecer e recordar
tarnbérn o reconhecimento anteriormente feito co-
rno algo realmente efetuado e executado por rnirn; e
isso pressupõe a unidade da percepção e todo o
rneu aparato de unidade cognitiva, rnas tudo isso
permanece desconhecido à consciência viva e que
age, e tudo isso surge somente ern urna transcrição
teórica post factum . Para a consciência que age tudo
isso não é mais que o aparato técnico do ato .
Pode-se tarnbérn estabelecer urna relação in-
versamente proporcional entre a unidade teórica e
a singularidade real (do existir ou da consciência
do existir). Quanto mais próximo se está da unida-
de teórica (constância de conteúdo ou identidade
repetitiva), tanto mais a singularidade individual é
pobre e genérica, reduzindo-se a inteira questão <?>
à unidade do conteúdo, e a unidade última resulta
ser urn possível conteúdo vazio e idêntico a si
rnesrno; ao contrário, quanto mais a singularidade
individual se rnantérn longe da unidade teórica,
tanto mais se toma concreta e plena: a unicidade do
existir corno evento que se executa realmente ern
toda a sua variedade individual, de cujo limite ex-
tremo se aproxima o ato na sua responsabilidade. A
inclusão responsável na singularidade única reco-
nhecida do ser-evento é o que constitui a verdade
[pravda] da situação. O rnornento do que é absolu-
tamente novo, que nunca existiu antes e que não
pode ser repetido, está aqui ern primeiro plano, e
constitui urna continuação responsável no espírito
da totalidade, que foi urna vez reconhecida.

95
Na base da unidade de uma consciência res-
ponsável não existe um princípio como ponto de
partida, senão o fato do reconhecimento real da
minha própria participação no existir como evento
singular, coisa que não pode ser adequadamente
expressa em termos teóricos, mas somente descrita
e vivenciada com a participação; aqui está a origem
do ato e de todas as categorias do dever concreto,
singuléi.r e irrevogável [nuditel'nyi]. Eu também sou
- em toda a plenitude emotivo-volitiva atuante
[Postupcnyj (adjetivo criado por Bakhtin sobre "pos-
tupok")], de tal afirmação - e realmente sou - total-
mente, e tenho a obrigação de dizer esta palavra, e
eu também sou participante no existir de modo
singular e irrepetível, e eu ocupo no existir singular
um lugar único, irrepetível, insubstituível e impe-
netrável da parte de um outro. Neste preciso ponto
singular no qual agora me encontro, nenhuma ou-
tra pessoa jamais esteve no tempo singular e no es-
paço singular de um existir único . E é ao redor des-
te ponto singular que se dispõe todo o existir singu-
lar de modo singular e irrepetível. Tudo o que pode
ser feito por mim não poderá nunca ser feito por
ninguém mais, nunca. A singularidade do existir
presente é irrevogavelmente obrigatória [nuditel'no
obiazatel'na]. Este fato do meu não-álibi no existir
[moe ne-alibi v bytii], que está na base do dever con-
creto e singular do ato, não é algo que eu aprendo e
do qual tenho conhecimento, mas algo que eu reco-
nheço e afirmo de um modo singular e único. Basta o
simples conhecimento para reduzi-lo ao mais baixo
grau emotivo-volitivo de possibilidade. Transfor-
mando-o em objeto de conhecimento, eu o univer-
salizo: cada pessoa ocupa um lugar singular e irre-

96
petível, cada existir é único. Temos aqui uma cons-
tatação teórica que tende ao limite da absoluta libe-
ração de cada tonalidade emotivo-volitiva. Com
este postulado não tenho nada a ver, ele não me
obriga a nada de nenhum modo. Se penso que a
minha singularidade como característica do meu
existir é comum a todo o existir enquanto tal, sou já
colocado para fora da minha singularidade única,
eu mesmo me coloquei fora dela, e penso teorica-
mente a existência, isto é, não me incorporo ao con-
teúdo do meu pensamento; como conceito, a singu-
laridade pode ser localizada no mundo dos concei-
tos gerais e, desse modo, pode estabelecer uma sé-
rie de correlações logicamente necessárias. Este re-
conhecimento da minha participação no existir é a
base real e efetiva de minha vida e do meu ato. O
meu ato ativo afirma implicitamente<?> a sua sin-
gularidade e insubstituibilidade em todo o existir, e
nesse sentido é empurrada, internamente e na .tota-
lidade, até seus limites extremos, é orientada den-
tro dela como um todo . Para dar um sentido a isso
<?> tudo <?> é preciso levar em consideração toda a
variedade dos seus componentes. Não se trata so-
mente da afirmação de si ou simplesmente da afir-
mação do existir real, mas da afirmação inconfun-
dível e indivisível de mim mesmo no existir: eu
participo no existir como seu ator único <?>; nada
no existir, além de mim mesmo, é um eu para mim.
Eu posso viver como eu - em toda a unidade emo-
tivo-volitivo do sentido desta palavra - somente
sendo eu mesmo, único, em todo o existir; todos os
outros eus (teóricos) não são eu para mim; por sua
vez, este meu único eu (não teórico) participa do
existir na sua singularidade: eu sou nele. Além disso,

97
aqui são dados - inconfundíveis e indivisíveis -
tanto o momento da minha passividade quanto o
momento da minha atividade; eu me acho no exis-
tir (passividade) e eu participo dele ativamente; eu
também sou dado a mim mesmo, tanto como dado,
quanto como o que me é dado para realizar; a mi-
nha singularidade é dada, mas ao mesmo tempo ela
existe apenas na medida em que é realmente atua-
lizada por mim como singularidade, ela se dá sem-
pre na ação, no ato, isto é, como o que me é dado
para realizar; é, ao mesmo tempo, ser e dever: eu
sou real, insu~stituível e é por isso que preciso rea-
lizar a minha singularidade peculiar. Em relação a
toda a unidade real, emerge o meu dever singular a
partir do meu lugar singular no existir. Eu, como
único eu, não posso nem sequer por um momento
não ser participante da vida real, inevitável e neces-
sariamente [nuditel'no] singular; eu preciso ter um
dever meu [dolzhenstvovanie ]; em relação ao todo,
seja o que for e em que condição me seja dada, eu
preciso agir a partir do meu lugar único, mesmo
que se trate de um agir apenas interiormente. A
minha singularidade, como necessária não coinci-
dência com tudo o que não seja eu, torna sempre
possível o meu ato como singular e insubstituível
em relação a tudo o que não sou eu. O simples fato
de que eu, a partir do meu lugar único no existir,
veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça,
o fato de que também para mim ele existe - tudo
isso é alguma coisa que somente eu, único, em todo
o existir, em um dado momento, posso fazer por
ele: um ato do vivido real em mim que completa a
sua existência, absolutamente profícuo e novo, e
que encontra em mim somente a sua possibilidade.

98
Este ato produtivo único é precisamente aquele no
qual se constitui o momento do dever. O dever en-
contra a sua possibilidade originária lá onde existe
o reconhecimento do fato da unicidade da existên-
cia de uma pessoa e tal reconhecimento vem do in-
terior dela mesma, lá onde esse fato se torna o cen-
tro responsável, lá onde eu assumo a responsabili-
dade da minha própria unicidade, do meu próprio
existir.
Tal fato, é claro, pode originar uma divisão,
pode empobrecer-se; pode-se ignorar a atividade e
viver apenas da passividade, pode-se procurar de-
monstrar o próprio álibi no existir, pode-se ser im-
postor. Pode-se abdicar da sua obrigatória singula-
ridade (da singularidade do próprio dever ser).
O ato responsável é, precisamente, o ato base-
ado no reconhecimento desta obrigatória singulari-
dade. É essa afirmação do meu não-álibi no existir
que constitui a base da existência sendo tanto dada
como sendo também real e forçosamente projetada
como algo ainda por ser alcançado. É apenas o não-
álibi no existir que transforma a possibilidade vazia
em ato responsável real (através da referência emo-
tivo-volitiva a mim como aquele que é ativo). É o
fato vivo de um ato primordial ao ato responsável,
e a criá-lo, juntamente com seu peso real e sua
obrigatoriedade; ele é o fundamento da vida como
ato, porque ser realmente na vida significa agir, é
ser não indiferente ao todo na sua singularidade.
Afirmar o fato da própria singularidade e par-
ticipação insubstituível no existir significa entrar no
existir exatamente lá onde ele não é igual a si mes-
mo, entrar no evento do existir [sobytiie bytiia]. Tu-
do o que se refere ao conteúdo-sentido - o existir

99
como alguma coisa de determinado conteudistica-
mente, o valor como válido em si, o verdadeiro [is-
tina ], o bem, o bonito, etc. - tudo isso não são mais
que uma junção de possibilidades, que podem tor-
nar-se realidade somente no ato fundado sobre o
reconhecimento da minha participação singular. Do
interior do conteúdo-sentido em si, não é possível a
passagem de uma potencialidade a uma realidade
singular. O mundo do conteúdo-sentido é infinito e
autossuficiente, a sua validade em si se torna inútil,
por ele o meu ato é fortuito. É a região das pergun-
tas infinitas, onde também é possível a pergunta:
"quem é o meu próximo?". Nesse âmbito não é
possível dar início a nada, cada início será fortuito,
ele se afogará no mundo do sentido. Não existe um
centro, não há um princípio baseado no qual se
possa escolher; tudo o que é poderia também muito
bem não ser, poderia ser outro, se se pode sim-
plesmente concebê-lo como algo de determinado
no conteúdo-sentido. Do ponto de vista do sentido
são possíveis somente a infinidade da avaliação e a
absoluta falta de quietude. Do ponto de vista do
conteúdo abstrato de um valor possível, cada obje-
to, ainda que bom, deve ser melhor; cada encarna-
ção, do ponto de vista do sentido, é uma limitação
mesquinha e acidental. É necessária a iniciativa do
ato na relação com o sentido, e tal iniciativa não .
pode ser fortuita. Nenhuma validade de sentido em
si pode ser categórica e peremptória, enquanto eu
tiver o meu álibi no existir. Somente o reconheci-
mento da minha participação única do meu lugar
único fornece um centro real de origem do ato e
torna não-fortuita a iniciativa; é aqui que a iniciati-
va do ato se torna essencialmente necessária, que a

100
minha atividade se torna atividade substancial, se
torna dever.
Mas é possível também um pensamento não
encarnado, um agir não encarnado, uma vida alea-
tória não encarnada como uma possibilidade vazia;
uma vida sob o fundamento tácito <?> do meu álibi
no existir cai no ser indiferente, não enraizado em
nada. Qualquer pensamento que não seja correlaci-
onado comigo como algo que é obrigatoriamente
único é apenas uma possibilidade passiva; ele po-
deria mesmo simplesmente não existir, poderia ser
diferente; o fato de existir na minha consciência não
implica nenhuma obrigatoriedade, insubstituibili-
dade; não encarnado na responsabilidade, também
o tom emotivo-volitivo de tal pensamento é fortui-
to; é apenas a relação com o contexto único e singu-
lar do existir-evento através do efetivo reconheci-
mento da minha participação real nele, que o toma
um ato responsável. E tudo em mim - cada movi-
mento, cada gesto, cada experiência vivida, cada
pensamento, cada sentimento - deve ser um ato
responsável; é somente sob esta condição que eu
realmente vivo, não me separo das raízes ontológi-
cas do existir real. Eu existo no mundo da realidade
inelutável, não naquele da possibilidade fortuita.
A responsabilidade é possível não em relação
ao sentido em si, mas em relação à sua afirma-
ção/não-afirmação singular. De fato pode-se passar
por cima do sentido ou pode-se irresponsavelmente
fazer passar o sentido por cima do existir.
O aspecto abstrato do sentido, sem correspon-
dência com a real-inelutável singularidade, tem o
mesmo valor de um projeto; é uma espécie de ras-
cunho de uma realização possível, um documento

101
não assinado que não obriga ninguém a nada. O
existir, isolado do centro emotivo-volitivo único da
responsabilidade, é somente um esboço ou um ras-
cunho, uma variante possível, não reconhecida, do
existir singular; somente através da participação
responsável do ato singular pode-se sair das infini-
tas variantes do rascunho e reescrever a própria
vida, de uma vez por todas, na forma de uma ver-
são definitiva.
A categoria da experiência vivida do mundo-
ser real - enquanto evento - é a categoria da unici-
dade [edinstvennost] . Experienciar um objeto signi-
fica possuí-lo como unicidade real, mas tal unici-
dade do objeto e do mundo pressupõe a correlação
·com a minha própria singularidade. Também tudo
o que é universal e pertence ao sentido adquire o
seu peso e obrigatoriedade [nuditel'nost'] somente
em correlação com a real singularidade.
Um pensamento participativo é precisamente a
compreensão emotivo-volitiva do existir como
evento na sua singularidade concreta, sob a base do
não-álibi no existir. Isto é, é um pensamento que
age e se refere a si mesmo como único ator respon-
sável.
Mas aqui emerge uma série de conflitos com o
pensamento teórico e com o mundo do pensamento
teórico. O existir-evento real, que é tanto dado
quanto projetado em tons emotivos-volitivos, e cor-
relato com um centro único de responsabilidade, é
determinado, no seu sentido de evento, de impor-
tância singular, grave, necessário - na sua verdade
[pravda] - não em si mesmo, mas em correlação pre-
cisamente com a minha singularidade obrigatória; a
face necessariamente real do evento é determinada

