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(CUNHA, Olívia Maria Gomes Da) Do Ponto de Vista de Quem Diálogos, Olhares e Etnografias Dosnos Arquivos
(CUNHA, Olívia Maria Gomes Da) Do Ponto de Vista de Quem Diálogos, Olhares e Etnografias Dosnos Arquivos
No/a: Este ensaio constitui versão simplificada de capÍlulo de livro em preparação. A realização da pesquisa
sobre a constituição de um campo dedicado â "antropologia afro-americana" nos anos 1930 e 40, da qual este
texto é pane, foi financiada pela Simoll Guggenheim Memorial Foundation e pelo CNPq, cujo apoio foi fun
damental em LOdas as fases do trabalho em arquivos e de campo. Gostaria de agradecer a [Odas os
profissionais de arquivo e instiruições que malllêm os acervos aqui citados, cujo apoio e estimulo foram
fundamentais na materialização da pesquisa. Em particular, aJohn Homiak e aos National Anthropological
Archi"es (Smithsonian Inslitution), aos curadores e ao arquivista dos Archivcs ofTraditional Music (Indi
ana Univcrsity). da Africana Collcclion c d05 Norlhwcslcrn Univcrsity Archi\'cs (Northweslcrn Un ivcr
sity).
Olivia Maria Gomcsda Cunhaé profcssoraadiunrodo Deparramento de Amropologia Cultural da UFRJ.
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estudos ltistór;cos - 2005 - 36
questões. Entre elas, aquela que diz respeito às relações de conhecimento que po
dem ser estabelecidas diante de uma experiência etnográfica compartilhada de
forma distinta. Ver imagens e ouvir vozes de um tempo distante e, a partir delas,
produzir narrativas, memórias sobre fatos, pessoas, coisas, situações e lugares
próximos. O caráter relativo das noções de tempo e distância nâo é meramente
retórico. As imagens e vozes às quais me refiro testemunham encontros etnográ
ficas sobre os quais foram produzidas variadas descrições e interpretações auto
rizadas em livros e artigos. Ainda assim, por evocarem relações de conhecimento
num contexto histórico e cultural tão emblemático para a constituiçâo dos sabe
res antropológicos, tanto no Brasil quan to alhures, todos nós, iniciados ou não,
podemos relletir sobre elas evocando questões do presente. Mas a produçâo de
uma memória a panir desses registros é uma operação mais complexa e limitada.
Pode tanto reinscrever e reproduzir fatos, pessoas, coisas e lugares numa ouu'a car
tografia quanto alterar radicalmente o nosso olhar informado por narrativas consa
gradas e autorizadas. Sob o risco de essas primeiras idéias parecerem um tanto enig
máticas, vou situar o contexto' no qual essa rellexão se mostra produtiva.
Há cerca de quatro anos, ao iniciar uma pesquisa em arquivos etnográfi
cos sobre a constituição da chamada antropologia das populações afro-america
nas nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil nos anos 1930, me deparei com dois
conjuntos documentais distintos que, por caminhos diversos, me colocaram di
ante de novos desafios quanto à possibilidade de combinar pesquisa de campo e
pesquisa em arquivos. Não só a natureza do que os usuários dos arquivo cha
mam de "documento", mas também os contextos de sua produção e os invólu
cros institucionais que os protegem, preservam e autorizam, indicavam questões
a serem enfrentadas. Pensar o arquivo e, em particular, os chamados arquivos et
nográficos como um campo entrecortado por intervenções de natureza e tempo
ralidade distintas me levou então a relletir sobre a produçao do conhecimento et
nográfico, tradicionalmente visto como diverso e mesmo oposto àquele que re
sulta da pesquisa documental . Os usos, arranjos, classificações e indexações que
emolduravam os documentos preservados em arquivos - o t-rabalho de "dar sen
tido" à lógica aparentemente subjetiva ou confusa do colecionador e do arquivis
ta - indicavam muiro mais do que diferentes práticas de atribuição de valor. Si
nalizavam uma forma particular de subsumir temporalidades diversas, por vezes
condensadas num mesmo indicador cronológico e biográfico. O "tempo que cria
objetos" - nas palavras de Johanes Fabian (2002) - visro do arquivo, não era ilu
,
8
Do pOllto de )J;stn de quem?
masse.
Imaginar? Mas a qual imagi/lação nos referimos quando estamos diante
de textos, imagens e sons que são apenas uma parte - quem sabe residual - de
uma experiência etnográfica transformada em objero de nossa atenção) A do et
nógrafo ou a dos seus intérpretes póstumos - "caçadores de relíquias", na provo-
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cação de Sally e Richard Price (2003)? Mais desconcertantes ainda são nossas
tentativas de enxergar um sujeito construído e congelado pelo texto e pela ima
gem produzidos pelo etnógrafo. Um primeiro passo em direção ao enfrentamen
to dessas questões foi me desvencilhar do que Fabian (1983 : 167) chamou de "re
alismo ingênuo" ou "ilusão positivista" - a crença em que textos e objetos histó
ricos representam o mundo e as suas inter-relações. Num segundo momento,
tais impasses no meu contato com esses registros se transformaram numa per
gunta: afinal, para que servem, se a experiência etnográfica é sobretudo uma re
lação e, como tal, uma vez limitada pelas vicissitudes do seu contexto, do presen
te e dos sujeitos envolvidos, não se presta a ser reproduzida sob a forma de uma
fonte de uso historiográfico?
Falei de limitações, e foram elas que me direcionaram parafom dos ar
quivos, na esperança de que partilhar um contato diverso com alguns de seus ar
tefatos pudesse instaurar um outro conhecimento sobre o passado. As firas de
Turner reprod uzem, em grande parte, entrevistas, canções e orações em yorubá e
inglês: sua audição e consumo exigem ouvintes especializados e autorizados. As
fotOgrafias de Landes, por seu turno, por permitirem a instauração de um diálo
go sobre o que a imagem revela, esconde, reduz, deforma e torna sensível, possi
bilitam uma experiência diversa. Mesmo que por caminhos diferenciados, a pro
dução da memória como experiência eminentemente visual podia ser partilha
da.
Ao contrário dos diários de Landes, cuja trasladação para a etnografia foi
possível, as imagens não foram objetO de um uso sistemático por parte da antro
póloga. Embora tenha pretendido publicá-las ainda quando da primeira edição
de Cityofwomell, seu lugar na etnografia é aparentemente residual. Landes não
parece ter pretendido dar às fotos ou à sua leitura um tratamemo especial, e sim
um uso meramente ilustrativo, de complemento marcado por um tipo de "realis
mo emográfico" inexistente no livro. Ao mesmo tempo, as fotos parecem docu
mentar eventos descritos na etnografia - dias, festas e encontros. A ausência de
cenrralidade ou tratamento especial oferecia algumas possibilidades de análise e
uso do material fotográfico: permitiu-me sair do arquivo e imaginar a experiência
emográfica de Landes, partilhando a interlocução e o diálogo com outros atores.
Quanto às "vozes" exumadas da coleção de Turner, sua posição parecia
inversa. As enrrevistas, as cantigas, as aulas de português no Flamengo, as rodas
de capoeira, as antigas canções foram, em maior ou menor grau, os documentos
emográficos com os quais rrabalhou. Foram coletados, transcritos e traduzidos,
figurando como fontes de seus escritos e provas incontestes da sobrevivência de
línguas africana entre os descendente de africanos no Novo Mundo. Turner
não escreveu sobre seus encontros e muito pouco nos informou sobre os donos
das vozes congeladas entre seus papéis. Ainda assim, variados registros sonoros
lO
Do pOllto tle vista tle q1lell/?
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trajetórias heróicas marcadas por sucessivas conquistas, nas quais, por vezes,
cerros personagens são "retirados do armário" e transformados em ícones do
panreão de outras e novas comunidades intelecruais.
São muitos os motivos que levam determinados conjunros de documen
ros pessoais e profissionais a se dividirem em coleções distinras abrigadas em
instituições com perfis diversos. Todavia, uma dimensão política parece sempre
constituir a dinâmica desses trânsitos, traslados e seccionamenros. Por serem
registros consagrados da "história", os acervos documenrais, transformados em
arquivos ou coleções, são elemenros cobiçados de políticas de represenração con
temporâneas à sua "institucionalização" e posteriores ao seu processo de cons-
o
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Do pOli to de I,jsta de quell/?
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virs - elos de ligação, avenidas lineares e outros atalhos entre as "culturas negras
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Do IJOIIIO de vista de que m ?
flexão mais ampla sobre minha experiência me levou a Salvador em junho e ju
lho de 2003. Mas esse não foi um caminho natural entre as inúmeras possibilida
des de uso do material que eu conhecera e observara nos arquivos. Esse movi
mento resultou de inúmeras indagações acerca das limitações e alrernativas pos
síveis de leitura do material neles contido. Questionei minha própria capacidade
de descrever e interpretar aquilo que vi e ouvi. Foi quando imaginei que descen
dentes religiosos e biológicos retratados por Landes e Carneiro seriam capazes
de fazer uma leirura singular tanto das imagens produzidas pelos antropólogos
quanto das "vozes" coleta das por Turner.
Mas como seria possível util izar determinados artefatos, transformados
em "documentos" e mantidos em arquivos particulares, como "fonte", "texto" e
pretexto para um encontro emográfico? Seria possível experimentar um tipo
particular de diálogo, relação e encontro emográfico a partir de práticas suposta
mente limitadas aos pesquisadores de arquivos, tais como "ler documentos",
"ver imagens" e "ouvir sons/vozes"? Isto é, seriam possíveis encontros projeta
dos e sugeridos por questões, textos e diálogos produzidos por outrem num con
texto igualmente emográfico? Como compartilhar a experiência solitária e, por
vezes, autoritária de ler, decifrar e interpretar o que se abriga nos arquivos? Até
que pOntO registros sobre o presente emográfico de ou trem, transformados pelos
regimes de verdade próprios dos arquivos, poderiam "fazer sentido" e incitar a
produção de novas narrativas, não só sobre o passado convertido em "documen-
. to", mas também sobre o presente tornado relevante e sujeito a novas leituras e
encontros?
Inspiradas por esses questionamentos, o que se segue são reflexões pro
visórias sobre as ambigüidades e tensões derivadas da experiência emográfica vi
venciada num campo igualmente marcado pelos encontros e relações diversas de
conhecimento: o arquivo.
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rativos, as impressões de viagem, dos hotéis, das pessoas, das dificuldades com o
português e a troca de informações relacionadas ao desenvolvimento das pesqui
sas de cada um constituem fontes importantes para a compreensão do contexto e
das condições em que as gravações de Turner foram produzidas. Em carta a
Herskovits, Turner mostr�va-se contente com o modo como a experiência brasi
leira transformara seu amigo Frazier: "Depois de passar quatro meses na Bahia,
não está mais em dúvida sobre sobrevivências africanas na cultura do Novo
Mundo. De agora em diante ele vai observar o negro norte-americano com ou
tros olhos. Essa viagem ao Brasil foi de fato uma revelação para ele" IO
Uma das primeiras providências de Turner ao chegar ao país foi familia
rizar-se com o português. Em suas cartas iniciais a Frazier reconhecia sua grande
dificuldade com a língua, "diferente do português europeu". Investiu em aulas
de português e gravou reuniões e festas com Mário de Andrade e outros intelec
tuais brasileiros. Entrou em contato com a Biblioteca Pública de São Paulo e
com a pesquisadora Oneida Alvarenga para obter discos e gravações de folclore e
festas brasileiras. Ainda que tenha registrado maneiras diversas de falar o portu
guês, sua preocupação central eram as "sobrevivências africanas no português fa
lado no Brasil". Assim, é em Salvador que de fato inicia suas investigações, utili
zando um moderno equipamento de gravação. Turner chega a Salvador em 8 de
outubro de 1 940 e, em fevereiro de 1 941, escreve a Herskovits:
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Entre eles, Martiniano do Bonfim, Edison Carneiro, Arsênio Cruz, e outros não
menos importantes que tiveram sua identidade alterada na narrativa de Landes.
A central idade desses pers.onagens no conjunto de fotos sobre Salvador é eviden
te e, ao mesmo tempo, só pode ser compreendida como ilustração- apêndice ico
nográfico do livro. Esse fato reforça a possibilidade de o processamento das có
pias em papel, sua disposição, legendas e seleção terem sido realizados ao longo
da escrita de sua etnografia. Por outro lado, um arquivo fotográfico - por mais
que os arquivistas busquem mantê-lo preservado da tentativa de consulentes de
manuseá-lo - está sujeito à confusão, ao embaralhamento e ao reordenamento da
temporal idade aparentemente caótica das fontes.
No meu primeiro contato com a coleção de fotos, em 2000, percebi que
os pequenos pedaços de papel inseridos nos invólucros plásticos continham ano
tações de mês e ano feitas por Landes. Contudo, cópias de fotos identificadas em
determinados conjuntos reaparecem em outras seqüências de fotografias inde
xadas com outra datação. As duplicatas eram freqüentes e estavam por toda par
te, indicando a possibilidade de a organização das fotos não ter sido feita por
Landes. Num segundo momento, já de posse de uma cópia da coleção fotográfica
armazenada em formato digital num CD-ROM produzido por técnicos da
Smithsonian Institution, percebi que havia uma organização cronológica atra
vés da qual Landes ou o arquivista responsável pela disposição/indexação das fo
toS colocava em relevo uma concepção do tempo elllográfico muito próxima da
quela que estrutura o livro. Ao invés de pretender retratar fielmente a experiência
de campo ou a realidade observada, o tempo etnográfico se prestava a mensurar, de
forma explicitamente distante e intervencionista, a interação entre a experiência
vivida e a experiência lembrada. Ao contrário do conteúdo e da veracidade de no
mes e situações indicados nas legendas, a percepção de que o tempo emográfico pro
duzira uma cronologia de densidade própria me dava a chance de imaginar um
diálogo que, naquele momento, eu já delineara sob a forma de um projeto de pes
quisa. O tempo emográfico sugeria um trabalho específico de produzir memória.
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yalorixá, inllão e inllãs do "mesmo barco", sem falar de madrinhas, pais e mães
que se revelavam pelo jeiLO de sentar-se, postar-se juntO à porta e olhar. Todavia,
frente às coisas, as pessoas tinham sua importância limitada.
Em muitas conversas e si tuações de "ver as fotos" vivenciadas por ho
mens e mulheres que hoje compõem um grupo assíduo e atuante do Gantois, da
Casa Branca e do Axé Opõ Afonjá, o passado foi sinalizado através de uma re
constituição espacial quase cartográfica, tanto de onde eram os objetos quanto
dos lugares que eles ocupavam, uma vez que ambos indicavam a transformação
valorizada. Essa maneira de "ver" se mostrou muito mais rica, interessante e re
levante aos meus interlocutores. A localização espacial das construções, das mo
bílias, dos utensílios rituais e das árvores e plantas sagradas das roças ganhavam
relevo e profundidade no detalhamento de sua natureza. De que eram feitas e por
quê, a inexistência de materiais semelhantes ou a precariedade anterior de al
guns artefatos utilizados para produzi-Ias. Dessa maneira, o passado foi aludido
como uma modalidade de tempo espacial na qual a data da foto é um elemento
secundário e, mesmo para os mais velhos, de difícil precisão.
As fotos que registram o terreiro da Casa Branca em 1938 são particular
mente ricas em detalhes e personagens. Há muitas crianças e uma preocupação
em retratar o cotidiano - e não as festas e rituais - do terreiro. Imagens como as
da ida à fonte onde se apanhava água, bem como a quantidade de crianças que
brincavam ao pé de um majestoso iroko sugerem que Landes respeitara uma das
regras mais rígidas dos terreiros de candomblé: a impossibilidade de se fotogra
far o barracão. O cotidiano e a vida em torno do terreiro parecem ter tido prece
dência sobre o terreiro como cenário de práticas religiosas. Esse detalhe foi rapi
damente observado e valorizado por muitos de meus interlocutores. Entretanto,
um elemento sublinhou distintas formas de falar do passado a partir das fotos: as
marcas de transformação física da Casa, seu mobiliário, as construções do terrei-
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Do I'0/lto de ,'ü/n rle 1"elll?
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tas as imagens que nos incitam a memória? Para os meus interlocutores, a res
posta seria: além das coisas mantidas em transformação, as pessoas concebidas a
partir de suas filiações. Para os antropólogos, as imagens (re)produziriam um re
gistro da prática antropológica num tempo radicalmente diverso, cuja impossi
bilidade de transfolluação é valorizada. O valor do documento reside em que se
mantenha intacto na sua suposta capacidade de nos deslocar para o passado. Para
tanto, quase sempre, serve de atestado, prova material de que o tempo, pelo me
nos naquele objeto, foi preservado. Em diversos encontros aprendi ser possível
"ver" outras coisas: o tempo que permanece transformado.
O presente emográfico congelado nas imagens, que teve, entre outras ra
zões e funções, a de documentar uma determinada experiência emográfica, tor
nou-se registro de uma historicidade dupla: a das memórias pessoais do tempo
religioso e dos marcos produzidos por iniciados de uma mesma geração ("fazer
parte de um mesmo barco"); e aquela produzida pelas narrativas antropológicas,
em que as Casas têm histórias e.filiações religiosas coevas. No diálogo acerca das
fotos, essa dupla referência se inscreveu de forma paralela. Ver as fotos implicou
lembrar, mas tamhém evocar, a necessidade de guardá-Ias, de torná-Ias um "re
gistro" da Casa!ferreiro para futuras gerações e de utilizá-Ias em outros projetos
relacionados à política cultural promovida por algumas Casas, como, por exem
plo, a criação de museus e memoriais. Porém talvez valha a pena explorar um
pouco mais esses usos paralelos/distintos, emhora não necessariamente antagô
nicos. A princípio, o domínio da lembrança - produzida pelo ver/olhar a foto - é
o de uma experiência pessoal capaz de, no mínimo, arrefecer/distender a presen
ça impositiva e, de certa forma, autoritária das notas e legendas produzidas pelo
emógrafo. Isto porque, algumas vezes, meus interlocu tores prescindiram desses
roteiros!invólucros que limitam nossa capacidade de refletir sobre aquilo que é
observado. Mas essas situações, ainda que recorrentes, não visaram a anular sua
utilidade e recurso de identificação, e sim a estabelecer um diálogo no qual a ex
periência do antropólogo não poderia figurar como metonímia da história da
quela Casarrerreiro. Em outros momentos esses mesmos recursos, ao invés de
serem evitados, foram chamados "à cena" - não para a autenticação da verdade
sobre o passado, e sim para o confronto. Ou seja, a lembrança se insurgia contra a
história para duvidar, ironizar e, de certa forma, para destiruí-Ia de sua autorida
de de reter o tempo que se transforma.
Por fim, revendo essas imagens e escrevendo sobre a experiência de
campo e nos arquivos, penso que a produção de um texto descritivo desses en
contros deve ser, necessariamente, polifônica. Como disse dona Conceição, foi
através de uma experiência sensorial que uma lembrança sobre o passado pôde
ser recuperada. De alguma forma, é necessário fornecer diferentes pistas - mo
dos de ver e pensar o passado - que nos permitam olhar as imagens produzidas
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Notas
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11. Esse parece ser um rascunho, sem 14. Por não contar ainda com au torização
data, de cana enviada em 4/2/41 a dos informantes para que seus nomes
Herskovits. Lorenzo Dow Turner Papers, fossem revelados quando da descrição de
Africana Collection, Nonh\vestern situações que envolviam sensibilidade e
Universiry. intimidade, tOdos os nomes aqui
utilizados são fictícios. Pelo mesmo
12. Lorenzo Dow Turner a W. Haygood, motivo, não faço distinção de parentesco
18/1 1/4 1 . Lorenzo Dow Turner Papers, religioso ou biológico ao utilizar termos
Africana Collection, Northwestcrn comofilha(o), e irmão(ã).
Universiry, Box 3, Folder 8. Ver artigo
onde o au ror analisa o material coletado 15. Algumas fOlOS foram pubLicadas oa
segunda edição de seu livro, lantO em
em Salvador (Turner, 1942).
inglês (City ofwomell, University of
13. As entrevistas com Maniniano New Mexico, L994) quanto em português
Eliseu do Bonfim foram gravadas nos (A cidade das mulherú, EdUFR], 2001),
dias 12/10, 14/1 O, 16/1 O, 2UI 0, 9/12, e na biografia escrira por Sally CoLe
18/12 e 24/12 de 1 940, e 31/1 de 1941. (2003).
R eferências b i b l iográficas
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p. 15 3-156. n. I . p. 8-28.
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Brasil". Revista Arquivo Mu,zicipal. Press. •
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Do pOllto de vista de quem?
Resumo
Este artigo propõe uma leitura comparativa de duas coleções etnográficas -
a de registros sonoros feitos por Lorenzo Dow Turner e a de fotografias de
Ruth Landes - a partir de perspectivas diversas. Resultantes de viagens de
campo ao Brasil feitas pelo lingüista em 1941 e pela antropóloga em 1 938-39,
sua utilização foi compartilhada por outros interlocutores a partir de uma
experiência etnográfica realizada em 2003, na qual alguns significados
tradicionalmente atribuídos a fontes arquivísticas dessa natureza foram
reinterpretados. Com base nessas experiências, o artigo discute algumas
implicações dos significados dos arquivos etnográficos e de seus usos na
pesquisa de campo e na etnografia.
Palavras-chave: história, etnografia, arquivos, pesquisa de campo, história da
antropologia, Estados Unidos.
Abstract
This artic1e proposes a comparative reading of two different erhnographic
collections - a set of audio recordings made by the linguist Lorenzo Dow
Turner and a series ofphotographs raken by the anrhropologisl Ruth Landes
- from different point orviews. Being lhe result of fieldwork travels in Brazil,
respectively in 1 94 1 and 1938-9, the two collections were used on a research
carried out in 2003 in which rhe meanings lraditionally altributed to archive
sources of [his kind were reinterpreted. On lhe base of rhese experiences lhis
artic1e discusses some implications of the meanings of ethnographic archives
and rheir possible uses in fieldwork and ethnography.
Key words: history, ethnography, archives, fieldwork, history of anthropology,
United States.
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Résllmé
Cet artic1e analyse deux différentes collections ethnographiques: celle des
enregistrements sonores rassemblés par le linguiste Lorenzo Dow Turner et
celle de photos faites par l'anthropologue Ruth Landes. Le deux collections
sont le résultat de recherches sur le terrain realisées au Brésil, respectivement
en 1941 et 1938-9, e elles ont été utilisées dans une recherche de 2003 dans
laquelle les sens traditionnellement attribués à des sources de ce genre ont été
réinterprétés. En partant de ces expériences, l'artic1e discute les implications
de signifiés des archives ethnographiques et leu r emploi dans la recherche de
terrain et dans I'ethnographie.
MOIS-clés: histoire, ethnographie, archives, recherche de terrain, histoire de
-
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