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“Aventuras de João Sem Medo”

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Prefácio
No âmbito da disciplina de projeto de
Design de Comunicação I, lecionada pe-
los professores auxiliares, Cândida Ruivo,
Vitor Almeida e pela professora convidada
Isabel Castro, no segundo semestre do pri-
meiro ano de Design de Comunicação. foi
proposto a realização de um livro imaginário
composto por uma colectânea de momentos
textográficos, previligiando assim um texto
literário imaginário.
O texto literário selecionado pertence ao
livro “Aventuras de João Sem Medo” de José
Gomes Ferreira. São os vários momentos
destacados desta obra, que dão origem às
ilustrações que se seguem neste livro imag-
inado. Todas estas ilustrações que acompan-
ham toda esta história, provêm de memórias
em particular, e de um imaginário muito
personalizado.

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Índice

I
O homem sem cabeça 7
II
A árvore dos dez braços 16
III
A colina de cristal 23
IV
O gramofone com asas 31
V
O regresso 37

4 5
É PROIBIDA A ENTRADA
A QUEM NÃO ANDAR
ESPANTADO DE EXISTIR

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I
O homem sem cabeça

Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que


-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construí-
do em redor da Floresta Branca onde os homens, perdidos dos
enigmas da infância, haviam estalado uma espécie de Parque de
Reserva de Entes Fantásticos.
Apesar de ficar a pouca distância da povoação, ninguém se
atrevia a devassar a floresta. Não só por se encontrar protegida
pela altura descomunal do Muro, mas principalmente porque os
choraquelogobebenses – infelizes chorincas que se lastimavam
de manhã até à noite – mal tinham força para arrastar o bolor
negro das suas sombras, quanto mais para se aventurarem a com-
bater bichas de sete bocas, gigantes de cinco braços ou dragões
de duas goelas. Preferiam choramingar, os maricas! Agachados
em casebres sombrios, enquanto lá for a chovia com persistência
implacável. Tudo isto incitava os habitantes da aldeia a andarem
de monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a
ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores
trajados de luto, ao som de instrumentos plangentes e monóto-
nos.
O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente
e instinto de refilar, que resistia a esta choradeira pegada, era o
nosso João que, em virtude duma contínua ostentação de bravata
alegre e teimosa na luta, todos conheciam por João Sem Medo.
Ora um dia, farto de tanta chorinquice e de tanta miséria que
gelava as casas e cobria os homens de verdete, disse à mãe que,
conforme a tradição local, lacrimejava no seu canto de viúva:
- Mãe: não aturo mais isto. Vou saltar o Muro.
A pobre desatou logo aos berros de súplica que abalaram o Céu
e a Terra:
- Ah! Não vás, não vás, meu filho! Pois não sabes que essa Flo-
resta Maldita está povoada de Canibais Mágicos que se alimen-
tam de sangue de homens? Sim, meu filho, de sangue humano
bebido por caveiras. Não vás! Não vás!

Mas as implorações da mãe não impediram que, na manhã se-


guinte, João Sem Medo se esgueirasse de Chora-Que-Logo-Be-
bes e se dirigisse à socapa para o tal muro que cercava a floresta.

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E, após quilómetros de marcha sonâmbula aos pontapés às
pedras e aos arbustos para não adormecer, acabou por desembo-
car numa vasta clareira batida pelo sol, onde se deteve, os olhos
ofuscados pela luz súbita. Quando os reabriu, verificou com um
sorriso de compreensão irónica que da clareira partiam dois ca-
minhos, os dois caminhos clássicos de todas as histórias de en-
cantos e prodígios: um asfaltado, cómodo, ladeado de amen-
doeiras em flor; o outro, pedregoso e eriçado de espinhos, urtigas
e urzes.
- Bem - pensou. - Cá estão os dois caminhos fatais: o do Bem e
o do Mal. Já esperava por eles. Agora, para completar a comédia,
falta apenas a respectiva fada...
- Eh! Fada dos bosques! Aparece, rica fada da minh’ alma.
João Sem Medo viu sair da espessura da floresta um ser prodi-
gioso que de longe parecia uma mulher jovem e bela, cabelo loiro
até a cintura, três estrelas de prata na testa, varinha na mão direi-
ta, roca na mão esquerda, túnica bordada de rubis e esmeraldas,
chapinsdellatina e tudo o mais que as fadas costumam usar nos
bailes de Entrudo.
- És a Fada dos Dois Caminhos? - inquiriu, duvidoso. - Pala-
vra?
- Sim, sou a Fada Infalível, a Fada Lugar-comum. Olha, meni-
no o bom caminho conduz à Felicidade. E o mau, à infelicidade...
-Vou pelo bom caminho, como é costume, claro - resolveu João
Sem Medo, embora desconfiado de tanta facilidade aparente. - O
contrário seria idiota e doentio.
- Espera. Preciso de prevenir o guarda do Caminho da Felici-
dade por causa das formalidades da praxe. E só um minuto.
Quando chegou ao caminho da Felicidade, o guarda comuni-
cou-lhe que ninguém poderia seguir o caminho asfaltado que
leva à Felicidade Completa sem se sujeitar a um programa bem
óbvio. Primeiro: consentir que lhe cortem a cabeça para não pen-
sar, não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas. Segun-
do e último: trazer nos pés e nas mãos correntes de ouro...
João Sem Medo ouriçou-se numa reacção instintiva:
- Nunca!
- Bem se vê que não tens a cabeça no seu lugar.

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- Não, nunca. Então prefiro o outro caminho.
- Palerma! - lamurinhou o guarda. Vais passar fome e sofrer
dias de terror!
- Deixá-lo. Prefiro tudo a viver sem cabeça. Nem calculas a fal-
ta que ela me faz.
Mas ante uma careta de João Sem Medo apressou-se a afrou-
xar-lhe à cólera esta proposta:
- Ainda tens talvez outra hipótese. Invocar o parágrafo 100 do
artigo 4579 do Regulamento. Isto é: em certos casos especiais,
os cirurgiões, em vez de degolarem os felizardos, sugam-lhes os
cérebros por palhinhas, deixando a casca por fora intacta, para
inglês ver... Oh!, espera, espera! Não te vás embora ainda. Escu-
ta. Também podes requerer a substituição da cabeça. Por uma
melancia, por exemplo. Ou uma bola de futebol que é o enxerto
mais vulgar. Ou uma bolinha de ténis que fica sempre tão bem
nas pessoas finas, elegantes, esbeltas... Espera. Ouve.
Mas João Sem Medo nem lhe respondeu. Já ia longe, passo bem
marcado, orgulhoso de sentir a cabeça nos ombros. E horas de-
pois, quando chegou à clareira, enveredou, decidido, pelo cami-
nho dos cardos e das árvores sinistras, a gritar desafiante para a
floresta:
- Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, tor-
cer-me as orelhas! Mas juro que não hei-de ser infeliz PORQUE
NÃO QUERO.
E João Sem Medo continuou a subir o caminho.

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II
A árvore dos dez braços

- Pois sim, ralem-se! - comentava com desdém, a engolir ge- As margens desviavam-se, mas o rapaz nadava nadava sempre,
midos para que ninguém percebesse que sofria. - Antes ficar sem confiança plena nos seus braços, na força de vontade e no desejo
pés do que sem cabeça. de vencer.
João Sem Medo estava com os olhos inquietos a escarafuncha- - Eh!, alma do diabo, sofre! -instígou-o por fim uma onda a
rem por toda a parte, ávidos de comida. Mas tanto procurou, tan- deitar os bofes de espuma pela boca fora.
to procurou, que conseguiu desencantar, no outro lado da Lagoa Um peixe insurgiu-se com voz mole:
da Lama Verde, um pomar de laranjas e de tangerinas que de -Assim não vale! Vê se acabas com isso. Eu e os meus camara-
longe parecia muito extenso. A distância entre as duas margens das peixes queremos dormir em sossego.Vamos, chora! torna-te
não era grande e João Sem Medo morria de fome. Mas acon- infeliz!
teceu então este fenómeno incrível: à medida que o nadador se - Queres laranjinhas? Ouve a minha sugestão: senta a comé-
aproximava da outra margem, a água aumentava de volume e a dia da dor. Finge que sofres muito, sê hipócrita. Mente. Pede a
lagoa dilatava-se. Por mais esforço que despendesse para fincar esmolinha de uma laranja por amor de Deus. Vá! Não sejas tolo.
as mãos na orla do lago, encontrava água, água unicamente, a Chora.
terra afastava-se. Como única resposta, João Sem Medo fez das tripas coração e
- Bonito! Estou dentro dum lago elástico - descobriu João Sem desatou a cantar à sobreposse. Então, ao som do seu canto, por
Medo, esbaforido. Mas fiel ao seu sistema de persistência enérgi- fora tão vibrante e viril, a fúria das águas amainou. O rugir das
ca não renunciou ao combate. ondas amorteceu lentamente.

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Um murmúrio de desistência soprou pela superfície do lago.
E João Sem Medo, com algumas braçadas vigorosas e seguras,
logrou pôr o pé em terra perto do laranjal carregado de pomos
de ouro.
Claro, correu logo como um doido para a árvore mais próxi-
ma, sôfrego de engolir meia dúzia de laranjas. Mas, num lance
espectacular, os frutos diminuíram rapidamente de volume até
atingirem o tamanho de berlindes e - zás! - com um estoiro des-
pedaçaram-se no ar.
Humilhado, e a contar com nova surpresa desagradável,
abeiou-se de outra laranjeira. Desta vez, porém, as laranjas trans-
formaram-se em cabeças de bonecas doiradas e deitaram-lhe a
língua de fora.
- A partida anterior teve mais graça! - observou João Sem
Medo.
E dirigiu-se para uma tangerineira com a vaga esperança de
apanhar uma tangerina desatenta. Isso sim. Mal o avistaram, os
frutos caíram dos ramos como bolas de borracha e espalharam-
se na paisagem.
Então, numa tentativa suprema, João Sem Medo acercou-se
de outra árvore, sorrateiramente, em bicos de pés. Tudo inútil.
Como se estivessem combinadas, as laranjas e as tangerinas do
pomar desprenderam-se dos troncos, abriram pequeninas asas
azuis e começaram a subir serenamente no céu.
Apesar da fome, João Sem Medo, com os olhos fixos no espec-
táculo maravilhoso das bolas de ouro a voarem, não pude repri-
mir este clamor de entusiasmo, braços erguidos para o Ar:
- Parabéns, Mago. Parabéns e obrigado por este instante, o mais
belo e bem vivido da minha vida. Obrigado.
Mas agora ouve o que te peço: desiste de me perseguir. Con-
vence-te de que, para mim, a Felicidade consiste em resistir com
teimosia a todas as infelicidades. E vai maçar outro. Ouviste? Vai
maçar outro.

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III
A colina de cristal

Palavras não eram ditas, João Sem Medo sentiu de súbito a car-
ne converter-se numa matéria mais áspera e o sangue a correr de
forma diferente nas veias.
Quis fazer um gesto. Impossível. Baixar as mãos. Não pude.
Experimentou dar um passo. Em vão. Era como se o prendes-
sem à terra garras de âncora. Mas só quando um pardal lhe veio
construir o ninho nos braços é que João Sem medo compreendeu
com espanto que estava metamorfoseado em árvore.
- O pior é não poder mexer-me... - meditava João Sem Medo,
fechado naquela solidão terrível de paralítico em que não con-
seguia agitar os braços senão com o auxílio misterioso do vento.
Ainda havia outro facto que o incomodava de modo particular:
o estar nu em pêlo diante do Sol e da Chuva.
- Não percebo porque as árvores e as plantas não usam cerou-
las, camisas, colarinhos altos e peitilhos de goma - monologava
João Sem Medo para entreter as indindáveis noites de Inverno.
- Eu já me contentaria com uma gabardina por causa das cons-
tipações.
Mas o seu desconsolo de viver não provinha apenas desta nu-
dez forçada. Todos os dias fazia descobertas miserandas.
Assim, certa manhã, ao mirar-se por acaso no espelho sujo de
uma poça de água, verificou que os cabelos, há muito com a apa-
rência de folhas, tinham crescido de forma desmesurada.
- Preciso de ir ao cabeleireiro cortar as folhas à escovinha - ra-
malhou, melancólico.
O pior, porém, foi a comichão que o acometeu e por pouco
não enlouquecia.
- Provavelmente apanhei sarampo. Ou bexigas - imaginou logo
João Sem Medo, desesperado por não poder coçar-se.
- Ah!, que remédio senão sofrer com resignação, já que na vizi-
nhança não existe nenhuma árvore doutora.
Nessa mesma semana, João sem medo viu aproximar-se, aos
pulinhos de salta-pocinhas, uma menina de pele muito branca,
olhos verdes-doirados e cabelos cor de mel.

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- Que bela árvore para um baloiço! – pasmou entusiasmada.
E com leveza de pássaro trepou pelo João sem medo acima para
lhe atar duas cordas nas mãos. Daí a nada, a menina baloiçava,
baloiçava, baloiçava, entontecida e contente.
Pouco a pouco João Sem Medo foi-se habituando ao vulto ágil
da menina dos cabelos de sol e prata. De tal sorte, que, quando
ela não vinha, apetecia-lhe secar de desgosto.
Quando chegou ao Outono, a pequena desapareceu. E então,
convencido de que nunca mais receberia novas da menina dos
cabelos de mel, principiou a servir-se do orvalho matinal para
chorar por ela. Até que um dia surgiu na sua frente a visão atar-
racada de um velhinho ombrudo, gorro vermelho, olhar de fogo
e machado às costas que, depois de examinar com atenção a ár-
vore, pensou em voz alta:
- Não há dúvida. É ele. E o João Sem Medo. O rapaz quis acenar
que «sim», que era o João Sem Medo, mas nessa altura nem uma
brisa correu a ajudá-lo.
- Sim. Sou de facto o João Sem Medo encantado pelo Ma-
go-Mor.
Bem sei. Como sei também que ele não quer que voltes à tua
antiga aparência.
- Nunca mais? - lamuriou o infeliz.
- Nunca mais. A não ser que... E susteve-se hesitante.
- A não ser que...? -A não ser que queiras entrar numa combi-
nação comigo... - decidiu-se por fim.
- Pois claro que quero. Ainda duvidas? - anuiu João Sem Medo
no tom mais persuasivo da sua nova voz vegetal.
E calou-se para escutar a proposta do velhinho do gorro ver-
melho.
- Sabes quem eu sou, João Sem Medo?
- Não, velhinho do machado às costas.
- Sou o pai da menina dos cabelos de mel.
- Sim? E que foi feito dela? - indagou o rapaz ansioso de ouvir
notícias da Bem-Querida de tantas manhãs de Primavera.

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- Está de cama, muito doente, prestes a entrar no Palácio da
Colina de Cristal, esse palácio maldito, onde
quem uma vez lá vai,
nunca mais de lã sai

- Respondeu o velho, entristecido. E, com os olhos de dor em


água, explicou:
- Como sabes, todos os homens, mais cedo ou mais tarde, vão
para esse Palácio.
- Mas que posso eu fazer para evitar essa fatalidade? - interro-
gou João Sem Medo, a deixar cair folhas secas no chão (sinal de
as árvores chorarem).
- Que troques o destino com ela e vás para a Colina de Cristal
- propôs o homenzinho do gorro. João Sem Medo acedeu logo
entusiasmado.
- Estou às tuas ordens, velhinho.

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IV
O gramofone com asas

O fardo das saudades da mãe no coração e talvez a formular


o desejo impreciso de voltar para Chora-Que-Logo-Bebes, João
Sem Medo adormeceu com serenidade de respiração bem ritma-
da. Quando despertou soergueu-se no leito, estarrecido com o
objecto que entrara pela janela do quarto durante o sono e estava
ali na sua frente, à espera. Nada menos nada mais do que um
Gramofone. com asas. Um desses gramofones antigos, composto
de uma caixa quadrada de madeira forrada de pele e a respectiva
manivela ao lado. A mais, apenas um par de asas de papagaio - a
ave de cabeça vazia que palra como os homens.
- Que diabo faz isto aqui? - estranhou João Sem Medo, a vestir-
se à lufa-lufa.
Neste meio-tempo a tampa abriu-se, o prato começou a girar,
a agulha rodou pelos sulcos do disco e João Sem Medo ouviu o
Gramofone dizer-lhe:
- Se queres regressar a Chora-Que-Logo-Bebes, senta-te em
cima de mim e ála!
- Um gramofone! Mandaram-me um gramofone! Esta não
lembrava ao Diabo! Então o Mago-Mor, ou lá quem é, não tinha
ao menos um aeroplano para me emprestar?
O Gramofone moveu o disco e respondeu, fanhoso:
- Que queres? Faço parte dos objectos mágicos de invenção
recente. Além de mim existem o Telefone Gago a Mordaça para
bocas invisíveis, a máquina de escrever para Fantasmas analfabe-
tos, o espartilho de espectros Gordos, o ferro de engomar mila-
groso, etc, etc.
João Sem Medo alçou os ombros:
- Cá por mim não me importa. Mas as avós, coitadinhas! - é
que se vão ver às aranhas quando lhes pedirem a história do Fo-
gareiro do Chapéu de Coco!
E resignado a correr mais aquela aventura condescendeu:
- Bem ... Pára o disco e fecha a tampa para eu me sentar. Mas
o senhor Gramofone hesitou em obedecer:
- Quero pedir-te um favor , João sem Medo.

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- Diz lá o que queres.
- Se não te incomodasse muito, em lugar de partir-mos direc-
tamente para Chora-Que-Logo-Bebes, visitaríamos primeiro a
minha terra.
Passado algum tempo aterraram num estranho país de pai-
sagem mecânica e atmosfera musical, onde nas árvores, ou nas
hastes de ferro a que davam esse nome balançavam pequeninas
placas redondas, a fingirem de folhas, de que se soltavam ruídos
de brisas... No ar, em vez de passarinhos a cantarem nos ramos,
ouvia -se discos com gravações de rouxinóis e de melros.
E pelo solo desses bosques extraordinários alongavam-se qui-
lómetros e quilómetros de flores em que se destacam as moitas
de campânulas de gramofones primitivos de inúmeros tama-
nhos, feitios e cores. Por toda a parte silvavam roldanas, correias,
discos de cera, manivelas pratos de metal rutilante...
Na capital, os prédios pareciam enormes caixas foradas de peles
que se diferenciavam conforme a riqueza e o gosto dos proprie-
tários e inquilinos. Somente os bairros económicos, para discos
riscados e em segunda mão, quebravam a monotonia da arqui-
tectura geral com extensas prateleiras de armazéns gigantescos.
Mas o que mais impressionou João Sem Medo foi o vaivém
palrador dos habitantes com cabeças de disco, corpos de madei-
ra, braços rematados por mãos de diafragmas, perninhas de pa-
pagaio...
Nessa meia hora de espionagem, o nosso João Sem Medo só
ouviu discutir o tempo, as criadas e as modas, sempre com as
mesmas palavras, as frases infalíveis e os eternos lugares-comuns.
- A maioria das pessoas já nem pensa! - filosofou o rapaz. - Fala.
Isto é: limita-se a pôr o aparelho em acção , a acertar a agulha no
sulco respectivo e a deixar tocar o Disco... Sempre igual, aliás.
Falavam, falavam, durante horas sem fim nem descanso e,
quando pressentiam falta de corda, dirigiam-se ao transeunte
mais próximo com uma vénia de cortês:
- Vossa excelência quer ter a bondade de me dar à manivela?
Bastam duas voltas.

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V
O regresso

Quando chegou junto do muro gigante para regressar a casa


deparou-se com uma pedra com cabelos de musgo, uma enorme
cabeça de granito com órbitas inregulares, nariz esboroado, bar-
bicha de líquenes...
E não se demorou a retomar as funções burocráticas impostas
pela presença de João Sem Medo:
- Queres atravessar o Muro, não é verdade? Então avia-te e
mostra-me o passaporte. Sim, o passaporte...os competentes ca-
rimbos bem à vista, claro. Quê? Não tens passaporte? Nem ca-
rimbos? Pois tem paciência, meu filho! Por esta fronteira não
passa ninguém sem a dose legal de carimbos. Volta para trás pelo
mesmo caminho...
- E se eu apelasse? - disse João Sem Medo.
- Para o meu bom coração de pedra, não? - inferiu o Guardião
hirto. - Inútil, meu caro. Por aqui não passa ninguém sem apre-
sentar o respectivo passaporte em regra. Isto é: com os 77 carim-
bos da praxe bem visíveis. Aliás custa-me a crer que haja alguém
capaz de trocar este éden. Donde és tu?...
- De Chora-Que-Logo-Bebes
O Guardião extraiu da boca dois ou três sons de pedra britada
a fingirem de riso:
- D e Chora-Que-Logo-Bebes? A aldeia dos choramingas?... A
terra onde as pessoas de tanto chorarem trazem musgo nos olhos
e verdete na boca?... Que vais fazer para lá?
João Sem Medo encolheu os ombros, hesitante:
- Que sei eu?... A verdade é que nestas minhas andanças desco-
bri que, tanto no mundo da Imaginação Mágica (este que tu de-
fendes de carimbo em punho) como em Chora-Que-Logo-Bebes
impera a mesma Lei tremenda que se pode resumir numa destas
palavras à escolha do freguês: Maçada, Repetição, Monotonia,
Chatice... Com uma diferença, claro. E que em Chora-Que-Lo-
go-Bebes sofre-se mais. Ou pior ainda: sofre-se menos. Porque
lá a pseudodor é tão pífia, tão pilha, tão vil, tão rasca que até se
ignora qual a dor verdadeira.
- Que vais fazer então a essa terra, tão seca por dentro e tão
húmida por fora, autêntica fábrica de constipações morais?

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- Bem…Os homens nunca se contentam... E eu a falar fran-
co, fartei-me deste Imprevisto-Anárquico do Sonho em que
vivi e agora apetece-me voltar a provar aquilo a que chamamos
Realidade... Além disso... Ouve: vou dizer-te um segredo... mas
promete-me que não o revelas a ninguém…Prometes? …Na
verdade, o fito principal do meu regresso talvez seja o de tentar
revolucionar Chora-Que-Logo-Bebes... endireitar as espinhas
dorsais das pessoas... secar as lamentações covardes dos chora-
quelogobebenses... pregar a reorganização viril da vida em novas
bases... Mas, a par disto, porque não hei-de também confessar
que me assaltaram saudades terríveis de...
- De quê?...
- De... Não sei se me atreverei a dizer-te... E gaguejou com pu-
dor envergonhado:
- Saudades terríveis de... Nem calculas de quê. Dessa coisa
grosseira que se chama bacalhau com batatas... Duma boa baca-
lhauzada com grelos... Imagina!.Ah! meu amigo...
Então, tocado porventura pelo acento sincero da argumenta-
ção de João Sem Medo, o Guardado do Muro vacilou, demovido:
- Bem… O máximo que eu posso fazer é ir consultar os meus
superiores sobre o caminho a seguir a teu respeito. Se me permi-
tes, vou num instantinho falar com eles.
- Demoras-te muito?
- Não... Para me deslocar não preciso de me deslocar, como
verás. Até já. E o Guardião partiu. Ou mais concretamente imo-
bilizou-se, virou os olhos para dentro e, durante um quarto de
hora, não se mexeu, ausente.
- Pronto. Já está - clamou o Guardião ansioso de se livrar da-
queles torniquetes implacáveis. Por sua vez João Sem Medo, azo-
ratado do percurso:
- Só se me dividissem em dois... - propôs, à laia de sugestão
inaceitável, João Sem Medo.
- Exactamente. Só se te dividíssemos em dois. Para um deles
permanecer neste lado e o outro no lado de lá. Continuando ape-
nas a ser um, claro.

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- Claro!... De modo que o eu-outro formasse um eu-uno abso-
luto... - divertiu-se João Sem Medo com propósitos de caricatura
metafísica.
- Sim, sim...O tu-ele-uno
E sem ironia:
- Olha para o espelho.
João Sem Medo nem discutiu a ordem - olhos imediatamente-
fixos no Cristal de Água em frente.
- Agora prepara-te para assistires ao acontecimento capital da
tua vida - preveniu-o o Guardião de granito.
- A tua imagem vai sair do espelho e andar, falar, pensar...
- De carne e osso como eu?
- Sim... Como tu, mas outro...
- Continuarei ao menos a não ter medo?... - arfou com deses-
pero de resignação.
- Sim. Continuarás a fingir que não tens medo.
- Mas isso pode dar azo a confusões tremendas - insistiu preo-
cupado. - Daqui a pouco ninguém me diferenciará de mim mes-
mo.
- Que importa se cada um de ti viverá num mundo diferente?
- Mas quem vai para Chora-Que-Logo-Bebes?... Quem vai
para o rico bacalhau? Eu ou o outro?
- Já te repeti mil vezes que tanto faz, pois ambos são um, ape-
nas um, em instinto e em paladar...
João Sem Medo decidiu então entregar-se definitivamente ao
destino e fitar o espelho - enquanto a voz fria do Homem de Pe-
dra comandava:
- João Sem Medo n.° 2: salta cá para fora!
Logo de seguida, vinda do fundo do sonho até se transformar
em carne e osso, a imagem do espelho obedeceu e pulou para a
terra do mundo.
- Ah! Que bom respirar! - exclamou com volúpia de descobrir
o sentido da vida no ritmo do ar a entrar-lhe no peito.
E estendeu a mão a João Sem Medo n.° 1 que a apertou o gosto
de sentir a própria pele e ouvir a sua voz na boca alheia (como se
falasse sozinho).

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Mas ouve: nessa história do eu-ele-uno não existirão diferenças
entre o eu e o ele resultantes da própria unidade perfeita da
sombra-luz?

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Colófon

Título: O Livro Imaginado


Realização Editorial: Beatriz Pereira
Textos: O livro “Aventuras de João Sem Medo”
de José Gomes Ferreira
Ilustrações: Beatriz Pereira
Paginação: Beatriz Pereira
Impressão: Faculdade de Belas-Artes de Lisboa

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