102
por mim mesmo do meu lugar único. Mas disso
segue, então, que há tantos mundos diferentes do
evento quantos são os centros individuais de res-
ponsabilidade, os sujeitos participantes singulares -
uma infinita multidão; e, se a face do evento é de-
terminada do lugar singular do sujeito participante,
então existem tantas faces diferentes quantos são os
lugares singulares. E, acima de tudo, onde está, en-
tão, a imagem única e singular? Visto que a minha
atitude é essencial para o mundo, se é real o seu
sentido emotivo-volitivo reconhecido sobre o plano
dos valores, então este valor reconhecido, o quadro
emotivo-volitivo do mundo, é uma coisa para mim,
enquanto é outra coisa para um outro. Ou, ao con-
trário, devemos reconhecer a dúvida precisamente
como um valor de tipo particular? Sim, nós de fato
reconhecemos a dúvida como valor particular, que
está na base çla nossa vida efetivamente agente e
operante, e isso não entra em contradição com o
conhecimento teórico. Esse valor da dúvida não
contradiz, de modo algum, a verdade [pravda] una
e única; pelo contrário, é justamente ela, esta ver-
dade una e única do mundo, que o exige. É justa-
mente esta verdade que exige que eu, do meu lugar
único, realize plenamente a minha participação
singular no existir. O caráter unitário da totalidade
<?> condiciona os papéis, únicos e totalmente irre-
petíveis, de todos os participantes. O existir como
determinado no conteúdo, pronto e petrificado,
destruiria a multiplicidade dos mundos pessoais
irrepetivelmente válidos, pois que justamente esse
existir é que cria pela primeira vez o evento único.
O evento como igual a si mesmo, único, poderia ser
lido post factum por uma consciência não-

103
participante, não interessada nele; mas também
nesse caso permaneceria inacessível o seu caráter
de evento para a consciência; para o real participan-
te no evento que se realiza, tudo tende ao ato único
iminente, no seu dever absolutamente indetermi-
nado, concreto, único e obrigatório. O fato é que
entre as visões do mundo valorativas de cada parti-
cipante singular não existem - nem devem existir -
contradições; nem do interior da consciência <?>
nem, simplesmente, do lugar único de cada sujeito
participante. A verdade (pravda) do evento não é,
em seu conteúdo, uma verdade (istina), identica-
mente igual a si mesma; é, ao contrário, a única po-
sição justa de cada participante, a verdade (pravda)
do seu real dever concreto. Um simples exemplo
poderá clarear este ponto. Eu amo o outro, mas não
posso amar a mim mesmo, o outro me ama, mas
não ama a si mesmo; cada um tem razão no seu
próprio lugar, e tem razão não subjetivamente, mas
responsavelmente. Do meu lugar único, somente
eu-para-mim-mesmo sou eu, enquanto todos os
outros são outros para mim (no sentido emotivo-
volitivo do termo). De fato o meu ato (e o sentimen-
to como ato) se orienta justamente sobre o que é
condicionado pela unicidade e irrepetibilidade do
meu lugar. O outro, na minha consciência emotiva-
volitiva participante, está exatamente no seu lugar,
enquanto eu o amo como outro, não como eu mes-
mo. O amor do outro por mim soa emotivamente
de modo totalmente diferente para mim, no meu
contexto pessoal, do que soa como o mesmo amor
para o outro que o dirige para mim, e obriga a mim
e ao outro a coisas absolutamente diferentes. Mas,
naturalmente, aqui não existe oposição. Essa poderia

104
surgir em uma terceira consciência, não encarnada,
não participante. Para tal consciência haveria valo-
res-em-si iguais a si mesmos: seres humanos, e não
eu e o outro, que soam por princípio de modo com-
pletamente diferente do ponto de vista valorativo.
Nem pode surgir oposição entre contextos va-
lorativos singulares e afirmados. Que significa
"contexto afirmado de valores"? Trata-se de um
conjunto de valores válidos não para este ou aquele
outro indivíduo, nesta ou naquela outra época, mas
para toda a humanidade histórica. Mas eu, eu na
minha singularidade e unidade, devo assumir uma
atitude emotivo-volitiva particular em relação à
humanidade histórica, devo afirmá-la como tendo
realmente valor para mim, e fazendo isso, por con-
sequência, tudo o que tem valor para ela se tomará
válido também para mim. Que significa afirmar
que a humanidade histórica reconhece na história e
na própria cultura determinadas coisas como valo-
res? Trata-se da afirmação de uma possibilidade
vazia de conteúdo, nada mais que isso. Que impor-
ta a mim que no âmbito disso que existe haja um a
para quem b tenha valor? Outra situação se dá, ao
invés, se eu, na minha singularidade, participo dis-
so que singularmente existe e o faço de maneira
emotivo-volitiva mediante uma afirmação minha.
Desde o momento em que eu afirmo o meu lugar
único no existir único da humanidade histórica,
desde o momento em que eu sou o seu não-álibi,
isto é, estou com ela em uma relação emotivo -
volitiva ativa, eu entro em uma relação emotivo-
volitiva com os valores por ela reconhecidos. Claro,
quando falamos dos valores da humanidade histó-
rica, damos uma entonação a tais palavras, não po-

105
demos fazer abstração de uma determinada relação
emotivo-volitiva com eles; esses valores não coinci-
dem para nós com o seu conteúdo-sentido; eles se
correlacionam com um participante único e se ilu-
minam com a luz de um valor real. A partir do lu-
gar único que eu ocupo, se abre o acesso a todo o
mundo na sua unicidade, e para mim, somente des-
te lugar. Como espírito desencarnado, ao invés, eu
perco a minha necessária relação de dever com o
mundo, perco a realidade do mundo. Não existe o
homem em geral; existe eu, e existe um determina-
do, concreto, "outro": o meu próximo, o meu con-
temporâneo (a humanidade social), o passado e o
futuro das pessoas reais (da humanidade histórica
real). Todos estes são momentos de valor do existir,
individualmente válidos e que não universalizam o
existir singular, que se abrem <?> a mim do meu
lugar único como fundamento do meu não-álibi no
existir. O conjunto do conhecimento geral determi-
na o homem em geral (como homo sapíens); o fato,
por exemplo, de que ele seja mortal, adquire um
sentido de valor somente do meu lugar único - en-
quanto morra eu, uma pessoa perto de mim, a in-
teira humanidade histórica; e, naturalmente, o sen-
tido do valor emotivo-volitivo da minha morte, da
morte do outro, do meu próximo, do fato da morte
de cada ser humano real, varia profundamente caso
a caso, já que são todos momentos diferentes do
existir-evento singular. Para um sujeito desencar-
nado, não participante, todas as mortes podem ser
indiferentemente iguais. Mas nenhum vive em um
mundo no qual todos são - em relação ao valor -
igualmente mortais (é bom lembrar que viver a par-
tir de si, desde o seu lugar único, não significa, de

106
modo algum, viver sozinho; ao contrário: é somen-
te do seu lugar único que é possível o sacrifício - é
daqui que a minha centralidade responsável pode
tornar-se centralidade sacrificada).
Um valor igual a si mesmo, reconhecido como
universalmente válido, não existe, porquanto a sua
validade reconhecida é condicionada não pelo con-
teúdo tomado abstratamente, mas por sua correla-
ção com o lugar singular daquele que participa;
mas deste lugar singular pode-se reconhecer todos
os valores, e também qualquer outro ser humano
com todos os seus valores; esta é a condição para
que este reconhecimento aconteça. A simples consta-
tação teórica em que qualquer um reconhece esses
ou aqueles valores não obriga ninguém a nada,
nem conduz para fora das fronteiras do ser como
simplesmente dado, da possibilidade vazia, até que
eu não tenha afirmado em relação com eles a minha
própria participação singular.
O conhecimento teórico de um objeto como
existente por si mesmo, independentemente de sua
posição real em um mundo singular, a partir do
lugar singular de quem dele participa, é plenamen-
te justificado; todavia não é o conhecimento último,
mas apenas um momento técnico auxiliar dele. O
meu produzir abstração do meu lugar único, esta
minha suposta desencarnação é por si mesma um
ato responsável, realizado do meu lugar único, e
todo o conhecimento conteudístico assim obtido - a
sua possibilidade de dar-se como qualquer coisa
que é igual a si mesma - deve ser encarnado por
mim, traduzido na língua do pensamento participa-
tivo, deve responder a pergunta: a que me obriga,
ao meu eu como único, desde meu lugar único, o

107
conhecimento dado. Isto é, ele deve ser colocado
em correlação com a minha unicidade, fundado no
meu não-álibi no existir, em um tom emotivo-
volitivo, já que o conhecimento (znanie) do conteú-
do do objeto em si torna-se um conhecimento dele
para mim, torna-se reconhecimento (uznanie) que me
obriga responsavelmente. A abstração de si é um arti-
fício técnico que encontra justificação já desde o
meu lugar único, onde eu, que conheço, e me tomo
responsável e obrigado por este reconhecimento.
Todo o contexto infinito do conhecimento humano
teórico possível - o da ciência - deve, para minha
unicidade participante, tornar-se algo de responsa-
velmente reconhecido, o que não diminui nem de-
forma o que é verdade [istina] autônoma desse co-
nhecimento, mas o completa até que se torne ver-
dade [pravda] em sua validade compulsória. E uma
semelhante transformação do conhecimento em
reconhecimento não é, de modo algum, uma ques-
tão de sua utilização imediata como meio técnico
para a satisfação de alguma necessidade prática da
vida; reafirmamos que viver a partir de si não sig-
nifica viver para si, mas significa ser, a partir de si,
responsavelmente participante, afirmar o seu não-
álibi real e compulsório no existir.
Do nosso ponto de vista, a participação no exis-
tir-evento do mundo na sua plenitude não coincide
com um abandono irresponsável ao ser, com o pró-
prio deixar-se existir; porque neste caso sobressai,
em primeiro lugar, unilateralmente, somente o
momento passivo da participação, enquanto se di-
minui a atividade como algo ainda por se realizar
[aktivnost' zadannaia]. A este deixar-se existir (uma
participação unilateral) se reduz em grande parte o

108
pathos da filosofia de Nietzsche - que é levado até o
absurdo do dionisismo contemporâneo. O fato vi-
vido de uma participação real é, neste caso, assim
empobrecido, pois que a existência toma conta da-
quele que a afirmou; a identificação com o existir
real no qual se participa leva à perda de si mesmo
no ser (não se pode viver sendo impostor), à nega-
ção da própria singularidade obrigatória.
A consciência participante, encarnada, pode
parecer restrita, limitadamente subjetiva, apenas
quando se a contrapõe à consciência da cultura co-
mo uma consciência autossuficiente. É como se nos
apresentassem dois contextos de valor, duas vidas:
a vida de todo um mundo infinito inteiro na sua
totalidade, que pode ser conhecido somente objeti-
vamente, e a minha pequena vida pessoal. O sujeito
da primeira é o mundo como totalidade, e o sujeito
da segunda é o sujeito singular acidental. Todavia
não se trata da contraposição matemática, quantita-
tiva, entre o mundo infinitamente grande e um ser
humano muito pequeno, entre uma unidade e uma
multidão infinita de unidades-seres. Claro, do pon-
to de vista de uma teoria<?> geral <?> esta contra-
posição entre o mundo e o ser humano sozinho po-
de-se sustentar, mas não está nisso o seu sentido
real. Pequeno e grande aqui não são categorias teó-
ricas, mas puramente valorativas. E a pergunta que
se coloca é: em que plano é realizada esta relação
de valor, para que seja necessária e realmente váli-
da.? Somente no plano da consciência participante.
O pathos da minha vida pequena e do mundo infini-
to é o pathos do meu não-álibi participativo no exis-
tir, e o alargamento responsável do contexto dos
valores realmente reconhecidos do meu lugar úni-

109
co. Se eu me afasto deste lugar único, ocorre uma
cisão entre o mundo infinito possível do conheci-
mento e o pequeno mundo de valores por mim re-
conhecidos. É apenas do interior deste mundo pe-
queno, mas real e necessário, que deve ocorrer o
alargamento, infinito em princípio; mas não através
de dissociações e contraposições; neste caso, o
mundo absolutamente insignificante da realidade
seria invadido por todos os lados pelas ondas da
possibilidade vazia infinita, e para esta possibilida-
de seria inevitável a cisão de minha pequena reali-
dade, o jogo desenfreado da objetividade <?> vazia
que perde toda a realidade existente, fatalmente
necessária, e que não a constitui como um valor<?>
mas somente como possível para possibilidades
vazias. É nessas condições que nasce a infinidade
do conhecimento; ao invés de incorporar todo o
conhecimento [poznanie] teórico possível do mundo
na vida real a partir de si, como reconhecimento
[uznanie] responsável (também um fato, conhecido
somente teoricamente, é, enquanto fato, uma possi-
bilidade vazia; todavia todo o sentido <?> de um
juízo cognitivo consiste precisamente no fato de
que ele não permanece um juízo teórico, mas se in-
corpora no existir singular, onde cada abstração de
uma participação real é difícil), procuramos inserir
a nossa vida real no contexto teórico possível, reco-
nhecendo nela como essenciais somente os seus
momentos universais, ou entendendo-a como um
pequeno fragmento de espaço e de tempo do gran-
de conjunto espacial e temporal, ou ainda dando-
lhe uma interpretação simbólica.
Em todos estes casos, sua viva singularidade,
necessária e inevitável, é diluída na água da possi-

110
bilidade vazia e somente pensável. O corpo <?> que
ama <?> vem reconhecido somente como momento
de uma matéria infinita que a nós é indiferente, ou
como exemplar do homo sapiens, ou como represen-
tante da própria ética, ou como a encarnação do
princípio abstrato do eterno feminino; o que é re-
almente válido vem a ser, em cada caso, como o
momento do que é possível: a minha vida é como a
vida do homem em geral, e esta última é como uma
das manifestações da vida do mundo; mas todos
estes infinitos contextos de valores não estão enrai-
zados em nada, são somente possíveis em mim, in-
dependentemente do ser objetivo e universalmente
válido. Todavia é suficiente para nós encarnar ple-
namente e de maneira responsável o próprio ato do
nosso pensamento, subscrevendo-o, para nos tor-
narmos realmente participantes do ser-evento a
partir do nosso lugar único.
Entretanto, meu ato realmente realizado sob a
base do meu não-álibi no existir, seja o ato-
pensamento, seja o ato-sentimento, seja o ato-ação,
são efetivamente empurrados aos limites extremos
do existir-evento, orientados nesse como em um
todo unitário e singular, por mais que o pensamen-
to possua um conteúdo rico e por mais que a ação
seja concreta e individual, no seu âmbito pequeno
mas real, eles participam do todo infinito. O que
não significa, de modo algum, que eu tenha que
pensar em mim mesmo, na ação, e nessa totalidade
como algo determinado no conteúdo: isso não é
possível, nem necessário. A mão esquerda pode
não saber o que faz a direita, e todavia a direita rea-
liza a verdade [pravda] . E não no sentido da obser-
vação de Goethe: "em tudo o que realizamos de

111
maneira apropriada, devemos ver a imagem de tu-
do o que pode ser criado de maneira apropriada".
Aqui temos um exemplo de interpretação simbóli-
ca, fundado no paralelismo dos mundos, que intro-
duz um momento de ritualidade no ato concreta-
mente real.
Orientar o ato na totalidade do existir-evento
singular não significa, de modo algum, traduzi-lo
na língua dos valores mais altos como se aquele
evento participativo concreto e real, no qual o ato
se orienta diretamente, fosse apenas uma represen-
tação ou um reflexo de tais valores. Eu participo do
evento pessoalmente, e também cada objeto ou pes-
soa com que eu tenha a ver na minha vida singular
participam dele pessoalmente. Eu posso cumprir
um ato político e um rito religioso na qualidade de
representante, mas se trata já de uma ação especial
que pressupõe que eu tenha a autorização para rea-
lizá-la; mas nem neste caso eu abdico definitiva-
mente da minha responsabilidade pessoal; ao con-
trário, o meu papel representativo, o poder pelo
qual fui autorizado, levam-no em conta. O pressu-
posto tácito do ritualismo da vida não é, de modo
algum, a humildade, mas a arrogância. É necessá-
rio, ao contrário, tomar-se humilde pela participa-
ção e a responsabilidade pessoal. Se procurarmos
interpretar a nossa vida toda como representação
implícita, e cada ato [akt] nosso como ritual, torna-
mo-nos impostores.
Cada representação não suprime, mas sim-
plesmente especializa a minha responsabilidade
pessoal. O reconhecimento-afirmação real de tudo
aquilo ·de que serei representante é um ato meu
pessoalmente responsável. Se esse ato fosse cance-

112
lado e eu permanecesse tão somente como portador
de uma responsabilidade especial, eu me tornaria
um possuído e as minhas ações, separadas das raí-
zes ontológicas da minha participação pessoal, se
tornariam fortuitas em relação à unidade singular
última, na qual elas não estão enraizadas - assim
como para mim não está enraizado aquele campo
que especializa meu ato. Este tipo de separação do
contexto singular, a perda na especialização da par-
ticipação pessoal singular ocorre particularmente
de maneira frequente em casos de responsabilidade
política. Esta mesma perda da unidade singular
ocorre também como resultado da tentativa de ver
em cada um, em cada objeto de um dado ato, não a
concreta singularidade pessoalmente participante
no existir, mas o representante de um determinado
grande todo. Isso não aumenta a responsabilidade e
a não-casualidade ontológica do meu ato, mas ao
contrário deixa-o mais leve, e, em certo sentido, o
des-realiza: o ato é injustificadamente orgulhoso, é
arrogante, e isso leva, portanto, ao fato de que a
concretude real de uma singularidade efetivamente
necessária degenera em possibilidade conceitua!
abstrata. Para enraizar o ato, a participação pessoal
de uma existência singular e de um objeto singular
deve estar em primeiro plano, já que se você é re-
presentante de um grande todo, você o é, sobretu-
do, pessoalmente. E este mesmo grande todo, por
sua vez, não é composto de aspectos gerais, mas de
momentos individuais concretos.
A validade concretamente real e obrigatória
[nuditel 'no-konkretno-real'naia znachimost'], de uma
ação em um contexto singular dado (qualquer que
seja), o momento da realidade nela, é justamente

113
sua orientação no existir real singular na sua totali-
dade.
O mundo no qual o ato se orienta fundado na
sua participação singular no existir: este é o objeto
da filosofia moral. Mas o ato não o conhece como
algo de conteúdo determinado; ele tem a ver so-
mente com uma pessoa única e com um objeto úni-
co, que, além do mais, lhe são dados em tons emo-
tivos-volitivos individuais. É um mundo de nomes
próprios, destes objetos singulares e de certos dados
cronológicos da vida. Uma descrição <?> exemplifi-
cativa do mundo da vida-ato singular do interior
do ato, fundada no seu não-álibi no existir, seria
uma espécie de confissão, entendida como um rela-
to no sentido de uma prestação de contas individu-
al e única. Mas estes mundos concretos-individuais,
irrepetíveis, de consciências que realmente agem
[deístvítel'no postupaíuschíe soznanía] - dos quais,
como componentes reais, se compõem também o
existir-evento unitário e singular - têm alguns
componentes comuns: não no sentido de conceitos
ou de leis gerais, mas no sentido de momentos co-
muns das suas arquitetônicas concretas. É esta ar-
quitetônica do mundo real do ato que a filosofia
moral deve descrever, não como um esquema abs-
trato, mas como o plano concreto do mundo do ato
unitário singular, os momentos concretos funda-
mentais da sua construção e da sua disposição recí-
proca. Estes momentos fundamentais são: eu-para-
mim, o outro-para-mim e eu-para-o-outro; todos os
valores da vida real e da cultura se dispõem ao re-
dor destes pontos arquitetônicos fundamentais do
mundo real do ato: valores científicos, estéticos,
políticos (incluídos também os éticos e sociais) e,

114
finalmente, religiosos. Todos os valores e as rela-
ções espaço-temporais e de conteúdo-sentido ten-
dem a estes momentos emotivo-volitivos centrais:
eu, o outro, e eu-para-o-outro.
A primeira parte do nosso estudo será dedica-
da precisamente à análise dos momentos funda-
mentais da arquitetônica do mundo real, não en-
quanto pensado mas enquanto vivido. A parte se-
guinte será dedicada à atividade [dejanie] estética
como ação, não a partir do interior do seu produto,
mas do ponto de vista do autor enquanto partici-
pante <?> responsável, e à ética da criação artística.
A terceira parte será dedicada à ética da política, e a
última à ética da religião. A arquitetônica de tal
mundo recorda a arquitetônica do mundo de Dante
e dos mistérios medievais (nos mistérios e nas tra-
gédias também a ação é colocada próximo dos con-
fins últimos do existir).
A crise contemporânea é, fundamentalmente,
crise do ato contemporâneo. Criou-se um abismo
entre o motivo do ato e o seu produto. E, em conse-
quência disso, também o produto, arrancado de
suas raízes ontológicas, se deteriorou. O dinheiro
pode se tornar o motivo de um ato que constrói um
sistema moral. Em relação ao momento atual o ma-
terialismo econômico tem razão, mas não porque os
motivos do ato hajam penetrado no interior do
produto, mas antes, ao contrário, porque o produto,
na sua validade, é separado do ato na sua motiva-
ção real. Mas esta situação não se pode mais corri-
gir do interior do produto, enquanto não se pode
daqui juntar ao ato; só se pode resolvê-la do interi-
or do ato mesmo. Os mundos teóricos e estéticos
têm sido deixados em liberdade, mas do interior

115
deles é impossível juntá-los e associá-los à unidade
última, encarná-los. Desde o momento em que a
teoria se separa do ato e se desenvolve segundo a
sua lei interna imanente, o ato mesmo, desembara-
çando-se da teoria, começa a degradar-se. Todas as
forças de uma realização responsável [otvetstvennoe
svershenie] se retiram para o território autônomo da
cultura e o ato separado delas degenera ao grau de
motivação biológica e econômica elementar, per-
dendo todos os seus componentes ideais: é esta
precisamente a situação atual da civilização. Toda a
riqueza da cultura está posta a serviço do agir bio-
lógico. A teoria deixa o ato à mercê de uma existên-
cia estúpida, exaure-o de todos os componentes
ideais e o submete a seu domínio autônomo fecha-
do, empobrece o ato. Daqui vem o pathos do tolstoís-
mo e de todo nihilismo cultural.
Em tal estado de coisas, poderia parecer que o
que resta, uma vez excluídos os momentos de sen-
tido da cultura objetiva, seja uma subjetividade bio-
lógica nua, o ato-necessidade. Por isso também a
impressão de que, somente como poeta ou como
cientista, eu seja objetivo e espiritual - isto é, so-
mente do interior do produto por mim criado; e é
do interior destes objetos que se deve construir a
minha biografia espiritual; descontado isso, resta
um agir subjetivo; tudo isso que é objetivamente
válido no ato entra naquele domínio da cultura ao
qual pertence o objeto criado pelo ato. Uma com-
plexidade excepcional do produto e uma simplici-
dade elementar da motivação. Evocamos o espectro
da cultura objetiva e não sabemos exorcizá-lo. Por
isso a crítica de Spengler [Oswald Spengler, 1880-
1936]. Por isso as suas memórias metafísicas e o seu

116
inserir a história entre a ação [dejstvie] <?> e a sua
expressão em forma de um ato válido. No funda-
mento do ato se encontra a sua incorporação na
unidade singular: o responsável não se reduz ao
especializado (a política), pois caso contrário não terí-
amos um ato, mas uma ação [dejstvie] técnica. Mas
um tal ato não deve se contrapor à teoria e ao pen-
samento, mas incluí-los em si como momentos ne-
cessários, inteiramente responsáveis. Em Spengler
isso não acontece. Ele contrapõe o ato à teoria, e
para não terminar no vazio, ele introduz a história.
Se tomamos o ato contemporâneo como separado
de uma teoria por sua vez fechada em si, obtemos
um ato biológico ou técnico. A história não o salva,
porque ele não está enraizado na unidade singular
última.
A vida pode ser compreendida pela consciên-
cia somente na responsabilidade concreta. Uma fi-
losofia da vida só pode ser uma filosofia moral. Só
se pode compreender a vida como evento, e não
como ser-dado . Separada da responsabilidade, a
vida não pode ter uma filosofia; ela seria, por prin-
cípio, fortuita e privada de fundamentos.

Primeira Parte

O mundo em que o ato realmente se desenvol-


ve é um mundo unitário e singular concretamente
vivido: é um mundo visível, audível, tangível, pen-
sável, inteiramente permeado pelos tons emotivo-
volitivos da validade de valores assumidos como
tais. É isso que garante a realidade da singularida-

117
de unitária deste mundo - a singularidade não rela-
tiva ao conteúdo-sentido, mas a singularidade emo-
tivo-volitiva, necessária e de peso - é o reconhecer-
me insubstituível na minha participação, é o meu
não-álibi em tal mundo. Esta participação assumida
como minha inaugura um dever concreto: realizar a
singularidade inteira como singularidade absolu-
tamente não substituível do existir, em relação a
cada momento deste existir. E isso significa que es-
ta participação transforma cada manifestação mi-
nha - sentimentos, desejos, estados de ânimo, pen-
samentos - em um ato meu ativamente responsável.
Este mundo me é dado do meu lugar no qual
eu sozinho me encontro como concreto e insubsti-
tuível. Para minha consciência ativa e participante,
esse mundo, como um todo arquitetônico, é disposto
em tomo de mim como único centro de realização
do meu ato; tenho a ver com este meu mundo na
medida em que eu mesmo me realizo em minha
ação-visão, ação-pensamento, ação-fazer prático.
Em correlação com o meu lugar particular que é o
lugar do qual parte a minha atividade no mundo,
todas as relações espaciais e temporais pensáveis
adquirem um centro de valores, em volta do qual
se compõem num determinado conjunto arquitetô-
nico concreto estável, e a unidade possível se toma
singularidade real. O lugar que apenas eu ocupo e
onde ajo é o centro, não somente no sentido abstra-
tamente geométrico, mas como o centro emotivo-
volitivo concreto responsável pela multiplicidade
concreta do mundo, na qual o momento espacial e
temporal - o lugar real único e irrepetível, o dia e a
hora reais, únicos, históricos do evento - é momen-
to necessário, mas não exclusivo de minha centrali-

118
dade real, uma centralidade para mim mesmo. Este
centro não é imanente <?>. Aqui convergem para
formar uma unidade concreta e singular planos
que, de um ponto de vista abstrato, são entre eles
diversos: especificação espaço-temporal, tons emo-
tivo-volitivos, sentidos. Expressões como "alto",
"baixo", "abaixo", "finalmente", "tarde", "ainda",
"já", "é necessário", "deve-se", "mais além", "mais
próximo", etc. não somente assumem o conteúdo-
sentido no qual fazem pensar - isto é somente o
conteúdo-sentido possível - mas adquirem um va-
lor real, vivido, necessário e de peso, concretamente
determinado do lugar singular por mim ocupado
na minha participação no existir-evento. Esta mi-
nha participação desde um ponto concreto-singular
do existir cria o peso efetivo do tempo e o valor
evidente e palpável27 do espaço, toma todas as
fronteiras importantes, não casuais, válidas: o
mundo como um todo unitário e singular, vivido
de maneira real e responsável.
Se eu me abstraio deste centro no qual se dá a
minha participação singular no existir - e, além do
mais, não faço apenas abstração da sua especifica-
ção conteudística (especificação espaço-temporal,
etc.), mas também da sua afirmação real sobre o
plano emotivo-volitivo - inevitavelmente a singula-
ridade concreta e a realidade necessária do mundo
se desintegram; o mundo se despedaça em momen-
tos e em relações abstratamente gerais, meramente
possíveis, que podem ser reduzidos a uma unidade
igualmente abstrata e meramente possível. A arqui-
tetônica concreta do mundo vivido será substituída
por uma unidade sistemática atemporal, a-espacial

21 Nagliadnj, equivalente ao alemão anschaulich.

119
e a-valorativa feita de momentos abstratamente
universais. No interior do sistema, cada componen-
te desta unidade é logicamente necessário, mas o
sistema em si, no seu todo, é apenas algo relativa-
mente possível; é somente em correlação comigo,
comigo enquanto penso ativamente, somente em
correlação com o ato do meu pensamento respon-
sável, que tal sistema se incorpora na real arquite-
tônica do mundo vivido, como seu momento, se
enraíza na sua real singularidade, significativa co-
mo valor. Tudo isso que é abstratamente universal
não é diretamente um momento do mundo real vi-
vido, como o é este ser humano aqui, como o é este
céu, esta árvore; mas o é indiretamente, como con-
teúdo-sentido (eterno em sua validade de sentido,
mas não na realidade e no real vivido) deste pen-
samento singular real, deste livro real; somente nes-
ta relação o conteúdo-sentido pode ser realmente
vivo e participante, e não em si, na própria autossu-
ficiência de sentido. Mas não é talvez verdadeiro
que o sentido é eterno, enquanto transitórias são
esta realidade da consciência e esta realidade do
livro? Certamente, mas a eternidade do sentido,
fora de sua realização, é somente uma eternidade
possível privada de valor, insignificante. Se, de fato,
esta eternidade-em-si do sentido fosse verdadeira-
mente válida sobre o plano do valor, o ato de sua
encarnação, de seu pensamento, da sua efetiva rea-
lização por parte do pensamento operativo, seria
supérfluo e inútil; somente em correlação com este,
a eternidade do sentido adquire um valor real, tor-
na-se significativa. O sentido eterno se torna valor
que move o pensamento operativo somente como
seu momento constitutivo, somente em correlação

120
com a realidade efetiva; como a eternidade do valor
deste pensamento, deste livro. Mas também aqui a
luz do valor é luz refletida; o que é necessariamente
valioso em última instância é a eternidade real da
própria realidade concreta em sua plenitude: a rea-
lidade deste ser humano, destas pessoas e de seus
mundos com todos os seus momentos reais; somen-
te assim o sentido eterno do pensamento efetiva-
mente realizado brilha com a luz do valor.
Tudo isso que é assumido independentemente
do centro único de valores donde tem origem a
responsabilidade do ato, vale dizer sem referimento
a esse, se des-concretiza e se des-realiza, perde o peso
valorativo, a necessidade emotivo-volitiva, se toma
possibilidade vazia, abstratamente geral [o tempo e
o espaço artísticos].
Do lugar único de minha participação no exis-
tir, o tempo e o espaço na sua singularidade são
individuados e incorporados como momentos de
uma unicidade concreta e valorada. Do ponto de
vista teórico, o espaço e o tempo da minha vida são
segmentos insignificantes (assumem um sentido
abstrato-quantitativo; o pensamento participante
introduz aí costumeiramente um tom valorativo)
do tempo e do espaço unitários e, naturalmente,
somente isso garante a unívocidade de sentido das
suas determinações no âmbito dos juízos; mas, do
interior da minha vida participante, estes segmen-
tos têm a ver com um centro singular de valores, o
que confere também ao · espaço e ao tempo reais o
caráter da singularidade, se bem que aberta. O
tempo e o espaço matemáticos garantem a unidade
possível de sentido dos juízos possíveis (para um
juízo real, ao contrário, é necessário um interesse

121
emotivo-volitivo real), enquanto a minha real parti-
cipação nesses, do meu lugar único, garante a sua
realidade inevitável e compulsória e a sua singula-
ridade de valor - como se concedesse sua carne e
seu sangue; do interior de minha participação e em
relação com ela, cada tempo e cada espaço matema-
ticamente possível (infinitos possíveis passado e
futuro) adquire uma consistência de ordem valora-
tiva; é como se da minha unicidade se irradiassem
raios que, atravessando o tempo, afirmassem o ca-
ráter humano da história, iluminando com a luz do
valor cada tempo possível e a temporalidade mes-
ma enquanto tal, sendo eu realmente participante
dela. Definições espaço-temporais como "infinida-
de", "eternidade", "imensidade", dos quais tão
abundantemente se serve, na vida, na filosofia, na
religião, na arte, o nosso pensamento participante
emotivo-volitivo, no uso efetivo não são, de modo
algum, conceitos teóricos puros (matemáticos), mas
vivem no nosso pensamento como momentos do
sentido valorativo que lhes é próprio, brilhando
com uma luz valorativa em relação à minha unici-
dade participante.
Consideramos oportuno lembrar que viver do
interior de si mesmo, partindo de si mesmo nas
próprias ações, não significa de jeito algum viver e
agir por si. A centralidade da minha participação
única no existir dentro da arquitetônica do mundo
da experiência vivida não é em absoluto a centrali-
dade de um valor positivo <?> para o qual todo o
resto no mundo não é mais que um fator auxiliar. O
eu-para-mim constitui o centro da origem do ato e
da atividade de afirmação e de reconhecimento de
cada valor, já que este é o ponto singular no qual eu

122
responsavelmente participo no existir singular - o
centro operativo, o quartel-general da minha possi-
bilidade e do meu dever no evento do existir, já que
somente do meu lugar único eu posso e devo ser
ativo . A minha comprovada participação no existir
é não somente passiva (o prazer da existência), mas
sobretudo ativa (o dever de ocupar efetivamente o
meu lugar único). Não se trata de um valor vital
supremo que, no interior de um sistema, instaura
para mim todos os outros valores da vida como re-
lativos, por eles condicionados; não pretendemos
construir um sistema ou um inventário de valores,
logicamente unitário, com um valor fundamental
no ápice - a minha participação no existir - um sis-
tema ideal de diversos valores possíveis, nem nos
propomos a fazer uma transcrição teórica dos valo-
res histórica e realmente reconhecidos pelo ser hu-
mano, com o fim de estabelecer entre estes relações
lógicas de dependência, de subordinação, etc.28 -
isto é, sistematizá-los. Não é nossa intenção forne-
cer um sistema ou um inventário sistemático de
valores, no qual conceitos puros (idênticos a si
mesmos em conteúdo) sejam ligados entre si à base
de uma correlação lógica. O que pretendemos for-
necer é uma refiguração, uma descrição da arquite-
tônica real concreta do mundo dos valores realmen-
te vivenciados, não governado por um fundamento
analítico, mas com um centro de origem realmente
concreto, seja espacial ou temporal, de valorações
reais, de afirmações, de ações, e cujos participantes
sejam objetos efetivamente reais, unidos por rela-

2 s Esta passagem se acha na edição russa citada; está ausente na


tradução inglesa, na espanhola e nas duas italianas; aparece
na tradução francesa.

123
ções concretas de eventos no evento singular do
existir (aqui as relações lógicas não são mais que
um momento ao lado dos momentos espaciais,
temporais e emotivo-volitivos concretos).
Para dar uma ideia preliminar da possibilidade
de uma tal arquitetônica concreta, - de ordem valo-
rativa - arquitetônica que se compõe de objetos re-
ais em inter-relação real, que se dispõem ao redor
de um centro concreto de valores - analisaremos
aqui o mundo da visão estética, o mundo da arte -
que com a sua concretude e impregnação de tons
emotivo-volitivos é, de todos os mundos (no seu
isolamento) culturais abstratos <?>, o mais próximo
ao mundo unitário e único do ato. Isso nos ajudará
precisamente a chegar perto da compreensão da
construção arquitetônica do mundo real do evento.
A unidade do mundo da visão estética não é
uma unidade de sentido, não é uma unidade siste-
mática, mas uma unidade concretamente arquite-
tônica, que se dispõe ao redor de um centro concre-
to de valores que é pensado, visto, amado. É um ser
humano este centro, e tudo neste mundo adquire
significado, sentido e valor somente em correlação
com um ser humano, somente enquanto tomado
desse modo um mundo humano. Toda a existência
possível e todo o sentido possível se dispõem ao
redor de um ser humano como centro e valor único;
tudo - e aqui a visão estética não conhece limites -
deve estar correlacionl1do a um ser humano, deve
tornar-se humano. Mas isso não significa que em
cada caso o herói da obra tenha de ser apresentado
como um valor com um conteúdo positivo, no sen-
tido de que lhe seja atribuído um certo epíteto de
valor positivo: "bom", "bonito", etc.; porque os epí-

124
tetos podem ser, ao contrário, inteiramente negati-
vos - e o herói pode ser malvado, mísero, vencido e
derrotado sob todos os sentidos e, todavia, é sobre
ele que a minha atenção interessada se concentra na
visão estética, e é em volta dele, do mau, que, ape-
sar de tudo, se situa completamente, tanto ao redor
de um único centro de valores, quanto sobre o pla-
no do conteúdo, ou melhor, sobre todos os aspec-
tos. Você não ama um ser humano porque é bonito,
mas ele é bonito porque você o ama. É nisso que
está o caráter especifico da visão estética29 • Todo o
tópos de valores, toda a arquitetônica da visão, seri-
am diferentes se não fosse ele o centro dos valores.
O quadro, com o qual me deparo, da ruína e da
desgraça plenamente motivada de uma pessoa que
amo, me resultará totalmente diferente daquele da
ruína de quem, do ponto de vista do valor, me é
indiferente. E não porque vou tentar justificar esta
pessoa contra todo bom senso e justiça; tudo isso
não tem lugar aqui, e o quadro pode ser justo e rea-
lista no seu conteúdo, e todavia ele ainda será dife-
rente, diferente em seu tópos essencial, diferente na
sua disposição concreta, relativamente aos valores,
das partes e dos detalhes, para a sua inteira arquite-
tônica; desse modo eu verei aí outras características
de valor, e outros elementos, e uma outra disposi-
ção sua, já que o centro concreto da minha visão e
da composição do quadro será diferente. Não se
tratará de uma deformação subjetiva e interessada
da visão, já que a arquitetônica da visão não consi-
dera o aspecto do conteúdo-sentido. O aspecto do

29 Bakhtin parafraseia um adágio russo "não é bonito o que é


bonito, é bonito aquilo de que a gente gosta" . [No Brasil se
diz: "Quem ama o feio bonito lhe parece"] .

125
conteúdo-sentido do evento, abstratamente consi-
derado, e igual a si mesmo e também idêntico a
centros avaliativos concretos diversos (aí incluída
também a avaliação dos sentidos do ponto de vista
de um dado valor determinado em relação ao con-
teúdo: o bem, a beleza, a verdade); mas tal aspecto
de conteúdo-sentido igual a si mesmo é somente
um componente da arquitetônica inteira, e a posi-
ção deste componente abstrato é diferente se os
centros valorativos da visão são diferentes. De fato
um mesmo objeto - igual do ponto de vista do con-
teúdo-sentido - considerado de diversos pontos de
um mesmo espaço por pessoas diferentes, ocupa
posições diferentes e é diversamente dado no con-
junto arquitetônico concreto do campo visual des-
tas pessoas que o observam; a sua identidade de
sentido entra como tal na composição da visão con-
creta como um de seus momentos, revestindo-se de
traços concretos e individualizados. Mas, na con-
templação do evento, a posição espacial abstrata
não é mais que um momento da posição emotivo-
volitiva singular de quem participa do evento. Ana-
logamente, também a avaliação de uma mesma
pessoa, se bem que idêntica quanto ao conteúdo
("ele é mau"), pode ter diferentes entonações reais
de acordo com o centro real concreto de valores em
determinadas circunstâncias: amo-o verdadeira-
mente, ou o que me importa é determinado valor
concreto do qual aquela pessoa está desprovida,
enquanto ela própria me é em si indiferente? Esta
indiferença, por certo, não pode ser expressa abs-
tratamente, sob a forma de uma subordinação par-
ticular de valores; trata-se de urna interrelação con-
creta, arquitetônica. Não se pode substituir uma

126
arquitetônica de valores por um sistema de relações
lógicas (de subordinação) entre os valores, interpre-
tando as diferenças de entonação no juízo ("ele é
mal") do seguinte modo: no primeiro caso o valor
supremo é o ser humano e o valor subordinado é o
bem; no segundo é o contrário. Não podem existir
tais tipos de relações entre um conceito abstrata-
mente ideal e um objeto concreto real, assim como
não é possível abstrair um ser humano da sua rea-
lidade concreta, conservando somente o cerne do
sentido (homo sapiens). A valoração30 do sentido so-
bre o plano abstrato pode ser encarnada somente
em uma situação concreta unitária, na qual se dá
também uma entonação real, uma situação no seu
todo, que se define em relação a um centro concreto
de valores. Se houver uma má e alterada subjetivi-
dade parcial somente lá onde for introduzido, por
esta visão arquitetônica concreta, um conteúdo-
sentido inexato e falso do ponto de vista deste con-
teúdo-sentido, isso está ligado também a uma alte-
ração e a uma reestruturação da arquitetônica intei-
ra. Mas não é esse o caso fundamental.
Assim, o centro valorativo da arquitetônica do
evento da visão estética é um ser humano, mas não
como um qualquer, de conteúdo idêntico a si mes-
mo, mas como uma realidade concreta amorosa-
mente afirmada. Nesta, a visão estética não faz ab-
solutamente abstração dos possíveis pontos de vis-
ta de valores, não apaga a fronteira entre o bem e o
mal, entre o bonito e o feio, entre a verdade e a
mentira; a visão estética conhece e encontra todas

30 Esta parte, até o próximo parágrafo, acha-se nas edições das


obras completas e na tradução francesa, mas falta nas duas
traduções italianas, na inglesa e na espanhola.

127
estas diferenças no interior do mundo contempla-
do, mas estas diferenças não surgem dele como cri-
térios últimos, como princípio de ver e formar o
que é visto, mas elas permanecem no interior desse
mundo como momentos constituintes da sua arqui-
tetônica, e todavia são todos abarcados pela afirma-
ção de um ser humano, uma afirmação amorosa
que tolera tudo. A visão estética também conhece, é
claro, "princípios de seleção", mas esses são todos
arquitetonicamente subordinados ao centro valora-
tivo soberano da contemplação - um ser humano.
Nesse sentido [a relação de antecipação do au-
tor para com seu herói é um interesse desinteressa-
do] pode-se falar de um amor estético objetivo -
mas sem atribuir a esta expressão um significado
psicológico passivo - entendendo-a como o princí-
pio da visão estética. A diversidade de valor do
existir enquanto humano (isto é, correlato com um
ser humano) pode apresentar-se somente à con-
templação amorosa; somente o amor está em con-
dição de afirmar e consolidar, sem perder e sem
desperdiçar, esta diversidade e multiplicidade, sem
deixar atrás apenas um esqueleto nu de linhas e
momentos de sentido fundamentais . Somente um
amor desinteressado segundo o princípio "não o
amo porque é bonito, mas é bonito porque o amo",
somente uma atenção amorosamente interessada,
pode desenvolver uma força muito intensa para
abraçar e manter a diversidade concreta do existir,
sem empobrecê-lo e sem esquematizá-lo. Uma rea-
ção indiferente ou hostil é sempre uma reação que
empobrece e desintegra o objeto: passa longe do
objeto em toda a sua diversidade, o ignora e o su-
pera. A própria função biológica da indiferença

128
consiste em liberar-nos da diversidade do existir,
em nos fazer prescindir disso que é não-essencial
para nós na prática: é uma espécie de economia, de
proteção frente à dispersão da diversidade. É esta
também a função do esquecimento total.
O desamor e a indiferença nunca geram forças
suficientes para nos deter e nos demorarmos sobre
o objeto, de modo que fique fixado e esculpido cada
mínimo detalhe e cada particularidade sua. Somen-
te o amor pode ser esteticamente produtivo, so-
mente em correlação com quem se ama é possível a
plenitude da diversidade.
Em relação ao centro valorativo do mundo da
visão estética (um ser humano concreto) não vale a
distinção entre forma e conteúdo, já que o princípio
tanto da forma quanto do conteúdo da visão na sua
unidade e interpenetração é um ser humano. Tal
distinção é possível somente em relação a categori-
as conteudísticas abstratas. Todos os momentos
abstrato-formais se tornam momentos concretos da
arquitetônica somente em correlação com o valor
concreto de um ser humano mortal. Todas as rela-
ções espaciais e temporais se correlacionam somen-
te a ele, e somente em relação a ele adquirem um
sentido valorativo: alto, longe, acima, embaixo,
abismo, infinidade - todas estas expressões refle-
tem a vida e a tensão de um homem mortal, mas
não em um sentido abstrato, matemático, mas em
sentido valorativo, emotivo-volitivo.
Somente o valor de um homem mortal fornece
a escala de medidas das séries espacial e temporal:
o espaço se condensa como o horizonte possível de
um ser humano mortal, como seu ambiente possí-
vel; o tempo assume espessura e peso de ordem

129
valorativa, enquanto flui na vida de um ser huma-
no mortal, com a determinação seja do conteúdo
temporal, seja do peso formal, o fluir significativo
do ritmo. Se o ser humano não fosse mortal, o tom
emotivo-volitivo desta progressão, deste antes, de-
pois, ainda, quando, nunca, e dos momentos for-
mais do ritmo seria diferente. Suprimamos o com-
ponente constituído da vida do ser humano mortal,
e se extinguirá o valor disso que é vivido: o valor
do ritmo e o valor do conteúdo. Aqui não se trata,
certamente, de uma determinada duração matemá-
tica da vida humana (70 anos), que pode ser consi-
derada longa ou breve, como se queira, mas sim-
plesmente do fato de que existem duas demarca-
ções, os limites da vida - o nascimento e a morte -
e é somente o evento da existência desses limites
que confere uma nuança emotiva-volitiva à passa-
gem do tempo de uma vida limitada; e a própria
eternidade tem um sentido valorativo somente em
correlação com uma vida delimitada.
O modo melhor para esclarecer<?> a disposi-
ção arquitetônica do mundo da visão estética em
torno de um centro de valores - um ser humano
mortal - é fornecer uma análise (conteudístico-
formal) da arquitetônica concreta de uma obra
qualquer. Nós tomaremos a obra lírica de Pushkin
Razluka [Separação], escrita em 1830:

Em direção às margens da pátria distante


Estavas deixando o solo estrangeiro.
Na hora atroz que o tempo não cura,
Muito já chorei enquanto perto de ti eu estava.
Procuravam os meus dedos gelados
Segurar-te ainda por algum momento.

130
Que a mordaz pena da partida
Não terminasse implorava meu lamento.

Mas eis que do meu beijo doloroso


Então os teus lábios separaste.
Da terra do exílio tenebroso
A uma outra terra tu me convocaste.
Disseste: o dia no qual nos encontraremos
Debaixo do céu sempre azul na cor,
Lá na sombra dos olivais reuniremos,
Amigo meu, os beijos do amor,

Mas, ai de mim, onde do céu resplandece


O arco de um azul festivo
E a sombra das oliveiras sobre as águas se estende
Tu para sempre adormeceste.
A tua beleza e cada tormento teu
Desapareceram na urna sepulcral -
E também o beijo do teu encontro ...
Mas eu a espero, a tua promessa vale!

Nesta poesia há dois personagens: o herói líri-


co (o autor objetivado) e ela (Riznich31 ) e, em con-
sequência, dois contextos de valores, dois pontos
concretos que são correlatos e momentos valorati-
vos concretos do existir. Além disso, o segundo
contexto, sem perder a própria independência, é,
sobre o plano dos valores, abrangido pelo primeiro
(é afirmado sobre o plano dos valores deste); e am-
bos são, por sua vez, envoltos pelo contexto estético
unificante e que afirma os valores, do autor-artista
e contemplador, o qual se acha colocado fora da
arquitetônica da visão de mundo da obra (diversa-

31 Amália Riznich, que da Rússia volta para a Itália,

131
mente do autor-herói, que é membro desta arquite-
tônica). O lugar singular do sujeito estético (do au-
tor, do contemplador) no existir, o ponto de irradi-
ação da sua atividade estética - do seu amor objeti-
vo por um certo homem - tem urna só definição: a
sua exotopia [vnenachodimost]3 2 em relação a todos
os momentos da unidade arquitetônica <?> da visão
estética, que torna pela primeira vez possível abra-
çar a arquitetônica inteira, seja espacial ou tempo-
ral, com urna única atividade afirmativa dos valo-
res. A empatia estética - a visão do herói, do objeto,
a partir do interior - se realiza ativamente deste
lugar singular exotópico, e precisamente a partir
daqui se realiza a recepção estética, afirmação e en-
forrnação da matéria da empatia na arquitetônica
unificante da visão. A exotopia do sujeito, exotopia
espacial, temporal, valorativa, o fato, isto é, que não
sou eu mesmo o objeto da empatia e da visão, toma
possível, pela primeira vez, a atividade estética da
enforrnação.
Todos os componentes concretos da arquitetô-
nica convergem em torno de dois centros valorati-
vos (o herói e a heroína) e são ambos igualmente
envoltos em um único evento da atividade estética,
humana, valorativa, afirmativa. Nesta unidade do
evento estes círculos valorativos da existência inte-
ragem entre eles, mas nunca até a fusão. Vamos se-
guir a ordem destes momentos concretos do existir:

32
Vnenachodimost, exotopia, extralocalização, conceito básico da
concepção bakhtiniana da visão esté tica que está presente em
toda a sua obra, desde o p rimeiro escrito sobre a relação arte-
responsabilidade, publicado em 1918, até o último, de 1974,
sobre ciências humanas.

132
Em direção às margens da pátria distante
Estavas deixando o solo estrangeiro,

As margens da pátria se acham no contexto va-


lorativo espaço-temporal da vida da heroína. A
"pátria" é uma pátria para ela, é no seu tom emoti-
vo-volitivo que o possível horizonte espacial se
torna "pátria" (no sentido valorativo concreto da
palavra, no seu sentido pleno), e é em correlação
com a sua - dela - singularidade que o espaço se
concretiza no evento como "solo estrangeiro".
Também o aspecto constituído do movimento es-
pacial desde o país estrangeiro até a terra natal é
dado, se realiza enquanto evento, no tom emotivo-
volitivo dela. Todavia, este é aqui concretizado si-
multaneamente também no contexto da vida do
autor como evento no contexto valorativo da sua -
dele - vida: estavas deixando. Para ela (no tom emo-
tivo-volitivo dela) se tratava de voltar do solo es-
trangeiro à terra natal, teria de prevalecer, então,
um tom valorativo mais positivo. É do ponto de
vista do lugar singular dele no evento que ela "está
deixando". Também o momento arquitetônico con-
creto expresso no epíteto "longe" é dado na unida-
de singular do evento da vida dele, no seu tom
emotivo-volitivo. Aqui, com relação ao evento, es-
sencial não é o fato de que ela terá de realizar uma
longa viagem, mas o fato de que ela estará longe
dele, ainda que a "distância" tenha um peso sobre o
plano do valor também no contexto dela. Aqui há
uma interpenetração e uma unidade do evento en-
quanto os contextos valorativos permanecem dis-
tintos.

133
Esta interpenetração e distinção valorativa - a
unidade do evento - é ainda mais evidente na se-
gunda metade da estrofe:

Na hora atroz que o tempo não cura,


Muito já chorei enquanto perto de ti eu estava.

Tanto a hora como os seus epítetos ("que o


tempo não cura", "inesquecível", "triste") tem o
caráter do evento, tanto para ele quanto para ela, e
adquirem um peso nas sequências temporais da
vida mortal determinada dele e dela. Mas predo-
mina o tom emotivo-volitivo dele. É em correlação
a ele que este momento temporal <ilegível> ganha
corpo como a hora da sua vida singular valorati-
vamente preenchida pela separação.
Na primeira redação, o início também era dado
no contexto avaliativo do herói:

Em direção às margens da terra estranha e distante


Estavas deixando o solo nativo.

Aqui a terra estrangeira (a Itália) e o solo nati-


vo (a Rússia) são dados no tom emotivo-volitivo do
autor-herói. Em relação a ela, o mesmo espaço ocu-
pa - no evento da sua vida - uma posição oposta.

Procuravam os meus dedos gelados


Segurar-te ainda por algum momento.

Aqui o contexto valorativo é o do herói. As


mãos frias procuravam mantê-la no seu âmbito es-
pacial, na imediata vizinhança do próprio corpo -
no único centro espacial, aquele centro concreto

134
que dá um sentido e essência à pátria e à terra es-
trangeira, à distância e à proximidade, ao passado,
à brevidade da hora, à duração do pranto, à eterni-
dade da lembrança.

Que a mordaz pena da partida


Não terminasse implorava meu lamento.

Também aqui o contexto do autor prevalece.


Aqui se percebe tanto a tensão rítmica quanto uma
certa aceleração do tempo - é a tensão de uma vida
mortal determinada, a aceleração valorativa do
tempo da vida na tensão do evento.

Disseste: o dia no qual nos encontraremos


Debaixo do céu sempre azul na cor,

O contexto dele e dela se acha em intensa in-


terpenetração, permeados da unidade do contexto
valorativo da humanidade mortal: o céu eterna-
mente azul existe no contexto de cada vida mortal.
Aqui, todavia, este momento constituído por um
evento comum a toda a humanidade é dado, não
diretamente ao sujeito estético (ao autor-
contemplador situado fora da arquitetônica do
mundo da obra), mas do interior dos contextos dos
heróis; entra novamente, isto é, como momento va-
lorativamente afirmado no evento do encontro. O
encontro - a aproximação dos centros valorativos
concretos da vida (dele e dela) em um plano qual-
quer (terreno, celeste, temporal, atemporal) - é
mais importante <?> do que o evento da sua apro-
ximação no interior de um único horizonte, de um

135
único ambiente valorativo. As duas estrofes seguin-
tes concretizam profundamente o encontro:

Mas, ai de mim, onde do céu resplandece


O arco de um azul festivo
E a sombra das oliveiras sobre as águas se estende
Tu para sempre adormeceste.
A tua beleza e cada tormento teu
Desapareceram na urna sepulcral -
E também o beijo do teu encontro ...
Mas eu a espero, a tua promessa vale!

Os primeiros três versos destas duas últimas


estrofes simbolizam os elementos de um evento em
um contexto de valores comuns a toda a humani-
dade (a beleza da Itália), afirmado no contexto va-
lorativo da heroína (o mundo dela), por onde en-
tram, afirmados, também no contexto do herói. Tra-
ta-se, seja para ela, seja para ele, do ambiente do
evento singular da morte dela. O possível ambiente
da sua vida e do futuro encontro se torna aqui am-
biente real de sua morte. No seu valor, o sentido do
evento do mundo da Itália é para o herói aquele de
um mundo no qual ela já não exista mais, um
mundo iluminado valorativamente a partir do seu
- dela - não-existe-mais. Para ela é o mundo em
que teria podido existir. Todos os versos sucessivos
são dados no tom emotivo-volitivo do autor-herói,
e é ainda nesta tonalidade que é expressa a anteci-
pação do último verso: a convicção de que o encon-
tro prometido ocorrerá, apesar de tudo, pois que o
círculo da compenetração recíproca dos eventos
dos seus contextos valorativos não se fechou. A

136
eternidade33 do evento <?> é necessária e se dará
desde o interior da sua participação singular, a ele e
a ela. O tom emotivo-volitivo da separação e do
encontro que aqui não se realizou se transforma na
tonalidade de um encontro que se prepara, um en-
contro seguro e inevitável no além.
Este é então o modo pelo qual se dispõem em
torno de dois centros valorativos os componentes
do evento existencial. Um mesmo objeto (a Itália) -
o mesmo do ponto de vista do conteúdo/sentido - é
diferente como componente-evento de contextos
avaliativos diferentes: para ela é a pátria, para ele a
terra estrangeira; para ela o fato da partida é um
retorno, para ele um abandono, etc. A Itália una e
idêntica a si mesma e a distância, matematicamente
igual a si mesma, que a separa da Rússia, penetra-
ram aqui na unidade do evento e são vivas nele,
não pela sua identidade de conteúdo, mas pelo lu-
gar singular que ocupam na unidade da arquitetô-
nica, uma vez dispostas em torno de dois centros
valorativos singulares. Mas seria talvez lícito con-
trapor a Itália una, idêntica a si mesma, que é a úni-
ca real e objetiva, a uma Itália aleatória de uma ex-
periência subjetiva vivida - aquela da Itália como
pátria ou como terra estrangeira? Contrapor a Itália
onde ela agora repousa, e para onde, talvez, ele se
precipita com paixão34, àquela experienciada de
maneira subjetiva-singular? Uma tal contraposição
é radicalmente errada.

33 Esta frase falta nas traduções italianas e na espanhola e ingle-


sa, mas está presente na francesa.
34 Esta expressão "e para onde, talvez, ele se precipita com pai-

xão" do texto russo aparece somente na tradução francesa.

137
A experiência vivida da Itália como evento
contém como componente indispensável a sua uni-
cidade real em um existir unitário e singular. Mas
esta Itália una adquire corpo, se reveste de carne e
de sangue, somente do interior da minha afirmada
participação na singularidade do existir, do qual a
Itália única é também um componente. Todavia o
contexto do evento da participação singular não é
fechado em si mesmo, não é isolado. O contexto
valorativo no qual a Itália é pátria (o contexto dela),
é compreendido e afirmado também do contexto-
evento do autor-herói, em que a Itália é terra es-
trangeira. Mediante a participação do herói do seu
lugar singular no existir, a Itália, idêntica a si mes-
ma, se consolidou, para ele, como terra estrangeira
e, sempre para ele, na pátria da sua amada, uma
vez que ela - e, por consequência, também todo o
contexto valorativo do evento no qual a Itália é pá-
tria - é valorativamente afirmado por ele. E todas
as outras nuanças possíveis do evento de uma Itália
singular relativamente a pessoas concretas afirma-
das sobre o plano dos valores - a Itália da humani-
dade - entram na composição da consciência parti-
cipante do herói a partir do seu lugar singular. Para
tornar-se momento de uma consciência real, mes-
mo de uma consciência teórica, do geógrafo por
exemplo, a Itália deve entrar em um evento em al-
guma relação com um valor concretamente afirma-
do. Aqui não há nenhum relativismo: a verdade
(pravda) do existir-evento contém totalmente em si
todo o absoluto extratemporal da verdade (istina)
teórica. A unidade do mundo é um momento da
sua singularidade concreta e uma condição neces-
sária do nosso pensamento considerado do ponto

138
de vista de seu conteúdo, isto é, do pensamento-
juízo; mas para o pensamento-ato real, a unidade
por si só não é suficiente.
Paremos um pouco agora para considerar al-
gumas particularidades da arquitetônica da lírica
por nós escolhida. O contexto valorativo da heroína
é afirmado e incluído no contexto do herói. O herói
se acha no ponto presente do tempo singular da
sua vida; os eventos da separação e da morte da
amada estão dispostos no seu singular passado
(transpostos sobre o plano da recordação) e, através
do presente, pedem um futuro pleno, querem um
evento eterno, e isso dá consistência e sentido a to-
dos os limites temporais e a todas as relações tem-
porais - é a experiência vivida participativa do
tempo do evento. Toda esta arquitetônica no seu
conjunto é dada ao sujeito estético (o artista-
contemplador), que está situado fora dela. Por este
sujeito, seja o herói, seja todo o contexto concreto
do seu evento, estão correlacionados com o valor
do ser humano e do humano, enquanto ele - o su-
jeito estético - participa afirmativamente do existir
singular, no qual o ser humano e tudo o que é hu-
mano constituem o componente valorativo. E é
sempre para ele que também o ritmo se enche de
vida, como transcorrer valorativamente orientado
da vida de homem mortal. Toda esta arquitetônica,
seja no seu conteúdo, seja nos seus momentos for-
mais, é viva para o sujeito estético somente enquan-
to da sua parte se acha realmente afirmado o valor
de tudo isso que é humano.
Esta é, portanto, a arquitetônica concreta do
mundo da visão estética. Aqui o componente valor
é em todo lugar condicionado não por um princípio

139
logicamente fundante, mas do lugar único que
ocupa um objeto na arquitetônica concreta do even-
to, do ponto de vista do lugar singular de um sujei-
to participante. Todos os componentes da arquite-
tônica são afirmados como momentos da singulari-
dade de um ser humano concreto. Os componentes
espaciais, temporais, lógicos e avaliativos, se conso-
lidam e são incorporados na sua unidade concreta
(pátria, distância, passado, foi, será, etc.), são corre-
lacionados com o centro avaliativo concreto, são
subordinados a ele, mas não sistematicamente, e
sim arquitetonicamente; recebem sentido e locali-
zação através dele e nele. Cada componente aqui é
vivo enquanto único, e a unidade mesma não é
mais que um componente da singularidade concre-
ta de um ser humano. (A imortalidade como postu-
lado do verdadeiro amor. Componente formal-
substancial).
Mas esta arquitetônica estética, representada
por nós em caráter geral, é a arquitetônica da con-
templação do mundo produzido no ato estético,
enquanto o ato mesmo e eu que executo o ato nos
encontramos fora dela, estamos excluídos dela. Tra-
ta-se do mundo da existência de outros homens
que vem afirmada, mas eu, eu-que-afirmo, nele não
estou. É o mundo de outros singulares, únicos, cuja
origem e construção provêm do seu interior, o
mundo de uma existência valorativamente correla-
ta com estes outros, mas estes outros são encontrados
por mim, enquanto eu, eu-singular, que tenho ori-
gem e me construo do meu interior, me situo por
princípio fora dessa arquitetônica. Eu participo so-
mente como contemplador, mas a contemplação é a
efetiva exotopia ativa do contemplador com relação

140
ao objeto da contemplação. A singularidade de um
ser humano contemplada esteticamente não coinci-
de, por princípio, com a minha singularidade. A
atividade estética é uma participação especial, obje-
tivada; do interior da arquitetônica estética não há
saída para o mundo do sujeito do ato, porque esse
se encontra fora do campo da visão estética objeti-
vada.
Se passarmos agora à arquitetônica real do
mundo vivido da vida, do mundo da consciência
que age de modo participante, notaremos antes de
tudo uma diferença arquitetônica de princípio entre
a minha singularidade única e a singularidade de
cada outro ser humano, seja estética ou real, entre a
concreta experiência vivida por si mesmo e a expe-
riência vivida pelo outro. O valor concretamente
afirmado de um ser humano e o meu valor-para-
mim-mesmo são radicalmente diferentes.
Aqui não estamos falando de uma avaliação 35
abstrata de uma consciência teórica desencarnada,
que conhece somente o valor de conteúdo-sentido
geral de cada pessoa, de cada ser humano. Uma
consciência desse tipo não pode gerar de maneira
não fortuita um ato concreto único, mas somente a
valoração da ação post Jactum como exemplar do
ato. Estamos falando, ao invés, de uma valoração
concreta e operante por parte de uma consciência
que age, do ato-valoração, que procura a sua própria
justificação, não no interior de um sistema, mas em
uma realidade única e concreta, irrepetível. Essa
consciência se contrapõe por si mesma a todas as
outras como outras por si mesmas; contrapõe seu
próprio eu como vindo de dentro de si mesmo a to-

35Um "juízo de valor", e ocenka.

141
dos os outros seres humanos singulares que ela en-
contra; contrapõe a núm mesmo, como participante,
ao mundo do qual eu participo, e, nesse mundo, a
todos os outros seres humanos. Eu, como eu-único,
emerjo do interior de núm mesmo, enquanto a todos
os outros eu os encontro - e é nisso que consiste a
profunda diferença ontológica do evento.
O princípio arquitetônico supremo do mundo
real do ato é a contraposição concreta, arquitetoni-
camente válida, entre eu e outro. A vida conhece
dois centros de valores, diferentes por princípio,
mas correlatos entre si: o eu e o outro, e em tomo
destes centros se distribuem e se dispõem todos os
momentos concretos do existir. Um mesmo objeto,
idêntico por conteúdo, é um momento do existir
que apresenta um aspecto valorativo diferente,
quando correlacionado comigo ou com o outro; e o
mundo inteiro, conteudisticamente uno, correlacio-
nado comigo e com o outro, é permeado de um tom
emotivo-volitivo diferente, é dotado, no seu sentido
mais vivo e mais essencial, de uma validade dife-
rente sobre o plano do valor. Isto não compromete
a unidade de sentido do mundo, mas a eleva ao
grau de unicidade própria do evento.
Este caráter biplano da determinação valorati-
va do mundo - para mim e para o outro - é muito
mais profundo e mais essencial do que a diferença
na determinação do objeto que observamos no inte-
rior do mundo da visão estética, no qual uma única
e mesma Itália resultava terra natal para um e terra
estrangeira para outro, e no qual todas essas dife-
renças de validade eram de natureza arquitetônica,
mas se achavam em uma mesma dimensão valora-
tiva, aquela do mundo de quem é outro para núm.

142
Trata-se da interação arquitetônica entre dois ou-
tros valorativamente afirmados. Seja a Itália-pátria,
seja a Itália-terra-estrangeira, resultam observadas
em uma mesma tonalidade, uma e outra estão situ-
adas em um mundo que é correlato com um outro.
O mundo que é correlato comigo, como eu, não
pode, por princípio, entrar na arquitetônica estéti-
ca. Como veremos em detalhe mais adiante, con-
templar esteticamente significa relacionar o objeto
ao plano valorativo do outro.
Esta divisão arquitetônica do mundo em eu e
em todos aqueles que para mim são outros não é
passiva e casual, mas ativa e imperativa. Esta arqui-
tetônica é tanto algo dado, como algo a-ser-
realizado [danai zadana], porque é a arquitetônica de
um evento. Essa não é dada como uma arquitetôni-
ca pronta e consolidada, na qual eu serei colocado
passivamente, mas é o plano ainda-por-se-realizar
[zadannyi], da minha orientação no existir-evento,
uma arquitetônica incessante e ativamente realiza-
da por meu ato responsável, edificada por meu ato
e que encontra a sua estabilidade somente na res-
ponsabilidade do meu ato. O dever concreto é um
dever arquitetônico: o dever de realizar o próprio
lugar único no evento único do existir; e ele é de-
terminado antes de tudo como oposição valorativa
entre o eu e o outro.
Esta oposição arquitetônica se completa em ca-
da ato moral, e é entendida por uma consciência
moral elementar, mas a ética teórica não possui
uma forma adequada para expressá-la. A forma de
tese geral, de norma ou de lei não é, por princípio,
capaz de expressar tal oposição, cujo sentido é ab-
soluta autoexclusão [sebia-iskliucenie]. Surge inevi-

143
tavelmente neste caso uma ambiguidade, uma con-
tradição entre forma e conteúdo. Este momento
pode ser expresso somente na forma de uma des-
crição da concreta interrelação arquitetônica, mas
esta descrição permanece até agora desconhecida
pela filosofia moral. Disso, naturalmente, não resul-
ta, de modo algum, que tal oposição não tenha sido
nunca expressa ou enunciada - é este, de fato, o
sentido de toda a moralidade cristã, e é o ponto de
partida também da moral altruística; todavia este
<duas ou três palavras ilegíveis> princípio de mora-
lidade não encontrou até agora uma expressão cien-
tífica adequada nem uma reflexão aprofundada.

144
UM POSFÁCIO MEIO IMPERTINENTE
POSFÁCIO

Um posfácio meio impertinente

Carlos Alberto Faraco

Quando Para uma filosofia do ato responsável (PF A a


partir daqui), escrito no início da década de 1920, veio
a público pela primeira vez, em 1986, causou certa
perplexidade entre os leitores de Bakhtin: a lingua-
gem ocupava lugar pequeno no texto, a grande metá-
fora do diálogo não era mencionada, não havia
igualmente qualquer referência ao riso e à cultura
carnavalesca e o único exemplo do texto era um poe-
ma lírico que, segundo o entendimento de alguns, era
um gênero desprezado por Bakhtin (diga-se de pas-
sagem que este entendimento, inexplicavelmente,
ainda persiste - d . a discussão do assunto em Tezza
2003).
Aparentemente, era um outro Bakhtin o autor do
texto. Era um filósofo que se mostrava; e não o crítico
da literatura e da cultura, o estudioso de Dostoiévski
e Rabelais ou o teórico do romance com quem seus
leitores estavam acostumados.
Alguns (Morson & Emerson 1989, por exemplo)
argumentaram que havia uma nítida oposição entre o
Bakhtin dos primeiros textos e o Bakhtin do livro so-
bre Dostoiévski e trabalhos posteriores. Passaram até
a sugerir que o primeiro era superior ao segundo,
numa tentativa de estabelecer um confronto com as
leituras mais sociológicas ou de inspiração marxista.
Argumentaram que não haveria uma continuidade

147
entre os textos mais filosóficos e os que seguiram ao
que chamaram de "descoberta da linguagem".
O avançar das leituras e releituras acabou, p o-
rém, por enfraquecer esta argumentação. Vários auto-
res - entre outros, Ponzio (1997), Bialostovsky (1999) e
os colegas brasileiros Amorim (2006) e Sobral (2005) -
mostraram os vínculos estreitos de PF A com os outros
textos de Bakhtin. Houve, sem dúvida, desdobramen-
tos e refinamentos do conceitua! bakhtiniano ao longo
das cinco décadas de sua produção. No entanto, foi
ficando claro que era inadequado, pouco produtivo e,
de fato, insustentável analisar o conjunto de sua obra
assumindo uma ruptura radical entre seus textos do
início da década de 1920 e os textos posteriores.
PFA contém (em gérmen, é verdade, consideran-
do seu caráter de rascunho fragmentário) as coorde-
nadas que sustentarão boa parte do edifício posterior:
' a eventicidade (o irrepetível), o sempre inconcluso (o
~)
que está sempre por ser alcançado), o antirraciona-
lismo (o antissistêmico), o agir (o interagir) e, acima
de tudo (segundo meu ponto de vista), o axiológico (o
vínculo valorativo ), que, em PF A, é designado princi-

l
palmente pela expressão "tom emotivo-volitivo".
Essas peças vão ganhar formas diferentes e vão se
encaixar de modo diverso a partir do momento em
que Bakhtin elabora sua filosofia da linguagem. No
entanto, elas permanecem presentes e nucleares em
toda sua obra. Talvez se possa dizer que em PFA en-
contramos o autor esquentando os músculos para a
grande caminhada de meio século que se seguirá.
O texto é um rascunho; faltavam ao manuscrito
as páginas iniciais; não sabemos que título teria (o que
recebeu lhe foi dado pelos editores) e há trechos ilegí-
veis em decorrência das precárias condições em que
foi guardado. Quando iniciamos a leitura, o argumen-
to já vai a meio caminho. Mergulhamos numa exposi-
148
ção basicamente conceitua!: não há exemplos (afora o
poema de Pushkin), não há comentários aplicados a
situações concretas que nos auxiliassem a entender o
conceitua! e as dimensões da filosofia em elaboração.
Não há, salvo indicações incidentais (em geral, ape-
nas nomes entre parênteses), maiores referências às
fontes (a que enunciados, a que já-ditos o texto res-
ponde?). Talvez elas viessem depois, mas o texto aca-
bou por nunca ser retomado para uma eventual edi-
ção e ficamos nós, seus leitores, em boa parte a ver
navios.
Sabemos que Bakhtin tinha uma declarada impli-
cância com citações e referências (ele chegou a dizer
que elas eram desnecessárias para o leitor competente
e inúteis para o não qualificado). Gostava de falar,
portanto, para seu leitor próximo, que, supõe-se,
identificava logo as referências não explícitas do tex-
to. Cita o Kant do imperativo categórico e os neokan-
tianos (Rickert em especial) da filosofia dos valores.
Não cita o Kierkegaard do pensamento existencial e
da crítica ao racionalismo, mas os ecos são muito for-
tes (como procuraremos apontar adiante). Há muito a
se fazer aqui, sem dúvida.
De qualquer forma, o que interessa sobremaneira,
na leitura do texto, é captar as respostas bakhtinianas
aos temas que provocaram suas reflexões. Quanto a
isso, o leitor logo percebe que o texto resiste a pará-
frases fáceis . Embora, como nota Amorim (2009: 21), o
texto tenha um estilo um tanto quanto repetitivo, ele é
denso - há, digamos assim, muito nas entrelinhas, há
até, sem querer abusar dos termos, um excesso de
condensações - e isso exige um exercício meio árduo
de destrinçar sua trama que chega a ser até meio
enigmática em alguns pontos.
Por outro lado, traduzir PFA, mesmo indireta-
mente, não é fácil. Há, por exemplo, neologismos que
149
cobram certos malabarismos em busca de equivalên-
cias. Alguns anos atrás, fizemos (Cristovão Tezza e
eu) uma primeira tentativa tomando a tradução ame-
ricana como ponto de partida. Era apenas para fins
didáticos. Nunca foi publicada. Mas motivou leitores:
foi várias vezes mencionada em trabalhos acadêmi-
cos. E essa experiência ajudou a construir um vocabu-
lário mais apropriado e, sem dúvida, facilitou esta
tradução que aqui se publica. Tomamos (Miotello e
eu) por base a mais recente tradução italiana (feita por
Luciano Ponzio ): ela tem a vantagem de ter partido
da última versão do texto, que aparece nas Obras
Completas de Bakhtin.
Vencido o trabalho da tradução, pareceu ao Mi-
otello que o texto pedia um posfácio. E sugeriu que eu
o escrevesse. Mesmo consciente das dificuldades de
falar de PF A, me arrisco a apontar aqui alguns dos
traços que mais me impressionam a cada vez que me
aproximo do texto. Para organizar a exposição, divido
PFA em três grandes blocos (sem, obviamente, qual-
quer pretensão exaustiva).
No primeiro bloco, lemos um libelo contra o que
Bakhtin chama de teoricismo (e ele nunca perderá a
oportunidade, nos cinquenta anos seguintes, de ex-
pressar este seu posicionamento). Contudo, nem em
PF A, nem nos textos posteriores, ele nega validade ao
pensamento abstrato. Chega mesmo, em PFA, a dizer
que a filosofia contemporânea atingiu alto grau de
qualidade. No entanto, critica a separação que o
mundo da abstração (que ele chama de mundo da
cultura e que compreende, entre outros domínios, a
filosofia, a ciência, a estética e a ética) opera entre o
conteúdo de um determinado ato (que é, no plano da
abstração, recortado da existência, objetificado) e sua
realidade como experiência vivida em sua eventici-
dade irrepetível - ou seja, o ato em sua totalidade, no
150
qual eu entro como um ser integral. Na abstração cien-
tífica, ao contrário, sendo como é sempre indiferente à
minha singularidade, não há lugar para mim ("eu não
tenho lugar no juízo teoricamente válido"). Em outros
termos, podemos dizer que a abstração é aceitável (e
até mesmo inevitável); inaceitável é transformar o
mundo da abstração no mundo como tal. Aquele de-
ve ser bem entendido como parte deste:

O ato deve encontrar lllll único plano unitário para refletir-


se em ambas as direções, no seu sentido e em seu existir; de-
ve encontrar a unidade de llllla responsabilidade bidirecio-
nal, seja em relação ao seu conteúdo (responsabilidade espe-
cial), seja em relação ao seu existir (responsabilidade moral),
de modo que a responsabilidade especial deve ser lllll mo-
mento incorporado de llllla única e unitária responsabilida-
de moral. Somente assim se pode superar a perniciosa sepa-
ração e a mútua impenetrabilidade entre cultura e vida.

Impossível não ouvir aqui o Kierkegaard anti-


hegeliano a chamar (nos Diários) de cômico e ridículo
o filósofo que pretende falar do absoluto e não com-
preende a existência humana; o filósofo a construir
sistemas que querem tudo explicar, mas não conse-
guem captar a existência em sua singularidade. O
mesmo eco kierkegaardiano que vamos escutar, anos
depois, na crítica que Heidegger faz, nos Seminários
de Zollikon, não à ciência como tal, mas à sua preten-
são ao absoluto, a ser o parâmetro de todas as verda-
des. E nos lembra, nesse sentido, que a dor e a tristeza
de cada indivíduo não são mensuráveis e que, por
consequência, a experiência vivida não pode ser pen-
sada pela ciência, já que seu método se funda justa-
mente na mensurabilidade (para ela, só é real o que
pode ser medido). Bakhtin talvez completasse este
raciocínio dizendo, no mesmo diapasão kierkegaardia-
no, que o evento da minha dor e da minha tristeza

151
não pode ser pensado, conceitualizado, mas somente
vivido de seu interior.
Seguindo no texto, Bakhtin aplica a mesma crítica
à visão estética: ela é plenamente justificada se não
ultrapassar suas próprias fronteiras. Se, ao invés dis-
so, ela tem a pretensão de ser uma visão do existir
único e singular na sua eventicidade, então ela é con-
denada a apresentar uma parte abstratamente isolada
como se fosse o todo efetivo. Por isso, diz ele, o esteti-
cismo (i.e., as tentativas de esteticizar a existência) é
merecedor de toda crítica. O fazer estético pressupõe
a exotopia (tenho de sair do mundo da vida para po-
der transpor o recorte assim feito para o plano da ar-
te), por isso a arte não pode representar o mundo real
em que eu vivo, a arte é sempre menor que a vida.
Por fim, Bakhtin direciona sua crítica aos siste-
mas éticos, seja os da ética material (a ética de man-
damentos com conteúdos), seja a ética formal (a ética
do mandamento único, do imperativo categórico).
Bakhtin não poupou, portanto, nem a genial tentativa
kantiana para definir um parâmetro seguro (pelo
princípio do imperativo categórico) para o agir hu-
mano num mundo que viu as tábuas de mandamen-
tos perderem sua presumida universalidade.
Bakhtin encontra em todos esses sistemas o
mesmo defeito de teoricismo, da pretensão universa-
lista: o pressuposto de que de um enunciado univer-
sal se deduz necessariamente a minha ação. "Posso
estar de acordo com uma proposição, mas dizer que, por isso
mesmo, ela se torna uma norma que controla a minha ação
significa passar por cima do problema fundamental" - qual
seja: ela só orienta a minha ação se eu assumi-la do
meu interior.
Temos aqui uma clara defesa do primado do su-
jeito moral sobre as normas, ou seja, para Bakhtin, um
tanto quanto kantianamente, não há normas morais
152
válidas em si (o dever não decorre do conteúdo-
sentido da norma), só há o sujeito moral dotado de
liberdade: o dever é uma categoria do ato individual
responsável - "é necessário assumir o ato não como um
fato contemplado ou teoricamente pensado do exterior, mas
assumido do interior, na sua responsabilidade". Ou, como
dirá Bakhtin um pouco adiante no texto, não é o con-
teúdo do enunciado que me obriga, mas a minha as-
sinatura aposta a ele, ou seja, a minha decisão de as-
sumi-lo como obrigação.
E PF A entra no seu segundo grande bloco. Po-
demos dizer que neste Bakhtin desenvolve uma fe-
nomenologia do ato responsável, do ato que se realiza
no interior da realidade prática vivida. E há pelo me-
nos dois aspectos dessa fenomenologia que merecem
destaque. Primeiro, o fato de o ato responsável ser
sempre único e irrepetível e, por isso mesmo, só é
possível apreendê-lo de seu interior, só é possível
descrevê-lo participativamente Gamais conceituali-
zando-o por um gesto de abstração, porque, como
dizia Kierkegaard nos Diários, o ser humano singular,
o indivíduo não tem existência conceitua!; a existência
singular, irrepetível, insubstituível jamais coincide
com o conceito).
E descrevê-lo participativamente pressupõe fazê-
lo de modo não indiferente, porque o pensamento
participativo se funda sempre num inescapável vín-
culo valorativo: "Nada pode ser pensado se não se estabe-
lece um vínculo essencial entre o conteúdo e seu tom emoti-
vo-volitivo, i.e., o seu valor realmente afirmado por aquele
que pensa". Não é possível viver a experiência de uma
dádiva pura.
No texto que escreve logo em seguida (Autor e he-
rói na atividade estética), Bakhtin dirá, nesta mesma di-
reção, que viver é tomar posição axiológica a cada
momento; é posicionar-se frente a valores. De novo,
153
ressoa um eco kierkegaardiano: a existência se carac-
teriza pela (inescapável) escolha (o autlaut e não o
etlet) - a vertigem dos possíveis que, em Kierkegaard,
resulta na angústia como modo de ser do indivíduo.
Bakhtin não avança tanto no argumento - não chega a
enfrentar a vertigem dos possíveis, apenas nos lembra
que viver é posicionar-se axiologicamente.
Por outro lado, o fato primordial que dá funda-
mento a um ato responsável é o meu não álibi na exis-
tência. Esta talvez seja a assertiva mais forte do texto:
não tenho desculpas. E, diante dela, a pergunta que
não quer calar: é palatável, neste nosso tempo povoa-
do de indiferença e de álibis, uma filosofia moral tão
fortemente inconcessível? Terá Bakhtin abandonado
seu projeto de escrever uma filosofia moral por ter se
, dado conta disso?

~
Não tenho álibi na existência: ser na vida signifi-
r\ ca agir - eu não posso não agir, eu não posso não ser
~ participante da vida real. E essa obrigação decorre de
eu ser único e ocupar um lugar único: ocupo no exis-
tir singular um lugar único, irrepetível, insubstituível
e impenetrável da parte de um outro. Sou insubstituí-
W .. vel e esse fato me obriga a realizar minha singulari-
":\fl.D dade peculiar: tudo o que pode ser feito por mim não
"t poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. O
dever encontra a sua possibilidade originária lá onde
reconheço a unicidade da minha existência e tal reco-
nhecimento vem do meu próprio interior - lá onde
assumo a responsabilidade da minha própria unici-
dade.
Em suma, nada me obriga, salvo minha singula-
ridade. Mas ela só me obriga quando eu a assumo do
meu próprio interior. Do mesmo modo, nenhum juízo
em si me obriga, nenhuma proposição em si funda-
menta o meu dever: eu tenho de reconhecê-los e acei-
tá-los do meu interior. Ou seja, qualquer tábua nor-
154
mativa (material ou formal) circula no vácuo; o sujeito
_mor~ só se obriga ao ato quando ele responsavelmen-
. te decide. Não basta que a proposição tenha validade
teórica: é indispensável, diz Bakhtin, a orientação do
dever moral de minha consciência em relação à pro-
posição em si teoricamente válida.
Proposições com validade teórica, bem como to-
dos os valores acumulados pela humanidade histórica
são, diz ele, necessários mas não suficientes para fun-
dar meu ato: tenho de assumi-los do meu interior;
tenho de reconhecê-los e apor minha assinatura a eles.
Ou seja, sem a disposição moral da consciência indi-
vidual, nada feito .
Poderíamos, então, perguntar: o que pode moti-
var a consciência individual a se dispor a assinar em-
baixo de proposições com validade teórica ou embai-
xo dos valores da humanidade histórica? Ou, ainda,
como decidir quando estamos frente a dilemas éticos?
O que fazer quando, por exemplo, somos expostos a
contraditórios valores da humanidade histórica?
Bakhtin não nos ajuda nesse ponto. Ficou aí um
buraco neste rascunho de filosofia moral. O único pa-
râmetro que ele adianta (absolutamente fundamental,
diga-se de passagem) é dizer que viver desde si mes-
mo não quer dizer viver para si mesmo. O sujeito mo-
ral bakhtiniano é, de certa forma, um solitário ético (a
ele e só a ele cabe decidir). Mas não está sozinho no
mundo: "o princípio arquitetônico supremo do mundo real
do ato é a contraposição concreta, arquitetonicamente váli-
da, entre eu e outro". Ou seja, o outro (que não é sim-
plesmente outra pessoa, mas uma pessoa diferente,
um outro centro axiológico) baliza o meu agir respon-
sável.
Nenhuma ética teórica, diz ele, possui uma forma
adequada para expressar esta contraposição arquite-
tônica; só de dentro do ato é possível expressar este
155
momento de reconhecimento (do outro), mas não
dispomos de uma filosofia moral capaz de fazer isso,
embora ela já tenha conhecido expressão na moral
cristã (amar o outro) e na moral altruísta (sacrificar-se
pelo outro). Parece que está claro nas entrelinhas aqui
que Bakhtin ambicionava preencher este vazio com
sua filosofia moral. De novo, teria ele abandonado o
projeto por dar-se conta de que era impossível? Em
todo caso, deixou clara boa parte de suas pretensões
ao dizer:

não pretendemos construir um sistema ou um inventário de


valores, logicamente unitário, com um valor fundamental no
ápice - a minha participação no existir - um sistema ideal de
diversos valores possíveis, nem nos propomos a fazer uma
transcrição teórica dos valores histórica e realmente reco-
nhecidos pelo ser humano, com o fim de estabelecer entre
estes relações lógicas de dependência, de subordinação, etc. -
isto é, sistematizá-los. Não é nossa intenção fornecer um sis-
tema ou um inventário sistemático de valores, no qual con-
ceitos puros (idênticos a si mesmos em conteúdo) sejam li-
gados entre si à base de uma correlação lógica. O que pre-
tendemos fornecer é uma refiguração, uma descrição da ar-
quitetônica real concreta do mundo dos valores realmente
vivenciados, não governado por um fundamento analítico,
mas com um centro de origem realmente concreto, seja es-
pacial ou temporal, de valorações reais, de afirmações, de
ações, e cujos participantes sejam objetos efetivamente reais,
unidos por relações concretas de eventos no evento singular
do existir (aqui as relações lógicas não são mais que um
momento ao lado dos momentos espaciais, temporais e emo-
tivo-volitivos concretos).

E já estamos no terceiro bloco do texto. A ele


Bakhtin atribuiu o número 1 (o que antecedeu tem,
portanto, ares de Introdução) e ao qual poderíamos
156
/1
dar o subtítulo de Arquitetônica do mundo vivido e
do ato estético". Ele resume as bases de sua filosofia
do ato responsável, diz claramente o que pretende e
não pretende e, como exemplo do que pretende, ofe-
rece uma análise do mundo da visão estética (que se-
rá, de fato, o grande tema de seu percurso intelectual
posterior).
Escolhe a arte justamente porque, embora ela es-
teja entre os mundos culturalmente abstratos, está, ao
mesmo tempo, pelos tons emotivo-volitivos, mais
próxima do mundo da vida. O desdobramento dessa
análise vai ser feita, extensivamente, no texto seguinte
(Autor e herói na atividade estética) que, pelo que pare-
ce, comporia, com PF A, seu grande tratado de filoso-
fia moral e estética. Aqui, ele apenas nos deixa, para
muitas reflexões, uma saborosa análise do poema de
Pushkin. Afinal, um exemplo! Justo e necessário para
esclarecer um pouco as elucubrações de Bakhtin. Um
aperitivo para o que nos ofereceu nos cinquenta anos
seguintes.

Referências Bibliográficas

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frmdamentais no pensamento bakhtiniano. ln: FARACO, C. A.;
TEZZA, C.; CASTRO, G. (orgs .) Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin.
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. Para uma filosofia do ato: "válido e inserido no contexto".


ln: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: Dialogismo e polifonia. São Paulo: Con-
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University Press, 1978.
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo
russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

158
Parceiros no trabalho

Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGE. O Grupo


de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGE, desde 2003 vem
estudando Bakhtin, e com bastante proveito para seus membros e
amigos. Ampliando estes estudos, atualmente o Grupo participa e
colabora com os eventos: "CÍRCULO - Rodas de Conversa Bakh-
tiniana" ce "EEEBA !" - Encontro de Estudos Bakhtinianos". Seus
membros estão espalhados por ai, e se reúnem ainda na sombra do
abakhtin, na UFSCar, em São Carlos/ SP:

Augusto Ponzio é professor de Filosofia da Linguagem e de Lin-


guística Geral no Departamento de Práticas Lingüísticas e Análise
de Texto, na Universidade de Bari, Itália. Publicou mais de uma
centena de livros, entre os quais Fuori luogo. L'esorbitante nella
riproduzione dell'identico; Tra Bachtin e Lévinas.Scrittura, dialogo,
alterità. Aqui no Brasil já teve publicado "Filosofia da Linguagem"
[Vozes] e "A Revolução Bakhtiniana" [Contexto].

Carlos Alberto Faraco é Professor Titular [aposentado] da Uni-


versidade Federal do Paraná, e tem larga experiência na área de
Linguística. Tem vasta produção acadêmica, e atua principalmen-
te nos seguintes temas: Bakhtin, discurso, dialogismo, ensino de
português e linguística.

Valdemir Miotello é Professor Associado [aposentado] da Uni-


versidade Federal de São Carlos, lotado no Departamento de Le-
tras, e trabalha com Filosofia da Linguagem na pós-graduação.
Focado em Estudos Bakhtinianos, é líder do Grupo de Estudos
dos Gêneros do Discurso - GEGE/UFSCar.

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