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I~
:1.'
Ana Pais
o DISCURSO DA CUMPLICIDADE
DRAMATURGIASCONTEMPORÂNEAS
Edições Colibri
Apartado 42.001
1601-801 Lisboa
TeJ./Fax: 217 964 038
www.edi-colibri
colibri@edi-colibri.pt . Edições Colibri
José Femando P. de Azevedo.
I~
:1.'
Ana Pais
o DISCURSO DA CUMPLICIDADE
DRAMATURGIASCONTEMPORÂNEAS
Edições Colibri
Apartado 42.001
1601-801 Lisboa
TeJ./Fax: 217 964 038
www.edi-colibri
colibri@edi-colibri.pt . Edições Colibri
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Biblioteca Nacional- Catalogação na Publicação
·1
CDU 792
82-2.09
.índice
~;-~~~~~~~~~.~~~~~~~'.:::::::::::::::::::::::::::::::::::::~:::::::::::::::::::::::.:::::::::::::::::'~
Introdução : : : 15
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Biblioteca Nacional- Catalogação na Publicação
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CDU 792
82-2.09
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Introdução : : : 15
Drarnaturgia do olhar 49
Paradigmasint~rnacionais:Holanda e Bélgicafanes 80-90) 50
. .Drarnaturgia do espaço , ~ ,.. 58
Implicações terminológicas .' ~ ,.; ,'.. 61 . {
I
}
I
II. PARA UNIA TEORIA pA CUMPLICIDADE .)
O discurso da cumplicidade : .. ..... : 69
Ana Pais
Lisboa, Dezembro de 2003
I
. ".
Drarnaturgia do olhar 49
Paradigmasint~rnacionais:Holanda e Bélgicafanes 80-90) 50
. .Drarnaturgia do espaço , ~ ,.. 58
Implicações terminológicas .' ~ ,.; ,'.. 61 . {
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I
II. PARA UNIA TEORIA pA CUMPLICIDADE .)
O discurso da cumplicidade : .. ..... : 69
Ana Pais
Lisboa, Dezembro de 2003
I
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[ Prefácio
1
I
'1
A figura do dramaturgista, enquanto colaborador activo em diver-
sos processos criativos, é um dos aspectos mais marcantes, mas tam-
'bénl mais intrigantes, das novas práticas que envolvem a cena con-
temporânea - teatro, dança e artes performativas. Particularmente
'visível nos últimos anos, a sua presença surge corno resultado claro da
viva interdisciplinaridade que caracteriza o momento 'actual de produ-
ção' artística e cultural.
I
A interdisciplinaridadeacarreta, inevitavelmente, uma complexi-
ficação acrescida e uma simultaneidade ·polivocallzante. das lingua-
gens estéticas, cujo resultado éa hibridização -,c ada Vez mais marcada
da arte contemporânea. A nível das artes performáticas, ou das· artes
da cena, tal cornplexificação e hibridização de Iinguagens tem c01J}O
consequência uma remodelação, por vezes brutal, de métodos de en- .
saio, de montagem e de edição narrativa. Veja-se, COÚ.10 exemplo pa-
radigrnático, o corte na ética e prática de ensaio levado a cabo por·
Pina Bauscb nos finais dos anos 1970 - quando a coreógrafa alemã.
delega aos bailarinos a Tesponsabi lidadede constante criação' de uma
quantidade enorme de materialcoreográfico 'e dramático -:- e o início
da célebre colaboração, iniciada em 1979, entre Pina Bauscheo dra-
.maturgista RaYl110ndHoghe. .
Repensa-se assim o próprio entendimento de linguagem, de cor-
po, de espectáculo, de todo um circuito de significações,' de toda uma
trama formal. Ou seja: repensa-se toda uma economia do olhar e da
~ autoria. Todos estes elementos, propriamente dramatúrgicos, orga-
,.
I nizam-se agora em torno de modos de dar-a-ver que se posicionam
! marcadamente fora de modelos auto-referenciais e auto-reprodutivos
.que, anteriormente, 'marcavam e distinguiam cada objecto artístico.
Ana Pais I
!
o Discurso da Cumplicidade
enquanto.pane· integrante de um determinado género estanque: dança, · vel. ·Aqui, é o próprio entendimento do que constitui o trabalho do
teatro, música . . . É'dentro desse circuito complexificante - de lingua-
gens, de autorias, de economias - que surge a necessid.ade de int~grar
a colaboração de uma figura cuja função fosse essencialmente dialo-
I dramaturgista que sofre urna rápida alteração perante novas lógicas de
distribuição e nova~ economias de produção artísticas. Se, nos meados
· dos anos 1980, a inserção de um dramaturgista seria um luxo orça-
( , mental impensável para qualquer produção que se propusesse circular
, gante; alguém cujo trabalho fosse um constante, rigoroso, informa?o e
imaginativo entremear de todos os elementos da obra: o drarnaturgista. , fora do âmbito restrito do teatro, a situação altera-se marcadamente
Eugenio Barba definiu drarnaturgia como o trabalho de entrete- .nosinícios dos anos 1990. . '
cer, numa obra, elementos dramáticos e elemento? plásticos, acústicos,
poéticos e acidentais. O·dramaturgista, nesta óptica, trabalharia menos Lembro-me de um episódio, ocorrido no início dos anos 1990,
'com ' textos do que com urna texturização. .Assim, o drarnaturgista em que uma então recém-formada parceria entre o Fórum Dança (Lis-
contemporâneo é uma figura em constante diálogo, agindo para en- · boa), o Klapstuk Festival (Leuven) e o Springdance Festival (Ar-
.contrar e criar tramas etexturas complexas. . '
A presença do dramaturgista torna-se, no 'ac tual momento de hi- ._
bridização ' e complexificação da: produção artística que vivemos,'
I nhém), se propunba a cc-produzir uma nova peça de Vera Mantero.
, Como ' condição de financiamento , os produtores belga e holandês
pediram à coreógrafa portuguesa que trabalhasse com um "dramatur-
quaseub íqua. .H oj e em dia, a sua figura parece surgir -numa peça tea-. g ista do Norte" (que f ique claro: o dito dramaturgista não seria do
tral, numa obra coreográfica, numa acção' performática, ou mesmo Norte do país, mas teria que vir do Norte da Europa). Esta assombrosa'
numa vídeo-instalação ou numa cyber-performan.ce.No curso de pós- ' exigência fo i retirada, devido aos protestos da coreógrafa, a quem na
-gradução em drarriaturgia experimental que lecciono na Universidade, · altura não interessava trabalhar COIU um dramaturgista, fosse ele de
de Nova Iorque, p que me surpreende não é tanto-a 'cap acidade de os 'o nde fosse. Penso que 'os próprios autores da proposta se surpreende-
alunos se inserirem, enquanto dramaturgistas, em contextos tradicio- ram com a inesperada valência ideológica do seu pedido, mas a verda-
.', de é que o pedido foi feito e é na sua elocução e no simbolismo,geo-
nalmente alheios' .ao universo das artes cénicas mas o modo como ,
esses contextos logo os ,albergam enquanto dramaturgistas: pedem a político que implicitamente ele mobiliza que um outro tipo de locali-
-sua presença" e os ' utilizam de forma totalmente eficiente, Penso no ·zação da figura e função do dramaturgista contemporâneo emerge.
meu aluno de doutoramento Rodrigo Tisi e no seu trabalho no Vito .Esta nova acepção e talvez menos glarnorosa do que aquela 'que
, Acconci Studio, em 2001; ou na minha aluna de mestrado Carolinne I
I , estamos dispostos a reconhecer, mas é condição imanente à imagem
' M essihi, trabalhando com Walid Raad -e o Atlas Group para a Whit- ','1 .s imbó lica do dramaturgista, De certa maneira, todo e qualquerindivi-
.,ney Biennial de 2002. . duo que se 'veja um dia 110 papel de dramaturgista deve estar atento à
. Mas a complexificação de linguagens, e 6 inevitável carácter ex- força dessa imagem que quase sempre antecede inevitavelmente a sua
, perimental que tal operação acarreta, não existe fora de um mercado cbegada ao estúdio, que quase sempre prefacia o primeiro contacto
, específico. Complexificação e experimentalismo gyram, eles próprios, com os restantes colaboradores. É a imagem daquele a quem Lacan
novas dinâmicas de produção , programação e distribuição de obras; ou definiu como "ocupando a posição do saber". Aqui, pouco importa se
. seja, eles geram toda uma riova economia, cujafunção é garantir a de facto se possui "o saber". O que importa é a existência de uma po-
circulação bem sucedida de objectos artísticos, os quais, .por sua pró- sição que se imagina próxima ao saber ou do saber. Uma maldição
pria,natureza, .são estranhos, não familiares e ,irreconhecíveis em ter- paira sobre quem é visto 'c om o próximo ao "saber": ele atrairá sobre si
:mos de género, de .unidade dramática, ou de organização formal. A " todas às forças imanen tes à transferência - angústias, raivas , frustra-
.partir deles, cria-se Uma economia que proc úra garantir pelo luenos . ções, exigências, desejos'.
uma qualquer forma de "legibilidade" da obra híbrida, complexa, ex- . Essa imagem do dramaturgista na posição do saber era implícita à
pe rimental; não familiar. É esta nova economia que s~ ~n~arrega da geopolítica mercadológica dos produtores do Norte perante a coreó-
venda do experimental; é ela. que promove ainserção do dramaturgista grafa do Sul. E ela estará sempre parcialmente presente: o dramatur-
como urna espécie de agente capaz de oferecer uma garantia directa ao gista é aquele que traz a (putativa) razão, a organização, a eficácia, e a
. . arriscado investimento de capital num produto por definição "selva- eficiência (no caso presente, associada à subjectividade norte-
.gern": não apenas não domesticado mas aparentemente indornesticá- -europeia) ao histerismo ineficiente do acto criativo (no caso, associa-
10 I 11
,I
Ana Pais I
!
o Discurso da Cumplicidade
enquanto.pane· integrante de um determinado género estanque: dança, · vel. ·Aqui, é o próprio entendimento do que constitui o trabalho do
teatro, música . . . É'dentro desse circuito complexificante - de lingua-
gens, de autorias, de economias - que surge a necessid.ade de int~grar
a colaboração de uma figura cuja função fosse essencialmente dialo-
I dramaturgista que sofre urna rápida alteração perante novas lógicas de
distribuição e nova~ economias de produção artísticas. Se, nos meados
· dos anos 1980, a inserção de um dramaturgista seria um luxo orça-
( , mental impensável para qualquer produção que se propusesse circular
, gante; alguém cujo trabalho fosse um constante, rigoroso, informa?o e
imaginativo entremear de todos os elementos da obra: o drarnaturgista. , fora do âmbito restrito do teatro, a situação altera-se marcadamente
Eugenio Barba definiu drarnaturgia como o trabalho de entrete- .nosinícios dos anos 1990. . '
cer, numa obra, elementos dramáticos e elemento? plásticos, acústicos,
poéticos e acidentais. O·dramaturgista, nesta óptica, trabalharia menos Lembro-me de um episódio, ocorrido no início dos anos 1990,
'com ' textos do que com urna texturização. .Assim, o drarnaturgista em que uma então recém-formada parceria entre o Fórum Dança (Lis-
contemporâneo é uma figura em constante diálogo, agindo para en- · boa), o Klapstuk Festival (Leuven) e o Springdance Festival (Ar-
.contrar e criar tramas etexturas complexas. . '
A presença do dramaturgista torna-se, no 'ac tual momento de hi- ._
bridização ' e complexificação da: produção artística que vivemos,'
I nhém), se propunba a cc-produzir uma nova peça de Vera Mantero.
, Como ' condição de financiamento , os produtores belga e holandês
pediram à coreógrafa portuguesa que trabalhasse com um "dramatur-
quaseub íqua. .H oj e em dia, a sua figura parece surgir -numa peça tea-. g ista do Norte" (que f ique claro: o dito dramaturgista não seria do
tral, numa obra coreográfica, numa acção' performática, ou mesmo Norte do país, mas teria que vir do Norte da Europa). Esta assombrosa'
numa vídeo-instalação ou numa cyber-performan.ce.No curso de pós- ' exigência fo i retirada, devido aos protestos da coreógrafa, a quem na
-gradução em drarriaturgia experimental que lecciono na Universidade, · altura não interessava trabalhar COIU um dramaturgista, fosse ele de
de Nova Iorque, p que me surpreende não é tanto-a 'cap acidade de os 'o nde fosse. Penso que 'os próprios autores da proposta se surpreende-
alunos se inserirem, enquanto dramaturgistas, em contextos tradicio- ram com a inesperada valência ideológica do seu pedido, mas a verda-
.', de é que o pedido foi feito e é na sua elocução e no simbolismo,geo-
nalmente alheios' .ao universo das artes cénicas mas o modo como ,
esses contextos logo os ,albergam enquanto dramaturgistas: pedem a político que implicitamente ele mobiliza que um outro tipo de locali-
-sua presença" e os ' utilizam de forma totalmente eficiente, Penso no ·zação da figura e função do dramaturgista contemporâneo emerge.
meu aluno de doutoramento Rodrigo Tisi e no seu trabalho no Vito .Esta nova acepção e talvez menos glarnorosa do que aquela 'que
, Acconci Studio, em 2001; ou na minha aluna de mestrado Carolinne I
I , estamos dispostos a reconhecer, mas é condição imanente à imagem
' M essihi, trabalhando com Walid Raad -e o Atlas Group para a Whit- ','1 .s imbó lica do dramaturgista, De certa maneira, todo e qualquerindivi-
.,ney Biennial de 2002. . duo que se 'veja um dia 110 papel de dramaturgista deve estar atento à
. Mas a complexificação de linguagens, e 6 inevitável carácter ex- força dessa imagem que quase sempre antecede inevitavelmente a sua
, perimental que tal operação acarreta, não existe fora de um mercado cbegada ao estúdio, que quase sempre prefacia o primeiro contacto
, específico. Complexificação e experimentalismo gyram, eles próprios, com os restantes colaboradores. É a imagem daquele a quem Lacan
novas dinâmicas de produção , programação e distribuição de obras; ou definiu como "ocupando a posição do saber". Aqui, pouco importa se
. seja, eles geram toda uma riova economia, cujafunção é garantir a de facto se possui "o saber". O que importa é a existência de uma po-
circulação bem sucedida de objectos artísticos, os quais, .por sua pró- sição que se imagina próxima ao saber ou do saber. Uma maldição
pria,natureza, .são estranhos, não familiares e ,irreconhecíveis em ter- paira sobre quem é visto 'c om o próximo ao "saber": ele atrairá sobre si
:mos de género, de .unidade dramática, ou de organização formal. A " todas às forças imanen tes à transferência - angústias, raivas , frustra-
.partir deles, cria-se Uma economia que proc úra garantir pelo luenos . ções, exigências, desejos'.
uma qualquer forma de "legibilidade" da obra híbrida, complexa, ex- . Essa imagem do dramaturgista na posição do saber era implícita à
pe rimental; não familiar. É esta nova economia que s~ ~n~arrega da geopolítica mercadológica dos produtores do Norte perante a coreó-
venda do experimental; é ela. que promove ainserção do dramaturgista grafa do Sul. E ela estará sempre parcialmente presente: o dramatur-
como urna espécie de agente capaz de oferecer uma garantia directa ao gista é aquele que traz a (putativa) razão, a organização, a eficácia, e a
. . arriscado investimento de capital num produto por definição "selva- eficiência (no caso presente, associada à subjectividade norte-
.gern": não apenas não domesticado mas aparentemente indornesticá- -europeia) ao histerismo ineficiente do acto criativo (no caso, associa-
10 I 11
,I
I
do à coreógrafa do Sul, com todos os qualificativos' que este Sul evoca drarnat úrgica. A teoria da cumplicidade que Ana Pais articula não só é'
ao Norte). Não será' por acaso que uma conferência realizada em Zu- pertinente apenas para' um entendimento das práticas ' perfo rm a tivas
.r ich em 2000 sobre novas drarnaturgias repetia, no seu próprio título, " contemporâneas - o que a autora demonstra claramente nos casos que
esse mesmo antagonismo artificioso e paralizante que supostamente analisa da actual cena europeia - é também fundamental para um
existiria entre o dramaturgista, enquanto porta-voz da razão, e o artis- reposicionamento do olhar perante taispráticas. Tal reposicionamento
ta, enquanto agente de um distúrbio sem forma: "Concepts on the edge cúmplice implica tanto o olhar do público quanto o olhar do crítico.
of chaos. Dramaturgy in Dance'.'.
