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Capitalismo e Cristianismo

por Olavo de Carvalho. Artigo publicado originalmente na revista República – edição de


dezembro de 1998.

Uma tolice notável que circula de boca em boca contra os males do capitalismo é a
identificação do capitalista moderno com o usurário medieval, que enriquecia com o
empobrecimento alheio.

Lugar-comum da retórica socialista, essa ideiazinha foi no entanto criação autêntica daquela
entidade que, para o guru supremo Antonio Gramsci, era a inimiga número um da revolução
proletária: a Igreja Católica.

Desde o século XVIII, e com freqüência obsessivamente crescente ao longo do século XIX,
isto é, em plena Revolução Industrial, os papas não cessam de verberar o liberalismo
econômico como um regime fundado no egoísmo de poucos que ganham com a miséria de
muitos.

Mas que os ricos se tornem mais ricos à custa de empobrecer os pobres é coisa que só é
possível no quadro de uma economia estática, onde uma quantidade mais ou menos fixa de
bens e serviços tem de ser dividida como um bolo de aniversário que, uma vez saído do forno,
não cresce mais. Numa tribo de índios pescadores do Alto Xingu, a “concentração do capital”
eqüivaleria a um índio tomar para si a maior parte dos peixes, seja na intenção de consumi-
los, seja na de emprestá-los a juros, um peixe em troca de dois ou três. Nessas condições,
quanto menos peixes sobrassem para os outros cidadãos da taba, mais estes pobres infelizes
ficariam devendo ao maldito capitalista índio — o homem de tanga que deixa os outros na
tanga.

Foi com base numa analogia desse tipo que no século XIII Sto. Tomás, com razão, condenou
os juros como uma tentativa de ganhar algo em troca de coisa nenhuma. Numa economia
estática como a ordem feudal, ou mais ainda na sociedade escravista do tempo de Aristóteles,
o dinheiro, de fato, não funciona como força produtiva, mas apenas como um atestado de
direito a uma certa quantidade genérica de bens que, se vão para o bolso de um, saem do
bolso de outro. Aí a concentração de dinheiro nas mãos do usurário só serve mesmo para lhe
dar meios cada vez mais eficazes de sacanear o próximo.

Mas pelo menos do século XVIII em diante, e sobretudo no XIX, o mundo europeu já vivia
numa economia em desenvolvimento acelerado, onde a função do dinheiro tinha mudado
radicalmente sem que algum papa desse o menor sinal de percebê-lo. No novo quadro,
ninguém podia acumular dinheiro embaixo da cama para acariciá-lo de madrugada entre
delíquios de perversão fetichista, mas tinha de apostá-lo rapidamente no crescimento geral da
economia antes que a inflação o transformasse em pó. Se cometesse a asneira de investi-lo no
empobrecimento de quem quer que fosse, estaria investindo na sua própria falência.

Sto. Tomás, sempre maravilhosamente sensato, havia distinguido entre o investimento e o


empréstimo, dizendo que o lucro só era lícito no primeiro caso, porque implicava participação
no negócio, com risco de perda, enquanto o emprestador, que se limitava sentar-se e esperar
com segurança, só deveria ter o direito à restituição da quantia emprestada, nem um tostão a
mais. Na economia do século XIII, isso era o óbvio — aquele tipo de coisa que todo mundo
enxerga depois que um sábio mostrou que ela existe. Mas, no quadro da economia capitalista,
mesmo o puro empréstimo sem risco aparente já não funcionava como antes — só que nem
mesmo os banqueiros, que viviam essa mudança no seu dia a dia e aliás viviam dela, foram
capazes de explicar ao mundo em que é que ela consistia. Eles notavam, na prática, que os
empréstimos a juros eram úteis e imprescindíveis ao desenvolvimento da economia, que
portanto deviam ser alguma coisa de bom. Mas, não sabendo formular teoricamente a
diferença entre essa prática e a do usurário medieval, só podiam enxergar-se a si próprios
como usurários, condenados portanto pela moral católica. A incapacidade de conciliar o bem
moral e a utilidade prática tornou-se aí o vício profissional do capitalista, contaminando de
dualismo toda a ideologia liberal (até hoje todo argumento em favor do capitalismo soa como
a admoestação do adulto realista e frio contra o idealismo quixotesco da juventude). Karl
Marx procurou explicar o dualismo liberal pelo fato de que o capitalista ficava no escritório,
entre números e abstrações, longe das máquinas e da matéria — como se fazer força física
ajudasse a solucionar uma contradição lógica, e aliás como se o próprio Karl Marx houvesse
um dia carregado algum instrumento de trabalho mais pesado que uma caneta ou um charuto.
Mais recentemente, o nosso Roberto Mangabeira Unger, o esquerdista mais inteligente do
planeta, e que só não é plenamente inteligente porque continua esquerdista, fez uma crítica
arrasadora da ideologia liberal com base na análise do dualismo ético (e cognitivo, como se vê
em Kant) que é a raiz da esquizofrenia contemporânea.

Mas esse dualismo não era nada de inerente ao capitalismo enquanto tal, e sim o resultado do
conflito entre as exigências da nova economia e uma regra moral cristã criada para uma
economia que já não existia mais. O único sujeito que entendeu e teorizou o que estava
acontecendo foi um cidadão sem qualquer autoridade religiosa ou prestígio na Igreja: o
economista austríaco Eugen Böhm-Bawerk. Este gênio mal reconhecido notou que, no quadro
do capitalismo em crescimento, a remuneração dos empréstimos não era apenas uma
conveniência prática amoral, mas uma exigência moral legítima. Ao emprestar, o banqueiro
simplesmente trocava dinheiro efetivo, equivalente a uma quota calculável de bens na data do
empréstimo, por um dinheiro futuro que, numa economia em mudança, podia valer mais ou
valer menos na data da restituição. Do ponto de vista funcional, já não existia mais, portanto,
diferença positiva entre o empréstimo e o investimento de risco. Daí que a remuneração fosse
tão justa no primeiro caso como o era no segundo. Tanto mais justa na medida mesma em que
o liberalismo político, banindo a velha penalidade da prisão por dívidas, deixava o banqueiro
sem a máxima ferramenta de extorsão dos antigos usurários.

Um discípulo de Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, explicou mais detalhadamente essa


diferença pela intervenção do fator tempo na relação econômica: o emprestador troca dinheiro
atual por dinheiro potencial, e pode fazê-lo justamente porque, tendo concentrado capital, está
capacitado a adiar o gasto desse dinheiro, que o prestamista por seu lado necessita gastar
imediatamente para tocar em frente o seu negócio ou sua vida pessoal. Von Mises foi talvez o
economista mais filosófico que já existiu, mas, ainda um pouco embromado por uns resíduos
kantianos, nem por um instante pareceu se dar conta de que estava raciocinando em termos
rigorosamente aristotélico-escolásticos: o direito à remuneração provém de que o banqueiro
não troca simplesmente uma riqueza por outra, mas troca riqueza em ato por riqueza em
potência, o que seria rematada loucura se o sistema bancário, no seu conjunto, não estivesse
apostando no crescimento geral da economia e sim apenas no enriquecimento da classe dos
banqueiros. A concentração do capital para financiar operações bancárias não é portanto um
malefício que só pode produzir algo de bom se for submetido a “finalidades sociais” externas
(e em nome delas policiado), mas é, em si e por si, finalidade socialmente útil e moralmente
legítima. Sto. Tomás, se lesse esse argumento, não teria o que objetar e certamente veria nele
um bom motivo para a reintegração plena e sem reservas do capitalismo moderno na moral
católica. Mas Sto. Tomás já estava no céu e, no Vaticano terrestre, ninguém deu sinal de ter
lido Böhm-Bawerk ou Von Mises até hoje. Daí a contradição grosseira das doutrinas sociais
da Igreja, que, celebrando da boca para fora a livre iniciativa em matéria econômica,
continuam a condenar o capitalismo liberal como um regime baseado no individualismo
egoísta, e terminam por favorecer o socialismo, que agradece essa colaboração instituindo, tão
logo chega ao poder, a perseguição e a matança sistemática de cristãos, isto é, aquilo que o
Dr. Leonardo Boff, referido-se particularmente a Cuba, denominou “o Reino de Deus na
Terra”. Daí, também, que o capitalista financeiro (e mesmo, por contaminação, o industrial),
se ainda tinha algo de cristão, continuasse a padecer de uma falsa consciência culpada da qual
só podia encontrar alívio mediante a adesão à artificiosa ideologia protestante da “ascese
mundana” (juntar dinheiro para ir para o céu), que ninguém pode levar a sério literalmente, ou
mediante o expediente ainda mais postiço de fazer majestosas doações em dinheiro aos
demagogos socialistas, que, embora sejam ateus ou no máximo deístas, sabem se utilizar
eficazmente da moral católica como instrumento de chantagem psicológica, e ainda são
ajudados nisto — porca miséria! — pela letra e pelo espírito de várias encíclicas papais.

Uma das causas que produziram o trágico erro católico na avaliação do capitalismo do século
XIX foi o trauma da Revolução Francesa, que, roubando e vendendo a preço vil os bens da
Igreja, enriqueceu do dia para a noite milhares de arrivistas infames e vorazes, que
instauraram o império da amoralidade cínica, o capitalismo selvagem tão bem descrito na
obra de Honoré de Balzac. Que isso tenha se passado logo na França, “filha dileta da Igreja”,
marcou profundamente a visão católica do capitalismo moderno como sinônimo de egoísmo
anticristão. Mas seria o saque revolucionário o procedimento capitalista por excelência? Se o
fosse, a França teria evoluído para o liberal-capitalismo e não para o regime de
intervencionismo estatal paralisante que a deixou para sempre atrás da Inglaterra e dos
Estados Unidos na corrida para a modernidade. Um governo autoritário que mete a pata sobre
as propriedades de seus adversários para distribuí-las a seus apaniguados, é tudo, menos
liberal-capitalista: é, já, o progressismo intervencionista, no qual, por suprema ironia, a Igreja
busca ainda hoje enxergar um remédio contra os supostos males do liberal-capitalismo, que
por seu lado, onde veio a existir — Inglaterra e Estados Unidos —, nunca fez mal algum a ela
e somente a ajudou, inclusive na hora negra da perseguição e do martírio que ela sofreu nas
mãos dos comunistas e de outros progressistas estatizantes, como os revolucionários do
México que inauguraram nas Américas a temporada de caça aos padres. O caso francês, se
algo prova, é que o “capitalismo selvagem” floresce à sombra do intervencionismo estatal, e
não do regime liberal (coisa aliás arquiprovada, de novo, pelo cartorialismo brasileiro).
Insistindo em dizer o contrário, movida pela aplicação extemporânea de um princípio tomista
e vendo no estatismo francês o liberal-capitalismo que era o seu inverso, a Igreja fez como
essas mocinhas de filmes de suspense, que, fugindo do bandido, pedem carona a um
caminhão… dirigido pelo próprio. A incapacidade de discernir amigos e inimigos, o
desespero que leva o pecador a buscar o auxílio espiritual de Satanás, são marcas
inconfundíveis de burrice moral, intolerável na instituição que o próprio Cristo designou Mãe
e Mestra da humanidade. Errare humanum est, perseverare diabolicum: a obstinação da
Igreja em suas reservas contra o liberal-capitalismo e em sua conseqüente cumplicidade com
o socialismo é talvez o caso mais prolongado de cegueira coletiva já notado ao longo de toda
a História humana. E quando em pleno século XIX o papa já assediado de contestações dentro
da Igreja mesma proclama sua própria infalibilidade em matéria de moral e doutrina, isto não
deixa de ser talvez uma compensação psicológica inconsciente para a sua renitente
falibilidade em matéria econômica e política. Daí até o “pacto de Metz”, em que a Igreja se
ajoelhou aos pés do comunismo sem nada lhe exigir em troca, foi apenas um passo. Ao
confessar que, com o último Concílio, “a fumaça de Satanás entrara pelas janelas do
Vaticano”, o papa Paulo VI esqueceu de observar que isso só podia ter acontecido porque
alguém, de dentro, deixara as janelas abertas.

Que uma falsa dúvida moral paralise e escandalize as consciências, introduzindo nelas a
contradição aparentemente insolúvel entre a utilidade prática e o bem moral, e, no meio da
desorientação resultante, acabe por levar enfim a própria Igreja a tornar-se cúmplice do mais
assassino e anticristão dos regimes já inventados —eis aí uma prestidigitação tão
inconfundivelmente diabólica, que é de espantar que ninguém, na Igreja, tenha percebido a
urgência de resolver essa contradição no interior mesmo da sua equação lógica, como o
fizeram Böhm-Bawerk e von Mises (cientistas alheios a toda preocupação religiosa). Mais
espantoso ainda é que em vez disso todos os intelectuais católicos, papas inclusive, tenham se
contentado com arranjos exteriores meramente verbais, que acabaram por deixar no ar uma
sugestão satânica de que o socialismo, mesmo construído à custa do massacre de dezenas de
milhões de cristãos, é no fundo mais cristão que o capitalismo.

Não há alma cristã que possa resistir a um paradoxo desse tamanho sem ter sua fé abalada.
Ele foi e é a maior causa de apostasias, o maior escândalo e pedra de tropeço já colocado no
caminho da salvação ao longo de toda a história da Igreja.

Arrancar da nossa alma essa sugestão hipnótica, restaurar a consciência de que o capitalismo,
com todos os seus inconvenientes e fora de toda intervenção estatal pretensamente corretiva, é
em si e por essência mais cristão que o mais lindinho dos socialismos, eis o dever número um
dos intelectuais liberais que não queiram colaborar com o farsesco monopólio esquerdista da
moralidade, trocando sua alma pelo prato de lentilhas da eficiência amoral.

Leia mais Olavo de Carvalho em:


www.olavodecarvalho.org

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