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Comédias e Provérbios

Condessa de Ségur

Composto e impresso por

Printer Portuguesa, Indústria Gráfica, Lda. Mem Martins - Sintra

para a EDITORIAL PUBLICA, com sede na Avenida Poeta Mistral, 6-B - 1000 Lisboa Edição N. "
84/CSl9

Março de 1987 Depósito Legal N. " 14 090/86

À MINHA NETA

HEN RIETTE FRESNEAU

Querida neta, aqui está o livro que te prometi e dedico. Espero que ele te divirta e que os teus
amigos te encontrem nas bondosas crianças que criei.

As tuas admiráveis qualidades aumentam constantemente a minha ternura por ti que, estou
certa, se manterá toda a minha vida.

Tua avó, que muito te ama,

CONDESSA DE SÉGUR

(Rostopchine)

Os caprichos de Gisela

Personagens

Gerville, 30 anos
Leontina, sua mulher, 23 anos

Gisela, sua filha, 5 anos

Branca, irmã de Leontina, 15 anos

Lourença, irmã de Leontina, 13 anos

Pedro, irmão de Leontina, 25 anos

Luís, seu primo, 15 anos

Tiago, seu primo, 13 anos

Paulo, seu primo, 11 anos

Pascoal, criado, 42 anos

Júlia, criada de Gisela, 30 anos

I Acto

Sala da residência dos Gerville. Mesa com artigos de costura e cadeiras à volta. Poltronas a um
canto da divisão. Branca e Lourença trabalhando.

BRANCA - Já acabaste a saia?

LOURENÇA (boceja) - Ainda não. Como é enfadonha a costura! O tecido é tão espesso! Já
tenho o dedo todo picado!

BRANCA - Pois o meu trabalho não é mais agradável do que o teu! É preciso pespontar o
corpete.. . grande maçada! Já parti três agulhas.

LOURENÇA - Levamos uma vida bem triste depois da morte da pobre mamã! Sempre a
trabalhar para a Gisela!.. . Sempre às suas ordens!

BRANCA - E Leontina não quer compreender como isto é enfadonho para nós, que perdemos o
nosso tempo e não aprendemos nada!

LOURENÇA - E que divertido que é ir às Tulherias com Gisela e brincar com as crianças da sua
idade!.. .

BRANCA - E as criadas a quererem sempre que condescendamos com as crianças, que lhes
façamos todas as vontades.. .

LOURENÇA - E todos os dias.. . todos os dias a mesma coisa!.. . Eu vou descansar um pouco,
enquanto estamos sós! É fatigante estar sempre a trabalhar, sempre a trabalhar sem parar!
(Larga a costura e estende-se, à vontade, numa poltrona. )
BRANCA - E eu vou fazer o mesmo; de resto, tenho este corpete quase acabado!.. . (Coloca o
corpete ao lado da boneca e imita Lourença. Não tardam ambas a adormecer. )

GISELA (aproxima-se das tias, olha para elas, com espanto, e diz baixinho) - Olha as preguiçosas
a dormir.. . Ainda bem: pego na saia e no corpete e vou vesti-los à minha boneca. (Pega nas
peças de roupa por acabar e tenta vesti-las à boneca; pica-se num dedo com a agulha deixada
na costura e põe-se a chorar )

BRANCA e LOURENÇA (acordando sobressaltadas)Que foi? Quem está a chorar? És tu, Gisela?
Que tens?

GISELA (batendo em Branca) - Má! Feia! Picaste-me! Fizeste-me doer! Tenho sangue!..

BRANCA - Sangue?! Porquê?

GISELA (chorando) - Porque me picaste, má!

BRANCA - Eu? Piquei-te?.. . Nem sequer te toquei.. .

GISELA - Picaste-me, sim! Tenho sangue!

LOURENÇA - Mas se nem Branca nem eu te picámos!.. . Foste tu mesma.. .

GISELA - És uma mentirosa! Vou queixar-me à mamã.

BRANCA - Porque já sabes que nos ralha..

GISELA - Melhor! Ficarei contente!

LOURENÇA - Só fazes e dizes maldades, Gisela. E para teu castigo, ficarás sem a tua boneca!

GISELA (gritando) - Eu quero a minha boneca! (Procura pegar nela. )

LOURENÇA - Não hás-de levá-la. (Gisela agarra na boneca pela cabeça e puxa-a; Lourença
segura-a pelas pernas; a cabeça despega-se; Gisela cai e, ao cair, parte a cabeça da boneca. )

GISELA (gritando) - Mamã! mamã! Socorro! Branca e Lourença picaram-me e ainda por cima
partiram a minha boneca!

LEONTINA (acudindo) - Que tens tu, meu pequeno tesouro? Porque choras?

GISELA - Branca e Lourença picaram-me, e Lourença partiu a minha boneca.

LEONTINA (levantando-a e abraçando-a) - Não chores, meu anjo, minha pobrezinha! As tias
comprar-te-ão outra boneca muito mais bonita. Como te picaste, minha querida?

GISELA - Elas meteram agulhas no vestido da minha boneca, para que eu me picasse.

BRANCA - Isso não é verdade, Gisela; tu é que lhe pegaste e te picaste a ti mesma.
LEONTINA (secamente) - Mas, Branca, se tu não tivesses deixado a agulha no trabalho, a pobre
criança não se teria picado.

BRANCA - Isso é verdade, minha irmã, mas para que mexeu ela no nosso trabalho?

LEONTINA - O vosso trabalho pertence-lhe, pois é o vestido para a boneca dela.

LOURENÇA - Mas, se lhe mexe enquanto nós trabalhamos nele, pica-se, com certeza. O que
não deve é chorar e dizer que a culpa foi nossa!

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LEONTINA - Que bondade a tua! Vocês estão sempre a contrariar a criança; depois de a terem
arreliado e feito chorar, dizem que ela é má e insuportável.. .

BRANCA - Se a visses nos seus momentos de cólera e de maldade, não a acharias tão gentil
nem tão digna de lástima.

LEONTINA - Eu convivo com ela tanto como tu e vejo bem que são sempre vocês que a
contrariam. De resto, para castigo desta última maldade, vocês vão imediatamente acabar o
vestido que estavam a fazer quando Gisela entrou.

GISELA - E eu quero mais uma touca para a minha boneca.

LEONTINA - Sim, meu amor. (Para as irmãs. ) Hão-de fazer uma touquinha de tafetá branco.

GISELA (a Lourença) - Quero que seja guarnecida com veludo.

LOURENÇA (com enfado) - Há-de ser como ta fizerem.

LEONTINA - Bonita maneira de responder!.. . Vamos, minha pobre Gisela, vem comigo!

GISELA - Não! Quero ficar aqui a vê-las trabalhar. LEONTINA - Elas ainda te vão fazer chorar.. .

GISELA - Se me fizerem chorar, faço com que lhes ralhes. Vai-te embora, mamã, vai.. . quero.. .
(Leontina ri, abraça a filha e sai atirando-lhe beijos.

Branca senta-se diante da mesa, pega num livro e começa a voltar as páginas sem as ler.
Lourença instala-se numa poltrona. )

GISELA - Então! E o meu vestido?.. . E a minha touca?.. .

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LOURENÇA - Deixa-nos em paz com a tua boneca! Diz à tua criada que lhe faça os vestidos, se
os quiseres.

GISELA - Má! Quero que faças o vestido! A mamã mandou.


LOURENÇA - Mas a tua mamã não é a minha mãe! De resto, se ela soubesse como tu és má e
mentirosa, não te daria ouvidos.

GISELA - Se não fizeres o vestido e a touca, vou queixar-me à mamã.

LOURENÇA - Queixa-te a quem quiseres e deixa-nos em paz. (Gisela aproxima-se de Branca,


tira-lhe o livro e rasga, de propósito, as folhas. Branca agarra-se a Gisela, apossa-se do livro e
empurra-a; Gisela cai para cima duma poltrona. )

BRANCA - Fizeste-a bonita! Rasgaste o livro do teu papá, um livro magnífico, cheio de
estampas.

GISELA (levantando-se) - Não fui eu! A culpa foi tua. BRANCA (surpreendida) - A culpa foi
minha?! Boa desculpa! Foste tu que mo arrancaste das mãos.. .

GISELA - Porque estavas a ler? Porque não trabalhavas?

BRANCA - Ah! tu desgostas-me profundamente! Toma, aqui tens o vestido e vai-te! (Branca
atira-lhe à cabeça o vestido da boneca. )

GISELA (furta-se e começa a chorar) - Vou fazer queixa à mamã.

LOURENÇA - Ela vai, mais uma vez, queixar-se à Leontina.. BRANCA - Que importa?.. . É
muito aborrecido ter de obedecer a esta menina de cinco anos, de quem somos tias, e que nos
devia respeitar!

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LOURENÇA - Admira-me que Leontina não tenha já

vindo ralhar-nos e castigar-nos.. . Parece-me que a oiço.. . (Escutam em silêncio. abre-se a


porta; Luis, Tiago e Paulo entram. )

BRANCA - Os nossos primos! Que felicidade!

LUÍS - Bons dias, minhas priminhas! Porque estão aqui fechadas, com um tempo tão lindo?

LOURENÇA - Sempre por causa da Gisela.. . Minha irmã quer que trabalhemos para a boneca
dela.

TIAGO - Vocês são muito parvas! Vão passear, e deixem lá a Gisela e a sua boneca!

BRANCA - Como queres que vamos passear? Só há uma criada para as três.. . e ela faz todas as
vontades à Gisela para agradar à Leontina.. .

PAULO - E vão passar toda a manhã aqui fechadas?

BRANCA - Com certeza; a não ser que Gisela queira sair; nesse caso, somos obrigadas a brincar
com as amigas da idade dela, com quem se encontra nas Tulherias, e fazer tudo o que ela quer.

LUÍS - Mas isso é insuportável! Mandem-na passear!..


BRANCA - E minha irmã? Que diria?

TIAGO - Escuta, tenho uma ideia!.. . Nós estamos em maioria.. . Se pregássemos uma partida à
Gisela?

BRANCA - Seria uma vingança inútil e má!

TIAGO - Não, seria um correctivo.

BRANCA - Que queres fazer?

TIAGO - Não sei ainda, mas podemos combinar.. .

PAULO (pensando um momento) - Que há-de ser?.. Poderíamos tapar-nos com umas coisas
pretas e atirar-nos a ela como se fôssemos ursos.

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BRANCA - Não, não quero isso, porque a assustaria muito.

TIAGO - Bem, e se nos escondêssemos quando ela estivesse com as duas? Vocês irritavam-na
um pouco, e, quando vos tratasse mal, atirávamo-nos a ela e batíamos-lhe com os lenços.

BRANCA - Não, não! Não devemos fazer-lhe mal.

LUÍS - Mas, então, se não queres que lhe metamos medo, se não queres que lhe batamos,
como pretendes corrigi-la?

BRANCA - Dando-lhe uma lição, fazendo-lhe compreender que é muito feio arreliar-nos, andar
a queixar-se de nós, obrigar-nos a fazer-lhe as vontades, e, até, tornar-nos suas escravas.

LUÍS - E tu acreditas que ela compreenderá? Uma menina mimada não se corrige senão
castigando-a.. . Era preciso que a mãe lhe ralhasse e a castigasse.

BRANCA - Mas só faz o contrário! Leontina encontra em Gisela todas as perfeições e todos os
encantos; acredita em tudo o que ela diz, e quer que toda a gente lhe obedeça. E o meu
cunhado ainda é pior que Leontina.

LOURENÇA - Escuta! Tenho uma ideia. Digamos a Gisela que peça a Leontina uma boa
merenda. Deixemo-la comer à vontade, sem se importar connosco.

LUÍS - Eu não pretendo outra coisa.. . mas estou convencido de que ficará ainda pior.

TIAGO - E depois, o que é mais aborrecido é que ela come tudo; não nos deixa nada!.. .

PAULO - E, além disso, a criada e a mãe não a deixarão comer demasiado, com medo de que
lhe faça mal.

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LOURENÇA - Oh! quanto a isso, digo-te que há-de comer tudo o que quiser e quanto quiser.
Para nós, pedirei a Pascoal que nos guarde, às escondidas, a nossa parte da merenda; diante
de Gisela, ele servirá três pedaços a cada uma; Gisela certamente os comerá todos e é nisso
que reside a lição.

LUÍS - Não creio que seja muito boa lição; mas.. . podemos experimentar.

TIAGO - Muito bem! Tendo a certeza de que Pascoal nos guarda a nossa merenda, não
arriscamos nada deixando Gisela devorar tudo o que ele servir.

LOURENÇA - Caluda! Oiço-a! Mostremo-nos alegres, para que ela fique de bom humor. (Gisela
entra cautelosamente para observar o que se passa; vê os primos e recua. Paulo, Tiago e Luis
correm para ela. )

PAULO (abraçando-a) - Adeus, minha Giselinha; viemos ver-te.

TIAGO (abraçando-a) - Minha Giselinha, temos muita fome; manda-nos dar qualquer coisa de
comer, sim?..

LUÍS (abraçando-a) - Minha Giselinha, mandas servir-nos coisas muito boas, não é verdade?
Cerejas, damascos, pêssegos!..

TIAGO - Creme!..

PAULO - Pastéis!..

LUÍS - Compotas!.. .

GISELA - Sim, sim, terão tudo; vou dizer ao Pascoal. BRANCA - Mas, se pedisses licença à
mamã?

GISELA - Ora! não vale a pena! A mamã deixa-me fazer tudo o que eu quiser.

LOURENÇA - Queres que diga áo Pascoal que venha falar contigo, minha queridinha?

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GISELA - Não, não quero; eu mesma o chamo. (Toca a campainha.)

PASCOAL - As meninas chamaram?

GISELA - Fui eu! Quero que tragas a merenda. Muitas coisas.

PASCOAL (aborrecido) - Não valia a pena incomodar-se, menina Gisela; a sua criada trataria
disso.

GISELA - Mas quero muitas coisas: pastéis, cerejas, damascos, creme, compotas.. .

PASCOAL - Oh! Oh! menina Gisela, a menina é muito gulosa; não lhe posso dar tantas coisas.
Pão e cerejas chega muito bem.. .
GISELA (imperiosa) - Quero tudo! Trazes, ou digo à mamã. (Lourença fala baixo a Pascoal, que
sorri e abana a cabeça. )

PASCOAL - Parece-me que isto vai dar mau resultado; mas obedeço!.. . Já que todos estão de
acordo. (Sai;

Tiago segue-o. Pascoal volta servindo o que lhe pediram. Tiago entra com ele. aproxima-se de
Luis e de Paulo, e fala-Lhes baixo. )

GISELA - Que é que vocês estão a dizer? Venham para ao pé de mim.

LUÍS- Sim, minha lindinha. Cá estamos todos. (Rodeiam-na. )

GISELA - Vamos jogar à mão quente.

TIAGO - Sim, minha lindinha, vamos jogar.

GISELA - Sou eu que fico.

PAULO - Sim, minha linda. És tu! (Gisela encosta a cabeça ao colo de Branca, que se senta
numa cadeira; Gisela coloca a mão atrás das costas. Os três rapazes batem-Lhe com força. )

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GISELA (levanta-se vermelha de cólera e esfrega a mão)

- Más! Foram vocês!

LUÍS - Vocês, quem?

GISELA - Branca e Lourença.

TIAGO - Não, não foram elas! Começa outra vez. (Gisela coloca-se na mesma posição. Luis dá-
lhe uma palmada formidável; ela levanta-se, indignada. )

GISELA (chorando) - Maus! Feios! Não quero jogar mais!

LUÍS (rindo) - Porquê, minha linda?

GISELA - Porque vocês me fizeram mal.

TIAGO - Quem te bateu?

GISELA - Foi a Branca. Tenho a certeza disso.

TIAGO - Não. Garanto-te que não foi ela.

PASCOAL - Meninas e senhores, a merenda está servida.

GISELA - Melhor.. . Já não jogamos mais. (Pascoal serve cerejas a Gisela; ela apodera-se de
todas; a Quantidade é muito pequena. )
PASCOAL - E estas meninas e estes senhores? Não lhes deixa nada, menina?

GISELA - Comerão outra coisa; são muito poucas. (As crianças olham umas para as outras e
riem; Gisela come de cada travessa que Lhe serve Pascoal; come tudo e, de cada vez, Pascoal
diz-lhe que os outros ficam sem nada. Gisela responde. ) Não faz mal! Comerão outra coisa:
isto é pouco para mim.. . (Depois de tudo acabado, levantam-se. )

LUÍS (fazendo-lhe uma mesura) - Gisela, és uma glutona: comeste tudo, sem pensar em nós.
Vou-me embora (Sai).

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TIAGO (fazendo a mesura) - Gisela, és uma egoísta: comeste tudo, sem pensar em nós. Vou-me
embora. (Sai. )

PAULO - Gisela, és muito má: comeste tudo, sem pensar em nós, e nós também tínhamos
fome. Vou-me embora.

BRANCA (fazendo a mesura) - Gisela, tu és ruim: não pensas senão em ti. Vou-me embora. (Sai.
)

LOURENÇA (fazendo a mesura) - Gisela, estás sempre a repreender-me: não gosto de ti. Vou-
me embora. (Sai. )

PASCOAL - Menina Gisela, ouviu o que lhe disseram? Todos a abandonam; vou-me embora
também. Que o bom Deus lhe perdoe. (Sai. )

GISELA (só) - Maus!!! Deixaram-me só! Não quero estar sozinha. Pascoal! (Corre para a porta e
procura, em

vão, abri-la. Chora. - Branca! Lourença! Más! Vou estragar o trabalho delas. (Pega nos cestos
da costura e deita

tudo para o chão, calca com os pés os cestos e tudo o que eles contêm; solta um grito de dor e
cai por terra; Pascoal entra.)

PASCOAL - Que foi, menina Gisela? Um ataque de birra?

GISELA (gritando) - Ai o meu pé!.. . ai o meu pé.. . o que fizeram ao meu pé! (Pascoal olha para
o pé que Gisela tem no ar e arranca uma grossa agulha enterrada na sola do sapato.)

PASCOAL - Aqui tem, menina! Não é nada! Foi uma agulha que a picou. Para que atirou tudo
ao chão e tudo pisou? Foi Deus que a castigou.

GISELA - Mas eu não queria que o bom Deus me castigasse.

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PASCOAL - Ah, menina! Tem de aceitar o castigo. Não deve dizer nada. É bem feito. Aquilo que
o bom Deus quiser não pode a menina impedir; que isso lhe sirva de emenda!

GISELA - Isso, quê? Não quero.. .

PASCOAL - Queira ou não.. . isso não importa, menina; o bom Deus não Lhe pedirá licença.

GISELA - Isto dói-me! Ai que me dói!

PASCOAL - Não! não deve doer muito. Uma picada de agulha não tem importância nenhuma!..
. Apanhei outras bem piores, quando estava na tropa.

GISELA - Que tiveste?

PASCOAL - Apanhei um golpe de sabre que me cortou a testa e a cara.

GISELA - Isso não é verdade! Ainda tens a testa e a cara.. .

PASCOAL - Porque têm ossos que o sabre não partiu.

GISELA - Não me importam os teus ossos! Eu estou muito pior!

PASCOAL - Ah! Os meus ossos não lhe importam para nada, menina?.. . Não tem coração!.. .
Foi por isso que o bom Deus a castigou. Vou mandar-lhe a sua criada e entenda-se com ela
como quiser.

GISELA - Não quero a criada; quero a mamã!

PASCOAL - A mamã saiu. (Sai e entra Júlia.)

JÚLIA - Que foi que lhe aconteceu, minha pobre menina? Pascoal disse-me que estava ferida!

GISELA (fazendo cara de choro) - Estou doente! Muito mal! Tenho o pé furado.

JÚLIA (horrorizada) - Furado?! Como? Com quê? Por quem?

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GISELA (choramingando) - Foram Branca e Lourença com uma agulha muito grossa!

JÚLIA (estupefacta) - Branca e Lourença?! Com uma agulha?! Isso é possível? Como é que
deixou?

GISELA (choramingando) - Porque não sabia.

JÚLIA - Não sabia o quê?

GISELA - Deixa-me! não me maces.. . eu digo à mamã!

JÚLIA - Mas que é que vai dizer à sua mamã? Não compreendo nada.. .

GISELA - Não me aborreças, senão digo à mamã que não te dê o vestido que queres. Hei-de
fazer com que a mamã e o papá não te dêem mais nada.
JÚLIA (acariciando Gisela) - Oh! Gisela! minha Giselinha! não faça isso! A menina não tem
coragem de dar esse desgosto à sua pobre Júlia que gosta tanto de si! Vamos lá a saber: diga-
me o que quer, o que deseja. Diga.. . faço-lhe tudo o que me mandar.

GISELA - Quero que digas à mamã o mesmo que eu.

JÚLIA - O que quiser, meu anjo, mas.. . que Lhe vai dizer? Que quer que lhe diga?

GISELA - Dirás como eu que foram Branca e Lourença que me furaram o pé.

JÚLIA - Sim, meu tesouro. Fique descansada. Só preciso que me explique.. . (Entra Leontina. )

GISELA - Mamã, mamã! Branca e Lourença furaram-me o pé.

LEONTINA (soltando um grito) - Furaram-te um pé!.. . Pobre criança! Com quê? Porquê?

GISELA - Com uma agulha muito grossa!

LEONTINA - Mas como fizeram elas isso? Não compreendo! É verdade, Júlia?

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JÚLIA - Sim, minha senhora, é verdade! (A parte. )

Esta malvada criança obriga-me sempre a mentir, que vergonha!

LEONTINA - Explica-me como isso foi. Não compreendo.. .

JÚLIA (baixo a Gisela) - Diga-me, depressa, minha

filha! Eu não estava, a menina é que sabe. (Gisela acalma-se e sorri com ar de triunfo. )

LEONTINA (a Júlia) - Responde-me, Júlia. Como foi que Branca e Lourença furaram o pé da
minha filha?

JÚLIA - Juro-lhe, minha senhora, que não sei de nada. Nada lhe posso dizer.

LEONTINA - Não podes dizer nada?.. . Porque me disseste então que era verdade, como se
estivesses presente?

GISELA - Mamã, é que ela deixou-me sozinha com Branca, Lourença e os três primos, e tem
medo que lhe ralhes e não lhe dês o vestido que te pedi para ela.

JÚLIA (à parte) - Que má criança! Se pudesse desmascará-la, fazia-o de boa vontade.

LEONTINA - Minha pobre filha, já experimentaste andar? Podes apoiar o pé no chão?

GISELA - Não sei, mamã. Ainda não experimentei. (Levanta-se, finge não poder equilibrar-se e
cai nos braços da mãe. )
LEONTINA (desolada) - Pobre criança! Onde estão essas raparigas? Júlia, vai chamá-las e
manda-me cá o Pascoal. (Deita Gisela numa poltrona, descalça-lhe a chinela e quer descalçar-
lhe a meia. )

GISELA (debatendo-se) - Não quero que me descalcem a meia.. . não quero que me toquem!

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LEONTINA - Mas, meu anjo, é para ver a ferida e pôr-te qualquer coisa no pé. (Gisela continua
a debater-se e Leontina a querer descalçá-la. Pascoal entra; olha um instante com ar de troça. )

PASCOAL - A senhora chamou?

LEONTINA - Sim, Pascoal; vai depressa chamar o médico!

PASCOAL - A senhora está doente?

LEONTINA - Não é para mim, Pascoal, é para a minha pobre filha, que está ferida num pé.
Depressa, depressa, Pascoal! Vai, corre!

PASCOAL (sorrindo) - Minha senhora, já viu o ferimento da menina? Peço perdão de não
obedecer de imediato, mas creio que a menina não tem nada que careça dos cuidados dum
médico.

LEONTINA (com vivacidade) - Como?! Não tem nada? Para ti um pé furado, não é nada?

PASCOAL (com calma) - Esteja tranquila, minha senhora! Eu estava presente. Não foi nada! Fui
eu que tirei a agulha que a menina enterrou no pé quando espezinhava a costura, e bem vi que
não era nada de cuidado.

LEONTINA (muito surpreendida) - Não compreendo! Gisela disse-me que Branca e Lourença
lhe tinham furado o pé.. .

PASCOAL - Não, minha senhora, é falso! As meninas nem sequer estavam na sala; tinham saído
com os primos. Eu estava ali ao lado e ouvi o que dizia e o que fazia a menina Gisela. Entrei
quando ela soltou um grito, e tirei-lhe imediatamente a agulha.

LEONTINA - Mas bem vês que ela se feriu! E porque deixaram sozinha a pobre criança? Porque
a abandonaram?

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As minhas irmãs são tão más para ela, que eu, realmente, não sei que hei-de fazer.

PASCOAL - Perdão, minha senhora, se reconstituo os factos! A menina é que tem mau génio e..
. não é nada boa; as tias são muito condescendentes e amáveis para com ela; mas a menina
Gisela não é fácil de contentar; empurra-as e molesta-as. Às vezes bate-lhes, mas as pobres
pequenas têm muita paciência: nunca dão troco aos maus tratos e às más palavras que
recebem.
LEONTINA - Achas que foi bem feito elas terem deixado a minha pobre Gisela sozinha?

PASCOAL - Perdão, minha senhora. A menina tinha comido, ela sozinha, a merenda que eu
havia servido para todos; eles não ficaram contentes e com razão.. . Foram-se embora, para
irem comer.

GISELA (pálida e com voz fraca) - Mamã, estou doente.. .

LEONTINA - Doente, a minha filha! Minha querida. Pascoal, vai depressa chamar o médico.
(Vendo Que Pascoal quer falar. ) Peço-te que guardes as tuas razões para ti só. (Pascoal sai,
encolhendo os ombros. Leontina assustada, desolada, corre para a porta e para a janela
aberta, gritando) - Júlia! Branca! Lourença! (A criada chega e leva Gisela no momento em que
Branca, Lourença e os primos entram na sala. )

LOURENÇA (assustada) - Que aconteceu? Porque leva Júlia a Gisela?

LEONTINA (fora de si) - Que aconteceu? O vosso mau e horrível procedimento há-de ser a
causa da morte de minha filha! A minha querida Gisela, a minha terna e boa Gisela, vossa
vítima de todos os dias!.. .

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BRANCA - Minha pobre irmã, a dor cega-te! A que horrível procedimento te queres referir? A
qual vítima? Não compreendo nada!.. .

LEONTINA (no mesmo tom) - Juntam a ironia e a hipocrisia à crueldade?.. . Pois fiquem
sabendo que a minha paciência há muito está esgotada e que, senhora do vosso destino, vou
puni-las como merecem. (Sai; as crianças ficam todas como que pregadas ao chão. )

LUÍS - E esta!.. . que quer tudo isto dizer? Leontina está furiosa! Que teria acontecido a Gisela?

TIAGO - Decerto foi castigada por causa da sua gula; a enorme merenda certamente fez-lhe
mal e está em risco de Lhe acontecer alguma coisa, o que ela injusta e maldosamente nos
atribui.

PAULO - É bem feito! Não sou eu quem há-de chorar por ela.

LOURENÇA - Estou convencida de que houve má intenção. Ela não deve estar tão doente.. .

LUÍS - Ora!.. . Não será nada! Uma indigestão e nada mais! O que me parece é que a lição de
nada lhe servirá.

TIAGO - E ainda há-de ficar pior.

BRANCA - Já não somos felizes, agora! Que será de nós se Gisela se tornar pior?.. .

LUÍS - Escuta! Se vocês são infelizes é preciso fazer queixa ao vosso cunhado, o marido da
Leontina.
BRANCA - Meu cunhado!.. . Pela Gisela é ainda mais cego do que a Leontina. Estou convencida
de que, se a filha lhe dissesse que nos expulsasse e deitasse pela janela, ele fazia-o.

PAULO - Porque não escrevem ao primo Pedro, que gosta tanto de vocês?

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BRANCA - Sabes bem que o Pedro se casou há pouco tempo, está em casa dos pais da mulher,
e nós não o queremos incomodar com as nossas queixas.

LOURENÇA - Além disso, minha cunhada Noémia é tão nova! Que queres que ela faça por nós?

LUÍS - Eu bem sei que ela é muito nova, mas é vossa amiga há muito tempo; fará tudo o que
puder para as auxiliar a sair da casa de Leontina. Pedro pode mandar em vocês na qualidade
de irmão mais velho. Asseguro-vos que faziam bem se Lhe escrevessem.

BRANCA - Repugna-me fazer queixa da Leontina e do marido!

TIAGO - Queixa-te só da Gisela.. é mais fácil!..

BRANCA - Sim.. . mas a Gisela não seria má para nós, não nos tornaria infelizes, se não fosse
horrivelmente mimada; as suas maldades reflectem-se em Leontina.

TIAGO (baixo, a Luis e a Paulo) - Não digam mais nada; escreveremos nós ao Pedro.
Assinaremos a carta os três e contaremos tudo o que temos visto e ouvido há seis meses.

PAULO (baixo a Luis e Tiago) - Tens razão, é mais seguro! Tu, Luís, escreves a carta, e nós
assinamos contigo.

LOURENÇA - Que estão vocês a dizer? Se estão a combinar alguma coisa, digam-nos; não
tornem a nossa posição pior e mais triste em vez de a melhorar.

LUÍS - Não, não, estejam descansadas, priminhas; não faremos nada que as possa desgostar.
(Pascoal entra.

PASCOAL - Acabo de trazer o médico que a senhora pediu, mas estou convencido de que não
será preciso, porque o que a menina Gisela tem não passa de uma indigestão.

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LOURENÇA - Meu Deus! Sou responsável por a ter deixado comer tudo! A culpa foi minha!
Leontina tem razão em não gostar de mim.

TIAGO - Não foste tu que a obrigaste a comer, minha Lourença, foi a sua gulodice.

LUÍS - Deves antes dizer: a sua gula.

PASCOAL - Deus castigou-a, meninas e meus senhores; acreditem-me: tudo o que Deus faz é
bem feito. Sabem o que ela me disse há pouco, quando lhe falei do golpe que me fizeram com
um sabre? (Imita Gisela. ) Não me importam os teus ossos! Já é ser má!.. . Como querem que
Deus ature coisas semelhantes sem as punir? (Leontina banhada em lágrimas, entra e atira-se
para cima duma poltrona. )

LEONTINA - Minha filha! Minha filha! Minha Gisela querida! Ela morre! Vou perdê-la! Minha
adorada filha! Minha estremada filha!!! (Mergulha a cabeça nas almofadas. )

BRANCA (amparando-a nos braços) - Leontina. Minha irmã! Não te apoquentes! Não se morre
de uma indigestão.. .

LEONTINA (afasta-a com violência) - Deixa-me! Vai-te! Causas-me horror! Não me toques! Não
te aproximes! As duas envenenaram a vida da minha pobre filha! Agora que ela vai morrer têm
a ousadia de me falarem com doçura, procurando consolar-me.. .

LUÍS - Querida Leontina: que tem a pobre Gisela para estares tão aflita?

LEONTINA - Vómitos medonhos! Já encheu uma bacia de coisas que Branca e Lourença Lhe
fizeram comer

- à força, com certeza.

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LUÍS - Minha pobre Leontina, a tua querida Gisela comeu demais, é verdade, mas Branca e
Lourença não tiveram culpa nenhuma; Pascoal quis impedi-la; não o escutou. Tranquiliza-te.. .
o mesmo me sucedeu há dois anos. Estive bastante doente; deram-me chá fraco, e não morri,
como vês.

LEONTINA - Mas ela não quer tomar nada.

LUÍS - Custará mais um pouco a melhorar.. . mas melhora.

LEONTINA - Tens a certeza? É verdade.. . uma indigestão não mata?.. . Esta querida filha é o
meu tesouro, a minha vida! Logo que ela tem a mais pequenina coisa, já não sei o que digo
nem o que faço. Obrigado, meu bom Luís. ! (Abraça-o.) Restituíste-me a coragem e a razão.

BRANCA (timidamente) - Minha irmã! (Leontina olha-a indignada. )

LEONTINA - Deixem-me! Deixem-me! Não quero vê-las nem ouvi-las. (Sai e entra Pascoal)

PASCOAL - O médico acha-a doente, de facto; tem tido convulsões; tem febre e os vómitos
vêm-lhe de tempos a tempos. Ainda tem qualquer coisa no estômago.. . Mas, porque choram
as meninas? Julgo que não é de desgosto.

BRANCA (chorando) - Minha irmã não quer ver-nos: que será de nós? Que irão fazer-nos?

LOURENÇA (chorando) - E tudo isto por minha culpa; eu podia ter impedido Gisela de comer
tanto.

TIAGO - Tu não a terias impedido; e ninguém no mundo a teria impedido.


PASCOAL - Ela não me quis ouvir, menina. A cada prato dizia-lhe: Olhe que isso é de mais,
menina; não fica

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nada para os outros. E que respondia ela ? Não me interessam os outros! Deixe lá, menina,
com um coração como aquele não há nada a fazer! Sobretudo, não há nada de que se
censurar.. . (Júlia entra. )

JÚLIA - Meninas, a menina Gisela está um pouco melhor; adormeceu.

BRANCA - Minha irmã está mais tranquila?

JÚLIA - Sim, menina. O médico disse que não era nada de cuidado.

LOURENÇA - Posso ir vê-la?

JÚLIA - Não, menina! Ela está furiosa consigo! E o pai?.. Diz que, se a vê, lhe quebra a bengala
nas costas.

BRANCA - Meu Deus, meu Deus! Que nos vai acontecer?.. . (Chora, assim como Lourença; os
três primos agrupam-se à volta delas, abraçam-nas e consolam-nas. Júlia sai. )

TIAGO - Estamos sós e podemos falar à vontade. Branca e Lourença: Luís vai escrever a Pedro
em nome dos três e expor-lhe a terrível situação em que se encontram em casa de Leontina,
por causa da peste da Gisela. Vamos pedir-lhe que as leve da casa da vossa irmã e o mais
depressa possível.

BRANCA - Não, não, Tiago! Se minha irmã e o marido chegam a saber, ficam furiosos e
proíbem-vos que nos visitem.

LUÍS - Quem não se arriscou, não perdeu nem ganhou! A vossa vida é demasiado triste,
demasiado desgraçada. Isto não pode continuar assim. Pedro gosta muito de vocês. É vosso
tutor e o chefe da família; é ele quem as deve tirar daqui. Eu lhe recomendarei que não fale da
nossa carta a Leontina nem ao marido. (Os três dizem

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adeus às primas e vão para sair, no momento em que Leontina entra. )

LEONTINA (pálida e severa) - Fiquem, meus priminhos; desejo que oiçam o que vou dizer às
vossas primas! (Senta-se.) Branca e Lourença: ia perdendo a minha filha por vossa culpa! -
Silêncio! Não me interrompam! Deviam ensinar a criança e impedir que obedecesse à
tendência natural que todas as crianças têm para comer em excesso. Não o fizeram; pelo que
me disse a pobre Gisela obrigaram-na a comer a fim de que ela adoecesse e ficassem assim
livres duma missão que lhes parece demasiado dura: de guardar e proteger uma encantadora
criança, que é vossa sobrinha, e que, só por esta razão, tinham o dever de amar. O facto pode
repetir-se e eu não devo expor mais a minha querida Gisela. Meu marido está zangado e não
as quer ver; a mim mesma repugna viver com.. . com inimigas da minha filha. Decidimos, pois,
mandá-las para o convento da Visitação: não sairão dali, mas serão felizes. Nada de súplicas
nem de lágrimas! Será inútil! É coisa absolutamente assente. Dentro de oito dias deixarão esta
casa e entrarão no convento; até lá, ficam no seu quarto e passearão com Júlia uma hora ou
duas por dia; não me apareçam na sala.. . Hão-de levar-lhes as refeições ao quarto. - E os meus
priminhos (suaviza a voz), que tão amáveis têm sido com Gisela, que vos estima muito,
venham vê-la muitas vezes, principalmente enquanto a pobre criança estiver doente. Adeus,
meus queridos amigos, até já. (Sai. )

LUÍS - Minhas pobres primas! Não chorem! Isto não dura muito. Vou escrever imediatamente a
Pedro e, antes de três dias, ele estará aqui; tenho a certeza.

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BRANCA (chorando) - Meu Deus, meu Deus! Pobre Leontina! Que cegueira!

LOURENÇA (chorando) - Como é injusta e má para nós!

BRANCA (chorando) - Não acuses demasiado, Lourença! Ela não sabe o que faz. Está tão cega
pelo amor que tem a Gisela, que perde a cabeça com tudo o que Lhe diz respeito.

TIAGO - És muito generosa, Branca. Eu detesto-a e não ponho mais os pés nesta casa, a não ser
que a mamã me obrigue, o que não creio.

PAULO - Viremos vê-las todos os dias se a mamã der licença, e não iremos nunca ao pé da
Gisela.

BRANCA - Que fizemos nós para nos tratarem desta maneira?

LOURENÇA - O que me consola é que ela será a principal prejudicada pela sua maldade; vai-se
aborrecer de morte: não terá ninguém para se divertir, ninguém para atormentar, ninguém
que lhe faça os enxovais das bonecas.

TIAGO - Melhor! Terá o castigo que merece.

LUÍS - Minhas queridas primas, não tarda muito que sejam felizes em casa de Pedro e Noémia;
nós viremos partilhar da vossa felicidade e agradecer a Pedro por as ter socorrido na
infelicidade e no abandono.

BRANCA - Agradecemos, meus amiguinhos, a vossa ternura e consoladoras palavras. Deus os


oiça e toque o coração de Pedro e da Noémia para que venham em nosso auxílio. (Júlia entra. )

JÚLIA - Meninas: o senhor Gerville manda-lhes dizer que vão para os vossos quartos e levem
todas as vossas coisas, porque não as quer ver mais na sala; e aos senhores,

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pede-Lhes a senhora que vão para junto da menina Gisela, que os chama. (Branca e Lourença,
sem responder a Júlia, juntam os seus livros e cestos da costura; Luis, Tiago e Paulo auxiliam-
nas. )

LUÍS - Branca, esqueceste o vestido começado..

BRANCA - Não me esqueci.. . deixo. Não é meu!.. .

JÚLIA - A menina devia acabá-lo.

LOURENÇA - Acaba-o tu. És criada da Gisela.. .

JÚLIA - Os senhores querem vir? Estou à vossa espera.. .

TIAGO - Não é preciso, porque nós vamos para casa.

JÚLIA - A menina vai ficar zangada e a senhora também.

LUÍS - Isso não nos importa. Não temos a meiguice, nem a paciência nem a bondade de Branca
e de Lourença.

JÚLIA - Digo à senhora que recusam ver a menina Gisela, e que defendem estas meninas.

TIAGO - Diz-lhe o que quiseres, malvada, o teu papel é esse.

JÚLIA (com impertinência) - E os senhores ainda são piores do que julgam. E as vossas primas
também: por isso vão ficar fechadas, tanto mais que são elas que os incitam a desobedecer à
senhora e à menina Gisela.

TIAGO - Não é verdade! Mentes! Bem sabes que mentes, vil criatura!

BRANCA - Caluda, Tiago! Deixa-a dizer o que quiser.

JÚLIA (colérica) - Hei-de vingar-me! Hão-de arrepender-se do atrevimento!

PASCOAL (que entrara sem ser visto) - E você, sua hipócrita, há-de ser castigada pela
impertinência com que

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trata os meus jovens amos, e pela sua maldade para com as minhas meninas. Olhe que eu sei
de coisas que a comprometem com a senhora, e que podem fazer-Lhe perder o bom lugar que
tem!.. . Vá! Vá vomitar a sua cólera para longe daqui, e deixe estes senhores e estas meninas
sossegados. (Pega-Lhe num braço, faz-lhe dar meia volta, e empurra-a para a porta apesar da
sua resistência; ela sai)

PASCOAL - Que têm, afinal? Porque estão as meninas a arranjar as suas coisas?

BRANCA - Porque Leontina nos proíbe que voltemos à sala.

LOURENÇA - E quer mandar-nos para um convento.


PASCOAL - Para um convento?! E proibi-las que venham para a sala?.. . Convento? Não pode
ser.. . mas porquê?!

TIAGO - Porque a má da Gisela queixou-se de que as minhas primas a tinham obrigado a comer
muito. Leontina pretende que elas tentaram matar Gisela e nem ela nem o marido querem
voltar a vê-las.

PASCOAL (indignado) - Ah! ele é isso?.. . É assim que tratam as filhas da minha pobre senhora,
que servi durante dez anos? Julgam que ficarei numa casa onde expulsam as minhas jovens
amas? Nem um dia!.. . nem uma hora depois delas!.. . É para as não abandonar, para as
proteger, como me recomendou a sua pobre mãe, que eu estou nesta casa! Se elas partem.. .
vou-me também embora. Vou procurar o senhor Pedro e conto-Lhe tudo o que se passa. Ah!
essa Gisela!.. . Criança sem coração, que expulsa as tias depois de ter dito: Não me importam
os teus ossos! Nem por um império eu ficaria mais tempo a servi-la!

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LUÍS - Meu bom Pascoal: vou escrever hoje mesmo a Pedro para que venha buscar as minhas
primas; não deixes a casa antes de elas saírem; ser-lhes-ás muito útil; pelo menos, ajudá-las-
ás; sem ti ficariam à mercê de Júlia.

PASCOAL - Sim, senhor Luís, fique descansado; tomarei conta delas; não as abandonarei.
Quanto a Júlia, tenho em meu poder uma carta que ela escreveu a uma amiga, .. . cada ovelha
com a sua parelha. A amiga enviou-me a carta numa ocasião de zanga; Júlia diz nessa carta
boas coisas da menina Gisela, do pai e da mãe.. . mas dêem-me tudo isso, meus senhores e
minhas meninas. (Pega nos embrulhos. ) Deixem que eu levo.. . (Saem todos; Luis, Tiago e
Paulo acompanham Lourença e Branca; Pascoal segue-os. )

II Acto

Sala de estar da mesma residência dos Gerville. Várias poltronas e mesinhas dispersas.

GERVILLE - Leontina, faz o que ela te pede; não atormentes a criança!

LEONTINA - Afianço-te, meu amigo: estou farta até à ponta dos cabelos.. . Há três dias que não
me larga!.. . não me deixa fazer nada.. . Ainda não tive um momento para escrever ao Pedro. É
preciso que ela se convença de que vamos meter Branca e Lourença no convento.

GISELA - Quero Branca e Lourença! Tenho saudades delas.

GERVILLE - Meu amorzinho, elas estão sempre a contrariar-te.

GISELA (imperativa) - Não! Não me contrariam; eu quero-as.

LEONTINA - Faço tudo o que pedires, minha filha, e melhor do que elas.
GISELA - Não! Tu és má! Elas são boas! Quero-as.

LEONTINA - Queres ir passear com Júlia?

GISELA - Sim, mas quero que Lourença e Branca venham também.

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GERVILLE - Escuta, meu tesourozinho! Branca e Lourença são más para ti, e tu sabes que.. .

GISELA - Não, elas não são más; fazem-me tudo o que eu quero; tu é que me ralhas.

GERVILLE - Eu! Oh, meu anjo, que dizes?! Ralhar-te? Eu, que te quero tanto!.. . (Vai para a
abraçar. )

GISELA (repelindo-o) - Deixa-me! Não quero que me abraces! A tua barba pica-me. Branca e
Lourença não têm barba!

LEONTINA - Gisela, tu não és amável com teu papá. Não o desgostes!

GISELA (chorando) - Não quero que me ralhem! Quero Branca e Lourença; elas não me ralham.

LEONTINA - Vamos, Gisela! Tem juízo! Queres que eu vá contigo às Tulherias?

GISELA - Não, isso aborrece-me; tu não brincas como Branca e Lourença.

GERVILLE (impacientando-se) - Ora essa! Tu maças-nos com a tua Branca e a tua Lourença. São
más, fazem-te maldades; não quero que brinques com elas.

GISELA - Tu é que és mau, não são elas; não me fazes nada e elas fazem-me vestidos, chapéus
e capas para a minha boneca; elas brincavam tanto comigo e todos os

jogos que eu queria; faziam-me todas as vontades; eram muito boas. Quero-as, pronto!

LEONTINA - Mas, minha queridinha, eras tu que vinhas sempre queixar-te delas!.. .

GISELA - Porque me zangava; não fizessem caso.

GERVILLE - Mas disseste-me que elas te queriam matar, obrigando-te a comer muitos pastéis,
fruta e creme!..

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GISELA - Não, não me obrigaram; não me disseram nada; eu é que menti! Pascoal não queria
que eu comesse, mas eu quis. Branca e Lourença são muito boas; eu quero-as; hei-de chorar
até que elas venham. (O Sr GeRville parece consternado. Leontina esconde o rosto nas mãos e
chora. Gisela bate o pé. )

GERVILLE - Gisela, meu amor! Olha como estás desgostando a mamã. Vês como chora? Estás a
desgostá-la. Vai beijá-la, anda!
GISELA - Não me importa que ela chore! Ela é que é má para Branca e Lourença. Porque as tem
fechadas no quarto? Eu gosto mais delas do que de si e que da mamã! (O Sr. Gervile senta-se,
abatido, numa cadeira. )

LEONTINA - Aqui estão as cenas que sofremos há três dias!

GERVILLE - Escuta, minha Gisela, tu és muito boazinha!

GISELA - Não, não sou boa, sou má!

GERVILLE - Esqueces todas as contrariedades, todas as maldades de Branca e de Lourença,


para não pensares senão nas pequenas coisas que elas te fizeram; mas eu que te amo, desejo
que não voltes a ser atormentada nem contrariada; não quero deixar-te com essas raparigas
más!

GISELA - Tu não gostas de mim e a mamã também não, porque eu quero Branca e Lourença, e
expulsaram-nas e fecharam-nas no seu quarto para que eu não as veja.

GERVILLE - Que fazer, Leontina? Que fazer? (Leontina chora e não responde. Entra Pascoal. )

PASCOAL - O senhor Pedro acaba de chegar e pergunta se a senhora o pode atender.

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LEONTINA - Pedro?.. . Certamente! Que entre já! É Deus que no-lo envia. (Pascoal sai e entra
Pedro. ) Pedro! Como estou contente de te ver! Ia escrever-te a pedir-te que viesses.

PEDRO (friamente) - Sinto-me satisfeito de ter previsto os teus desejos, Leontina!

LEONTINA - Que frieza! Que acolhimento tão glacial! GERVILLE - Que tem, Pedro? Explique-se!

PEDRO (com o mesmo modo) - A explicação não será longa. Venho buscar, para irem viver
comigo, as minhas duas irmãs, Branca e Lourença.

LEONTINA - Buscá-las.. . viverem contigo?.. . Estava justamente para te escrever, comunicando


que ia pô-las no convento.

PEDRO (contendo-se) - Foi por saber isso que eu vim imediatamente buscá-las para lhes evitar
esse desgosto e essa humilhação.

LEONTINA - Como soubeste?

PEDRO - Os primitos Pilet escreveram-me, e, por uma carta de Branca e de Lourença, recebi a
confirmação pormenorizada daquilo que ignorava.

LEONTINA - Porque vais contra a medida que eu, no interesse delas, tive de tomar?

PEDRO (com calor) - Porque sou seu irmão, porque as amo, e porque são infelizes,
abandonadas, sem defesa aos caprichos de uma criança mimada, voluntariosa e má. Porque
soube da vossa fraqueza por esta criança, e da vossa dureza, da vossa injustiça, para com as
minhas pobres irmãs. A tua filha, Leontina, tem-te feito esquecer demasiado os outros laços
que te ligam à família. Esqueces-te de que a nossa pobre mãe, no seu leito da morte

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nos confiou a missão de fazer felizes as nossas irmãs; tomaste-as como brinquedos para tua
filha, e, agora, para completar o abandono, queres separá-las da família, sem teres em
consideração a sua inocência e as suas lágrimas. Eis porque eu, na qualidade de chefe da
família e protector natural e legal das minhas irmãs, as levo para não mais voltarem. (Leontina,
interdita, fica imóvel, Gerville está fortemente agitado. )

GISELA (aproxima-se afectuosamente do tio, pega-lhe na mão e diz-lhe carinhosamente) - Meu


tio, eu gosto da Branca e da Lourença. (Pedro olha-a, surpreendido. )

PEDRO - Que dizes?.. . Branca e Lourença de quem te queixas constantemente?

GISELA - Sim, gosto da Branca e da Lourença; a mamã fechou-as, e eu quero-as; aborreço-me


sem elas; são muito boas e eu fui má. Não foi por culpa delas que eu estive doente. Quero que
lhes abram a porta.

PEDRO (com indignação) - As minhas irmãs fechadas!.. . Fechadas como criminosas! É a tua
própria filha que apresenta a inocência delas e a sua condenação! Oh, Leontina! Tu és culpada
como filha, como irmã e como mãe! (Toca a campainha. )

PASCOAL - O senhor chamou?

PEDRO - Sim, Pascoal; peço-te que vás procurar as minhas irmãs.

PASCOAL - Mas, senhor.. . a senhora ordenou que não saíssem do quarto!.. .

PEDRO - Ah, sim?.. . Vem comigo, Pascoal. Vou soltá-las eu. (Saem. )

LEONTINA (agarrando-se ao pescoço do marido e soluçando) - Vítor, Vítor, eu receio que Pedro
tenha razão

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e que a nossa fraqueza por Gisela nos tenha feito culpados; a mim, sobretudo, que tenho
faltado às promessas feitas a minha mãe e aos deveres para com minhas irmãs. Pobres irmãs!
Que vida lhes tenho feito passar! A pequena acusava-as injustamente! E é a própria Gisela que
me humilha e as justifica.

GERVILLE - Resigna-te, minha Leontina! Se houve falta pode reparar-se. Promete a teu irmão
que serás, para o futuro, mais indulgente para tuas irmãs! Insiste com ele para que as deixe
ficar. A nossa Gisela ficaria satisfeita, e tudo será esquecido.

GISELA (que escutou atentamente) - Ficarei contente se Branca e Lourença não se forem
embora. Não quero que meu tio as leve; quero que elas me distraiam e que façam os fatinhos
da minha boneca. (Pedro regressa com Branca e Lourença. )
PEDRO - Venham, entrem, minhas pobres irmãs! Não chorem mais.. . Não me têm aqui?

GISELA (correndo para as tias) - Branca! Lourença! Que alegria! Pedro abriu-lhes a porta? A
mamã foi má.

fechou-as! Quero que fiquem aqui, sempre comigo, para me divertirem e fazerem os fatinhos
para a minha boneca.

PEDRO - Não, menina; Branca e Lourença vão comigo, foste demasiado má para elas; deste-
lhes muitos

desgostos.

GISELA - Não fui eu.. . foi a mamã!

PEDRO - Para que ias queixar-te à tua mamã e lhe mentias?

LEONTINA - Branca, Lourença! Gisela tem razão; sou eu a culpada; eu é que lhes peço perdão!
Que a minha pobre Gisela não seja punida pelas faltas que eu cometi!

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Concedam o que ela pede há três dias, desde que está separada de vocês. Fiquem com ela;
brinquem com ela; façam-lhe companhia; vivam connosco. De futuro não terão razão de
queixa.

BRANCA - Minha irmã.. . não sei.. : receio que.. . LEONTINA - O quê? Que receias? Que Gisela
vos atormente? Impedi-lo-ei. Se vier com queixas contra vocês, não Lhe darei ouvidos. Juro!

LOURENÇA (baixo, a Pedro) - Pedro! Branca vacila, irá fraquejar!.. . Suplico-te que nos leves.

PEDRO - Leontina, as tuas súplicas são inúteis; as tuas bonitas palavras vêm demasiado tarde.
Prometes o que não poderás cumprir; a tua fraqueza por Gisela há-de-te vencer, como te
vence neste momento em que julgas dominá-la. Não é por amizade para com tuas irmãs, nem
no interesse da sua felicidade que insistes para que fiquem: é para contentar a tua filha, para
evitar que ela chore, que ela grite. Vim para as levar, e, infelizmente, tenho razão para o fazer.

LEONTINA - Asseguro-te, Pedro, que sou sincera! A sua partida desola-me. Branca! minha
irmã! Em nome de nossa mãe, suplico-te que acedas ao meu pedido! Perdoa-me! É com
lágrimas que to peço. (Junta as mãos chorando. )

BRANCA (abraçando-a) - Leontina! choras diante de nós! Pedes-nos perdão! Nem eu nem
Lourença temos contra ti rancor nenhum.

LEONTINA - Ficas então? Ficas?.. . Diz?

LOURENÇA (vivamente) - Pedro é que deve decidir. (Baixo a Pedro. ) Pedro, diz-lhe que não
consentes. Diz que não.. .

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PEDRO - Digo nesta ocasião o que dizia há uma hora: levo as minhas irmãs; ficarão em minha
casa com Noémia, sua amiga de infância, sua irmã.. . que velará pela sua felicidade.

LEONTINA - Se Noémia estivesse aqui, dir-te-ia que acedesses ao meu pedido; acreditaria no
meu arrependimento. Gisela, minha pobre Gisela, as tuas tias vão-se embora não as verás
mais!

GISELA (rebolando-se pelo chão e gritando) - Não quero! Quero ter as minhas tias sempre ao
pé de mim.. . quero que venham comigo às Tulherias, que brinquem comigo, que me divirtam.
Se se vão embora, são más e feias! Rasgo os seus livros, parto as suas coisas e queixo-me ao
papá que as há-de fechar como agora! Hão-de chorar e eu ficarei muito contente!

PEDRO (que escutou de braços cruzados e com ar zombeteiro) - Encantadora criança!.. .


Coraçãozinho de ouro!.. Como é tentador viver junto deste anjo!.. . Como se resgata bem do
passado! Não terás nem Branca nem Lourença, minha querida amiga; nunca mais as farás nem
chorar nem com que as fechem!

GISELA - Mau! Feio! (Atirou-se ao tio para Lhe bater. Pedro agarra-a, dá-Lhe três ou quatro
boas palmadas e senta-a à força numa poltrona. Gisela grita e debate-se. Gerville, precipita-se
para a segurar, Leontina segura o braço de Pedro, que os olha com piedade e desdém. Coloca
Gisela nos braços de Leontina. )

PEDRO - Mãe cega! Aí tens a tua filha. Adeus. (Volta-se para o cunhado. ) O senhor responderá
perante Deus pelo mal que tem feito a sua filha! Julga que a ama e perde-a! Quer a sua
felicidade, e prepara a sua desgraça

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neste mundo e no outro. Adeus! (Conduz Branca e Lourença. )

BRANCA - Espera, Pedro, espera! Deixa-me abraçar Leontina e Gisela! Deixa-me perdoar-lhes e
dizer-lhes que as amo! (Agarra-se ao pescoço de Leontina, que a aperta nos braços, soluçando.
)

LEONTINA - Branca, obrigada, obrigada! És um anjo! Pede por mim e por minha filha. Eu sou
fraca, bem o sinto! Pedro tem razão! Hei-de fazer por ter mais coragem e ser mais justa.
Adeus, minha irmã! Adeus Lourença! (Abraça-as. E voltando-se para Pedro. ) Pedro, abraça-
me! Também sou tua irmã! Culpada e arrependida! oh sim! Sinceramente arrependida!
Perdoa-me. Acredita, Pedro! Meu irmão, abraça-me! (Pedro recebe-a nos braços, e beija-a
repetidas vezes; aperta, sem ressentimento, a mão que lhe estende Gerville. )

PEDRO - Adeus, minha irmã, meu irmão! Adeus! Até breve! (Sai com Branca e Lourença.
Leontina, sentada numa poltrona, chora; Gerville, muito agitado, anda de cá para lá, na sala;
Gisela está amuada numa poltrona. )

PASCOAL (embaraçado) - Minha senhora.. . eu quero.. . isto é: eu queria que a senhora


soubesse.. .
GERVILLE (bruscamente) - Que é? Que queres que a senhora saiba? Explica-te. Que papel é
esse? (Arranca-lhe um papel das mãos. )

PASCOAL - Uma vez que tem a carta na mão, não tenho necessidade de dizer coisa nenhuma. A
senhora saberá que confiança deve ter em Júlia, a criada da menina Gisela.

GERVILLE (com o mesmo modo) - Está bem! Veremos isso. Podes sair.

42

PASCOAL - Não, senhor, ainda não! Antes disso, preciso de dizer à senhora que deixo o seu
serviço e que vou para casa do senhor Pedro.

LEONTINA - Como, Pascoal? Meu bom Pascoal! Deixa-me? A mim, à mais velha da família!

PASCOAL - Perdão, minha senhora! O mais velho é o senhor Pedro. Era para casa dele que eu
devia entrar quando.. . quando a pobre senhora.. . a senhora sabe.. . Por consideração pelas
meninas, tão boas, tão amáveis, pedi ao senhor Pedro que me deixasse vir para sua casa,
minha senhora. Mas.. . francamente.. . a vida aqui não se pode suportar por causa da menina
Gisela. Se não me fui embora há mais tempo, foi para servir e proteger as minhas meninas.
Como se foram embora, pedi ao senhor Pedro licença para as seguir. O bom do senhor Pedro
quer-lhes tanto, que me apertou a mão em sinal de consentimento. Peço-lhe, minha senhora,
que procure quem me substitua; quanto mais cedo, melhor.

LEONTINA (com tristeza) - Tu também, Pascoal? Também tu me vais abandonar! Estava


convencida de que podia contar contigo.

PASCOAL - Perdão, minha senhora! Com a menina Gisela, nem o bom Deus se aguentava. (Sai.
)

LEONTINA (depois de alguns momentos de reflexão)Vítor, temos de modificar a nossa maneira


de educar Gisela. Agora vejo e compreendo quanto a temos estragado e até que ponto lhe
temos sacrificado tudo o que nos rodeia. Estou decidida a tomar uma atitude mais severa e
dizer à Júlia.. .

GERVILLE - Só temos uma coisa a dizer à Júlia, minha querida Leontina: é que faça as malas
esta tarde.

43

Lê a carta que ela escreveu a uma amiga, e que Pascoal me deu.. .

LEONTINA (lendo) - Que miserável! Falar assim da criança!

GERVILLE - E de ti, e de mim.. .

LEONTINA (relendo) - É indigno! (Deixa cair a carta e reflecte. ) Não obstante, isto é verdade!
As expressões são duras, baixas, injuriosas, mas, no fundo, são verdadeiras.. . (Levanta-se. )
Vamos! Coragem, Vítor! Aproveitemos a rude lição de hoje para começar a ser o que devíamos
ter sido desde o nascimento de Gisela: os pais ternos, dedicados, mas firmes e justos. Vamos
pedir a Pascoal que nos procure, para Gisela, uma criada em quem possamos depositar
confiança. Vem, Gisela, vem daí!

GISELA - Não, não quero ir; quero ficar aqui!

LEONTINA (com firmeza) - Vem imediatamente!

GISELA (admirada) - Porquê?

LEONTINA (severamente) - Porque eu quero!

GISELA (com hesitação) - Mas não quero eu.

LEONTINA - Vítor, pega nela, peço-te, e leva-a para o meu quarto. (Gerville agarra nela, apesar
dos seus gritos e da sua cólera, e leva-a. )

LEONTINA (segue-os, dizendo) - Primeira tentativa de firmeza! Meu Deus, dai-me coragem
para continuar!

Criados exemplares

Personagens

Sr. Gaubert, 44 anos

Sr. a Gaubert, 32 anos

Carolina, 8 anos

Teodoro, 10 anos

Hilário, criado, 16 anos

Sidónia, criada de quarto

Antonino, criado estrangeiro

Júlio, criado despedido

Justina, cozinheira

Sr. Guelfo, 50 anos


I Acto

Sala de jantar. Hilário, limpando louça e talheres. Sidónia, estirada numa poltrona ao canto.

SIDÓNIA - Nunca aprenderás o serviço, meu rapaz. Há bem uma hora que enxugas, que limpas
a loiça, e ainda não acabaste.

HILÁRIO - Faço todo o possível por adiantar o trabalho, menina Sidónia, mas.. . mas.. .

SIDÓNIA - Mas quê? Que queres dizer? Fala, homem!

HILÁRIO - Não me atrevo; tenho medo de que se zangue.

SIDÓNIA - Essa é boa! Sempre com medo!.. . Qualquer coisa que faças, tens sempre medo de
alguém ou de alguma coisa.. .

HILÁRIO - É que.. . o que eu quero dizer não Lhe deve agradar.

SIDÓNIA - A mim? Ah! ah! ah!.. . Podes estar descansado, Hilário, não me zangarei com coisa
nenhuma que me digas. Fala, meu rapaz, fala sem receio.

HILÁRIO - Bem! É que.. . se ainda não acabei o trabalho, não sou eu que tenho a culpa, mas a
menina Sidónia.

SIDÓNIA - Eu?.. . Essa é boa! Explica-me isso; terei muito gosto em ouvir a tolice que
vais dizer.

HILÁRIO - Não é tolice, é uma verdade. A senhora disse-lhe que limpasse e arrumasse tudo
isto, e que eu a ajudasse. E a menina nem sequer lhe tocou.. . e eu é que tenho feito tudo.. . E
agora.. .

SIDÓNIA - Agora, como sempre, és um tolo e um basbaque! Devias fazer como eu: deixar tudo
isso sem lhe mexer, sacudir-lhe um pouco o pó, para ficar com a aparência de ter sido limpo, e
o trabalho, tanto para ti como para mim, estaria terminado.

HILÁRIO - Como, menina?.. . E as ordens da senhora? SIDÓNIA - Faz-se o que convém e deixa-
se o que nos maça. Tenho-te dito centenas de vezes, mas não queres crer.

HILÁRIO - Pode dizer-mo outras tantas vezes, que nunca lhe obedecerei. Não, não! Há alguma
coisa em mim que me diz que é mal feito: que é enganar a senhora, tão boa para mim e para
si.

SIDÓNIA - Boa? Deixa-te disso! Elas são sempre muito boas desde que lhes façamos todas as
vontades; mas quando lhes não obedecemos como escravos, não nos deixam em paz, olham-
nos, fazem-nos da vida um inferno! Já estou bem curada de tudo isso, meu rapaz, e faço o que
entendo.. . Olha: aí vem a senhora! Oiço-lhe os passos. (Corre para a mesa onde Hilário limpa a
loiça, pega num prato e num pano e esfrega activamente. )
SR. GAUBERT (entra, aproxima-se da mesa e examina as porcelanas) - Julgava encontrar a loiça
limpa e arrumada antes de sair, Sidónia. E vocês são dois! Que é que os atrasou?

49

SIDÓNIA - Absolutamente nada, minha senhora! Bem vê que é uma grande quantidade.. . Diz a
senhora que somos dois!.. . o pobre Hilário faz o que pode, sem dúvida, mas não é para este
trabalho, pouco desenvolve e, além disso, é preciso voltar a fazer o que ele faz; é como se
estivesse sozinha.. .

SR. A GAUBERT - No entanto, não é coisa muito difícil lavar e limpar a loiça. Meu pobre Hilário:
procure fazer como Sidónia faz. Se nem sequer sabe lavar e limpar um prato, ao fim de três
meses de serviço, como há-de vir a fazer o resto? Sidónia não pode fazer tudo, e se você a não
auxiliar, sou obrigada a substituí-lo. (Hilário, com ar muito admirado, quer falar. Sidónia corta-
Lhe a palavra. )

SIDÓNIA - Minha senhora, seja um pouco indulgente com este pobre rapaz; ele se fará; ainda é
tão novo!..

SR. A GAUBERT - Você diz-me sempre a mesma coisa; eu vou esperando, mas não faz nada,
não aprende nada.. . e a Sidónia sempre a defendê-lo, não sei porquê.. .

CAROLINA e TEODORO (entram a correr) - Mamã, queríamos merendar e só encontrámos pão.


(Hilário sai mostrando-se surpreendido. )

SR. GAUBERT - Sidónia, porque não deixa fruta e doce, como lhe tenho ordenado?

SIDÓNIA - A senhora sabe muito bem que foi o Hilário quem se encarregou da merenda das
crianças; tem tudo fechado de maneira que nada podemos tirar. Já no outro dia, quando veio a
irmã da senhora e pediu de comer, nada lhe pudemos servir, porque o Hilário tinha saído.

SR. A GAUBERT - Isto é muito aborrecido! (Procura o Hilário com a vista. ) Onde está ele? Vá
chamá-lo; preciso

de lhe falar muito a sério!

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SIDÓNIA - Se a senhora me disser o que deseja para as crianças, eu vou buscar; evitarei à
senhora o desgosto de ter de lhe ralhar.

SR. GAUBERT - Não quero ralhar-lhe, quero falar com ele.

SIDÓNIA - Pode ter a certeza de que este rapaz faz quanto pode para agradar à senhora; se me
encarregar de o ensinar, em seis meses estará um excelente servidor.

SR. A GAUBERT - Não, não! Você está sempre a desculpá-lo; estraga-o; quero que ele aprenda
sozinho a ser ordenado e pontual e, sobretudo, a obedecer às ordens que eu lhe dou. Vá
procurá-lo e mande-mo cá. (Sidónia sai contrariada. )
CAROLINA - Mamã, parece que temos de despedir o Hilário.

SR. A GAUBERT - Porquê, minha querida filha?

CAROLINA - Porque é estúpido, preguiçoso, desobediente e não faz as vontades a ninguém.

TEODORO - Não nos dá de beber, nem de comer.

SR. GAUBERT - Porque dizem isso, meus filhos? Quem vos disse tudo isso?

CAROLINA - António, o criado do tio, disse noutro dia que o Hilário lhe tinha recusado um copo
de vinho e biscoitos; depois, Sidónia queria presentear a semana passada com chá e pastéis a
criada dos nossos primos, e o Hilário recusou-lhe o açúcar e o chá.

SR. A GAUBERT - Fez muito bem; não deve dar essas coisas sem minha licença. O que admira é
que Sidónia lho pedisse.

SIDÓNIA (entrando) - Não encontrei o Hilário, minha senhora. Levou as chaves.

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CAROLINA - Que aborrecimento! Que pateta de rapaz! Somos obrigados a comer só pão seco.

SR. A GAUBERT - Não faz mal. Vão pedir manteiga à cozinheira.

SIDÓNIA - Venham comigo meus meninos; minha irmã deu-me um púcaro de arrobe de que
hão-de gostar muito, tenho a certeza. Em cima do pão é muito bom, como vão ver.

TEODORO - Obrigado, Sidónia!

SR. A GAUBERT (para Hilário que acaba de entrar)Ah! é você, Hilário! Onde esteve até agora?

HILÁRIO - Na antecâmara a escovar o casaco da senhora, para estar limpo quando sair.

SR. GAUBERT - Como pode ser isso, se a Sidónia não o encontrou?

HILÁRIO - Não sei, minha senhora; eu não vi a menina Sidónia.

SR. GAUBERT - É singular! Eu disse-lhe que fosse procurá-lo, porque queria falar consigo.. .

HILÁRIO - Eu não sabia que a senhora me tinha chamado. Tem alguma coisa a ordenar?

SR. GAUBERT - Tenho. Porque não deixou em cima do aparador a merenda dos meninos,
conforme lhe tinha dito?

HILÁRIO - Eu cumpri as ordens da senhora; deixei um resto de doce, quatro biscoitos, duas
peras e duas maçãs.

SR. GAUBERT - Se tivesse deixado, como diz, lá estariam ainda, e as crianças não encontrariam
só pão.
HILÁRIO - Não sei, minha senhora.. . não compreendo.. .

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SR. A GAUBERT (sorrindo bondosamente) - Meu pobre rapaz, compreendo.. . Esqueceu-se, e


quer desculpar-se.. . Hilário! Mesmo nas pequenas coisas é feio mentir. Desculpando-se à
custa da mentira, perde a confiança de seus amos. (A Sr. Gaubert sai. )

HILÁRIO (estupefacto) - Não compreendo nada. Sou sempre eu que faço mal, mesmo quando
tenho razão. Tenho a certeza de que deixei para as crianças tudo o que disse à senhora e estou
certo de que já não havia nada quando lá voltei. Que teria acontecido? Teriam eles comido
tudo e, para lhes darem mais, disseram que não encontraram senão pão seco? Não, não é
possível. Estas crianças não tinham interesse em me ralharem sem razão! Que haverá então?
Tenho a certeza de que deixei lá o que a senhora me ordenou.. . parece que tudo
desapareceu.. E que.. . agora me recordo!.. . Não é a primeira vez que isto me sucede.. . No
outro dia a garrafa de Málaga quase cheia.. . Depois, o vinho e o açúcar que desaparecem sem
que eu saiba como.. . Talvez que.. . Mas não.. . é impossível!.. . Ela não era capaz.. . Que mal
Lhe fiz eu? Pelo contrário, ajudo-a tanto quanto posso; faço constantemente o seu trabalho.. .
Seria muito mal feito.. . Um pobre rapaz como eu, órfão, sem um real.. . sujeito-me a tudo!.. . É
impossível! Foi um mau pensamento que tive contra a pobre Sidónia!.. . Todavia não me fio
muito nos seus conselhos; são maus; se lhe der ouvidos, faço-me estimar pelos meus colegas,
é verdade, mas não ficarei bem com a minha consciência. Envergonhar-me-ia perante o senhor
abade, perante a senhora.. . e perante os meus colegas também, porque todos teriam o direito
de me chamar ladrão.. . Meu Deus! eu, que tanto prometi a minha mãe ser

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honesto como meu pai! Faltar à minha promessa!.. . Tornar-me desonesto, falso, um.. . um.. .
sim.. . um ladrão! é o termo. Meu bom e Santo Deus! protegei-me! Minha mãe, meu pai, pedi
pelo vosso pobre Hilário, que ficou só no mundo, abandonado de todos. (Hilário chora e
esconde o rosto nas mãos. )

CAROLINA (entra confusa vendo Hilário a chorar)Hilário! que tens, meu pobre Hilário? Porque
choras tanto?

HILÁRIO (enxugando depressa os olhos) - Não é nada, menina.. . não é nada! Foi uma ideia que
me passou pela cabeça.. .

CAROLINA - Que ideia? Diz, Hilário! Uma ideia muito triste, não é verdade?

HILÁRIO - A menina sabe muito bem que um pobre órfão, sozinho no mundo, não pode ter
ideias alegres! Ninguém gosta dele! Ninguém o defende; ninguém o acolhe e consola! (Enxuga
os olhos. )

CAROLINA - Pobre Hilário! Não chores! Pedirei à mamã que seja muito boa para ti, que não te
ralhe e que não te faça trabalhar.. .
HILÁRIO - Oh! minha menina! Muito obrigado! É muito boazinha! mas eu quero trabalhar; não
quero estar de braços cruzados como um preguiçoso! Pelo contrário, peço que me dêem tanto
trabalho quanto eu possa fazer. Além disso, eu não peço que não me ralhem quando mereça.
O que me desgosta muito é que a mamã esteja sempre convencida de que não digo a verdade,
que minto para me desculpar. Isso é que é muito custoso, menina! Prometi tanto ao meu pai e
à minha mãe que nunca enganaria ninguém, que nunca mentiria! A menina sabe

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que é uma vergonha sermos acusados duma acção vil como esta!

CAROLINA - Mas de que te acusou a mamã?

HILÁRIO - A mamã está convencida de que eu não deixei nada para a vossa merenda e que,
para me desculpar, lhe menti, porque lhe disse que tinha realmente deixado.

CAROLINA - Então é por causa da nossa merenda que estás triste? Não te aflijas por tão pouco.
Que importa que só tivéssemos pão?

HILÁRIO - Não é por causa do pão! É que a mamã está convencida de que lhe menti.

CAROLINA - Eu tratarei do assunto, Hilário, fica descansado. Assim que sair com a mamã,
conto-lhe tudo o que me disseste e hás-de ver que ela te acredita. Adeus, meu bom Hilário,
adeus, não chores! (Carolina sai; um instante depois, por outra porta, entram Sidónia e
Antonino. )

SIDóNIA - Ah ah ah!.. . Repara, Antonino, quem ainda anda a arrumar! Que basbaque me saiu
este rapaz?.. .

ANTONINO - Olha lá, rapaz, não sejas estúpido! Deixa o pano e a loiça. Temos necessidade de
ti. Meia-volta, à esquerda.. . e coloca-te à minha direita. Anda. Eu.. . sou boa pessoa! Não terás
de te arrepender: bem pelo contrário.

HILÁRIO - Logo, senhor! Deixe-me acabar a loiça, que depois irei.

SIDÓNIA - És bem parvo com a loiça! Não levas menos de um quarto de hora a arrumar tudo
isso.

HILÁRIO - Não faz mal, menina Sidónia; não tenho

pressa!

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ANTONINO - Mas temos nós, meu parlapatão! A senhora daqui a duas horas está cá! Espera,
vou ajudar-te.

(Antonino dá um forte safanão a Hilário, que deixa cair uma pilha de pratos que ia arrumar no
armário. Hilário dá um grito. )
HILÁRIO - Meu Deus! Meu Deus! Senhor Antonino, o que fez!.. . Que dirá a senhora?.. .

ANTONINO - Diga o que quiser! Que te importa? Apanha os cacos, que ela nem chegará a
saber que a loiça se partiu; deita-os fora e não te incomodes mais. Ela, com certeza, não vai
hoje contar os pratos.

HILÁRIO - Mas a senhora, mais tarde, há-de saber. ANTONINO - Mais tarde já não te deve
importar, meu pateta.

HILÁRIO - Mas, se ela perguntar quem partiu os pratos?

ANTONINO - Pois bem: não foi ninguém! Nunca foi ninguém! É coisa assente. Todos os patrões
sabem isso.. . Vamos, anda daí!

HILÁRIO - Ah, isso não Mas, em todo o caso, eu hei-de dizer à senhora a desgraça que
aconteceu.

ANTONINO - Como, meu alarve!.. . Tu vais encher os ouvidos à patroa para que ela ralhe
connosco?

HILÁRIO (varrendo os cacos) - Não é a si que ela há-de ralhar, senhor Antonino, pois não o
acusarei. Só eu serei repreendido, porque era eu que levava os pratos e os deixei cair.

ANTONINO - Seja assim! Com efeito, se os trouxesses mais bem seguros, não cairiam. Mas és
asno se te fores acusar, quando ninguém pensa nisso. E agora que já apanhaste os bocados,
vem connosco ao quarto da menina

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Sidónia que nos vai obsequiar com uma garrafa de velho vinho de Málaga e um famoso bolo
que a cozinheira nos fez.

HILÁRIO - Muito obrigado senhor Antonino. A senhora pode ter necessidade de mim e.. .

ANTONINO - Ela saiu com os pequenos.

HILÁRIO - Além disso, não tenho fome; almocei bem, há duas horas.

SIDÓNIA - Que tem isso? Não é preciso ter fome para petiscarmos, e tu vais dar-nos uma
garrafa de vinho branco para regar o bolo. Anda, não sejas pateta! Vem connosco.

HILÁRIO - Obrigado, menina, tenho que fazer; quanto ao vinho, sinto muito, mas não posso
dar-lhe nem um copo. O pouco dinheiro que ganho não o emprego em vinho.

SIDÓNIA - Quem foi que te falou em comprar vinho, estúpido? Acaso pedimos que o pagues? É
do que está na cave, cuja chave está em teu poder.

HILÁRIO - Mas o vinho da cave não é meu, menina, é da senhora.

SIDÓNIA - E então?

HILÁRIO - E então, como não é meu, não o posso dar.. .


SIDÓNIA - Imbecil!

ANTONINO - Animal! - Vem Sidónia, deixa esse alarve fazer de herói, e levemos o que já temos.
Tenho a certeza de que Justina há-de arranjar mais alguma coisa.

JUSTINA - Que fazem vocês aqui? Deixem passar o tempo que a senhora aparece com os
filhos.. . As crianças são a peste numa casa! Metem o nariz em tudo, vêem

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tudo! Despachemo-nos antes que eles farejem o bolo e o café, e que dêem com o esconderijo
do vinho de Málaga.

SIDÓNIA - Foi este imbecil do Hilário que nos entreteve; não quer dar-nos o vinho branco, nem
quer nada do que lhe oferecemos; não sabemos por que ponta lhe havemos de pegar.

JUSTINA - Ah! (Olha Hilário com desconfiança e diz baixo a Sidónia. ) Acautelem-se com esse
rapaz; é um hipócrita.

SIDÓNIA (baixo) - É o mesmo que eu penso. (Alto. ) Já que perdemos a partida, voltemos à
nossa tarefa. (Baixo a Antonino e a Justina. ) Vamos para o meu quarto! Está tudo pronto.
(Saem. )

HILÁRIO (só) - Tenho medo! Sim, tenho medo de me deixar corromper, arrastar pelos maus
exemplos desta gente sem consciência.. . E são meus colegas!.. . E a senhora tem confiança
neles!.. . E roubam-na; pelo menos enganam-na. Que devo fazer? Deixar roubar e enganar a
minha patroa? Não está bem, não está bem.. . Dizer-Lhe o que se passa? Não me acreditará!
Expulsa-me e os outros hão-de continuar a enganá-la.. . Vou continuar a fazer o possível por
economizar no que estiver ao meu alcance, até que possa aconselhar-me com o senhor abade.
Nunca, nunca aceitarei coisa alguma deles. Aí estão as crianças. Lá vão elas incomodar os meus
colegas!

CAROLINA - Hilário, sempre a trabalhar!.. .

HILÁRIO - Menina, há sempre que fazer, quando queremos ter tudo bem limpo. Por onde
entraram? Porque vêm sem a mamã?

CAROLINA - Entrámos pela cozinha ao mesmo tempo que o aguadeiro. A mamã mandou-nos
para casa,

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porque a senhora Duroux pediu-lhe que fosse ajudá-la a escolher loiça.

TEODORO - Hilário, porque é que Sidónia não gosta de ti?


HILÁRIO - Não sei, menino. Talvez seja por eu não estar habituado ao serviço. Trabalho mal,
sou desajeitado.. .

TEODORO - Não, não és desajeitado; tenho reparado que, quando trabalhas sozinho, trabalhas
muito bem, e que não és desajeitado! Só partes as coisas e fazes mal quando ajudas os outros!
Porquê?

HILÁRIO - Não tenho notado isso, menino.. . De facto parece que não parto já tanto.. .

TEODORO - A Sidónia traz constantemente à mamã coisas partidas por ti. Por isso digo eu que
não gosta de ti. (Hilário fica admirado; não responde. )

CAROLINA - Teodoro, não sente um cheiro a café? (Ele aspira com força. ) E a vinho de Málaga
também! Como cheira bem! Vou ver o que é.

HILÁRIO - Não vá, menina; deve ser do café; que estão a passar pelo passador.

CAROLINA - Vou ver fazer o café e provar um pouco. Gosto tanto! (Carolina sai, procura de
Que lado vem o cheiro e dirige-se para a escada que conduz ao quarto de Sidónia. )

TEODORO - Sabes uma coisa, Hilário? A mamã está descontente contigo.

HILÁRIO (com tristeza) - Porquê, menino? Diga-me, para que eu de futuro possa contentá-la.

TEODORO - A mamã diz que és mentiroso; Carolina disse-lhe que não, que só dizias a verdade
e a mamã

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respondeu: É bom rapaz, mas é mentiroso e isso aborrece-me.

HILÁRIO (suspirando) - Se eu fosse mentiroso, não seria bom rapaz; é muito feio mentir e Deus
castiga os mentirosos. Espero que a mamã reconheça que digo sempre a verdade.

CAROLINA (entra sem ruído, mas muito apressada)Teodoro, os criados estão lá em cima no
quarto de Sidónia a beber vinho e café e a comer um bolo e fruta. Riem e falam tão alto, que
não me ouviram chegar; vi-os pela vidraça da porta; vem ver comigo! É muito divertido, e
cheira tão bem!.. . (As crianças querem sair)

HILÁRIO (retendo-as) - Menino, menina, não vão! Se eles estão a beber e comer, os meninos
vão aborrecê-los se os perturbam. Não hão-de gostar. Os meninos sabem que não devemos
incomodar ninguém.

CAROLINA - Isso é verdade, Hilário! Mas cheira tão bem!.. Eles têm um bolo soberbo e toda a
espécie de coisas boas.

HILÁRIO - Está bem, menina! Deixe-os saboreá-los tranquilamente; não os incomode. Afianço-
lhe que é

melhor.
CAROLINA - Parece-me que tens razão; mas eu queria comer um pedaço daquele doce. Parece
tão bom!

HILÁRIO - Peça à menina Justina que lhe faça um. Ela não se recusará.

CAROLINA - É verdade! Justina é muito prestável. (Ouve-se tocar a campainha da porta. )

HILÁRIO - É a senhora. Vou abrir. (Hilário sai e entra um instante depois. ) Não, não é a
senhora: é uma visita para a menina Sidónia.

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TEODORO - Quem? Qual visita?

HILÁRIO - O senhor Júlio, que esteve cá antes de mim.

TEODORO - Júlio! Sidónia recebe-o cá? A mamã despediu-o por coisas tão feias que nem nos
quis dizer. Foi tão impertinente para com a mamã, que o papá correu-o a pontapés. Sabes
porque veio?

HILÁRIO - Não sei! Eis a sala em ordem. Vou lavar-me e vestir-me, para estar pronto quando a
mamã voltar. (Hilário sai. )

CAROLINA - Gosto muito do Hilário: é bom e está sempre a trabalhar.

TEODORO - Parece-me que é ele quem se encarrega do trabalho todo; a mamã julga que não
faz nada e que é Sidónia quem faz tudo.

CAROLINA - A culpa é de Sidónia que o diz à mamã.

TEODORO - E queixa-se sempre do pobre Hilário. (Ouve-se rir e cantar. )

CAROLINA - Que barulho é este! Que estão eles a fazer? Vou ver. (Carolina sai, Teodoro fica à
porta. )

TEODORO - Prefiro não ir. Eles ralham sempre quando aparecemos, enquanto estão a comer.
Depois, Sidónia queixa-se de nós e faz com que nos ralhem. (Carolina entra cautelosamente. )

CAROLINA (em voz baixa) - Teodoro, vamo-nos embora. Eles vêm para a sala de jantar. Tenho
medo.

TEODORO - Medo? Porquê?

CAROLINA - Caluda! Eles têm uma cara que mete medo. Júlio bebia mesmo pela garrafa. Falam
e cantam todos ao mesmo tempo. Júlio disse a Sidónia: Não há perigo; a mulher-a-dias há-de
prevenir-nos quando avistar

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a senhora e os filhos. Então eles começaram novamente com o barulho e Sidónia disse: Esses
velhacos dos rapazes, se os apanho a espreitar-nos, pagam-mo caro! Então escapei-me,
sorrateira, mas ainda ouvi Júlio dizer: Vamos à sala de jantar: tenho chaves falsas; precisamos
de mais vinho, açúcar e aguardente.. . (Carolina escuta. ) Eles aí vêm! Fujamos depressa!
(Teodoro e Carolina fogem; apenas saem, entram os criados rindo e empurrando-se. )

JÚLIO - Ah! Ah!.. . Aqui está a minha sala de jantar! Aqui regalámo-nos nós muitas vezes
quando os patrões estavam ausentes. Vejamos! (Tira chaves do bolso. ) Esta é a chave dos
vinhos e dos licores. (Abre um móvel. ) Cá estão eles!.. . Puro engano! Aqui só há cristais!.. .
Passemos ao outro. (Abre um segundo móvel. ) Nada também! Mas então.. . No outro dia,
quando levei o vinho de Málaga e a aguardente, estava tudo dentro dos móveis como no meu
tempo!.. . Será que ele anda a brincar com a gente, esse cavalheiro que me veio substituir?

ANTONINO - Nunca se viu semelhante palerma como este novato! Não conhece os ossos do
ofício.. . Não sabe sequer que estas trocas de lugar não se fazem sem se avisar os colegas.
Como quer ele que a gente encontre as coisas?

JÚLIO - E tu és tão ingénuo, que acreditas que ele não faz isto por partida? É um finório.. .

SIDÓNIA - É muito capaz disso! O seu ar de pessoa honrada tem-me feito arreliar algumas
vezes. Dir-se-ia que aqui todos são ladrões e que ele está encarregado de nos vigiar. Tem os
vinhos e os licores fechados com certeza, com medo de que Lhes deitemos as mãos.

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ANTONINO - Malandro! Se lhe pudesse ser bom!

JUSTINA - Nós tiraremos a desforra.. . Sidónia lhe fará a cama, quando falar com a senhora.. .

ANTONINO - O pior é que nada há que dizer dele nesta ocasião.

JÚLIO - Nada? Há sempre alguma coisa.. . Sidónia é uma rapariga fina. Ela há-de empregar toda
a sua habilidade em nos livrar desse tratante.

SIDÓNIA - Estejam descansados, meus amigos. Não terei sossego enquanto não o puserem a
andar. Assim que a senhora vier hei-de arranjar qualquer coisa que o faça ouvir uma boa
reprimenda.

JUSTINA - Que queres fazer? Diz-me o que é, Sidónia.. .

SIDÓNIA - É uma coisa com respeito a.. . (Ouve-se a voz da mulher-a-dias. ) Menina Sidónia!
Menina Justina! A senhora! A senhora vem aí! Depressa! Não têm um minuto a perder! (Ouve-
se tocar a campainha. Os criados fogem pela escada. Júlio corre precipitadamente
esquecendo-se do chapéu em cima do aparador. Justina precipita-se a arrumar o quarto de
Sidónia. Sidónia vai lentamente abrir a porta, depois dum segundo toque da campainha. )

SR. A GAUBERT - Que tem, Sidónia? Você está vermelha, parece atrapalhada.. .
SIDÓNIA - É. que acabo de fazer uma descoberta que não deve agradar à senhora.. .

SR. GAUBERT - Que foi? Que aconteceu?

SIDÓNIA - Venha ver, minha senhora. (Abre a porta da despensa e mostra à senhora Gaubert
um cesto com loiça partida. )

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SR. GAUBERT (estupefacta) - Quem quebrou as minhas belas loiças?

SIDÓNIA (com calor) - Quem parte tudo cá em casa! Aquele que a senhora estima e protege,
porque tem muito bom coração! Aquele que põe tudo em desordem e se faz santinho para
agradar à senhora e que, afinal, não passa dum desajeitado, dum parvo e dum hipócrita ainda
por cima! Peço perdão à senhora por falar tão livremente do seu protegido, mas sou muito
afeiçoada à senhora, ocupo-me demasiado dos seus interesses para continuar calada.
Enquanto esse rapaz cá estiver há-de tudo andar torto e o serviço de cada um prejudicado
pelas suas patetices e pela sua má vontade.

SR. A GAUBERT - Mas.. . Sidónia, que mosca lhe mordeu? Você tem-me dito precisamente o
contrário. Tem-me pedido que tenha paciência com o Hilário, que dê tempo que ele se faça,
que aprenda o serviço.. .

SIDÓNIA - Dizia-lhe com dó desse rapaz; mas quando o vejo enganar a senhora, fazer tudo o
que lhe manda, com uma preguiça, uma negligência criminosas, a minha consciência revolta-se
se calo a verdade; a consciência diz-me que é uma ingratidão para com a bondade da senhora
continuar a esconder-lhe os defeitos deste rapaz. E já que comecei, tenho ainda a avisar a
senhora de que o vinho está no fim e os licores estão a desaparecer. Peça o vinho de Málaga
que se abriu no outro dia e que apenas se provou. Tenho um pressentimento de que não o
encontrará e que Hilário se mostrará muito admirado como se alguém lho tivesse roubado. Ele
é tão falso! Tão perverso! Nós já começámos a conhecê-lo e é preciso que a senhora o conheça
também.

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SR. GAUBERT - Tudo o que me diz, surpreende-me ao máximo, Sidónia. Custa-me a acreditar
que não se tenha enganado devido à sua afeição por mim! O Sr. Guelfo conhece esse pobre
Hilário desde que nasceu. Recolheu-o, criou-o, e teve-o em sua casa até ao momento em que o
colocou na minha. Como poderia ele enganar-se até esse ponto?.. . É impossível! Antes de
falar com Hilário quero ver o Sr. Guelfo, interrogá-lo mais uma vez e contar-lhe o que você
acaba de me dizer e.. .

SIDÓNIA - Suplico-lhe, minha senhora, que não fale no meu nome ao Sr. Guelfo! Esse senhor
está tão enganado a respeito do Hilário, que há-de conseguir que a senhora acredite que
tenho ódio e calunio o seu protegido. Tudo o que lhe tenho dito por dedicação e por descargo
de consciência, voltar-se-á contra mim.
SR. GAUBERT - Fique descansada; não a nomearei. Vá, Sidónia, tenho necessidade de reflectir
antes de proceder. (Muito agitada, acaba por se sentar numa poltrona. Fala consigo própria. )
Não estou em mim com o que a Sidónia acaba de me dizer. Confesso que me custa a acreditar.
E porquê esta mudança? Volta-se contra ele depois de o ter defendido.. . Pelo que ela diz,
Hilário seria um criminoso.. . mas ele tem um olhar meigo, tão honesto!.. . Esta loiça partida,
que ele escondeu, surpreende-me bastante. E o vinho de Málaga? Vou falar-lhe e esclarecer de
imediato estes dois factos que são muito graves.. . (Toca a campainha. Hilário entra e parece
bastante embaraçado e triste. A senhora Gaubert observa-o; ele baixa os olhos e cora. )

HILÁRIO - Perdoe-me, minha Senhora! Sou muito

culpado, mas foi por descuido.. . Juro-o!

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SR. GAUBERT (friamente) - Culpado de quê?

HILÁRIO - Quebrei uma pilha de pratos! Prefiro confessá-lo imediatamente para ficar com a
consciência tranquila e para que a senhora não suspeite de ninguém.

SR. GAUBERT (com brandura) - Fez muito bem, Hilário, e fez bem ter-me confessado o seu
descuido porque eu já o sabia. Vi o cesto cheio de cacos da loiça que partiu.

HILÁRIO (surpreendido e alegre) - A senhora não me ralha? Perdoa-me?

SR. GAUBERT - Meu pobre rapaz, eu não lhe ralho pelas faltas de habilidade, mas o que me
arrelia, o que eu não perdoo são as mentiras, as maldades, as infidelidades e a hipocrisia.

HILÁRIO - Oh! A senhora tem razão! Todos esses vis defeitos não se emendam facilmente, e
provêm dum mau carácter, dum mau coração.

SR. GAUBERT - É sincero no que diz, Hilário?

HILÁRIO - Sim, minha senhora! É o meu verdadeiro pensar, desde que me conheço.

SR. GAUBERT (hesitante) - Hilário, traga-me o vinho de Málaga que abrimos no outro dia.

HILÁRIO - Não o tenho, minha senhora.

SR. GAUBERT - Não o tem?.. . Que lhe fez?

HILÁRIO - Anteontem meti-o no armário e nunca mais o vi.

SR. A GAUBERT - Deixou o armário aberto?

HILÁRIO - Fecho-o sempre, minha senhora, e trago as chaves comigo. Não sou capaz de
compreender como o vinho de Málaga e muitas outras coisas desaparecem há já alguns dias,
desde que a senhora me confiou as chaves.

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SR. A GAUBERT - É bastante singular, porque mais ninguém pode abrir os móveis.

HILÁRIO - A senhora não deu outras chaves a qualquer pessoa?

SR. GAUBERT - Não. O Júlio tinha-as, mas perdeu-as há muito tempo.

HILÁRIO - Tomei a liberdade de mudar de lugar os vinhos, os licores e as provisões; guardei-os


no aparador.

SR. A GAUBERT - Fez mal, porque estes armários é que foram feitos para neles se guardarem
os vinhos e as provisões; os aparadores são para a baixela de prata. Que pôs lá no seu lugar?

HILÁRIO - A senhora quer ver? (Tira do bolso a chave do móvel, aproxima-se e solta um grito. )

SR. A GAUBERT - Que tem? Que foi?

HILÁRIO - Veja, minha senhora, uma chave metida na fechadura! E aqui está a minha!

SR. GAUBERT - É muito estranho! (Percorre a sala com a vista, vê um chapéu, pega-Lhe e
examina-o. ) De quem é este chapéu?

HILÁRIO - Não sei!.. . (Pega-Lhe, volta-o nas mãos e procura ler um nome escrito no fundo do
chapéu. ) Senhor.. . Senhor.. . Não sou capaz de ler.. . Cá está!.. . Sr. Júlio! Julgo que é Sr. Júlio
que está escrito no fundo.

SR. A GAUBERT - Qual Júlio?

HILÁRIO - O criado que esteve em casa da senhora.

SR. GAUBERT - Como se atreveria ele a vir a minha casa?! Nenhum dos meus criados o
quereria receber depois do que aconteceu. (Pega no chapéu e examina-o. ) E, no entanto, é o
nome dele que está escrito no fundo. Que audácia! Foi ele então! Começo a compreender.
Ficou

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com as chaves dos meus móveis.. . Mas como deixou ele esta aqui? Como veio ele aqui sem
que ninguém o visse entrar?.. . Isto é medonho! Provavelmente tem as chaves de todas as
dependências! Vou prevenir Sidónia de que tome cuidado com esse ladrão.. . (A senhora
Gaubert toca a campainha. )

SR. A GAUBERT (para Sidónia muito agitada) - Sidónia veja o que acabámos de encontrar, eu e
Hilário! Uma chave metida na fechadura do móvel e o chapéu de Júlio. (Sidónia cora,
empalidece e não responde. A Sr. a Gaubert continua. ) Adivinho o que é: Júlio ficou com as
chaves que afirmava ter perdido, e meteu-se cá em casa para nos roubar.

SIDÓNIA (trémula) - Como pode a senhora acreditar semelhante coisa? Júlio é um pouco
atrevido e foi insolente para com a senhora e o senhor mas, no fundo, é um rapaz honesto.
SR. GAUBERT - Honesto?! Então não sabe que o despedi por o ter surpreendido diante da
minha escrivaninha que tinha aberto com chave falsa? Estava a meter dinheiro no bolso às
mãos cheias!

SIDÓNIA - Será possível? A senhora tem a certeza disso? Se o apanhou em flagrante, porque
não o entregou à justiça?

SR. GAUBERT - Por um resto de compaixão pela família e por ele próprio. Mas bem o vi; vi
muito bem, tenho a certeza. Sidónia tem que ir imediatamente a casa do serralheiro e dizer-
lhe que venha ainda hoje mudar todas as fechaduras.

SIDÓNIA - Sim, minha senhora. (Sidónia sai com ar trocista, e diz muito baixo. ) Espera que já lá
vou! Nas

68

fechaduras não se há-de tocar, e Júlio há-de entrar sempre que lhe apeteça; vou preveni-lo.

CAROLINA - Até que enfim voltou, mamã! Demorou-se tanto!

TEODORO - Que mau parecer que a mamã tem! E Hilário com um ar tão espantado.. .

SR. A GAUBERT - É que encontramos um chapéu que deve ser de Júlio.

TEODORO - Ah! ele deixou cá o chapéu? Como o trouxe ele para aqui?

SR. GAUBERT - Suponho que entrou na sala de jantar.

CAROLINA - Com certeza. Entrou com todos os outros.

SR. GAUBERT - Quais outros?

CAROLINA - Sidónia, Justina e Antonino.

SR. GAUBERT - Que me dizes?.. . Como sabes isso? Por quem o soubeste?

CAROLINA - Vi-os e ouvi-os, mamã. Estavam todos no quarto de Sidónia, e quando disseram
que vinham a esta sala procurar uma garrafa de vinho, fugi e disse a Teodoro, que tinha ficado
aqui e que também estava com medo, que nos fôssemos esconder no quarto da mamã.

SR. A GAUBERT - Mas como os viste tu no quarto de Sidónia e porque subiste ao quarto dela?

CAROLINA - Porque se sentia, aqui na escada, um cheiro tão bom, que quis ver o que era. Subi
e espreitei pela porta envidraçada do quarto de Sidónia. Vi um bolo magnífico, vinho de
Málaga, café e fruta. Riam e cantavam todos! Que divertido que era! (A Sr. Gaubert fica
abatida. Deixa cair a cabeça entre as mãos. )

69

CAROLINA (inquieta) - Que tem, mamã? Está doente?


SR. A GAUBERT - Não, minha filha, não estou doente. Estou triste, aflita!

TEODORO - Aflita porquê, mamã?

SR. A GAUBERT - Pelo procedimento de Sidónia, que me parece ter andado muito mal em tudo
isto. Não sei que pensar! Temo acusar injustamente. Não vejo senão um meio de sair de
embaraços. -Hilário, vai a casa do senhor Guelfo e pede-lhe que me venha falar sobre um
assunto urgente. (Hilário, sai. ) Teodoro, viste o que a tua irmã contou?

TEODORO - Não, mamã. Não quis ir espreitar ao quarto de Sidónia, com medo de que ela me
aparecesse, porque sei que não gosta que nós lá vamos, quando tem visitas.

SR. GAUBERT - Quando tem visitas? Quais?

TEODORO - Justina, Antonino, Júlio e outros amigos.

SR. A GAUBERT - Que fazem eles lá em cima?

TEODORO - Comem pastéis e fruta, bebem vinho, café e muitas outras coisas boas.

SR. GAUBERT - É incrível que eu nunca o tenha sabido! Essa Justina, que eu julgava tão séria!
Essa Sidónia, em quem depositava toda a confiança!.. . Hilário ia também?

TEODORO - Não! Nunca o vi lá ir.

SR. GAUBERT - E tu, Carolina, viste-o lá alguma vez?

CAROLINA - Não, nunca! Está sempre a trabalhar. Hoje ficou a limpar os talheres.

70

SR. GAUBERT - Ele sabe limpar as pratas?

CAROLINA - Creio que sim, porque os limpava muito depressa e muito bem, como quem está
habituado.

SR. GAUBERT - Meus filhos, porque não me disseram que se comia e bebia no quarto de
Sidónia?

TEODORO - Porque tínhamos medo que ela nos ralhasse. Ela proibiu-nos severamente de
falarmos no assunto à mamã, e não pensávamos que era mal feito o que Sidónia fazia. Como
não gostávamos que ela nos ralhasse.. .

SR. A GAUBERT - Mas, porque não me avisou Hilário?

SR. GUELFO (cumprimentando) - O Hilário disse-me, minha senhora, que V. Ex. a desejava
falar-me.

SR. GAUBERT - Sim, meu caro senhor; queira ter a bondade de se sentar. Desejo falar-lhe a
respeito de Hilário e do pessoal da minha casa. Sidónia disse-me mal de Hilário a ponto de o
acusar de mentiroso, infiel, hipócrita e talvez até ladrão. Diga-me sinceramente o que pensa
destas acusações.

SR. GUELFO - Penso, minha senhora, que são mentiras e calúnias. Hilário acaba de desabafar
comigo, e pedir-me conselhos. O resultado desta conversa foi para mim a convicção da sua
perfeita honestidade, e da sua dedicação pelos interesses de V. Ex.. Não quero revelar ainda o
que ele me confiou, se bem que me autorizasse a comunicar-lho se o julgasse necessário; mas
peço-lhe insistentemente pela honra da casa de V. Ex., para segurança dos seus serviços
domésticos e para completa justificação do pobre Hilário, que se certifique por si mesma do
que se passa em sua casa.

71

SR. GAUBERT - Mas como me hei-de certificar, meu caro senhor? Na minha presença não farão
coisa alguma que os comprometa.

SR. GUELFO - Convém que eles se convençam de que a senhora está ausente. Anuncie que esta
tarde ou amanhã vai jantar, com os pequenos, à casa de sua irmã e previna de que volta tarde,
às dez horas, por exemplo. Deixe os meninos com a tia e, pelas oito horas, apareça de surpresa
em casa, acompanhada do senhor Gaubert. Verá coisas que a esclarecerão suficientemente,
acerca da culpabilidade dos seus criados.

SR. GAUBERT - Isso é fácil de fazer. Amanhã de manhã avisarei a minha cozinheira e Sidónia de
que jantamos em casa de minha irmã, e que, à noite, vamos ao Franconi, o que só nos
permitirá voltar para casa pelas onze horas. Durante esse tempo os meus filhos irão com
minha irmã e meu cunhado ao Circo, e eu e meu marido viremos aqui e surpreenderemos em
flagrante delito a criadagem. Mas, que se há-de fazer a Hilário durante este tempo?

SR. GUELFO - Pode V. Ex. a levá-lo consigo. Ele leva a chave, para que depois possam entrar à
vontade sem dar o alarme.

SR. GAUBERT - Muito bem! Agradeço-lhe muito o seu conselho; espero que dará resultado. É
indispensável meter Hilário no segredo para que traga a chave.

SR. GUELFO - Se V. Ex. a permite que ele me acompanhe a casa, ponho-o ao corrente do
assunto.

SR. GAUBERT - Certamente; é um grande serviço que o senhor me presta. Faça o favor de
voltar cá depois de amanhã, de manhã, para saber o resultado da nossa

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conspiração. Adeus, senhor Guelfo; fico-lhe muito agradecida.

SR. GUELFO - Espero, minha senhora, que quando tiver o prazer de voltar a vê-la, esteja mais
tranquila e, sobretudo, livre dos seus maus servidores. Queira aceitar os meus respeitos. (O Sr
Guelfo cumprimenta e sai. A senhora Gaubert dá ordem a Hilário para o acompanhar a casa, e
retira-se para o seu quarto. )
II Acto

Quarto de Sidónia em grande desordem. Sidónia e Justina arrumam os móveis e põem a mesa.

SIDÓNIA - Parece-me que está tudo em ordem. Falta-nos arrumar a sala e preparar tudo para o
jantar e para o serão.

JUSTINA - Tens a certeza de que Júlio e Antonino estão avisados?

SIDÓNIA - Tenho a certeza!.. . Felizmente a senhora preveniu-me cedo de que jantaria com os
filhos em casa da irmã, e que iria depois ao Franconi. Enquanto ela foi à missa com os filhos,
mandei o Hilário fazer a cama e arrumar o quarto e eu mesma corri a avisar o Júlio e o
Antonino. Prometi-lhes um famoso jantar e um belo serão.

JUSTINA - O jantar há-de ser bom, mas é pena que não haja vinho nem licores. Não há meio de
conseguir uma garrafa sequer do tratante do Hilário. E eu nem tempo tive de prevenir os
amigos.

SIDÓNIA - Mas lembrei-me eu disso. Avisei Júlio e Antonino. Eles hão-de trazer do bom e do
melhor, tu verás.

JUSTINA - Recomendaste-lhes que viessem cedo?

74

SIDÓNIA - Às seis horas em ponto. Como o patrão, a patroa e os filhos saem às cinco, nós
temos tempo de preparar o quarto nesse intervalo. Eles não tardarão. Toma cautela, não vá o
jantar queimar-se, enquanto me ajudas a pôr a mesa.

JUSTINA - Podes estar descansada. A minha ajudante tem as devidas instruções: ela sabe o que
há-de fazer.

SIDÓNIA - Tens a certeza de que ela não deixa pegar os molhos, os cremes e os doces?

JUSTINA - Não correm perigo nenhum; ensinei-a! Já trabalha como os mestres. Está quase tão
hábil como eu. (Ouve-se tocar a campainha. ) Ah! aí vêm os nossos convidados! (Arrumam as
cadeiras. Abrem a porta. )

JÚLIO (cumprimentando) - Minhas senhoras!.. . Boa tarde.

ANTONINO (idem) - Meninas, tenho a honra de as cumprimentar.

SIDÓNIA - Ontem, Júlio, cheguei a convencer-me de que tudo estava perdido, quando a
senhora encontrou o teu chapéu.

JÚLIO - E Antonino que estava em minha casa e não se atrevia a sair!

SIDÓNIA - Em tua casa?.. .


JÚLIO - Em minha casa, isto é, na minha antiga casa, no meu quarto de outro tempo, de que eu
guardo ainda a chave e onde venho de vez em quando ainda: tu bem sabes!

SIDÓNIA - O que é certo é que tive bastante medo, e julguei que íamos ser descobertos. Se o
imbecil do Hilário tivesse dito uma palavra só que fosse, garanto-te que não me saía bem.
Felizmente que o palerma não abriu a boca e

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eu fingi que não sabia por que motivo a senhora te censurava tanto. Então ela contou-me que
abriste a escrivaninha e tiraste o que lá estava dentro. Eu não acreditei uma palavra.. conheço
os patrões.. . Sei como eles falam de nós, os criados, que ganham a vida servindo-os como
escravos. Quando eles despedem um criado têm sempre a mesma cantiga: insolente,
preguiçoso, pouco asseado e ladrão. Ladrão, sobretudo: é a grande palavra! Como se se
merecesse esse nome por causa de umas reles garrafas de vinho, alguns pastéis e outras
guloseimas! Eles comem do melhor! Porque não havemos de comer também?

ANTONINO - Bravo, Sidónia! Muito bem dito! O mesmo sucede com os fatos e o calçado dos
patrões. Têm dez vezes mais do que o que conseguem usar. Olha a grande coisa se
desaparecem alguns.

SIDÓNIA - E os bocados de renda, fazenda, luvas e vestidos fora de uso.. . Eles sabem lá o que
têm! Quando se pode arrecadar alguma coisa que nos pode servir.. . olha o grande prejuízo!

JUSTINA - E se a senhora depois o pedir?

SIDÓNIA - Procura-se; não se encontra.. . diz-se que não aparece, que a senhora o deu. Em
último caso, diz-se que as crianças mexem, revolvem e estragam tudo.

JÚLIO - O mais cómodo são as crianças! Podemos atirar-lhes com tudo para as costas: açúcar,
guloseimas, fruta, lápis, papel, tesouras, canivetes, livros, agulhas, alfinetes, brilhantina.. .
tudo, enfim!

ANTONINO - O pior é que se defendem com uma arte do diabo!

SIDÓNIA - Oh! Oh! Estão sempre a perder! Provocamo-las ou irritamo-las, afirmando que as
vimos

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mexer, pegar, levar, etc. Elas enfadam-se e tornam-se impertinentes; a mamã ralha-lhes, fá-las
calar e não se toca mais no assunto.

ANTONINO - Bem; e o jantar? Nós não estamos aqui só para conversar, mas também para
comer.

JUSTINA - Então! Não pensa senão em comer.. .

ANTONINO - Parece-me que adivinho o que fizeram para o jantar. Que é o jantar, Justina?
JUSTINA - Temos ostras, sopa de ovos escalfados, perna de cabrito montês, uma boa galinha,
salada de lagosta, espargos recheados, cogumelos em conchas, um pastelão à napolitana e
creme com marrasquino.

JÚLIO - