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Ponto 3 – Culturas Mesoamericanas

Há muito se vem chamando a atenção para a existência de


analogias múltiplas e estreitas, perceptíveis entre as culturas da América
pré-colombiana de todas as regiões. A arqueóloga Laurette Séjourné,
depois de apontar diferenças e especificidades, conclui pela existência,
em todo o continente, de uma base cultural comum tão ampla que faz
pensar numa origem única. Não é difícil apontar numerosos traços
similares entre a Mesoamérica e a Zona Andina Central em matéria de
política e religião, mesmo sendo verdade que, até onde se sabe, estas
duas grandes zonas culturais se ignoravam na época da conquista
espanhola.
No interior da Mesoamérica avançou-se muito na compreensão
dos mecanismos que explicam uma homogeneidade básica de suas
civilizações. O conceito de “Mesoamérica” foi utilizado pela primeira vez
pelo antropólogo Paul Kirchhoff, em 1943, para referir-se às antigas
civilizações que habitavam, em tempos pré-hispânicos, a região que vai
desde o centro de Honduras e o noroeste da Costa Rica até o México,
tendo como limites os Estados de Taumalipas e Sinaloa e de uma a outra
costa marítima. Kirchhoff definiu um conjunto de características culturais
fundamentais que eram partilhadas por diversos povos que habitavam
essa região, ligando-os a uma grande família cultural e histórica, a
despeito da série de particularidades locais que os distinguiam entre si.
Segundo Kirchhoff, a relativa homogeneização cultural
mesoamericana perpassava características como: a utilização de um
bastão de madeira com a ponta afiada e endurecida no fogo para se
plantar (coa); o cultivo do milho como base de alimentação; a produção
de papel e de pulque com o agave; a utilização de práticas de
autoflagelação e de sacrifícios humanos com finalidades religiosas; o
cultivo do cacau; a construção de pirâmides escalonadas; a prática do
jogo de pelota e a produção de armas de madeira com bordas de
lâminas de pedra, principalmente obsidiana e sílex.
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Com o avanço dos estudos sobre a Mesoamérica, às
características propostas por Kirchhoff somaram-se outras, mais ligadas
ao campo do pensamento e da visão de mundo. Nesse sentido,
estudiosos como o antropólogo Miguel León-Portilla propuseram como
principais características do pensamento mesoamericano: a utilização de
um sistema de calendário baseado em dois ciclos concomitantes; a
convicção da existência de vários sóis ou idades anteriores; a divisão do
espaço horizontal em quatro direções e um centro, e do espaço vertical
em 13 céus e nove inframundos; a produção de livros; a presença de três
grandes famílias linguísticas – o macrootomangue, o macromaio e o iutu-
asteca –; a convicção de que a formação e o desenvolvimento do
cosmos resultaram de uma dualidade essencial e de que os homens são
obrigados a contribuir com a força vital de seu sangue para a
continuidade do Universo, devendo agir de acordo com os destinos
determinados pelo tempo e manifestos nos calendários.
Conforme aponta o historiador Eduardo Natalino dos Santos, a
unidade cultural que marca a região mesoamericana inexistiu durante
toda a Etapa Lítica (33000 a.C-5000 a.C), iniciando-se apenas com o
desenvolvimento da agricultura, por volta de 5000 a.C. O processo de
transição entre a simples apropriação do que a natureza oferecia e a
produção sistematizada teria resultado na criação-adoção de uma
organização social e de uma visão de mundo dos povos mais
apropriadas a um modo de vida sedentário e agrícola, cujos limites serão
os próprios limites da Mesoamérica.
Segundo o autor, as primeiras características da Mesoamérica
apareceram de forma consistente com a civilização olmeca, que habitava
os atuais Estados mexicanos de Tabasco e Veracruz, região chamada de
Olman (“terra da borracha”). A existência de um desenvolvido e frequente
comércio, que se espalhou por outros locais, teria dado início a uma nova
etapa na história mesoamericana, marcada pelo surgimento e difusão de
centros cerimoniais, por uma maior densidade populacional, por um

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intenso comércio e artesanato e pelo desenvolvimento das esculturas
colossais em pedra. Ademais, acentuaram-se as diferenciações internas
das antigas sociedades aldeãs, o que pode ser comprovado pelas
diferenças de qualidade e de riqueza das oferendas em enterros.
Tradicionalmente, esse período caracterizado pela consolidação do
horizonte cultural olmeca e sua difusão por regiões vizinhas é chamado
de Período Pré-Clássico (1500-200 a.C).
O arqueólogo Eduardo Matos Moctezuma ressalta que, embora
sejam ainda pouco conhecidas, algumas práticas sociais ligadas ao
campo das representações e dos símbolos também se faziam presentes
na região olmeca: os campos para a prática de jogo de pelota; os
espelhos de hematita que eram pendurados no pescoço; os trabalhos em
jade; a prática do sacrifício de crianças e adultos e da mutilação dentária.
Além das características citadas, os centros urbanos e os primórdios de
um sistema de calendário e de escrita desenvolvidos pela cultura olmeca
consolidaram-se em localidades que sofreram sua influência direta, como
as regiões maias e de Oaxaca.
Moctezuma destaca ainda que a consciência do papel fundacional
exercido pelos olmecas na Mesoamérica não provém apenas dos
modernos trabalhos arqueológicos ou históricos, mas também dos
vestígios deixados pelos mexicas e das declarações dadas pelos
informantes indígenas ao franciscano Bernardino de Sahagún. Quase
dois mil anos depois dos olmecas, os mexicas afirmavam ser herdeiros
de uma sequência de horizontes culturais mesoamericanos que se
iniciou com os olmecas, passou pelos teotihuacanos e chegou aos
toltecas, tepanecas e a eles próprios.
A difusão comercial e cultural do mundo olmeca tornou-se mais
forte após 600 a.C e transformou gradativamente um grande número de
antigas aldeias em centros cerimoniais e urbanos, que se tornaram
verdadeiras metrópoles caracterizadoras do Período Clássico (200 a.C-
800 d.C). Estas foram responsáveis pela consolidação e pelo

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desenvolvimento das características encontradas de forma embrionária
nos antigos olmecas. Foi em Teotihuacan, Monte Albán e em várias
cidades maias que a escrita, o calendário, o comércio de longa distância,
o modelo de urbanismo, as concepções cosmológicas e cosmográficas e
o modelo de organização político-social se tornaram traços comuns a
toda região.
Conforme ressalta a antropóloga Doris Heyden, Teotihuacan, a
Cidade dos Deuses, foi um dos frutos desse processo de difusão olmeca
e começou a ser edificada entre os anos 200 e 100 a.C. Seu estilo
arquitetônico de talud y tlabero estendeu-se a cidades maias, assim
como os cultos de Tlaloc e Quetzalcoatl, já que Teotihuacan deve ter
sido o centro de um grande reino ou de uma confederação de povos, ou
ainda um grande centro produtor e mercantil.
Paralelamente a Teotihuacan, na região de Oaxaca, outra cultura
mesoamericana florescia, graças aos influxos de populações olmecas: a
cultura zapoteca. Conforme destaca a etnóloga Barbro Dahlgren, o
centro urbano de Monte Albán teve importância considerável para a
consolidação da unidade cultural mesoamericana, visto que nele
encontram-se os glifos calendários e os glifos de nomes de lugares mais
antigos da Mesoamérica, ambos parte do processo de constituição de
um sistema de escrita que posteriormente se difundiu por praticamente
toda a região.
Juntamente com o desenvolvimento de Teotihuacan e dos
zapotecas, floresceram inúmeras cidades maias na Península de
Yucatán, nos atuais estados de Tabasco e Chiapas e nos atuais países
da Guatemala, Belize, El Salvador e Honduras. A historiadora Maria
Longhena destaca no processo de formação de uma “cultura maia” a
influência dos zapotecas, dos quais os maias teriam adotado o sistema
de escrita pictoglífica, posteriormente atribuindo a este uma vertente
fonética. É sabido que a utilização de estelas ganhou importância
particular entre os maias e os soberanos de cada cidade as erigiam para

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comemorar os seus feitos, os fatos biográficos e acontecimentos
naturais.
Entretanto, o historiador Federico Navarrete Linares ressalta que,
apesar de possuírem muitos traços culturais comuns – como a região
habitada; a família linguística; o cultivo do milho e suas práticas rituais
relacionadas; a organização social e a cosmovisão baseada no
calendário, na centralidade do Sol e do sangue como fluido vital –, não
houve um centro maia que unificasse todos os grupos. Isto é,
diferentemente dos casos de Teotihuacan e Monte Albán, entre os maias
predominou a multiplicidade de cidades independentes, que competiram
militar e comercialmente através da formação de confederações, que
dominavam as regiões vizinhas e durante algum tempo se tornavam um
centro de irradiação cultural. As cidades maias se caracterizavam por
grandes edifícios de pedra em forma de pirâmide escalonada e por uma
clara divisão arquitetônica que refletia uma divisão social muito marcada,
que também estava presente nos vestuários, hábitos e no entendimento
completo do complexo sistema de escrita e do calendário.
Entre os séculos VII e X, verificam-se a decadência e o abandono
de muitos centros maias, de Teotihuacan e de Monte Albán, gerando
assim um colapso que marcou o fim do Período Clássico. Embora a
Arqueologia e a História ainda não tenham sido capazes de descobrir as
razões exatas para o ocorrido, algumas hipóteses foram lançadas, como
incêndios, guerras, lutas internas, mudanças climáticas, epidemias,
desmatamento, secamento dos lagos e as migrações dos povos que
habitavam ao norte da fronteira mesoamericana, chamados
genericamente de chichimecas, termo com conotações pejorativas
empregado para denominar os povos caracterizados pelo nomadismo,
pelas roupas de pele e pela utilização do arco e flecha. Dentre estes,
estavam os povos de fala nahuatl, sendo os toltecas e os astecas os que
mais se destacaram no Período Pós Clássico (séculos X-XVI).

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Segundo o arqueólogo Román Piña Chan, os toltecas, antes de
se fixarem definitivamente na região do Altiplano Central, teriam se
estabelecido em Teotihuacan, onde absorveram parte da cultura
mesoamericana. Chan recupera o debate existente em torno de onde
estaria a verdadeira Tula, capital dos novos domínios toltecas, governada
em meados do século X pelo rei-sacerdote Topiltzin-Quetzalcoatl.
Durante muito tempo se acreditou que Teotihuacan fosse a cidade de
Tula, devido à maneira monumental como era descrita nos textos
coloniais nativos, que falavam de uma grande metrópole que teria sido
um verdadeiro modelo urbano-civilizacional, cujos domínios abrangeram
boa parte da Mesoamérica, como ocorrera com Teotihuacan no passado.
Entretanto, na década de 1940, um grupo de mesoamericanistas
acreditou ter conseguido definir a Tula histórica, uma cidade menor
localizada no atual estado de Hidalgo, que em quase nada coincidia com
as descrições nativas, caracterizando-se por manifestações artístico-
culturais em pedra.
O historiador Enrique Florescano elaborou uma interessante
jhipótese para o abismo existente entre as tradições textuais nativas e os
vestígios arqueológicos toltecas. Segundo ele, os toltecas consistiam em
uma tribo nômade e guerreira, que instituiu um governo militarista e
opressor sobre os povos conquistados. Contudo, ao adquirirem
consciência de que o poder militar não seria suficiente para impor sua
dominação sobre os povos do Vale do México, os toltecas teriam
assumido para si as tradições criadas pelos povos que os antecederam,
baseadas em uma conduta ética e virtuosa, em uma severa disciplina e
em práticas religiosas milenares, de modo a adquirirem maior prestígio.
Florescano ressalta assim a importância da invenção de uma tradição
para a legitimação da dominação.
Tendo existindo uma ou várias Tulas, fato é que os migrantes
toltecas se converteram em herdeiros de antigas tradições culturais
mesoamericanas, como o urbanismo, o calendário, a escrita pictoglífica,

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o conhecimento astronômico e a visão de mundo. No século XII, as
discórdias e guerras resultaram na ruína de Tula e no início de um
período de grande instabilidade política e do aumento da atividade
guerreira entre as diversas cidades. Em fins do século XIII, o surgimento
de novos reinos e confederações aumentou as disputas entre os povos
chichimecas que migravam para os antigos territórios toltecas. Dentre
estes estavam os astecas, posteriormente chamados de mexicas que,
em 1428, afirmaram-se como senhores e herdeiros da tradição cultural
mesoamericana recebida dos toltecas.
Segundo o antropólogo Jacques Soustelle, as narrativas da
origem mexica são marcadas por um certo “mexicanismo”, isto é, pela
centralidade atribuída aos feitos dos próprios mexicas, que sempre os
encaminhavam para um destino já determinado: tornarem-se os
senhores dos outros povos. Soustelle destaca que os mexicas efetuaram
uma reelaboração das narrativas históricas e cosmogônicas tradicionais
mesoamericanas. Na tentativa de justificar seus extensos domínios,
acrescentaram uma quinta idade aos relatos que tinham como tema as
origens do mundo e dos homens, na qual eles próprios seriam o povo
escolhido para manter o funcionamento do cosmos mediante o sacrifício
de cativos capturados nas chamadas guerras floridas. Tal reelaboração,
portanto, teria sido executada depois de consolidarem um papel de
destaque como tributadores de quase toda a Mesoamérica.
Natalino dos Santos realiza uma comparação entre a história
mexica narrada por meio das fontes nativas e os vestígios arqueológicos.
Segundo os relatos astecas, em 1111 d.C estes teriam deixado sua terra
de origem Aztlan, impulsionados pelas promessas do sacerdote
Huitzilopochtli e pela condição de servidores (macehualtin) em que
viviam sob o comando de outra etnia que era tratada como governantes
(tlatoque) e nobres (pipiltin). Os astecas teriam então iniciado uma longa
migração que terminaria com a fundação de Tenochtitlan um uma ilhota
do Lago Texcoco, em 1325 d.C, local que lhes foi assinalado por

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Huitzilopochtli com os seguintes símbolos: a águia sobre o nopal que
crescia sobre uma pedra.
Linares ressalta que as fontes que tratam da fundação de
Tenochtitlan possuem um olhar retrospectivo, já que esta é concebida,
desde suas origens, com a importância que teria no momento presente,
quando a cidade era uma espécie de capital mesoamericana. Segundo o
autor, esse tipo de construção discursiva não invalida o caráter histórico
dos relatos astecas, na medida em que a seleção, a reformulação e a
inserção dos fatos passados em uma estrutura de memória é algo que
faz parte do universo narrativo de qualquer cultura. Ademais, esse
movimento migratório descrito pelas fontes nativas se enquadra no
fenômeno das migrações chichimecas em direção à Mesoamérica
reconstruído a partir de vestígios históricos.
Segundo o historiador Ciro Flamarion Cardoso, por meio de
campanhas militares e da formação de confederações, os mexicas
foram, pouco a pouco, construindo e impondo uma enorme rede de
relações tributárias, comerciais, militares e ideológicas. Estas nos
impediriam de rotular Tenochtitlan como a sede de um império moderno
com uma burocracia centralizada, já que a cidade de fato integrou uma
Tríplice Aliança.
Antes de consolidarem a posição de destaque pela qual ficaram
conhecidos, os mexicas tiveram que enfrentar o desafio de conseguirem
se estabelecer na região. Para tanto, assim como os toltecas, tiveram
que se “civilizar” conforme os padrões mesoamericanos, isto é, assimilar
novos traços culturais, conhecimentos e símbolos. Tenochtitlan tornou-se
a nova Huey Tollan (Grande Tula): identificar-se aos toltecas era
identificar-se a uma bem-sucedida história, na medida em que os toltecas
foram os primeiros nahuas que adentraram a região e fundaram um
poderoso reino em meio a antigos povos.
De acordo com Tzvetan Todorov, apesar dos domínios mexicas
terem abrangido mais de 200.000 km2 e formado um verdadeiro mosaico

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de povos em lutas e alianças, os mexicas não conseguiram dominar toda
a Mesoamérica, fato que é de fundamental importância para
entendermos o êxito da invasão espanhola. Os espanhóis conseguiram
introduzir-se na rede de poderes e alianças locais e, gradualmente, obter
o controle político da região.
A título de conclusão, é importante ressaltar que os povos nativos
da Mesoamérica possuem um horizonte cultural e histórico comum,
resultante da mescla dos influxos da civilização olmeca com
características dos povos que a sucederam. Embora maias e astecas
sejam os povos mais conhecidos da região, tal realidade se deve muito
mais à variedade e à abundancia de documentação do que a uma
superioridade civilizacional destes, que constantemente buscaram se
identificar e traçar continuidades com seus antecessores para legitimar
sua dominação.

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