Se a actividade de dramaturgista tem sido cada vez mais visível
,I Resta-nos perguntar.e de que modo essa cumplicidade participa
da .especificidade' da prática -do dramaturgista? ParaAnaPais, a curn- :
no panorama europeu de criação - dentro e fora dos palcos, dentro e plicidade deve.permanecer sempre no limiar da transgressividade. O
fora das artes de cena -, a teorização desse novo entendimento do drarnaturgistaposiciona-se então, não na distância associada ' ao saber
drarnaturgista e da drarnaturgia que dele decorre tem sido muito escas- I de um "olhar exterior" (a' distância enquanto sinónimo da objectivida-
sa. ' Com a excepção de alguns textos-chave de Marianne Van Ker-
khoeven e de Heidi Gilpin (espalhados por publicações diversas e de
I de) mas numa proximidade transgressora. O dramaturgista deve posi-
cionar-senurna outra topografia.deconhecimento, de modo a entender
difícil acesso), o leitor interessado terá dificuldade em encontrar um por dentro as condições de produção da obra. Trata-seentãode um
estudo aprofundado sobre como o dramaturgista emerge e actu a nas I
'1
mapear imanente à obra, De um con-viver com a própria organização
práticas ar títiscas contemporâneas. Mais difícil ainda será ,encontrar interna da obra. Trata-se deidentificar os limitese excessos -da obra
um estudo que relacione o modo como o dramaturgista ilumina um por via de · uma 'objectividade garantida pela proximidade ,de um olhar
entendimento novo das artes na contemporaneidade. . tateante. iMas trata-se também deum aprendera ouvirç.de um saber
, É neste contexto que a 'presente obra de 'A11a Pais surge como calar-se; -de esperar sem rnedoo devir do acidente. Propõe Ana Pais, e,
, uma contribuição importante. Ao traçar uma genealogia da figura e o
, de forma crucial; 'que dramaturgista é cúmplice antes de mais porque,
função do dramaturgistana primeira parte do livro, a autora propõe ele deve saber aliar ao seu silêncio e à sua atenção um desrespeito
'uma perspectiva nova, e de todo pertinente, sobre o seu objecto de . ge,neroso e gerador: "
estudo: a de que devemos procurar nas várias permutações sofridas ao Em suma, uma teoria da cumplicidade permite-nos compreen-
longo do tempo pela figura e função do dramaturgista um entendi- der o discurso performativoà luz das dinânimas transgressoras e pa rti-
mento mais aprofundado do que se entende por uma dramaturgia na , cipativas de um acto criminoso: po r um lado, adramaturgiacomete in-
contemporaneidade. Ao situar e ao pensar a palavra "dramaturgia" ' fracções na ordem estabelecida pelo visível, transformando-o e cons-
fora do seu seio familiar (o teatro dramático) e ao p roblematizá-la, tituindo-o por renovadas articulações de sentido,' e por isso asua acção
quer a nível 'históri co quer a nível da cena contemporânea, Ana Pais, , é ilícita e inconform ista; por outro lado, ela participa no espectáculo
privilegia uma abordagem das "invisibilidades)' que 'de term in am a nas margens "do visível, ponto de 'encontro entre os ' materiais, 'que o
fabricação de um novo entendimento de espectáculo, de uma mais constroem, estabelecendo uma aliança clandestina - implícita ..-:., quer '
fluída concepção de autoria, de uma outra localização da cena, de uma
des-narrativização da construção narrativa, de uma des-mobilização
I entre vis ível e invisível quer entre espaço e tempo.
É aqui, neste entendimento particular das muitas i nvisibilidade s e
do movimento e, principalmente, de um novo modo de participação inevitáveis transgressões rq ue compõem o pensar ' dramatúrgico, que,
intelectual para o público e para a crítica. Estes novos entendimentos, este livro, nas suas porvezes surpreendentes afirmações; oferece a sua
este novos modos de participação, de co-laboração, segundo a autora, contribuição pára um pensar das práticas artísticas na contemporanei- '
transparecem, precisamente, e de forma privilegiada, na actividade , dade e para um-repensar da função da escrita nessas práticas:
drarnatúrgica contemporânea, particularmente na Europa. E por isso
esta actividade merece uma atenção redobrada por parte do crítico e André Lepecki
do teórico preocupados com a arte contemporânea. Professor da Universidade de Nova Iorque
Contribuição fundamental deste pequeno volume é então o de- Dezembro, 2003 .
senvolvimento de uma "teoria da cumplicidade" enquanto resposta, a
nível do discurso crítico, a uma demanda que funda a própria ética
12 13
I
do à coreógrafa do Sul, com todos os qualificativos' que este Sul evoca drarnat úrgica. A teoria da cumplicidade que Ana Pais articula não só é'
ao Norte). Não será' por acaso que uma conferência realizada em Zu- pertinente apenas para' um entendimento das práticas ' perfo rm a tivas
.r ich em 2000 sobre novas drarnaturgias repetia, no seu próprio título, " contemporâneas - o que a autora demonstra claramente nos casos que
esse mesmo antagonismo artificioso e paralizante que supostamente analisa da actual cena europeia - é também fundamental para um
existiria entre o dramaturgista, enquanto porta-voz da razão, e o artis- reposicionamento do olhar perante taispráticas. Tal reposicionamento
ta, enquanto agente de um distúrbio sem forma: "Concepts on the edge cúmplice implica tanto o olhar do público quanto o olhar do crítico.
of chaos. Dramaturgy in Dance'.'.
Se a actividade de dramaturgista tem sido cada vez mais visível
,I Resta-nos perguntar.e de que modo essa cumplicidade participa
da .especificidade' da prática -do dramaturgista? ParaAnaPais, a curn- :
no panorama europeu de criação - dentro e fora dos palcos, dentro e plicidade deve.permanecer sempre no limiar da transgressividade. O
fora das artes de cena -, a teorização desse novo entendimento do drarnaturgistaposiciona-se então, não na distância associada ' ao saber
drarnaturgista e da drarnaturgia que dele decorre tem sido muito escas- I de um "olhar exterior" (a' distância enquanto sinónimo da objectivida-
sa. ' Com a excepção de alguns textos-chave de Marianne Van Ker-
khoeven e de Heidi Gilpin (espalhados por publicações diversas e de
I de) mas numa proximidade transgressora. O dramaturgista deve posi-
cionar-senurna outra topografia.deconhecimento, de modo a entender
difícil acesso), o leitor interessado terá dificuldade em encontrar um por dentro as condições de produção da obra. Trata-seentãode um
estudo aprofundado sobre como o dramaturgista emerge e actu a nas I
'1
mapear imanente à obra, De um con-viver com a própria organização
práticas ar títiscas contemporâneas. Mais difícil ainda será ,encontrar interna da obra. Trata-se deidentificar os limitese excessos -da obra
um estudo que relacione o modo como o dramaturgista ilumina um por via de · uma 'objectividade garantida pela proximidade ,de um olhar
entendimento novo das artes na contemporaneidade. . tateante. iMas trata-se também deum aprendera ouvirç.de um saber
, É neste contexto que a 'presente obra de 'A11a Pais surge como calar-se; -de esperar sem rnedoo devir do acldente. Propõe Ana Pais, e,
, uma contribuição importante. Ao traçar uma genealogia da figura e o
, de forma crucial; 'que dramaturgista é cúmplice antes de mais porque,
função do dramaturgistana primeira parte do livro, a autora propõe ele deve saber aliar ao seu silêncio e à sua atenção um desrespeito
'uma perspectiva nova, e de todo pertinente, sobre o seu objecto de . ge,neroso e gerador: "
estudo: a de que devemos procurar nas várias permutações sofridas ao Em suma, uma teoria da cumplicidade permite-nos compreen-
longo do tempo pela figura e função do dramaturgista um entendi- der o discurso performativoà luz das dinânimas transgressoras e pa rti-
mento mais aprofundado do que se entende por uma dramaturgia na , cipativas de um acto criminoso: po r Um lado, adramaturgiacomete in-
contemporaneidade. Ao situar e ao pensar a palavra "dramaturgia" ' fracções na ordem estabelecida pelo visível, transformando-o e cons-
fora do seu seio familiar (o teatro dramático) e ao p roblematizá-la, tituindo-o por renovadas articulações de sentido,' e por isso asua acção
quer a nível 'históri co quer a nível da cena contemporânea, Ana Pais, , é ilícita e inconform ista; por outro lado, ela participa no espectáculo
privilegia uma abordagem das "invisibilidades)' que 'de term in am a nas margens "do visível, ponto de 'encontro entre os ' materiais, 'que o
fabricação de um novo entendimento de espectáculo, de uma mais constroem, estabelecendo uma aliança clandestina - implícita ..-:., quer '
fluída concepção de autoria, de uma outra localização da cena, de uma
des-narrativização da construção narrativa, de uma des-mobilização
I entre vis ível e invisível quer entre espaço e tempo.
É aqui, neste entendimento particular das muitas i nvisibilidade s e
do movimento e, principalmente, de um novo modo de participação inevitáveis transgressões rq ue compõem o pensar ' dramatúrgico, que,
intelectual para o público e para a crítica. Estes novos entendimentos, este livro, nas suas porvezes surpreendentes afirmações; oferece a sua
este novos modos de participação, de co-laboração, segundo a autora, contribuição pára um pensar das práticas artísticas na contemporanei- '
transparecem, precisamente, e de forma privilegiada, na actividade , dade e para um-repensar da função da escrita nessas práticas:
drarnatúrgica contemporânea, particularmente na Europa. E por isso
esta actividade merece uma atenção redobrada por parte do crítico e André Lepecki
do teórico preocupados com a arte contemporânea. Professor da Universidade de Nova Iorque
Contribuição fundamental deste pequeno volume é então o de- Dezembro, 2003 .
senvolvimento de uma "teoria da cumplicidade" enquanto resposta, a
nível do discurso crítico, a uma demanda que funda a própria ética
12 13
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i
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I
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' lntradução
, i; '
A dramaturgia é urna espécie de enclave ambíguo entre a encena-
ção e o texto. Raras vezes é alvo de um estudo autónomo, indepen-
dente da encenação, da interpretação ou da escrita dramática. No âm-
bito académico, a dramaturgia tende a ser anexada à abordagem filo-
lógica do texto dramático ou à passagem do texto escrito para 6 uni -
, v erso da cena. Nas artes perforrnativas contemporâneas, ela vem desa-
.fiando as suas fronteiras de, actuação e participação na construção do
I
espectáculo. ,
- Ó:
,j
Na ,actualidade, o teimo dramaturgia apresenta múltiplos usos e
acepções, facto que acentua a sua territorialidade imprecisa e conduz a
generalizações pacificadoras, mas pouco rigorosas, quando se toma
um sentido parcelar para 'designar a sua totalidade. Composição dra-
mática, adaptação, estruturação, versão, as escolhas de um.
espectáculo são alguns exemplos das acepções de dramaturgia. Dada a
sua pluralidade poderíamos mesmo considerá-la um conceito-hidra,
um ser , COTI1 muitas cabeças que se multiplica em ramificações
permanentes.
A grande questão que está na base desta amplitude de arnbivalên-
cias radica na sua invisibilidade. A dramaturgia é invisível porque, por
um lado, é uma práxis, um modo de fazer que se confina ao processo
de gestação de um espectáculo; e, por outro, porque permanece nele
como o conjunto de relações de sentido entre 03 materiais cénicos
estruturados , decorrentes 'do olhar artístico. A dramaturgia é o outro
I
I
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lado do espectáculo, o seu avesso invisível que, como um objecto como uma proposta; sujeita a mutações e reflexões outras, tentando
côncavo, implica uma complementaridade convexa. 'respeitar a instabilidade de sentidos do termo drarnaturgia.
Partindo de uma abordagem exaustiva das possíveis acepções de Equacionar uma proposta teórica da cumplicidade comocaracte- ,
drarnaturgia, cedo nos apercebemos de que dificilmente encontraria- rística ontológica do discurso da dramaturgia é o segundo intuito desta
mos uma definição consensual para o termo, pois os contextos em que pesquisa. A este respeito, importa tocar num ponto, de certo modo
cada uma dessas acepções ocorrem e os significados que as distin- periférico, mas por isso mesmo delineador de uma trajectória que'
guem superam qualquer tentativa de traçar uma descrição única. Po- acompanhou o período de investigação: o alargamento do campo pro-
rém, o anseio de compreender aprofundadamente as muitas vertentes cessual, no qual incidia primeiramente a nossa reflexão, a um âmbito
da actividade drarnatúrgica levou-nos a adoptar, inicialmente, uma progressivamente mais teórico.' O nosso fito passava, sobretudo, por,
.atitude de reminiscências "colonizadoras", unificando a variedade da analisar o campo prático da drarnaturgia, aquilo a que 'chamámos, nos
prática num mapa generalista'. I primeiros planos de trabalho, os "processos e ideais". O que verdadei-
, Na verdade, embora só se possa conhecer aquilo que se nomeia, l- ramente procurávamos, sem o saber, era revolver o passado de uma
não se pode ambicionar, para a dramaturgia,uma fixação, seja de ge- prática do tehtro para nela nos enquadrarmos, para nela nos inserirmos
neralizações válidas para as mais diversas ocorrências seja de um uni- (ou não) relativamente à linhagem da dramaturgia tal como a conhe-
verso de significado estanque, apenas porque se pretende o seu refe- I cernes boje. Inclusivamente, a' proposta teórica' da cumplicidade,
rente conhecido/controlado. Tentaremos desviar-nos desta intenção de ,termo compreensivelmente polémico para os parâmetros académicos,
controlo latente e arrogante, típica de um investigador que empreende orientava-se para uma aplicação circunscrita aos processos criativos,'
o olhar para circunscrever, apelidar e arquivar, porque neste modo de ao lado interior da práxisvEste objectivo, porém, diluiu-se paulatina-
olhar reside a indizível vontade de subj ugar o outro a uma única visão mente numa sede mais ampla: quanto mais investigávamos as deter-
do mundo, sujeitando-o justamente a uma subjectividade unilateral, ,minalites e os modos de praticara drarnaturgia, mais o nosso olhar se
suportada pelos instrumentos e o poder de que dispõe. Desenhar um deixava seduzir pelas possíveis abordagens teóricas e pela variedade'
mapa da dramaturgia seria, neste contexto, um processo paradoxal que de discursos não teatrais em que o termo ocorria, parecendo corres-
passaria forçosamente por retirar essa drarnaturgia - que é uma práxis, ponder a urnalógicapara nós ainda desconhecida. O resultado de toda'
um savoir-faire - do seu ambiente natural para a área do saber disci- esta peregrinação 'teórica vem alume nas páginas que se seguem, pro-
plinar, a teoria, para assim a dominar. Mas esta é apenas uma faceta curando a clarificação do conceito de drarnaturgia, a par de urna refle- '
'do discurso teórico. Nas práticas artísticas, em particular, ele é igual- xão sobre a ontoiogia do seu discurso. '
mente responsável por tomar conscientes as implicações estéticas e Quanto às metodologias adoptadas, procurámos instrumentos de
culturais dos seus processos e enunciados e por articular as suas sime- trabalho em vários campos, nomeadamente, no dos estudos culturais,
trias ou rupturas numa leitura contextualizada. Por isso, afigura-se-nos no da estética e no da teoria do teatro. Apropósito de um estudo de'
relevante realizar um estudo desta natureza, na medida em que ele caso, CLue veio a revelar-se excêntrico à direcção que o rumo da invés-
poderá oferecer os instrumentos que ampliem e problematizem os tigaçãà tomou, foi realizada uma primeira pesquisa bibliográfica no
modelos da prática e do pensamento dadrarnaturgia. âmbito dos Estudos Culturais. No entanto, apesar do seu móbil ter
Do topográfico plano inicial, aquele quese pauta por mapear o sido abandonado, as leituras então efectuadas foram fulcrais para o
terreno, permanece a informação recolhida que aqui se disponibiliza. , acesso às problemáticas da identidade e da alteridade e para aaquisi-'
Este é, indubitavelmente, um olhar teórico e subjectivo, prescrutador e ção de urna competência essencial à introdução e manuseamento des-
pessoal. As terminologias sugeridas no presente estudo são entendidas ses conceitos. No que diz respeito à Estética e à Teoria do Teatro, a
bibliografia corisultada não seguiu uma planificação concertada, sur-
gindo no encalço da mencionada expansão do campo de pesquisa.
16 17 '
~\ ,
lado do espectáculo, o seu avesso invisível que, como um objecto como uma proposta; sujeita a mutações e reflexões outras, tentando
côncavo, implica uma complementaridade convexa. 'respeitar a instabilidade de sentidos do termo drarnaturgia.
Partindo de uma abordagem exaustiva das possíveis acepções de Equacionar uma proposta teórica da cumplicidade comocaracte- ,
drarnaturgia, cedo nos apercebemos de que dificilmente encontraria- rística ontológica do discurso da dramaturgia é o segundo intuito desta
mos uma definição consensual para o termo, pois os contextos em que pesquisa. A este respeito, importa tocar num ponto, de certo modo
cada uma dessas acepções ocorrem e os significados que as distin- periférico, mas por isso mesmo delineador de uma trajectória que'
guem superam qualquer tentativa de traçar uma descrição única. Po- acompanhou o período de investigação: o alargamento do campo pro-
rém, o anseio de compreender aprofundadamente as muitas vertentes cessual, no qual incidia primeiramente a nossa reflexão, a um âmbito
da actividade drarnatúrgica levou-nos a adoptar, inicialmente, uma progressivamente mais teórico.' O nosso fito passava, sobretudo, por,
.atitude de reminiscências "colonizadoras", unificando a variedade da analisar o campo prático da drarnaturgia, aquilo a que 'chamámos, nos
prática num mapa generalista'. I primeiros planos de trabalho, os "processos e ideais". O que verdadei-
, Na verdade, embora só se possa conhecer aquilo que se nomeia, l- ramente procurávamos, sem o saber, era revolver o passado de uma
não se pode ambicionar, para a dramaturgia,uma fixação, seja de ge- prática do tehtro para nela nos enquadrarmos, para nela nos inserirmos
neralizações válidas para as mais diversas ocorrências seja de um uni- (ou não) relativamente à linhagem da dramaturgia tal como a conhe-
verso de significado estanque, apenas porque se pretende o seu refe- I cernes boje. Inclusivamente, a' proposta teórica' da cumplicidade,
rente conhecido/controlado. Tentaremos desviar-nos desta intenção de ,termo compreensivelmente polémico para os parâmetros académicos,
controlo latente e arrogante, típica de um investigador que empreende orientava-se para uma aplicação circunscrita aos processos criativos,'
o olhar para circunscrever, apelidar e arquivar, porque neste modo de ao lado interior da práxisvEste objectivo, porém, diluiu-se paulatina-
olhar reside a indizível vontade de subj ugar o outro a uma única visão mente numa sede mais ampla: quanto mais investigávamos as deter-
do mundo, sujeitando-o justamente a uma subjectividade unilateral, ,minalites e os modos de praticara drarnaturgia, mais o nosso olhar se
suportada pelos instrumentos e o poder de que dispõe. Desenhar um deixava seduzir pelas possíveis abordagens teóricas e pela variedade'
mapa da dramaturgia seria, neste contexto, um processo paradoxal que de discursos não teatrais em que o termo ocorria, parecendo corres-
passaria forçosamente por retirar essa drarnaturgia - que é uma práxis, ponder a urnalógicapara nós ainda desconhecida. O resultado de toda'
um savoir-faire - do seu ambiente natural para a área do saber disci- esta peregrinação 'teórica vem alume nas páginas que se seguem, pro-
plinar, a teoria, para assim a dominar. Mas esta é apenas uma faceta curando a clarificação do conceito de drarnaturgia, a par de urna refle- '
'do discurso teórico. Nas práticas artísticas, em particular, ele é igual- xão sobre a ontoiogia do seu discurso. '
mente responsável por tomar conscientes as implicações estéticas e Quanto às metodologias adoptadas, procurámos instrumentos de
culturais dos seus processos e enunciados e por articular as suas sime- trabalho em vários campos, nomeadamente, no dos estudos culturais,
trias ou rupturas numa leitura contextualizada. Por isso, afigura-se-nos no da estética e no da teoria do teatro. Apropósito de um estudo de'
relevante realizar um estudo desta natureza, na medida em que ele caso, CLue veio a revelar-se excêntrico à direcção que o rumo da invés-
poderá oferecer os instrumentos que ampliem e problematizem os tigaçãà tomou, foi realizada uma primeira pesquisa bibliográfica no
modelos da prática e do pensamento dadrarnaturgia. âmbito dos Estudos Culturais. No entanto, apesar do seu móbil ter
Do topográfico plano inicial, aquele quese pauta por mapear o sido abandonado, as leituras então efectuadas foram fulcrais para o
terreno, permanece a informação recolhida que aqui se disponibiliza. , acesso às problemáticas da identidade e da alteridade e para aaquisi-'
Este é, indubitavelmente, um olhar teórico e subjectivo, prescrutador e ção de urna competência essencial à introdução e manuseamento des-
pessoal. As terminologias sugeridas no presente estudo são entendidas ses conceitos. No que diz respeito à Estética e à Teoria do Teatro, a
bibliografia corisultada não seguiu uma planificação concertada, sur-
gindo no encalço da mencionada expansão do campo de pesquisa.
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/)
Ana Pais
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Um conceito-hidra
A pergunta é fatal: "0 que é dramaturgia?". É escrever para teatro? É invisível, um saber que se diz fazendo-sé. A dramaturgia é pensada,
.dar opiniões? É redigir programas? É dar assistência nos ensaios? É projectada e realizada durante o seu processo de construção e pode
.traduzir ou adaptar textos? Dificilmente saberemos responder na tota- assumir tantas materializações e formatos quantas as estéticas, os en-
lidade e com rigor a essa pergunta. No caso do dramaturgista, o emba- cenadores ou as produções.
. raço de não se ser reconhecido pelo que se faz ou o simples facto de Esta relatividade dificulta uma definição única do que é drama-
. 'que aquilo que se faz possa· não ter uma existência e um nome reco- turgia e da sua prática porquanto ela é sempre plural: não existe uma
nhecíveis por todos são problemas recorrentes um pouco por todo o prática dramatúrgica, mas várias e sempre contingentes; logo, não
mundo das artes perforrnativas. Nacional e internacionalmente, a dra- haverá uma só fórmula reguladora para as descrever. Sendo que o
rnaturgia é uma faceta obscura da prática teatral, embora não possa objectivo da primeira secção deste estudo é o de desvelar e.sisternati-
deixar de serinerente a qualquer espectáculo. Esta situação, aparen- zar as diversas acepções do termo dramaturgia, relacionando-as com
temente paradoxal, está enraizada numa característica intrínseca da os contextos que as originaram, tentaremos expor o resultado de uma
dramaturgia: a in visi bilidade. pesquisa que não delineia uma trajectória histórica does) conceito/s),
A drarnaturgia é invisível porque é uma prática, i. e., é uma art de mas reúne elementos úteis para o entendimento da complexidade da
faire", e esta afirmação não se pretende contraditória. Trata-se de uni natureza da dramaturgia.
. .conjunto deprocedimentos técnicos (variáveis de caso para caso) que, Sendo que as múltiplas acepções do termo dramaturgia coexistem
por natureza, se manifesta em acções levadas acabo no interior do nas suas diversas práticas, o contexto (artístico ou performativo) em
processo de criação diluindo-se na efemeridade do produto final. Do que este OCOITe é o indicador indispensável do provável significado
grego tehkne (arte), as artes do fazer contêm um aspecto performativo que está a ser usado em determinado momento. Consequentemente,
orgânico, revelando o saber que lhe é próprio no acto de produção e quanto maior for a consciência no seu uso, maior será também a clare-
que permanece em. latência nas relações entre as linguagens cénicas za do enunciado. É verdade que quem pratica a dramaturgia não tem
que formam o espectáculo. É nesta invisibilidade constitutiva que de se guarnecer de apetrechos teóricos para se enunciar; o drarnatur-
residem as dificuldades que se nos deparam ao querer conhecer as . gista fá-lo através do saber da sua arte, com os instrumentos que lhe
razões dos múltiplos sentidos da drarnaturgia, acumulados ao longo da são próprios. Somente a articulação do termo no enunciado na sua
sua história. Por isso, nos parece imprescindível atentar nos seus signi- prática e as relações que apresenta com os campos semânticos e esté-
ficados particulares, derivados do seu uso concreto e contextualizado. ticos ou filosóficos em que se insere permitem asua identificação. A
A este propósito, Art Borreca descreve a actividade drarnatúrgica ambiguidade surge porque a. sobreposição de significados não tem
corno uma profissão ambígua cujos produtos são invisíveis, sendo sido clarificada, deixando ao critério do utilizador a escolha da acep-
'reciprocamente esta invisibilidade a causa' da sua ambiguidade", A ção e do contexto em que a insere, que, por sua vez, estão geralmente
drarnaturgia.é. invisível para o espectador porque ela lhe é apresentada implícitos. .
sob a máscara dos componentes estéticos do espectáculo. De facto; ela
é como um segredo escondido, um meio através do qual o espectáculo
se dá a ver ao público. Mormente, a sua invisibilidade é porventura
.uma das razões pela qual a dramaturgia não tem sido considerada Dramaturgia institucional e dramaturgia do espectáculo
como objecto, 'em si mesma, de abordagens teóricas, nomeadamente,
'. académicas. A dramaturgia está, mi teoria e na prática, indissociavel-
A problemática do termo dramaturgia começa quando, no século
mente ligada a. áreas como a encenação; a interpretação ou a estética.
XVJfl, passou a ser utilizado com um segundo significado, suplementar
Por outras palavras, ela está intimamente conciliada .com uma práxis
ao sentido aristotélico de composição dramática: o de crítica, ou me-
. Ihor, o de consciência crítica. Este advém da chamada tradição alemã
2 Cf. Michel de Certeau, L'invention du quotidien, Gallimard, Paris, J990. Note-se da drarnaturgia e do aparecimento da figura do dramaturgista, ambos
que os contextos de utilização da expressão diferem.
3 Art Borreca, "Dramaturging New Play Drarnaturgy" in Dramaturgy ln Al71erican
Theatre -a Source Book, Susan Jonas et, ai. (ed.), Harcourt Brace & Company,
Orlando, 1997, p. 69. 4 Cf. Michel de Certeau, op. cit., p. 118.
22 23
It ,~\
A pergunta é fatal: "0 que é dramaturgia?". É escrever para teatro? É invisível, um saber que se diz fazendo-sé. A dramaturgia é pensada,
.dar opiniões? É redigir programas? É dar assistência nos ensaios? É projectada e realizada durante o seu processo de construção e pode
.traduzir ou adaptar textos? Dificilmente saberemos responder na tota- assumir tantas materializações e formatos quantas as estéticas, os en-
lidade e com rigor a essa pergunta. No caso do dramaturgista, o emba- cenadores ou as produções.
. raço de não se ser reconhecido pelo que se faz ou o simples facto de Esta relatividade dificulta uma definição única do que é drama-
. 'que aquilo que se faz possa· não ter uma existência e um nome reco- turgia e da sua prática porquanto ela é sempre plural: não existe uma
nhecíveis por todos são problemas recorrentes um pouco por todo o prática dramatúrgica, mas várias e sempre contingentes; logo, não
mundo das artes perforrnativas. Nacional e internacionalmente, a dra- haverá uma só fórmula reguladora para as descrever. Sendo que o
rnaturgia é uma faceta obscura da prática teatral, embora não possa objectivo da primeira secção deste estudo é o de desvelar e.sisternati-
deixar de serinerente a qualquer espectáculo. Esta situação, aparen- zar as diversas acepções do termo dramaturgia, relacionando-as com
temente paradoxal, está enraizada numa característica intrínseca da os contextos que as originaram, tentaremos expor o resultado de uma
dramaturgia: a in visi bilidade. pesquisa que não delineia uma trajectória histórica does) conceito/s),
A drarnaturgia é invisível porque é uma prática, i. e., é uma art de mas reúne elementos úteis para o entendimento da complexidade da
faire", e esta afirmação não se pretende contraditória. Trata-se de uni natureza da dramaturgia.
. .conjunto deprocedimentos técnicos (variáveis de caso para caso) que, Sendo que as múltiplas acepções do termo dramaturgia coexistem
por natureza, se manifesta em acções levadas acabo no interior do nas suas diversas práticas, o contexto (artístico ou performativo) em
processo de criação diluindo-se na efemeridade do produto final. Do que este OCOITe é o indicador indispensável do provável significado
grego tehkne (arte), as artes do fazer contêm um aspecto performativo que está a ser usado em determinado momento. Consequentemente,
orgânico, revelando o saber que lhe é próprio no acto de produção e quanto maior for a consciência no seu uso, maior será também a clare-
que permanece em. latência nas relações entre as linguagens cénicas za do enunciado. É verdade que quem pratica a dramaturgia não tem
que formam o espectáculo. É nesta invisibilidade constitutiva que de se guarnecer de apetrechos teóricos para se enunciar; o drarnatur-
residem as dificuldades que se nos deparam ao querer conhecer as . gista fá-lo através do saber da sua arte, com os instrumentos que lhe
razões dos múltiplos sentidos da drarnaturgia, acumulados ao longo da são próprios. Somente a articulação do termo no enunciado na sua
sua história. Por isso, nos parece imprescindível atentar nos seus signi- prática e as relações que apresenta com os campos semânticos e esté-
ficados particulares, derivados do seu uso concreto e contextualizado. ticos ou filosóficos em que se insere permitem asua identificação. A
A este propósito, Art Borreca descreve a actividade drarnatúrgica ambiguidade surge porque a. sobreposição de significados não tem
corno uma profissão ambígua cujos produtos são invisíveis, sendo sido clarificada, deixando ao critério do utilizador a escolha da acep-
'reciprocamente esta invisibilidade a causa' da sua ambiguidade", A ção e do contexto em que a insere, que, por sua vez, estão geralmente
drarnaturgia.é. invisível para o espectador porque ela lhe é apresentada implícitos. .
sob a máscara dos componentes estéticos do espectáculo. De facto; ela
é como um segredo escondido, um meio através do qual o espectáculo
se dá a ver ao público. Mormente, a sua invisibilidade é porventura
.uma das razões pela qual a dramaturgia não tem sido considerada Dramaturgia institucional e dramaturgia do espectáculo
como objecto, 'em si mesma, de abordagens teóricas, nomeadamente,
'. académicas. A dramaturgia está, mi teoria e na prática, indissociavel-
A problemática do termo dramaturgia começa quando, no século
mente ligada a. áreas como a encenação; a interpretação ou a estética.
XVJfl, passou a ser utilizado com um segundo significado, suplementar
Por outras palavras, ela está intimamente conciliada .com uma práxis
ao sentido aristotélico de composição dramática: o de crítica, ou me-
. Ihor, o de consciência crítica. Este advém da chamada tradição alemã
2 Cf. Michel de Certeau, L'invention du quotidien, Gallimard, Paris, J990. Note-se da drarnaturgia e do aparecimento da figura do dramaturgista, ambos
que os contextos de utilização da expressão diferem.
3 Art Borreca, "Dramaturging New Play Drarnaturgy" in Dramaturgy ln Al71erican
Theatre -a Source Book, Susan Jonas et, ai. (ed.), Harcourt Brace & Company,
Orlando, 1997, p. 69. 4 Cf. Michel de Certeau, op. cit., p. 118.
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Ana Pais I o Discurso da Cumplicidade
denominando uma área do processo de criação que anteriormente não b) construção e promoção de uma imagem para a instituição tea-
era considerada nem designada especificamente. Na sequência do tral e/ou companhia: , ' , ' ,
posicionamento do olhar exterior, gerar-se-iam duas linhas de influên- escrever e editarmateriais vários para 6 programa dos es-
cia da dramaturgia no teatro: uma respeitante à dramaturgia do espec- pectáculos ou para comunicados à imprensa,
táculo - tarefas relativas a cada produção teatral - e outra, à drama- responsabilidade pelas relações públicas, nomeadamente,
turgia institucional - intervenção ao nível da entidade promotora dos com os órgãos, de comunicação social, bem como pelo
espectáculos e da sua relação Com o público. A primeira é aquela que marketing e: materiais promocionais" ',
tem vindo a ser associada à actividade do dramaturgista que desempe- conceber e gerir urna identidade da 'instituição para o
nha um papel específico na construção de um espectáculo, mas que, mundo exterior; servir de consultor das políticas artísticas
em rigor, apenas com Brecht se autonomizaria, na prática teatral (com do teatro. '
a presença do dramaturgista na equipa criativa), da dramaturgia insti-
tucional; a segunda pertence mais directamente ao campo desbravado Na actualidade, O.' conjunto destas funções remete-nos para um
por Lessing e consiste no indivíduo responsável pela constituição do outro' âmbito da dramaturgia institucional, fruto de evoluções do sis-
tema cultural: a programação. Nos mais variados centros, instituições
ou festivais promotores de acontecimentos artísticos, o programador
tornou-se uma figura de referência (em Portugal, a partir da década de
5 ln The New Oxford Dictionary of Engllsh, Clarendon Press, Oxford, 1998.
6 Arist6teles, Poética, 3.· ed., Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.l., 1992.
24 25
Ana Pais I o Discurso da Cumplicidade
denominando uma área do processo de criação que anteriormente não b) construção e promoção de uma imagem para a instituição tea-
era considerada nem designada especificamente. Na sequência do tral e/ou companhia: , ' , ' ,
posicionamento do olhar exterior, gerar-se-iam duas linhas de influên- escrever e editarmateriais vários para 6 programa dos es-
cia da dramaturgia no teatro: uma respeitante à dramaturgia do espec- pectáculos ou para comunicados à imprensa,
táculo - tarefas relativas a cada produção teatral - e outra, à drama- responsabilidade pelas relações públicas, nomeadamente,
turgia institucional - intervenção ao nível da entidade promotora dos com os órgãos, de comunicação social, bem como pelo
espectáculos e da sua relação Com o público. A primeira é aquela que marketing e: materiais promocionais" ',
tem vindo a ser associada à actividade do dramaturgista que desempe- conceber e gerir urna identidade da 'instituição para o
nha um papel específico na construção de um espectáculo, mas que, mundo exterior; servir de consultor das políticas artísticas
em rigor, apenas com Brecht se autonomizaria, na prática teatral (com do teatro. '
a presença do dramaturgista na equipa criativa), da dramaturgia insti-
tucional; a segunda pertence mais directamente ao campo desbravado Na actualidade, O.' conjunto destas funções remete-nos para um
por Lessing e consiste no indivíduo responsável pela constituição do outro' âmbito da dramaturgia institucional, fruto de evoluções do sis-
tema cultural: a programação. Nos mais variados centros, instituições
ou festivais promotores de acontecimentos artísticos, o programador
tornou-se uma figura de referência (em Portugal, a partir da década de
5 ln The New Oxford Dictionary of Engllsh, Clarendon Press, Oxford, 1998.
6 Arist6teles, Poética, 3.· ed., Imprensa Nacional - Casa da Moeda, s.l., 1992.
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• q
.J./
Ana Pais
o Discurso da Cumplicidade
. .
9(7 ). Sucessora das competências do director artístico, a actividade do .' . pleta dadas 'a s especificidades de cada prática, das suas tarefas e fun-
programadorconsistejustamente em seleccionar,actividades (espect á- ções contemporâneas: '
culos, conferências, workshops, etc.) para urna instituição ou evento,
' prOlTIovendo uma imagem conjuntural de .acordo com princípios e a) trabalho com os materiais:
objectivos orientadores.. O 'prognim ador surge.: assim,' como uni dra- desenvolver uma análise ou descrição crítica do texto dra-
maturgista pós-moderno responsável por um repertório que confere à mático (no caso de se tratar de uma tarefa vinculada ao
instituição 'ou evento uma identidade própria, actuando ao nível da texto), da temática ou da abordagem a que se propõe o es-
gestão cultural. vda formação de comunidades de público e do m árket- . pectáculo, .
. : ing . ' . pesquisar o contexto histórico e cultural do texto, do autor
. " Corno vimos, seleccionar ,e enquadrar são duas tarefas cruciais e do tema,
para a dramaturgia institucional, onde ecoam desde logo afinidades pesquisar temáticas ou tópicos que se possam relacionar
com a dramaturgia do espectáculo, Com materiais e' J?lanos de actua- com o espectáculo e possam inspirar o processo criativo
ção diferentes - .vma lida com o teatro, ou companhia, e a outra conta recorrendo a qualquer tipo de material (literatura, filosofia,
produção específica r-, aideiapor trás da função 6 a mesma. Estadivi- cinema, música, imagens, mitos, história, ciência, artes
são de tarefas não é rígida, sucedendo muitas vezes uma deslocação plásticas, artigos de jornais, programas de televisão, novas
. ou .sobreposl ção em ambos os níveis, o que depende de condições , tecnologias, etc.) de modo a ampliar as possibilidades das
circunstanciais (desde o orçamento da produção, ou companhia, até às escolhas,
relações pessoais nelas existentes). A dramaturgia do espectáculo é fundamentar as opções da encenação (ou coreografia),
I •.
l-o, aquela que, determinada pelas contingências de cada produção e pelas constituindo as relações de sentido entre os materiais céni-
I
funções estabelecidas no seu interior, está relacionada, com a figura do cos,
, , dramaturgista. . assessorar o dramaturgo (escritor do texto dramático) no
processo de escrita ou adaptação (cortar, ' reescrever, de-
terminar urna . linha interna de coerência entre as persona-
gens, história, etc.),
Tarefas e funções do dramaturgista contemporâneo adaptar e/ou traduzir textos dramáticos , poéticos ou narra-
tivos concebendo um guião do espectáculo,
1. .
editar e escrever textos para o programa;
Quando existe um dramaturgista envolvido na produção de um
espectáculo há uma série de expectativas quanto à sua ' colaboração no
processo. Quando não existe, o espectáculo não deixa de ter, obvia- b) ensaios:
mente, urna dramaturgia, simplesmente ela não é 'c onsiderada en- tornar notas para o encenador (ou coreógrafo) ,
quanto actividade distinta da encenação. O fac to deo dramaturgista colaborar com o encenador (ou coreógrafo), confrontando-
desempenhar um papel ambíguo, porque a sua participação enquanto -o com o seu ponto de vista,
elemento contribuinte para a concretização do ' espectáculo nunca é colocar de modo sistemático as perguntas (porquê?
fixa e não esta incluída no elenco tradicional das funções artísticas quando? onde? como?),
e/ou técnicas, determina a multiplicação das suas tarefas; estipuladas manter-se alerta numa atitude de observador/participante
no início de cada processo criativo (pórventuraalteradas no seu decor- que recorda as motivações do espectáculo, tendo em vista a
rer) , Propomos de seguida uma enumeração, inevitavelmente incorn- sua concepção global, comentando o desenrolar do proces-
so;
co~tribuir para ~ estruturação de sentidos do espectáculo,
7 Para uma análise sociológica da figura do programador cultural no contexto portu-
opinando, questionando, refazendo, problematizando as es-
guês cf Cláudia Madeira, Novos Notáveis - Os Programadores Cultu rais, Celta,
colhas que envolvem todo o discurso da cena,
Oeiras, 2002; .
26 27
• q
.J./
Ana Pais
o Discurso da Cumplicidade
. .
9(7 ). Sucessora das competências do director artístico, a actividade do .' . pleta dadas 'a s especificidades de cada prática, das suas tarefas e fun-
programadorconsistejustamente em seleccionar,actividades (espect á- ções contemporâneas: '
culos, conferências, workshops, etc.) para urna instituição ou evento,
' prOlTIovendo uma imagem conjuntural de .acordo com princípios e a) trabalho com os materiais:
objectivos orientadores.. O 'prognim ador surge.: assim,' como uni dra- desenvolver uma análise ou descrição crítica do texto dra-
maturgista pós-moderno responsável por um repertório que confere à mático (no caso de se tratar de uma tarefa vinculada ao
instituição 'ou evento uma identidade própria, actuando ao nível da texto), da temática ou da abordagem a que se propõe o es-
gestão cultural. vda formação de comunidades de público e do m árket- . pectáculo, .
. : ing . ' . pesquisar o contexto histórico e cultural do texto, do autor
. " Corno vimos, seleccionar ,e enquadrar são duas tarefas cruciais e do tema,
para a dramaturgia institucional, onde ecoam desde logo afinidades pesquisar temáticas ou tópicos que se possam relacionar
com a dramaturgia do espectáculo, Com materiais e' J?lanos de actua- com o espectáculo e possam inspirar o processo criativo
ção diferentes - .vma lida com o teatro, ou companhia, e a outra conta recorrendo a qualquer tipo de material (literatura, filosofia,
produção específica r-, aideiapor trás da função 6 a mesma. Estadivi- cinema, música, imagens, mitos, história, ciência, artes
são de tarefas não é rígida, sucedendo muitas vezes uma deslocação plásticas, artigos de jornais, programas de televisão, novas
. ou .sobreposl ção em ambos os níveis, o que depende de condições , tecnologias, etc.) de modo a ampliar as possibilidades das
circunstanciais (desde o orçamento da produção, ou companhia, até às escolhas,
relações pessoais nelas existentes). A dramaturgia do espectáculo é fundamentar as opções da encenação (ou coreografia),
I •.
l-o, aquela que, determinada pelas contingências de cada produção e pelas constituindo as relações de sentido entre os materiais céni-
I
funções estabelecidas no seu interior, está relacionada, com a figura do cos,
, , dramaturgista. . assessorar o dramaturgo (escritor do texto dramático) no
processo de escrita ou adaptação (cortar, ' reescrever, de-
terminar urna . linha interna de coerência entre as persona-
gens, história, etc.),
Tarefas e funções do dramaturgista contemporâneo adaptar e/ou traduzir textos dramáticos , poéticos ou narra-
tivos concebendo um guião do espectáculo,
1. .
editar e escrever textos para o programa;
Quando existe um dramaturgista envolvido na produção de um
espectáculo há uma série de expectativas quanto à sua ' colaboração no
processo. Quando não existe, o espectáculo não deixa de ter, obvia- b) ensaios:
mente, urna dramaturgia, simplesmente ela não é 'c onsiderada en- tornar notas para o encenador (ou coreógrafo) ,
quanto actividade distinta da encenação. O fac to deo dramaturgista colaborar com o encenador (ou coreógrafo), confrontando-
desempenhar um papel ambíguo, porque a sua participação enquanto -o com o seu ponto de vista,
elemento contribuinte para a concretização do ' espectáculo nunca é colocar de modo sistemático as perguntas (porquê?
fixa e não esta incluída no elenco tradicional das funções artísticas quando? onde? como?),
e/ou técnicas, determina a multiplicação das suas tarefas; estipuladas manter-se alerta numa atitude de observador/participante
no início de cada processo criativo (pórventuraalteradas no seu decor- que recorda as motivações do espectáculo, tendo em vista a
rer) , Propomos de seguida uma enumeração, inevitavelmente incorn- sua concepção global, comentando o desenrolar do proces-
so;
co~tribuir para ~ estruturação de sentidos do espectáculo,
7 Para uma análise sociológica da figura do programador cultural no contexto portu-
opinando, questionando, refazendo, problematizando as es-
guês cf Cláudia Madeira, Novos Notáveis - Os Programadores Cultu rais, Celta,
colhas que envolvem todo o discurso da cena,
Oeiras, 2002; .
26 27
l~ ,
\ o Discurso da Cumplicidade
Ana Pais
atender à coerência das relações internas. dos materiais cé- representações simbólicas que auxiliam o entendimento de funções
. nicos utilizados em função dos objectivos e implicações da plurais e da importância, ou não, de tal colaboração, .. .
concepção geral do espectáculo, Desde as mais .comuns -- o dramaturgista como "consciência",
ter presente a. ideia da totalidade do espectáculo e dos "parceiro", "mediador" e "tradutor" - às mais insólitas >- como "cão-
efeitos que as opções da encenação pressupõem, -de-guarda", "aprendiz do Talmud", "santo;', "parteira"· ou "alma gé-
observar o processo e gerir o momento e a forma adequa- mea" - muitas são as figurações que preenchem urna extensa listas.
dos para expressar as suas opiniões, Urnas mais romanceadas, outras mais condicentes com o contexto
trazer materiais (imagens, registos audio e vídeo, artigos de cultural do qual provêm, a exuberância da sua quantidade é notável e
jornal, entrevistas, filmes, livros, frases) e fazer propostas direc.tamente proporcional à variedade das suas' combinações. Em
de idas a lugares, exposições ou espectáculos, passíveis de rigor, um bomdramaturgistaé .incómodo porque o cerne da sua fun-
estimular a criatividade do encenador (ou coreógrafo), bem ção é questionar, e questionar causa perturbações., Daí que Geoffrey
como de toda a equipa. Proehlo considere uma figura simultaneamente apolínea e dionisíaca,
regida pelas forças do caos e-da ordem, tendo por missãouma provei-
Todo este elenco de tarefas tão diversificadas pode ser lido, tanto tosa conturbação. no processode ensaios ena harmonia de Ulll objecto
como urna consequência da especialização (do facto de cada vez mais final- oespectáculo. A figuração do dramaturgista dionisíaco chega_O
estreitarmos o âmbito da nossa actividade, havendo, portanto, drama- -nos também de Eugénio Barba, à qual este autor atribuia.í'técnica da
turgistas especializados em determinadas tarefas) quanto como resul- desorientação?". Barba defende a. turbulência, ou a revolta, ·no interior
tado da evolução do conceito de dramaturgia e da amplitude de exi- do processo dramatúrgico, como algo essencial para a criação de uma
gências feitas ao dramaturgista.De resto, como. sabemos, nem sempre ordem que não seja óbvia e ilustrativa mas que. tenha uma .lôgica autó-
estas funções são atribuídas à figura do dramaturgista, podendo ser no~na, um caos de onde possa emergir a liberdade de escolher cami-
assumidas pelo autor ou pelo encenador (ou coreógrafo), i. e., nenhu- nhos d i f e r e n t e s . . . . ..
ma definição pode ser estática e absoluta. Ou ainda Tori Haring-Smith; dramaturgista norte-americana, que
•apresenta.um quadro baseado em teorias da psicologia no qual o dra-
maturgista se insere como um ser andrógeno, conciliando em si a ca-
.pacidade ernpática da sensibilidade feminina e a distância analítica da
Figurações do dramaturgista perspectiva masculina'", Discutível, e de certa forma extrapolatória,
esta figuração releva de uma tentativa de compreender Urna realidade
contemporânea: a predominância de mulheres desempenhando o papel
A actividade do dramaturgista suscita uma inquietação latente de dramaturgistas, situação esta justificada, pela autora, por uma ape-
decorrente da sua suposta autoridade tradicional (o especialista do ·tência .de género na execução de tarefas de bastidores, de sombra ou
texto e do autor) e da sua presença ambígua, um elemento, simulta- servilismo-. À falta de urna autoridade científica cabal para aprofundar
neamente, interior e exterior ao processo criativo. Em qualquer pro- este tópico, pareceu-nos, no entanto, vantajoso referenciá-lo. .
cesso, o dramaturgista sabe que tem de construir um lugar próprio,
variável de companhia para companhia, de encenador (ou coreógrafo)
para encenador (ou coreógrafo), ao mesmo tempo que a companhia e
o encenador (ou coreógrafo) se vêem na eminência de o enquadrar e ;8 Geoffrey Proehl, "The irnages before us: metaphors for the role of the dramaturg in
de assimilar o seu trabalho. O desafio estimulante que se coloca a American Theatre" in Dramaturgy ln American Theatre - a Source Book, Susan
todos passa pela fundação de modos de colaboração num espaço de . Jonas et. al. (ed.), Harcourt Brace & Cornpany, Orlando, 1997, pp. 124-136. .
9 Eugénio Barba, "The Deep Order Called Turbulence - The three faces of Drama-
diálogo, que se apresenta potencialmente em aberto. Entre a suspeita,
a admiração e o benefício da dúvida, nascem as figurações dos indiví- turgy" in TDR -The Drama Review, 44.4, Inverno, New York Uníversity, Nova
Iorque, 2000, p. 60. . . .
duos que levam a cabo as tarefas dramatúrgicas, metáforas que aju-
,tO Tori Haring-Srnith, "The drarnaturg as androgyne: tboughts on the nature of
dam à sua integração no grupo ou instituição. Trata-se, no fundo, de drarnaturgical collaboration" in Dramaturgy in. American Theatre - a Source Book,
Susan Jonas et. al. (ed.), Harcourt Brace & Company, Orlando, 1997, pp, 137~143.
, .
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l~ ,
\ o Discurso da Cumplicidade
Ana Pais
atender à coerência das relações internas. dos materiais cé- representações simbólicas que auxiliam o entendimento de funções
. nicos utilizados em função dos objectivos e implicações da plurais e da importância, ou não, de tal colaboração, .. .
concepção geral do espectáculo, Desde as mais .comuns -- o dramaturgista como "consciência",
ter presente a. ideia da totalidade do espectáculo e dos "parceiro", "mediador" e "tradutor" - às mais insólitas >- como "cão-
efeitos que as opções da encenação pressupõem, -de-guarda", "aprendiz do Talmud", "santo;', "parteira"· ou "alma gé-
observar o processo e gerir o momento e a forma adequa- mea" - muitas são as figurações que preenchem urna extensa listas.
dos para expressar as suas opiniões, Urnas mais romanceadas, outras mais condicentes com o contexto
trazer materiais (imagens, registos audio e vídeo, artigos de cultural do qual provêm, a exuberância da sua quantidade é notável e
jornal, entrevistas, filmes, livros, frases) e fazer propostas direc.tamente proporcional à variedade das suas' combinações. Em
de idas a lugares, exposições ou espectáculos, passíveis de rigor, um bomdramaturgistaé .incómodo porque o cerne da sua fun-
estimular a criatividade do encenador (ou coreógrafo), bem ção é questionar, e questionar causa perturbações., Daí que Geoffrey
como de toda a equipa. Proehlo considere uma figura simultaneamente apolínea e dionisíaca,
regida pelas forças do caos e-da ordem, tendo por missãouma provei-
Todo este elenco de tarefas tão diversificadas pode ser lido, tanto tosa conturbação. no processode ensaios ena harmonia de Ulll objecto
como urna consequência da especialização (do facto de cada vez mais final- oespectáculo. A figuração do dramaturgista dionisíaco chega_O
estreitarmos o âmbito da nossa actividade, havendo, portanto, drama- -nos também de Eugénio Barba, à qual este autor atribuia.í'técnica da
turgistas especializados em determinadas tarefas) quanto como resul- desorientação?". Barba defende a. turbulência, ou a revolta, ·no interior
tado da evolução do conceito de dramaturgia e da amplitude de exi- do processo dramatúrgico, como algo essencial para a criação de uma
gências feitas ao dramaturgista.De resto, como. sabemos, nem sempre ordem que não seja óbvia e ilustrativa mas que. tenha uma .lôgica autó-
estas funções são atribuídas à figura do dramaturgista, podendo ser no~na, um caos de onde possa emergir a liberdade de escolher cami-
assumidas pelo autor ou pelo encenador (ou coreógrafo), i. e., nenhu- nhos d i f e r e n t e s . . . . ..
ma definição pode ser estática e absoluta. Ou ainda Tori Haring-Smith; dramaturgista norte-americana, que
•apresenta.um quadro baseado em teorias da psicologia no qual o dra-
maturgista se insere como um ser andrógeno, conciliando em si a ca-
.pacidade ernpática da sensibilidade feminina e a distância analítica da
Figurações do dramaturgista perspectiva masculina'", Discutível, e de certa forma extrapolatória,
esta figuração releva de uma tentativa de compreender Urna realidade
contemporânea: a predominância de mulheres desempenhando o papel
A actividade do dramaturgista suscita uma inquietação latente de dramaturgistas, situação esta justificada, pela autora, por uma ape-
decorrente da sua suposta autoridade tradicional (o especialista do ·tência .de género na execução de tarefas de bastidores, de sombra ou
texto e do autor) e da sua presença ambígua, um elemento, simulta- servilismo-. À falta de urna autoridade científica cabal para aprofundar
neamente, interior e exterior ao processo criativo. Em qualquer pro- este tópico, pareceu-nos, no entanto, vantajoso referenciá-lo. .
cesso, o dramaturgista sabe que tem de construir um lugar próprio,
variável de companhia para companhia, de encenador (ou coreógrafo)
para encenador (ou coreógrafo), ao mesmo tempo que a companhia e
o encenador (ou coreógrafo) se vêem na eminência de o enquadrar e ;8 Geoffrey Proehl, "The irnages before us: metaphors for the role of the dramaturg in
de assimilar o seu trabalho. O desafio estimulante que se coloca a American Theatre" in Dramaturgy ln American Theatre - a Source Book, Susan
todos passa pela fundação de modos de colaboração num espaço de . Jonas et. al. (ed.), Harcourt Brace & Cornpany, Orlando, 1997, pp. 124-136. .
9 Eugénio Barba, "The Deep Order Called Turbulence - The three faces of Drama-
diálogo, que se apresenta potencialmente em aberto. Entre a suspeita,
a admiração e o benefício da dúvida, nascem as figurações dos indiví- turgy" in TDR -The Drama Review, 44.4, Inverno, New York Uníversity, Nova
Iorque, 2000, p. 60. . . .
duos que levam a cabo as tarefas dramatúrgicas, metáforas que aju-
,tO Tori Haring-Srnith, "The drarnaturg as androgyne: tboughts on the nature of
dam à sua integração no grupo ou instituição. Trata-se, no fundo, de drarnaturgical collaboration" in Dramaturgy in. American Theatre - a Source Book,
Susan Jonas et. al. (ed.), Harcourt Brace & Company, Orlando, 1997, pp, 137~143.
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, \ o Discurso da Cumplicidade
Ana Pais
A figuração que reúne mais adeptos é a do dramaturgista con: o tra- , Dramaturgia como didáctica
dutor ou-mediador: tradutor da intenção do autor do texto para a lingua-
gem da cena, das }deias do ehcena~or (ou coreówafo) para~os actores Recuar às origens como forma de legitimar opções e identidades
(ou bailarinos), ouainda como mediador de co~flitos e.tensoes~os en- caracteriza muitos campos de acção humanos, sobretudo os artísticos.
saios, gestor de subjectividades, perito em dosear. :amformaçao e. ~ ,Podemos incluir-nos ou excluir-nos relativamente a uma linhagem de
timing certo para adispon~b~lizar. E, sob7'etu~0,esta l1:nag~n: de tradutor .determinada actividade, mas o confronto com a tradição tem provado
'que 110S é maisproblematIca (v. l!nphcaçoes termmologlpas, p. 6~), ser um procedimento incontornável para fazer vingar novas perspecti-
pois ela preescreve o texto como o elemento ~atricial da draroaturgia, vas nos tecidos culturais e artísticos da sociedade. O posicionamento
limitando-a a uma negociação de intenções e Jmguagens entre a pagl~a do eu faz-se na sequência de um olhar para o passado, construindo-se
escrita e o palco. Não é esta, no nosso entender" o c.eme da quest~.? no presente.
dramatúrgica, mas.o modo como ela estrutura os sentidos do espect~ Durante a década de noventa, tem-se verificado um olhar sobre a
culo. A dramaturgia é uma prática flexível.e renovada ;p~r.cad~ especta- genealogia da prática dramatúrgica para determinar linhagens e iden-
culo e o dramaturgista move-se cada vez mais em teITItor~os ~lferentes: ,tidades' do dramaturgista. Nos âmbitos internacionais, a actividade
que vão do teatro à performance ou à daI-:ça, artes q~e hoje nao ~aIiem .dramatúrgica tem vindo a .ser mesurada C01l1 a tradição alemã e com
forçosamente 'de um texto. Também por ~sto, ~ noçao d.e ~aduça?,., e~1~ Lessing. Vários académicos e dramaturgistas ingleses e norte-america-
tendida como uma equivalência entre dOIS' universos distintos, difícil- nos (cuja dramaturgia é maioritariamente centrada no texto), têm leva-
mente se ajusta à pluralidade das práticas dramatúrgica.s.. _ do a cabo uma dura peleja contra a vacuidade do conceito de drama-
Como tentamos demonstrar ao longo desta pnrneira secçao, a turgia na língua inglesa, construindo uma identidade e um sentido de
pertinência do dramaturgista contemporâneo,,,q~eexibe .ft.in~õ~s .muito colectivo profissional para o dramatugista. Muitos são os exemplos de
di versas, consiste numa presença menos retonca ,e mais ,01 gamca no tentativas que visam instituir um lugar e um entendimento alargado do
processo criativo: ele constitui-se c~mo um .colaborador, u.m Ou.tro,. trabalho e da profissão do dramaturgista, desde seminários a work-
prefigurando uma' ontologia da altendade. quererl1'~s'C~T? isto dIz~r shops 'sobre o tema, desde novos curricula nas universidades até à
que a imagem que propomos do dramaturgista ~a.s práticas actuais .publicação de antologias.
assenta na sua contribuição enquanto sujeito histórico e cultural, en- , É curioso notar que; por exemplo, Bert Cardullo, o organizador
quanto indivI:duocomsaberes e instrunient?s próprios e di~er~ntes.d~s ' da antologia What is Dramaturgy?' começa a introdução reportando-
,do encenador ou do coreógrafo. Estas diferenças constitutivas nao , -se às origens gregas da palavra. Este exercício etimológico, também
distinguem qualitativamente a posição do dramaturgis't~ d~ ~os seus mencionado por outros autores, e a constante referência às dificulda-
. pares "fazedores" do espectáculo; n~o t?m~m a s~a .contn~U1~ao supe- , des fonéticas encontradas na sua pronunciação. (o diminutivo "'turg"
'rior ou inferior a qualquer outra, técnica ouartística. Na? .e o valor em vez de "dramaturg" utilizado na gíria teatral regista a necessidade
hierárquico da. colaboração que 'está em causa. .Pelo contrário, enten- de atenuar a sua estranheza) denuncia a carência de um claro e sólido
demos que, derepresentante de uma verdade autoral ou de ~m conhe- perfil. Assim também em Dramaturgy - a user's guide'", publicado
cimento especializado, o dramaturgi~ta tem p~s"s~do a ser visto c~mo em Inglaterra na sequência de um simpósio internacional sobre o
um colaborador, uma figurade altendade pantana, convocada pala o tema, em Setembro de 1999, é-nos oferecido um conjunto de ensaios
interior do processo criativo, para aí operar ao n0'el da rel~ção com o de praticantes e teóricos do teatro. O seu âmbito restringe-se ao teatro
. outro (encenador, coreógrafo, etc.) na estruturação de sentidos de um, e, como o título indica, acentua a faceta prática da profissão - procura
. mesmo objecto: o espectáculo. As questões relaciona~as. com o ponto ser um manual do utilizador. Embora almejando a abertura de um
de vista do dramaturgista e da transformação drarnatúrgica. como um debate sobre dramaturgia e não o fomento de emprego para dramatur-
espaço de confronto entre diferenses, estimulan!e e constru~lvO, afig.u-
ram-se fulcrais pára a compreensao da evoluçao do conceito de dra-
'maturgia e das suas acepções.
r I Bert CarduIJo, Whal is DramaturgyZ, Peter Lang Publishing, Nova Iorque, 1995.
12 AA.VV., Dramalurgy-a user's guide, CentralSchool ofSpeech and Drama, Lon-
dres, 2000.
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Ana Pais
A figuração que reúne mais adeptos é a do dramaturgista con: o tra- , Dramaturgia como didáctica
dutor ou-mediador: tradutor da intenção do autor do texto para a lingua-
gem da cena, das }deias do ehcena~or (ou coreówafo) para~os actores Recuar às origens como forma de legitimar opções e identidades
(ou bailarinos), ouainda como mediador de co~flitos e.tensoes~os en- caracteriza muitos campos de acção humanos, sobretudo os artísticos.
saios, gestor de subjectividades, perito em dosear. :amformaçao e. ~ ,Podemos incluir-nos ou excluir-nos relativamente a uma linhagem de
timing certo para adispon~b~lizar. E, sob7'etu~0,esta l1:nag~n: de tradutor .determinada actividade, mas o confronto com a tradição tem provado
'que 110S é maisproblematIca (v. l!nphcaçoes termmologlpas, p. 6~), ser um procedimento incontornável para fazer vingar novas perspecti-
pois ela preescreve o texto como o elemento ~atricial da draroaturgia, vas nos tecidos culturais e artísticos da sociedade. O posicionamento
limitando-a a uma negociação de intenções e Jmguagens entre a pagl~a do eu faz-se na sequência de um olhar para o passado, construindo-se
escrita e o palco. Não é esta, no nosso entender" o c.eme da quest~.? no presente.
dramatúrgica, mas.o modo como ela estrutura os sentidos do espect~ Durante a década de noventa, tem-se verificado um olhar sobre a
culo. A dramaturgia é uma prática flexível.e renovada ;p~r.cad~ especta- genealogia da prática dramatúrgica para determinar linhagens e iden-
culo e o dramaturgista move-se cada vez mais em teITItor~os ~lferentes: ,tidades' do dramaturgista. Nos âmbitos internacionais, a actividade
que vão do teatro à performance ou à daI-:ça, artes q~e hoje nao ~aIiem .dramatúrgica tem vindo a .ser mesurada C01l1 a tradição alemã e com
forçosamente 'de um texto. Também por ~sto, ~ noçao d.e ~aduça?,., e~1~ Lessing. Vários académicos e dramaturgistas ingleses e norte-america-
tendida como uma equivalência entre dOIS' universos distintos, difícil- nos (cuja dramaturgia é maioritariamente centrada no texto), têm leva-
mente se ajusta à pluralidade das práticas dramatúrgica.s.. _ do a cabo uma dura peleja contra a vacuidade do conceito de drama-
Como tentamos demonstrar ao longo desta pnrneira secçao, a turgia na língua inglesa, construindo uma identidade e um sentido de
pertinência do dramaturgista contemporâneo,,,q~eexibe .ft.in~õ~s .muito colectivo profissional para o dramatugista. Muitos são os exemplos de
di versas, consiste numa presença menos retonca ,e mais ,01 gamca no tentativas que visam instituir um lugar e um entendimento alargado do
processo criativo: ele constitui-se c~mo um .colaborador, u.m Ou.tro,. trabalho e da profissão do dramaturgista, desde seminários a work-
prefigurando uma' ontologia da altendade. quererl1'~s'C~T? isto dIz~r shops 'sobre o tema, desde novos curricula nas universidades até à
que a imagem que propomos do dramaturgista ~a.s práticas actuais .publicação de antologias.
assenta na sua contribuição enquanto sujeito histórico e cultural, en- , É curioso notar que; por exemplo, Bert Cardullo, o organizador
quanto indivI:duocomsaberes e instrunient?s próprios e di~er~ntes.d~s ' da antologia What is Dramaturgy?' começa a introdução reportando-
,do encenador ou do coreógrafo. Estas diferenças constitutivas nao , -se às origens gregas da palavra. Este exercício etimológico, também
distinguem qualitativamente a posição do dramaturgis't~ d~ ~os seus mencionado por outros autores, e a constante referência às dificulda-
. pares "fazedores" do espectáculo; n~o t?m~m a s~a .contn~U1~ao supe- , des fonéticas encontradas na sua pronunciação. (o diminutivo "'turg"
'rior ou inferior a qualquer outra, técnica ouartística. Na? .e o valor em vez de "dramaturg" utilizado na gíria teatral regista a necessidade
hierárquico da. colaboração que 'está em causa. .Pelo contrário, enten- de atenuar a sua estranheza) denuncia a carência de um claro e sólido
demos que, derepresentante de uma verdade autoral ou de ~m conhe- perfil. Assim também em Dramaturgy - a user's guide'", publicado
cimento especializado, o dramaturgi~ta tem p~s"s~do a ser visto c~mo em Inglaterra na sequência de um simpósio internacional sobre o
um colaborador, uma figurade altendade pantana, convocada pala o tema, em Setembro de 1999, é-nos oferecido um conjunto de ensaios
interior do processo criativo, para aí operar ao n0'el da rel~ção com o de praticantes e teóricos do teatro. O seu âmbito restringe-se ao teatro
. outro (encenador, coreógrafo, etc.) na estruturação de sentidos de um, e, como o título indica, acentua a faceta prática da profissão - procura
. mesmo objecto: o espectáculo. As questões relaciona~as. com o ponto ser um manual do utilizador. Embora almejando a abertura de um
de vista do dramaturgista e da transformação drarnatúrgica. como um debate sobre dramaturgia e não o fomento de emprego para dramatur-
espaço de confronto entre diferenses, estimulan!e e constru~lvO, afig.u-
ram-se fulcrais pára a compreensao da evoluçao do conceito de dra-
'maturgia e das suas acepções.
r I Bert CarduIJo, Whal is DramaturgyZ, Peter Lang Publishing, Nova Iorque, 1995.
12 AA.VV., Dramalurgy-a user's guide, CentralSchool ofSpeech and Drama, Lon-
dres, 2000.
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gistas'", O evento e a publicação tiveram U111 efeito óbvio na defesa de dramaturg (o dramaturgista),' desempenhado por alguém que, não
um corporati visrno profissional. tendo urna função artística, integra a instituição e aí permanece como
A linhagem dramatúrgica iniciada por Lessing trouxe, efectiva- um mediador entreo teatro e o público (o olhar exterior), pelo que é
mente, suplementos semânticos ao termo dramaturgia, passando este a · compreensível, em certa medida, a eleição de Lessing como o "pai" da
designar também, paulatinamente, novas funções dentro do teatro. dramaturgia, em geral, e da figura do dramaturgista, em particular. É,
'M as, terá o conceito, de facto, mudado radicalmente a sua prática ou sobretudo, o acto inaugural .de um espaço discursivo e de um nome
terá sido apenas reinterpretado posteriormente, à luz de um olhar que funciona COl11q argumento desta paternidade.
contemporâneo, de modo a servir como o ponto nodal da dramaturgia Todavia, Dramaturgia de Hamburgo acabou por constituir um
e do dramaturgista? Eventualmente, poderá ser mais correcto começar tratado não intencional de teoria dramática. O seu corpus - críticas de
por distinguir o uso e o contexto do termo dramaturgia para Lessing espectáculos - tende, progressivamente, para abordar assuntos cada
do que corresponde o mesmo termo para nós. No nosso entender, in- vez mais gerais. .pertencentes ao domínio 'da teoria do drama e das
vocar a contribuição de Lessing para o estabelecimento de uma árvore i técnicas do teatro. Estes textos nada 'propõem no .sent ido 'do trabalho
genealógica do drarnaturgista condiciona a nossa concepção de dra- do drarna~urgista, .coIi.l.o o conhecemos boje; eles marcam sobretudo. a
rnaturgia tal como a conhecemos hoje, dado que tende a circunscrevê-
-la ao texto. O seu conceito .de dramaturgia reporta-se à composição
I nova abertura do ' teatro à reflexão sobre a função social e .est éticare-
lativamente ao seu público. ·A · dramaturgia de Lessing é urna acção .
dramática, que tem por autor o dramaturgo (a função de drarnaturgista . i moralmente consciente das implicações do teatro cuja missão didácti-
pertenceria ao próprio Lessing, actuando apenas ao nível da institui- ' ca tenciona potenciar: o seu objectivo é direccionar o gosto" e educar a .
ção); a mudança por ele introduzida (ou desejada) reside' no novo al- mentalidade da anónima plateia. Lessing é, um precursor da pedago- .
cance que o texto dramático e o teatro poderiam ganhar enquanto acto gia estética. . " . '., .
social. Por isso, entendemos a dramaturgia de Lessing numa perspec- ' É por isto que a consciência crítica não nós parece definircabal-
tiva didáctica. mente.a sua proposta, mas sim a consciência moral. Por um lado.ios
. escritos de Lessing são dirigidos ao público, que ele ambiciona educar
através da experiência estética do teatro, mas sobretudo, ao dramatur-
go alemão (autor de textos); procurando estabelecer as regras 'e p fi ncí -
Lessing - o crítico e o educador no teatro pios pelos quais uma dramaturgia nacional (igual a conjunto de textos
dramáticos) deveria ser erguida. No volume Theories of lhe Theatre, ..
Marvin Carlson dá conta do tom normativo dos ensaios críticos de:
Lessing (1729-1781) é o autor de Dramaturgia de Hamburgo'", " Lessing nos quais busca a redifinição de regras para as técnicas dra-
colecção de críticas de teatro 'sobre espectáculos representados no . rnáticas do teatro alemão (também para drarnaturgosj'". O predoniínio,
Teatro Nacional de Hamburgo, escritas entre 1767 e 1769 (data da
ao 10ngÇ) de Dramaturgia de Hamburgo, de verbos veiculandoo senti-
falência do mesmo) e publicadas com regularidade nesses anos. Tendo
do de obrigação e dever corrobora a leitura de Carlson e coincide com
sido convidado a integrar a equipa deste teatro na qualidade de "con-
o facto de Lessing se basear 'na Poética de Aristóteles, nomeadamente,
sultor literário" (embora inicialmente tivesse sido convidado como em tópicoscorno acção, género dramático (em particular, a tragédia), .'
dramaturgo, tarefa que nunca .viria a cumprir), Lessing participa no · personagem e emoção, afim de combater a influência. do : neo-
ambicioso projecto de filosofia iluminista que consistia em criar uma · -classicisrno francês que dominava os palcos alemães da época. Por
dramaturgia nacional, ou seja, fomentar a criação de textos sobre te- outro lado, a figura do dramaturgista, envolvido directamente na ela-
mas alemães para serem vistos por alemães, num país com uma inci- boração do espectáculo, nãosurge com a experiência de Lessing como '
piente consciência nacional, Com ele é inaugurado um novo cargo; o consultor literário do Teatro Nacional de Hamburgo no século XVH:
.L essing estava principalmente empenhado na arte de compor textos
13 Anthony Dean, texto de abertura de Dramaturgy - a user's guide, Central School apropriados para .infl uenciar o gosto e uma ideia de nação > sob o
of Speech and Drama, Londres, 2000, p. 3.
14 G. E. Lessing, Dramaturgla de Hamburgo, Publicaciones de la Associación de J5 Marvin Carlson, Theorie~ of lhe Theatre, Cornell Unive;sity Pr~ss, ltaca/Londres;
Directoresde Escena de Espana, Madrid, 1993. 1993, p. 168. .
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gistas'", O evento e a publicação tiveram U111 efeito óbvio na defesa de dramaturg (o dramaturgista),' desempenhado por alguém que, não
um corporati visrno profissional. tendo urna função artística, integra a instituição e aí permanece como
A linhagem dramatúrgica iniciada por Lessing trouxe, efectiva- um mediador entreo teatro e o público (o olhar exterior), pelo que é
mente, suplementos semânticos ao termo dramaturgia, passando este a · compreensível, em certa medida, a eleição de Lessing como o "pai" da
designar também, paulatinamente, novas funções dentro do teatro. dramaturgia, em geral, e da figura do dramaturgista, em particular. É,
'M as, terá o conceito, de facto, mudado radicalmente a sua prática ou sobretudo, o acto inaugural .de um espaço discursivo e de um nome
terá sido apenas reinterpretado posteriormente, à luz de um olhar que funciona COl11q argumento desta paternidade.
contemporâneo, de modo a servir como o ponto nodal da dramaturgia Todavia, Dramaturgia de Hamburgo acabou por constituir um
e do dramaturgista? Eventualmente, poderá ser mais correcto começar tratado não intencional de teoria dramática. O seu corpus - críticas de
por distinguir o uso e o contexto do termo dramaturgia para Lessing espectáculos - tende, progressivamente, para abordar assuntos cada
do que corresponde o mesmo termo para nós. No nosso entender, in- vez mais gerais. .pertencentes ao domínio 'da teoria do drama e das
vocar a contribuição de Lessing para o estabelecimento de uma árvore i técnicas do teatro. Estes textos nada 'propõem 110 .sent ido 'do trabalho
genealógica do drarnaturgista condiciona a nossa concepção de dra- do drarna~urgista, .coIi.l.o o conhecemos boje; eles marcam sobretudo. a
rnaturgia tal como a conhecemos hoje, dado que tende a circunscrevê-
-la ao texto. O seu conceito .de dramaturgia reporta-se à composição
I nova abertura do ' teatro à reflexão sobre a função social e .est éticare-
lativamente ao seu público. ·A · dramaturgia de Lessing é urna acção .
dramática, que tem por autor o dramaturgo (a função de drarnaturgista . i moralmente consciente das implicações do teatro cuja missão didácti-
pertenceria ao próprio Lessing, actuando apenas ao nível da institui- ' ca tenciona potenciar: o seu objectivo é direccionar o gosto" e educar a .
ção); a mudança por ele introduzida (ou desejada) reside' no novo al- mentalidade da anónima plateia. Lessing é, um precursor da pedago- .
cance que o texto dramático e o teatro poderiam ganhar enquanto acto gia estética. . " . '., .
social. Por isso, entendemos a dramaturgia de Lessing numa perspec- ' É por isto que a consciência crítica não nós parece definircabal-
tiva didáctica. mente.a sua proposta, mas sim a consciência moral. Por um lado.ios
. escritos de Lessing são dirigidos ao público, que ele ambiciona educar
através da experiência estética do teatro, mas sobretudo, ao dramatur-
go alemão (autor de textos); procurando estabelecer as regras 'e p fi ncí -
Lessing - o crítico e o educador no teatro pios pelos quais uma dramaturgia nacional (igual a conjunto de textos
dramáticos) deveria ser erguida. No volume Theories of lhe Theatre, ..
Marvin Carlson dá conta do tom normativo dos ensaios críticos de:
Lessing (1729-1781) é o autor de Dramaturgia de Hamburgo'", " Lessing nos quais busca a redifinição de regras para as técnicas dra-
colecção de críticas de teatro 'sobre espectáculos representados no . rnáticas do teatro alemão (também para drarnaturgosj'". O predoniínio,
Teatro Nacional de Hamburgo, escritas entre 1767 e 1769 (data da
ao 10ngÇ) de Dramaturgia de Hamburgo, de verbos veiculandoo senti-
falência do mesmo) e publicadas com regularidade nesses anos. Tendo
do de obrigação e dever corrobora a leitura de Carlson e coincide com
sido convidado a integrar a equipa deste teatro na qualidade de "con-
o facto de Lessing se basear 'na Poética de Aristóteles, nomeadamente,
sultor literário" (embora inicialmente tivesse sido convidado como em tópicoscorno acção, género dramático (em particular, a tragédia), .'
dramaturgo, tarefa que nunca .viria a cumprir), Lessing participa no · personagem e emoção, afim de combater a influência. do : neo-
ambicioso projecto de filosofia iluminista que consistia em criar uma · -classicisrno francês que dominava os palcos alemães da época. Por
dramaturgia nacional, ou seja, fomentar a criação de textos sobre te- outro lado, a figura do dramaturgista, envolvido directamente na ela-
mas alemães para serem vistos por alemães, num país com uma inci- boração do espectáculo, nãosurge com a experiência de Lessing como '
piente consciência nacional, Com ele é inaugurado um novo cargo; o consultor literário do Teatro Nacional de Hamburgo no século XVH:
.L essing estava principalmente empenhado na arte de compor textos
13 Anthony Dean, texto de abertura de Dramaturgy - a user's guide, Central School apropriados para .infl uenciar o gosto e uma ideia de nação > sob o
of Speech and Drama, Londres, 2000, p. 3.
14 G. E. Lessing, Dramaturgla de Hamburgo, Publicaciones de la Associación de J5 Marvin Carlson, Theorie~ of lhe Theatre, Cornell Unive;sity Pr~ss, ltaca/Londres;
Directoresde Escena de Espana, Madrid, 1993. 1993, p. 168. .
32 33
Ana Pais
'I( •
Ana Pais o Discurso da Cumplicidade.
A consciência do ponto de vista artístico adoptado no seu discur- ~recht- versões.e técnicas de adaptação
so tem directamente a ver com a noção de leitura - dramatúrgica - que
antecipa e informa todo o espectáculo. Uma "dramaturgia da leitura"
será, pois, um 'modo de estruturar o espectáculo que se prende com Bertolt Brecht (1898-1956) é uma figura revolucionári~,t·antoda'
uma visão ou uma interpretação do mundo, orientada por princípios prática quanto do conceito de drarnaturgia. Por um lado, as técnicas
estabelecidos no início do processo criativo e em função dos quais o por ~le utilizadas no teatro documental encetam um período de abertu-
espectáculo se organiza. Segundo este modelo, o papel do drarnatur- ra gigantesca para a' invasão do social no teatro, enquanto matéria
gista altera-se, deixando de estar unicamente ligado ao texto; o dra- temáti~a e. compromisso artístico. 'Por outro lado, a sua concepção de
maturgista liberta-se gradualmente da sua função de guardião da voz drarnaturgia representa a primeira grande fissura na visão tradicional .
.do autor, que cumpria preservar, e passa a colaborar no processo de do texto no espectáculo. Com a fragmentação de textos já existentes
construção do espectáculo enquanto totalidade de linguagens cénicas. (muitos deles. clássicos), com a sua reestruturação, actualização e
Neste sentido, o século xx apresenta dois momentos-chave para a montagem. cénica, Brecht cunha indelevelmente uma nova acepção de,
evolução do conceito de drarnaturgia: um, com Bertolt Brecht, cujas drarnaturgia - a adaptação.
inovações técnicas e conceptuais se demarcam da representação ilus- . Adaptar é manusear um texto como matéria, como ponto de par-
trativa do texto; e outro com a radicação da performance enquanto tida para uma alteração profunda na forma, acrescentando-lhe uma
acto artístico, cuj as rupturas formais do espaço, do corpo e da subjec- leitura. própria, um outro ponto de vista. O modelo de encenação
tividade abrem caminho 'para a transformação dramatúrgica autónoma brechtiano, claramente político e comprometido com o homem social,
do vínculo ao texto. Embora por razões distintas e apontando para propõe um ponto de vista organizado através de uma sobreposição de
direcções de pesquisa artística diferentes, ambos os momentos se en- perspectivas várias na cena. Apesar de manter uma certa primazia na
trecruzam no desenvolvimento do conceito de dramaturgia como leitu- medida em que -se mantém: como elemento-base do espectáculo, o
ra e contribuem para a referida tomada de consciência do ponto de texto da dramaturgia brechtiana vê-se desobrigado de uma autoria
vista assumido. . intocável, passando a ser apropriado por outra voz que nele projecta a
Entender, em particular, a função do dramaturgista como colabo- sua visão. Estamos tio início da noção de actualização dos clássicos e
rador efectivo no processo de construção do espectáculo, sendo a sua da de autonomia. dos elementos do espectáculo, que reconfiguram
actividade basilar a estruturação e o enquadramento de sentido, resulta novas relações doteatro e do texto-com ornornento presente e, por-
também das duas conjunturas referidas: com Brecht, temos o início da I . tanto, com contextos diferentes da sociedade. . -.
Para Brecht, a pertinência em abordar, um texto clássico deve-se
adaptação de textos e do teatro de conceito (anos 30-50); e, com o I ao que ele considera ser a sua grandeza universalista, estímulo'da cria-
evento da performance, surgem as criações colectivas, a descoberta do
espaço e da pluralidade dos materiais cénicos (anos 60-70). Em pri- ti:id~de e daco])]preensa o da sociedade através da rede de correspon-
meiro lugar abordaremos as inovações brechtianas no campo da
I dências estabelecidas com o presente. Este é o programa de fundo da
estética brechtiana: mostrar o mundo e transformá-lo atra vés do teatro..
adaptação e das suas técnicas, que reequacionam a questão da pers- I . Os clássicos constituem, segundo os padrões da cultura ocidental, uma
pectiva na cena para, em seguida, nos concentrarmos na reorganização
de funções do processo artístico, conduzida pela performance. Vere- reserva de conhecimento humano (pelo valor universal atribuído às
mos ainda nesta alínea de que forma estas duas experiências preconi- questões e conflitos-que colocam sendo, por isso, postulados de in-
temporalidade) e só faz sentido trazê-los à cena, não para uma revisão
zam a dramaturgia do olhar dos anos 80-90 e uma ontologia da alteri-
puramente formal, mas tão-só quando entendidos como uma Obra
dade, ou seja, o papel do dramaturgista como um Outro.
potencialmente nova". O que Brecht procura através das adaptações, '
não é a fidelidade a uma voz autoral subjacente, mas a crítica latente
na conjuntura social e política do texto clássico relativamente à actua-
lidade, colocando-a, por isso, em relação directa com as.condições
políticas e sociais dopresente. Ou seja, as questões fundamentais da . '"
16 . .,. ,
. B. Brecht, Scriui Teatrali, Einaudi, Turim, 2001, p. 11 1.
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1,' <
'I( •
Ana Pais o Discurso da Cumplicidade.
A consciência do ponto de vista artístico adoptado no seu discur- ~recht- versões.e técnicas de adaptação
so tem directamente a ver com a noção de leitura - dramatúrgica - que
antecipa e informa todo o espectáculo. Uma "dramaturgia da leitura"
será, pois, um 'modo de estruturar o espectáculo que se prende com Bertolt Brecht (1898-1956) é uma figura revolucionári~,t·antoda'
uma visão ou uma interpretação do mundo, orientada por princípios prática quanto do conceito de drarnaturgia. Por um lado, as técnicas
estabelecidos no início do processo criativo e em função dos quais o por ~le utilizadas no teatro documental encetam um período de abertu-
espectáculo se organiza. Segundo este modelo, o papel do drarnatur- ra gigantesca para a' invasão do social no teatro, enquanto matéria
gista altera-se, deixando de estar unicamente ligado ao texto; o dra- temáti~a e. compromisso artístico. 'Por outro lado, a sua concepção de
maturgista liberta-se gradualmente da sua função de guardião da voz drarnaturgia representa a primeira grande fissura na visão tradicional .
.do autor, que cumpria preservar, e passa a colaborar no processo de do texto no espectáculo. Com a fragmentação de textos já existentes
construção do espectáculo enquanto totalidade de linguagens cénicas. (muitos deles. clássicos), com a sua reestruturação, actualização e
Neste sentido, o século xx apresenta dois momentos-chave para a montagem. cénica, Brecht cunha indelevelmente uma nova acepção de,
evolução do conceito de drarnaturgia: um, com Bertolt Brecht, cujas drarnaturgia - a adaptação.
inovações técnicas e conceptuais se demarcam da representação ilus- . Adaptar é manusear um texto como matéria, como ponto de par-
trativa do texto; e outro com a radicação da performance enquanto tida para uma alteração profunda na forma, acrescentando-lhe uma
acto artístico, cuj as rupturas formais do espaço, do corpo e da subjec- leitura. própria, um outro ponto de vista. O modelo de encenação
tividade abrem caminho 'para a transformação dramatúrgica autónoma brechtiano, claramente político e comprometido com o homem social,
do vínculo ao texto. Embora por razões distintas e apontando para propõe um ponto de vista organizado através de uma sobreposição de
direcções de pesquisa artística diferentes, ambos os momentos se en- perspectivas várias na cena. Apesar de manter uma certa primazia na
trecruzam no desenvolvimento do conceito de dramaturgia como leitu- medida em que -se mantém: como elemento-base do espectáculo, o
ra e contribuem para a referida tomada de consciência do ponto de texto da dramaturgia brechtiana vê-se desobrigado de uma autoria
vista assumido. . intocável, passando a ser apropriado por outra voz que nele projecta a
Entender, em particular, a função do dramaturgista como colabo- sua visão. Estamos tio início da noção de actualização dos clássicos e
rador efectivo no processo de construção do espectáculo, sendo a sua da de autonomia. dos elementos do espectáculo, que reconfiguram
actividade basilar a estruturação e o enquadramento de sentido, resulta novas relações doteatro e do texto-com ornornento presente e, por-
também das duas conjunturas referidas: com Brecht, temos o início da I . tanto, com contextos diferentes da sociedade. . -.
Para Brecht, a pertinência em abordar, um texto clássico deve-se
adaptação de textos e do teatro de conceito (anos 30-50); e, com o I ao que ele considera ser a sua grandeza universalista, estímulo'da cria-
evento da performance, surgem as criações colectivas, a descoberta do
espaço e da pluralidade dos materiais cénicos (anos 60-70). Em pri- ti:id~de e daco])]preensa o da sociedade através da rede de correspon-
meiro lugar abordaremos as inovações brechtianas no campo da
I dências estabelecidas com o presente. Este é o programa de fundo da
estética brechtiana: mostrar o mundo e transformá-lo atra vés do teatro..
adaptação e das suas técnicas, que reequacionam a questão da pers- I . Os clássicos constituem, segundo os padrões da cultura ocidental, uma
pectiva na cena para, em seguida, nos concentrarmos na reorganização
de funções do processo artístico, conduzida pela performance. Vere- reserva de conhecimento humano (pelo valor universal atribuído às
mos ainda nesta alínea de que forma estas duas experiências preconi- questões e conflitos-que colocam sendo, por isso, postulados de in-
temporalidade) e só faz sentido trazê-los à cena, não para uma revisão
zam a dramaturgia do olhar dos anos 80-90 e uma ontologia da alteri-
puramente formal, mas tão-só quando entendidos como uma Obra
dade, ou seja, o papel do dramaturgista como um Outro.
potencialmente nova". O que Brecht procura através das adaptações, '
não é a fidelidade a uma voz autoral subjacente, mas a crítica latente
na conjuntura social e política do texto clássico relativamente à actua-
lidade, colocando-a, por isso, em relação directa com as.condições
políticas e sociais dopresente. Ou seja, as questões fundamentais da . '"
16 . .,. ,
. B. Brecht, Scriui Teatrali, Einaudi, Turim, 2001, p. 11 1.
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'" . Ana Pais
o Discurso da Cumplicidade
teatro político dos anos 60e 70, quer ao nível da relação com o públi- ficado a dada altura como o "autor ,de peças" ou corno aquele que.lê
co quer ao-nível da equipa de criação artística. manuscritos deoutros'".
Assim se compreende também que se identifique, ainda hoje,
dramaturgia com encenação" ou se fale 'de uma dramaturgia, por
exemplo, brechtiana, o que significa a utilização do termo dramaturgia
'para designar uma dramaturgia de autor (ou dramaturgia "ao modo
o teatro de conceito de"), remetendo-nospara um conjunto de regras ou princípios, caracte-
rísticos de uma criação individual. Este sentido do termo dramaturgia
o teatro de conceito preside à acepção de dramaturgia como identifica um conjunto específico de propriedades relativas a um
adaptação, tal como foi concretizada por Brecht: uma preml~sa est~ti modo do fazer de um autor ou de um conjunto de autores de determi-
ca e ideológica de acordo com a qual todas as escolhas e articulações .nado país (similar à designação de "drarnaturgia nacional", como vi-
de sentido, em suma, as leituras, deverão ser feitas. Podemos conside- mos em Lessing) ou movimento artístico reconhecível.
rar, em certa medida, "teatro de conceito" sinónimo de "teatro docu- A equivalência frequentemente estabelecida entre drarnaturgia e
mental ", pois é a fórmula dicotórnica conteúdo/forma do conceito que encenação alude ao surgimento do encenador (figura, de resto.mascida
postula a vertente documental como pilar de todo o espectáculo. apenas no século XX) enquanto autor que relê o texto a uma nova luz,
A escolha, dos conteúdos e da forma do conceito que servirá o es- sobretudo quando se trata de adaptar textos clássicos. Reescrever os
pectáculo é feita antes de o processo de ensaios ter início, de acordo clássicos tornou-se uma estratégia distinti va 'para os encenadores elo
com uma consciência do teatro como força de intervenção que tem século xx e constitui uma dramatúrgia da leitura por excelência. A
como função "mostrar" ao espectador uma imagem do mundo, Isto encenação do texto decorre.de uma leitura, de uma versão da estrutura
significa que, o trabalho da equipa de dramaturgistas (método introdu- e do significado que ele, pela universalidade que caracteriza a noção
zido por Brecht e Piscator) restringe-se à execução de tarefas previa- de "clássico", potencia: a reescrita é uma forma de evidenciar ele-
mente indicadas dentro de um âmbito conceptual, ou seja, dentro de mentos dos textos originais através de uma visão particular das suas
uma visão que pretende representar um tema particular. O espaço dei- palavras, vendo-as sob mil outro ângulo e.atribuindo também ao ence-' '
xado para a' intervenção da equipa de dramaturgistas é, consequente- nador, que nestes casos geralmente acumula as funções dedrarnatur-
mente, limitado: não obstante ser solicitada a sua colaboração em tare- gista, um cunho autoral.já que é ele o "autor" do novo texto.
fas específicas, as opções relativas ao que Brechtconsiderava fulcral Herdeira das adaptações de clássicos de Brecht, a revisitação dos
num espectáculo - o conceito - pertenciam exclusivamente ao próprio a
Clássicos partir dos anos 70 (desde o Living Theatre, ao Wooster
Brecht. Group atéPeter Stein ou .Bimuntas Nekrosius) pressupõeumaanálise
Com efeito, Brecht foi o seu próprio drarnaturgista. Embora haja do texto radicalizando aspectos e temáticas a um tempo universalistas
quem defenda a instituição da equipa dramatúrgica como o primeiro .e específicas. Correntes 'teóricas da literatura como o New Criticism
passo na entrada do dramaturgista na sala de ensaios'", na dramaturgia arnericâno, o aparecimento dosestudos culturais, das teorias feminis-
de espectáculo, o conceito em si, o elemento drarnatúrgico por exce- tas, dos estudos de' género ou pós-coloniais -fornentam estratégias de
lência, para Brecbt, não era decidido com a equipa de drarnaturgistas. apropriação do texto que se prendem com leituras alternativas, inusi-
Brecht acumula as funções de dramaturgo, de dramaturgista institu- tadas e ideologicamente implicadas e que estimulam o aparecimento
cional, de criador do conceito artístico e de encenador, pelo que não de outras' propostas estéticas. ,
será de estranhar que numa obra auto-reflexiva como A Compra do .: Na realidad,e,.o tra~o . .c omum aos di:,ers?s ~esenvol,:iment?sdo
Latão, a personagem do Filósofo corresponda em maior grau à voz do regresso aos clássicos" 3 e a procura de mspiraçao na universalidade
artista completo (Brecht) e não à personagem do dramaturgista, identi- , I
, I
22' Cf. definições de Palrice Pavis, Diciionalre du Théiure, Dunod, Paris, 1996 (ed.
revista e c o r r i g i d a ) . , ' ' . .
20 Cf. Joel Schechter "ln the beginning thcre was Lessing ... " in Dramaturgy-ln Ame-
,23 CC "The retum or lhe classics", Theaterschrift, n." II, Sabine Pochhammer (org.),
rican. Theatre - a sourcebook, Susan Jonas et. al. (ed.), Harcourt Brace & Com-
Künstlerhaus Bethanien, Berlim, 1997.
pany, Orlando, 1997, pp. 16-24.
41
40
'" . Ana Pais
o Discurso da Cumplicidade
teatro político dos anos 60e 70, quer ao nível da relação com o públi- ficado a dada altura como o "autor ,de peças" ou corno aquele que.lê
co quer ao-nível da equipa de criação artística. manuscritos deoutros'".
Assim se compreende também que se identifique, ainda hoje,
dramaturgia com encenação" ou se fale 'de uma dramaturgia, por
exemplo, brechtiana, o que significa a utilização do termo dramaturgia
'para designar uma dramaturgia de autor (ou dramaturgia "ao modo
o teatro de conceito de"), remetendo-nospara um conjunto de regras ou princípios, caracte-
rísticos de uma criação individual. Este sentido do termo dramaturgia
o teatro de conceito preside à acepção de dramaturgia como identifica um conjunto específico de propriedades relativas a um
adaptação, tal como foi concretizada por Brecht: uma preml~sa est~ti modo do fazer de um autor ou de um conjunto de autores de determi-
ca e ideológica de acordo com a qual todas as escolhas e articulações .nado país (similar à designação de "drarnaturgia nacional", como vi-
de sentido, em suma, as leituras, deverão ser feitas. Podemos conside- mos em Lessing) ou movimento artístico reconhecível.
rar, em certa medida, "teatro de conceito" sinónimo de "teatro docu- A equivalência frequentemente estabelecida entre drarnaturgia e
mental ", pois é a fórmula dicotórnica conteúdo/forma do conceito que encenação alude ao surgimento do encenador (figura, de resto.mascida
postula a vertente documental como pilar de todo o espectáculo. apenas no século XX) enquanto autor que relê o texto a uma nova luz,
A escolha, dos conteúdos e da forma do conceito que servirá o es- sobretudo quando se trata de adaptar textos clássicos. Reescrever os
pectáculo é feita antes de o processo de ensaios ter início, de acordo clássicos tornou-se uma estratégia distinti va 'para os encenadores elo
com uma consciência do teatro como força de intervenção que tem século xx e constitui uma dramatúrgia da leitura por excelência. A
como função "mostrar" ao espectador uma imagem do mundo, Isto encenação do texto decorre.de uma leitura, de uma versão da estrutura
significa que, o trabalho da equipa de dramaturgistas (método introdu- e do significado que ele, pela universalidade que caracteriza a noção
zido por Brecht e Piscator) restringe-se à execução de tarefas previa- de "clássico", potencia: a reescrita é uma forma de evidenciar ele-
mente indicadas dentro de um âmbito conceptual, ou seja, dentro de mentos dos textos originais através de uma visão particular das suas
uma visão que pretende representar um tema particular. O espaço dei- palavras, vendo-as sob mil outro ângulo e.atribuindo também ao ence-' '
xado para a' intervenção da equipa de dramaturgistas é, consequente- nador, que nestes casos geralmente acumula as funções dedrarnatur-
mente, limitado: não obstante ser solicitada a sua colaboração em tare- gista, um cunho autoral.já que é ele o "autor" do novo texto.
fas específicas, as opções relativas ao que Brechtconsiderava fulcral Herdeira das adaptações de clássicos de Brecht, a revisitação dos
num espectáculo - o conceito - pertenciam exclusivamente ao próprio a
Clássicos partir dos anos 70 (desde o Living Theatre, ao Wooster
Brecht. Group atéPeter Stein ou .Bimuntas Nekrosius) pressupõeumaanálise
Com efeito, Brecht foi o seu próprio drarnaturgista. Embora haja do texto radicalizando aspectos e temáticas a um tempo universalistas
quem defenda a instituição da equipa dramatúrgica como o primeiro .e específicas. Correntes 'teóricas da literatura como o New Criticism
passo na entrada do dramaturgista na sala de ensaios'", na dramaturgia arnericâno, o aparecimento dosestudos culturais, das teorias feminis-
de espectáculo, o conceito em si, o elemento drarnatúrgico por exce- tas, dos estudos de' género ou pós-coloniais -fornentam estratégias de
lência, para Brecbt, não era decidido com a equipa de drarnaturgistas. apropriação do texto que se prendem com leituras alternativas, inusi-
Brecht acumula as funções de dramaturgo, de dramaturgista institu- tadas e ideologicamente implicadas e que estimulam o aparecimento
cional, de criador do conceito artístico e de encenador, pelo que não de outras' propostas estéticas. ,
será de estranhar que numa obra auto-reflexiva como A Compra do .: Na realidad,e,.o tra~o . .c omum aos di:,ers?s ~esenvol,:iment?sdo
Latão, a personagem do Filósofo corresponda em maior grau à voz do regresso aos clássicos" 3 e a procura de mspiraçao na universalidade
artista completo (Brecht) e não à personagem do dramaturgista, identi- , I
, I
22' Cf. definições de Palrice Pavis, Diciionalre du Théiure, Dunod, Paris, 1996 (ed.
revista e c o r r i g i d a ) . , ' ' . .
20 Cf. Joel Schechter "ln the beginning thcre was Lessing ... " in Dramaturgy-ln Ame-
,23 CC "The retum or lhe classics", Theaterschrift, n." II, Sabine Pochhammer (org.),
rican. Theatre - a sourcebook, Susan Jonas et. al. (ed.), Harcourt Brace & Com-
Künstlerhaus Bethanien, Berlim, 1997.
pany, Orlando, 1997, pp. 16-24.
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..
(
Ana Pais
o Discurso da Cumplicidade
ou na genialidade desses textos para afirmar um estilo (de autor), é indicadora de uma mudança de fundo relativamente às leituras que
.:pautando a leitura pela desconstrução da impermeabilidade' canónica haviam estado na base da representação teatral, já que o seu ponto
. do texto. Esta opção é, claramente, fruto de uma época de mudanças forte é a erradicação de' uma perspectiva única - a do texto -, para
paradigmãticas, advertindo-nos para a vacuidade suspeita d~ repre- albergar no seu interior uma diversidade de zonas de sentido de sub-
sentação arque·ológica.. Encenar um c1ássicona actualidade exige uma jectividades específicas a cada material artístico, desde o actor ao es-
fundamentação dramatúrgica incontornável, em relação à hisrória do paço, à luz ou ao som.
texto e das .suas versões recentes. Estas vieram também alterar pro- Consequentemente, edificar um espectáculo sem um texto COlUO
'"fundamente a noção de texto que, como veremos de,seguida, se trans- .: elemento central exige alterações ao nível da distribuição de funções
. forma num material de trabalho no qual o encenador e/ou o dramatur- dentro do processo criativo que permitam a constituição do seu discur-
gista se move.. com a ciência para o fragmentar; analisar," citar, justa- so, ou seja, a perforrnance exige uma nova forma de organizar o es-
por e reesttuturar.,.destacando os seus elementos musicais, rítmicos ou pectáculo, uma nova arquitectura dos elementos. Tal como a arqui-
tectura, a perforrnance é construção, é a experimentação dos limites
.composicionais.
das 1i9guagens cénicas e da estruturação de relações possíveis entre
:-
elas. E igualmente desta urgência de encontrar novos modos de cons-
trução do espectáculo que cresce a acepção de dramaturgia como uma
prática de estruturação, que enquadra e relaciona fragmentos e mate-
A performance
riais cénicos, encetando-um novo espaço de troca entre os interve-
nientes na criação (nomeadamente do dramaturgista, como partici-
Numa análise sobre o teatro contemporâneo, Hans-Thies Lehrnan pante efectivo na construção do discurso) e na relação entre o actor e o
designa por teatro pós-dramático (PostdrwnatischesTheater) aquele espectador.
que assenta na redescoberta do espaço e do discurso, liberto de hierar- Destronando' o primado do texto e polemizando a hierarquia de
quias e da causalidade aristotélica. O teatro pós-dramático interroga-se funções no processo criativo (encimada pelo autor e pelo encenador),
sobre o lugar tradicionalmente atribuído ao texto no espectáculo: a performance desenvolve estratégias alternativas de estruturação
[T'[here was neither something like the complete loss ofwords, dramatúrgica: ela procura uma democratização dos materiais e do
nor a sudden re-entering of textinto the theatre. What took place in- p~ocesso criativo., Esta democratização, que influenciará as gerações
stead was the complicated andl71.eandering· development of new vi- vindoras, caracteriza-se por uma abertura essencial a possibilidades de
sions of multiple logos and a new kind of architecture 01' an archltec- colaboração variadas: as contaminações formais, intrínsecas à própria
ture of theatre. 24 . ' . gél~ese da performance instalam-se irreversivelmente e a participação
.. ' Recusando. a perspectiva algo simplista de que a-revolução artís- activa dos actores, quer através das técnicas da improvisação quer dos
tica dos anos 60/70 se resume a uma rejeição absoluta do texto e da métodos de criação colectiva. . .
palavra enquanto baluartes da autoridade logocêntrica, o ensaísta sa- As manifestações híbridas e mu1tidisciplinares da performance
ocorrem em áreas e períodos artísticos multifacetados, oferecendo,
lienta dois aspectos fundamentais para o entendimento da contribuição
que.o evento da performance'f trouxe para a actividade dramatúrgica: pela sua natureza insubmissa e experimental, lima resistência extrema
a nomenclaturas rígidas. Restringir o seu campo fenomenológico e
.múltiplas lógicas e urnanova arquitectura do teatro. A ênfase no olhar
enveredar por argumentações negativistas, para distinguir o que é
teatro ou dança do que é performance (delimitar o que não é perfor-
.. 24 Hans- Thies Lehrnan, "Frorn Logos to Landscape: textin contemporary drama- mance para identificar o que é), tem-se revelado um caminho pantano-
turgy" in'Peiformance Researcli - Letters from Europe, 2 (1), Routledge, Londres, so, pois todas as artes performativas contêm um grau de perforrnance
1997, p. 56.. (desempenho, teatralidade e efemeridade) inerente..
O autor aprofunda ainda esta terminologia no volume Postdramatisches Theater,
Abordando a performance de um ponto de vista ontológico, a es-
FrankfurtlMain, Verlag der Autoren, 1999. .
~ratégi~d! teóric~ norte-americana Peggy Pbelan propõe-se superar as
25 Utilizaremos o termo performance em sentido lato, incluindo as experiências gené-
ricas no campo das artes visuais, do teatro ou da dança, visto ser essa pluralidade
indefinições terminológicas ao esbater as diferenças 'disciplinares num
que caracteriza o período dos anos 60/70.
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(
Ana Pais
o Discurso da Cumplicidade
ou na genialidade desses textos para afirmar um estilo (de autor), é indicadora de uma mudança de fundo relativamente às leituras que
.:pautando a leitura pela desconstrução da impermeabilidade' canónica haviam estado na base da representação teatral, já que o seu ponto
. do texto. Esta opção é, claramente, fruto de uma época de mudanças forte é a erradicação de' uma perspectiva única - a do texto -, para
paradigmãticas, advertindo-nos para a vacuidade suspeita d~ repre- albergar no seu interior uma diversidade de zonas de sentido de sub-
sentação arque·ológica.. Encenar um c1ássicona actualidade exige uma jectividades específicas a cada material artístico, desde o actor ao es-
fundamentação dramatúrgica incontornável, em relação à hisrória do paço, à luz ou ao som.
texto e das .suas versões recentes. Estas vieram também alterar pro- Consequentemente, edificar um espectáculo sem um texto COlUO
."fundamente a noção de texto que, como veremos de,seguida, se trans- .: elemento central exige alterações ao nível da distribuição de funções
. forma num material de trabalho no qual o encenador e/ou o dramatur- dentro do processo criativo que permitam a constituição do seu discur-
gista se move.. com a ciência para o fragmentar; analisar," citar, justa- so, ou seja, a perforrnance exige uma nova forma de organizar o es-
por e reesttuturar.,.destacando os seus elementos musicais, rítmicos ou pectáculo, uma nova arquitectura dos elementos. Tal como a arqui-
tectura, a perforrnance é construção, é a experimentação dos limites
.composicionais.
das 1i9guagens cénicas e da estruturação de relações possíveis entre
:-
elas. E igualmente desta urgência de encontrar novos modos de cons-
trução do espectáculo que cresce a acepção de dramaturgia como uma
prática de estruturação, que enquadra e relaciona fragmentos e mate-
A performance
riais cénicos, encetando-um novo espaço de troca entre os interve-
nientes na criação (nomeadamente do dramaturgista, como partici-
Numa análise sobre o teatro contemporâneo, Hans-Thies Lehrnan pante efectivo na construção do discurso) e na relação entre o actor e o
designa por teatro pós-dramático (PostdrwnatischesTheater) aquele espectador.
que assenta na redescoberta do espaço e do discurso, liberto de hierar- Destronando' o primado do texto e polemizando a hierarquia de
quias e da causalidade aristotélica. O teatro pós-dramático interroga-se funções no processo criativo (encimada pelo autor e pelo encenador),
sobre o lugar tradicionalmente atribuído ao texto no espectáculo: a performance desenvolve estratégias alternativas de estruturação
[T'[here was neither something like the complete loss ofwords, dramatúrgica: ela procura uma democratização dos materiais e do
nor a sudden re-entering of textinto the theatre. What took place in- p~ocesso criativo., Esta democratização, que influenciará as gerações
stead was the complicated andl71.eandering· development of new vi- vindoras, caracteriza-se por uma abertura essencial a possibilidades de
sions of multiple logos and a new kind of architecture 01' an archltec- colaboração variadas: as contaminações formais, intrínsecas à própria
ture of theatre. 24 . ' . gél~ese da performance instalam-se irreversivelmente e a participação
.. ' Recusando. a perspectiva algo simplista de que a-revolução artís- activa dos actores, quer através das técnicas da improvisação quer dos
tica dos anos 60/70 se resume a uma rejeição absoluta do texto e da métodos de criação colectiva. . .
palavra enquanto baluartes da autoridade logocêntrica, o ensaísta sa- As manifestações híbridas e mu1tidisciplinares da performance
ocorrem em áreas e períodos artísticos multifacetados, oferecendo,
lienta dois aspectos fundamentais para o entendimento da contribuição
que.o evento da performance'f trouxe para a actividade dramatúrgica: pela sua natureza insubmissa e experimental, lima resistência extrema
a nomenclaturas rígidas. Restringir o seu campo fenomenológico e
.múltiplas lógicas e urnanova arquitectura do teatro. A ênfase no olhar
enveredar por argumentações negativistas, para distinguir o que é
teatro ou dança do que é performance (delimitar o que não é perfor-
.. 24 Hans- Thies Lehrnan, "Frorn Logos to Landscape: textin contemporary drama- mance para identificar o que é), tem-se revelado um caminho pantano-
turgy" in'Peiformance Researcli - Letters from Europe, 2 (1), Routledge, Londres, so, pois todas as artes performativas contêm um grau de perforrnance
1997, p. 56.. (desempenho, teatralidade e efemeridade) inerente..
O autor aprofunda ainda esta terminologia no volume Postdramatisches Theater,
Abordando a performance de um ponto de vista ontológico, a es-
FrankfurtlMain, Verlag der Autoren, 1999. .
~ratégi~d! teóric~ norte-americana Peggy Pbelan propõe-se superar as
25 Utilizaremos o termo performance em sentido lato, incluindo as experiências gené-
ricas no campo das artes visuais, do teatro ou da dança, visto ser essa pluralidade
indefinições terminológicas ao esbater as diferenças 'disciplinares num
que caracteriza o período dos anos 60/70.
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42
·t
....
Ana Pais o Discurso da Cumplicidade
plano comum a todas, o da natureza do acto performativo. Phelan artísticos, de uma conjunturapropícia. . de um contexto que engloba ~
apresenta uma ontologia da perforrnance que se baseia na efemeridade · heranças e contingências sociais, políticas e culturais, provocando a
e na não-reprodutividade do acto performati ve; isto é, a .per formmi ce mudança. A ·inovação e experimentação de nomes C01110 Duchamp, .
resiste à fixação e à documentação na medida em que, para existir, Gropius, Artaud, Pollock ou Cage configuram um percurso imbricado,
precisa de desaparecer, nada sobrando a não ser o seu fantasma es- mas incontornável, . para a compreensão dessa transformação'". No .
pectral. Defende-se esta resistência como o traço singular da perfor- · entanto, existe um acontecimento que, no nosso entender, pode não ·
mance. Sendo efémera, ela tem lugar apenas no tempo presente (ao ser absolutamente inaugural, mas que podemos propor como marco
vivo) e concretiza-se na proporção directa do seu desaparecimento, relativamente simbólico da performance enquantoespaçoseminal de
constituindo-se pela presença visível do corpo (perforrner) que se dilui contaminações: o primeiro happening (a denominar-se como tal) de
ontologicamente numa ausência invisível, permanecendo unicamente · Allan Kaprow, na Reuben Gallery de Nova Iorque, em 1959, . intitula- O
na memória do espectador. Posto que se proclama irrepetível (corrio, do 18 Happenings in. 6 Paris, .: : . ,. . . ... . . . ..
aliás, qualquer representação dó mesmo espectáculo é diferente da No percurso deKaprow, artista plástico e professor de História de
anterior e da seguinte), a performance resiste à economia da reprodu- · Arte, 18 Happenings irL .6 Parts constitui um momento de charneira na
ção da obra: desaparece para existir (quando registada, transforma-se · experimentação dos limites das disciplinas artísticas, COÚl óbvias re-
no suporte do registo, deixando de ser perforrnance), não se multiplica -percursões na evolução das mesmas . Introduzindo" àpreserrça humana. ',' : .
em réplicas/". Do ponto de vista do material específico da perforrnan- · e a acção no espaço plástico do environment »- ampliando-o .e refor-
ce, esta abordagem é extremamente abrangente e 'per mite-nos pensar a mulando-o -,0 happening possibilita um novo conceito de -obra de
partir da natureza "não-matricial't" ou híbrida que está na base das · arte, transgredindo .as fronteiras tradicionais entre ..as artes plásticas
experiências artísticas dos anos 60 e 70. O hibridismo que a perfor- (esp~ciais) e as .ar tes performativas (temporais). 18 Happenings in. 6
mance exibe na sua génese, não só será responsável pela multiplicação Parts resulta de uma composição de eventos, (situações como espre- ·
de formas performativas de fronteira (como o teatro-dança, a body-art, mer laranjas, manipular uma gravata, movimentos de ginástica, entre
a performance-art ou, mais tarde, os espectáculos multimédia) como outros), realizados por ?performers· (entre eles o próprio Kaprow), em
também contribuirá para uma reescrita da relação do corpo no espaço, 3 sala:s divididas por paredes de plástico semitransparente, onde se po-
tanto nas artes p1ásticas cornonas performativas. diam encontrar assemblages, palavras pintadas ou projecções de dia-
Não trataremos aqui de desenvolver hipóteses para uma drama- positivos. Trocando de lugar entre as 3 · salas, conforme a folha de
turgia específica da performance; cuidaremos, porém, de referenciar instruções rigorosas distribuída à entrada da galeria (indicando ao
as consequências de uma estratégia da multiplicidade, das suas C~)Il o
espectador inclusive quando seria permitido aplaudir), público esta-
quistas formais e processuais para a prática da dramaturgia, a saber: a va direccionado para três frentes, tendo uma visão sempre parcial das
consciência da expressividade própria dos materiais, a relação com O' acções simultâneas que ocorriam nas outras salas. Era-lhe, declarada-
. espaço e a abertura do processo artístico a um espaço de transforma- mente, solicitado o papel de intérprete do sentido do evento. O início e
ção e de contaminação. Por esta razão. . parece-nos importante demo- o fimde cada pequeno evento - ou happening - era assinalado por um .
rarmo-nos um pouco sobre a performance enquanto género per si. · toque de campainha. ' .
Seguramente, seria controverso atestar um único momento para o. A estrutura, do happening consiste, essencialmente, numa "cola-
nascimento da performance enquanto forma artística - até porque gem de eventos" sendo que a. novidade está na amplitudedo leque de .
existem várias histórias da perforrnance que enfatizam a importância materiaisdestes eventos, no cruzamento das artes plásticas e perfor-
de um determinado acontecimento e não outro, pelo facto de partirem mativas, demateriais artísticos e quotidianos: tintas, plásticos, roupas,
de disciplinas artísticas diferentes (da dança, do teatro, da videoarte, fotografias, peças de máquinas, sons, diapositivos, o espaço e os per-
das artes visuais, etc.). Ela surge, como de resto todos os movimentos formers misturam-se num novo diálogo estético'". Kaprow entende.
~ . . . : .
26 Peggy Phelan, <lA Ontologia da Perforrnance" in Revista de Comunicação e Lin- . Cf. RoseLee Goldberg, Performance Arl- From Futurism tothe Present (ed. rev.),
gllagens - Dramas, n." 24, Cosmos, Lisboa, J 998, pp. 171-3. Thames and Hudson, Londres: 1988.
27 Cf Michael Kirby, Happenings, E. P. Dutton, Nova Iorque, ] 965, p. 16 e segs. 29 Allan Kaprow, Assemblage, environments & Happenings,Harry N. Abrams inc.,
Nova Iorque, 1966, p. 198. · .
Tradução nossa.
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Ana Pais o Discurso da Cumplicidade
plano comum a todas, o da natureza do acto performativo. Phelan artísticos, de uma conjunturapropícia. . de um contexto que engloba ~
apresenta uma ontologia da perforrnance que se baseia na efemeridade · heranças e contingências sociais, políticas e culturais, provocando a
e na não-reprodutividade do acto performati ve; isto é, a .per formmi ce mudança. A ·inovação e experimentação de nomes C01110 Duchamp, .
resiste à fixação e à documentação na medida em que, para existir, Gropius, Artaud, Pollock ou Cage configuram um percurso imbricado,
precisa de desaparecer, nada sobrando a não ser o seu fantasma es- mas incontornável, . para a compreensão dessa transformação'". No .
pectral. Defende-se esta resistência como o traço singular da perfor- · entanto, existe um acontecimento que, no nosso entender, pode não ·
mance. Sendo efémera, ela tem lugar apenas no tempo presente (ao ser absolutamente inaugural, mas que podemos propor como marco
vivo) e concretiza-se na proporção directa do seu desaparecimento, relativamente simbólico da performance enquantoespaçoseminal de
constituindo-se pela presença visível do corpo (perforrner) que se dilui contaminações: o primeiro happening (a denominar-se como tal) de
ontologicamente numa ausência invisível, permanecendo unicamente · Allan Kaprow, na Reuben Gallery de Nova Iorque, em 1959, . intitula- O
na memória do espectador. Posto que se proclama irrepetível (corrio, do 18 Happenings in. 6 Paris, .: : . ,. . . ... . . . ..
aliás, qualquer representação dó mesmo espectáculo é diferente da No percurso deKaprow, artista plástico e professor de História de
anterior e da seguinte), a performance resiste à economia da reprodu- · Arte, 18 Happenings irL .6 Parts constitui um momento de charneira na
ção da obra: desaparece para existir (quando registada, transforma-se · experimentação dos limites das disciplinas artísticas, COÚl óbvias re-
no suporte do registo, deixando de ser perforrnance), não se multiplica -percursões na evolução das mesmas . Introduzindo" àpreserrça humana. ',' : .
em réplicas/". Do ponto de vista do material específico da perforrnan- · e a acção no espaço plástico do environment »- ampliando-o .e refor-
ce, esta abordagem é extremamente abrangente e 'per mite-nos pensar a mulando-o -,0 happening possibilita um novo conceito de -obra de
partir da natureza "não-matricial't" ou híbrida que está na base das · arte, transgredindo .as fronteiras tradicionais entre ..as artes plásticas
experiências artísticas dos anos 60 e 70. O hibridismo que a perfor- (esp~ciais) e as .ar tes performativas (temporais). 18 Happenings in. 6
mance exibe na sua génese, não só será responsável pela multiplicação Parts resulta de uma composição de eventos, (situações como espre- ·
de formas performativas de fronteira (como o teatro-dança, a body-art, mer laranjas, manipular uma gravata, movimentos de ginástica, entre
a performance-art ou, mais tarde, os espectáculos multimédia) como outros), realizados por ?performers· (entre eles o próprio Kaprow), em
também contribuirá para uma reescrita da relação do corpo no espaço, 3 sala:s divididas por paredes de plástico semitransparente, onde se po-
tanto nas artes p1ásticas cornonas performativas. diam encontrar assemblages, palavras pintadas ou projecções de dia-
Não trataremos aqui de desenvolver hipóteses para uma drama- positivos. Trocando de lugar entre as 3 · salas, conforme a folha de
turgia específica da performance; cuidaremos, porém, de referenciar instruções rigorosas distribuída à entrada da galeria (indicando ao
as consequências de uma estratégia da multiplicidade, das suas C~)Il o
espectador inclusive quando seria permitido aplaudir), público esta-
quistas formais e processuais para a prática da dramaturgia, a saber: a va direccionado para três frentes, tendo uma visão sempre parcial das
consciência da expressividade própria dos materiais, a relação com O' acções simultâneas que ocorriam nas outras salas. Era-lhe, declarada-
. espaço e a abertura do processo artístico a um espaço de transforma- mente, solicitado o papel de intérprete do sentido do evento. O início e
ção e de contaminação. Por esta razão. . parece-nos importante demo- o fimde cada pequeno evento - ou happening - era assinalado por um .
rarmo-nos um pouco sobre a performance enquanto género per si. · toque de campainha. ' .
Seguramente, seria controverso atestar um único momento para o. A estrutura, do happening consiste, essencialmente, numa "cola-
nascimento da performance enquanto forma artística - até porque gem de eventos" sendo que a. novidade está na amplitudedo leque de .
existem várias histórias da perforrnance que enfatizam a importância materiaisdestes eventos, no cruzamento das artes plásticas e perfor-
de um determinado acontecimento e não outro, pelo facto de partirem mativas, demateriais artísticos e quotidianos: tintas, plásticos, roupas,
de disciplinas artísticas diferentes (da dança, do teatro, da videoarte, fotografias, peças de máquinas, sons, diapositivos, o espaço e os per-
das artes visuais, etc.). Ela surge, como de resto todos os movimentos formers misturam-se num novo diálogo estético'". Kaprow entende.
~ . . . : .
26 Peggy Phelan, <lA Ontologia da Perforrnance" in Revista de Comunicação e Lin- . Cf. RoseLee Goldberg, Performance Arl- From Futurism tothe Present (ed. rev.),
gllagens - Dramas, n." 24, Cosmos, Lisboa, J 998, pp. 171-3. Thames and Hudson, Londres: 1988.
27 Cf Michael Kirby, Happenings, E. P. Dutton, Nova Iorque, ] 965, p. 16 e segs. 29 Allan Kaprow, Assemblage, environments & Happenings,Harry N. Abrams inc.,
Nova Iorque, 1966, p. 198. · .
Tradução nossa.
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.• ' I
.} II
estes elementos (especialmente aqueles extraídos do quotidiano, do 'p or 'e xem plo , Bob Wilson) ou o conceito de environmental thea tre
contexto urbano), por um lado, como materiais que constituem a sub- (anos 60170), de Richard Schechner. Esta base não-matricial funda-
i · jectividade da própria obra de arte - trazem consigo, e geram na obra, menta a dramaturgi~ como modo de estruturação de materiais patente
'. sentidos -, ao contrário da acepção tradicional de materiais enquan to nas m:.te.s perforrnativas contemporâneas, noção que desenvolveremos
formas inócuas transportadoras da subjectividade e da intenção do no proxlmo ponto.
. autor; e, por outro, como componentes equitativamente váli~o~;ha~~ .c: '~o n ceito d~ espaço e a nova consciência da expressividade dos
tando a obra com.igual estatuto e importância aos dos materiais arns- .maten ais na arte influenciarão fortemente as práticas teatrais coevas .
ticos . Esta noção de expressividade inerenteaos materiais ir-s~-áins O t~atl~o dos ar:.0s 60 e 7~ revoluciona o conceito canónico de espaço
talando, gradualmen te, tornando-se fundamental para o entendlI?ent<;> ela 1 epI esentaçao, expandindo o campo da pesquisa artística em duas
de uma nova dimensão, plástica e estrutural, das artesperforrnauvas e vertentes essenciais . Por um lado, saindo do edifício do teatro os es-
visuais. . . paço~)j~.blicos e privados (di~os não-convencionais, como cafés, pra-
. Ao quebrar fronteiras disciplinares, para. se libertar dos constran- ças, fábricas, arrnazens, galenas, apartamentos ou igrejas) são trans-
. gimentos das ' artes plásticas (a moldura; a superfície, a sala .da galer~a11 ~orm:d~s em espaços de . encontro com (outros) públicos. Apesar das
Kaprow mergulha inevitavelmente noutro universo de convenções megaveis ressonâncias com as experimentações vanguardistas dos
artísticas - o do ' teatro :-, o que o leva à criaçãode um discurso arnbí- anos 20 - sobretudo, do movimento russo (Agit-prop) ou do Cabaret
guo e indefinido: .umasitua ção de relações entremateriais no espaço e ,Voltc: il :e, em Zurique -, os anos 60, não obstante ideologicamente
no tempo . . '. lmphc~dos, não procuram nos espaços alternativos um canal para o
Subliminarmente, 18 Happenings in 6 Partspropõe entender a . .cump n m e nto de objectivos propagandísticos; o que se pretende é in-
performance'" 'c om o uma arte gémea das instalações no campo das " . vestir nU~:l1.a nova relação actor/espectador, não-dogmática e ilustrativa
artes plásticas. O happening de Kaprow evidencia a génese híbrida da mas participativa, em que o próprio espaço seja à partida um elemento
' .' performance mostrando a convivência uterina entrea~ artesplástic~s e drarnat úrgico, um elemento constitutivo das novas formas de espectá-
. . as artes performativas, cujas tendências de deserivolvimento nas déca- culo' . O descentrarnento do texto e do espaço teatral reintroduz o acto
das subsequentes vieram a destacar dois géneros intimamente ligados: art~stIco na experiência do quotidiano (seguindo o postulado das pri-
a instalaçâoe .a perforrriance.". O cordão umbilicalque as uneé cons- meirasvanguardas), e alteraria decisivamente os hábitos de percepção
tituído pela experimentação dos limites da obra, ao nível do enqua- tradicionais,
dramento. do espaço e ·da presença do corpÇl.· A instalação, como o Por outro lado, a simultaneidade de acções questiona o conceito
nome indica,' caracteriza-se pela implantação de materiais no espaço, e de espaço como elemento de representação referencial e conduz a uma
a performance, pela radicação efémera do corpo, enquanto material . . no~ão de ocupação temporária, por parte do actor/perforrner. O espaço
.subjectivo, no ' espaço. Esta relação interdisciplinar de base ju~tifica' delx~ de se:: o lugar onde as acções se desenrolam para se tornar num
. que, .do ponto de vista dos estudos de teatro, a .p erforrn ':lnce sej a en- ambiente VIsual, numa atmosfera que se ins tala e fala por si, num ele-
tendida como uma arte "não-rnatricial'Y'. Em contraste com o teatro, a' men.to da estrutura do espectáculo com uma linguagem própria. Neste
perforrnance não. segue uma matriz clara: não conta uma história (não sentido, os anos 60/70 preconizam aquilo a que mais tarde se viria a
parte de ~m texto dramático), não utiliza personagens nem actores chamar dramaturgia. do espaço e, consequentemente, dramaturgia do
(mas perforrners), não representa um espaço nem UITl tempo (usa o espectador, na medida em . que a construção drarnat úrgica do espaço
. espaço e o tempo reais). Ela corta laços importantes com a realidade redimensiona, reestrutura e experimenta os pontos de vista possíveis
que a representação tradicional do teatro convoca: a performance nã<;> para o espectador (semicírculo, no chão, em pé, espectáculos-percur-
. representa o real, apresenta-se a si própria, em tempo e espaço reais. E so, etc.) .
este hibridismo que estimulará o teatro de imagens (rio qual se insere, No que respeita ao processo criativo, os métodos de trabalho co-
l~ctivo e de improvisação resultam de uma abertura, quer à experiên-
30 Retroactivamen te, os happenings são englobados no conceito de performance, cu- cl,a.. aut~-re!lexlv~ do teatro quer à participação de subjectividades
nhado apenas no início dos anos 70 . varras, Il1dlspens~vel para uma nova intervenção do drarnaturgista,
31 Cf. De Oliveira,et. al., Installation Art, Thames and Hudson, Londres. 1994. Como defende Giuseppe Bartolucci, teórico italiano pioneiro na refle-
32 Michael Kirby, op. cit., p. 16 e segs . V. também definição de happening, p. 2 J.
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.} II
estes elementos (especialmente aqueles extraídos do quotidiano, do 'p or 'e xem plo , Bob Wilson) ou o conceito de environmental thea tre
contexto urbano), por um lado, como materiais que constituem a sub- (anos 60170), de Richard Schechner. Esta base não-matricial funda-
i · jectividade da própria obra de arte - trazem consigo, e geram na obra, menta a dramaturgi~ como modo de estruturação de materiais patente
'. sentidos -, ao contrário da acepção tradicional de materiais enquan to nas m:.te.s perforrnativas contemporâneas, noção que desenvolveremos
formas inócuas transportadoras da subjectividade e da intenção do no proxlmo ponto.
. autor; e, por outro, como componentes equitativamente váli~o~;ha~~ .c: '~o n ceito d~ espaço e a nova consciência da expressividade dos
tando a obra com.igual estatuto e importância aos dos materiais arns- .maten ais na arte influenciarão fortemente as práticas teatrais coevas .
ticos . Esta noção de expressividade inerenteaos materiais ir-s~-áins O t~atl~o dos ar:.0s 60 e 7~ revoluciona o conceito canónico de espaço
talando, gradualmen te, tornando-se fundamental para o entendlI?ent<;> ela 1 epI esentaçao, expandindo o campo da pesquisa artística em duas
de uma nova dimensão, plástica e estrutural, das artesperforrnauvas e vertentes essenciais . Por um lado, saindo do edifício do teatro os es-
visuais. . . paço~)j~.blicos e privados (di~os não-convencionais, como cafés, pra-
. Ao quebrar fronteiras disciplinares, para. se libertar dos constran- ças, fábricas, arrnazens, galenas, apartamentos ou igrejas) são trans-
. gimentos das ' artes plásticas (a moldura; a superfície, a sala .da galer~a11 ~orm:d~s em espaços de . encontro com (outros) públicos. Apesar das
Kaprow mergulha inevitavelmente noutro universo de convenções megaveis ressonâncias com as experimentações vanguardistas dos
artísticas - o do ' teatro :-, o que o leva à criaçãode um discurso arnbí- anos 20 - sobretudo, do movimento russo (Agit-prop) ou do Cabaret
guo e indefinido: .umasitua ção de relações entremateriais no espaço e ,Voltc: il :e, em Zurique -, os anos 60, não obstante ideologicamente
no tempo . . '. lmphc~dos, não procuram nos espaços alternativos um canal para o
Subliminarmente, 18 Happenings in 6 Partspropõe entender a . .cump n m e nto de objectivos propagandísticos; o que se pretende é in-
performance'" 'c om o uma arte gémea das instalações no campo das " . vestir nU~:l1.a nova relação actor/espectador, não-dogmática e ilustrativa
artes plásticas. O happening de Kaprow evidencia a génese híbrida da mas participativa, em que o próprio espaço seja à partida um elemento
' .' performance mostrando a convivência uterina entrea~ artesplástic~s e drarnat úrgico, um elemento constitutivo das novas formas de espectá-
. . as artes performativas, cujas tendências de deserivolvimento nas déca- culo' . O descentrarnento do texto e do espaço teatral reintroduz o acto
das subsequentes vieram a destacar dois géneros intimamente ligados: art~stIco na experiência do quotidiano (seguindo o postulado das pri-
a instalaçâoe .a perforrriance.". O cordão umbilicalque as uneé cons- meirasvanguardas), e alteraria decisivamente os hábitos de percepção
tituído pela experimentação dos limites da obra, ao nível do enqua- tradicionais,
dramento. do espaço e ·da presença do corpÇl.· A instalação, como o Por outro lado, a simultaneidade de acções quest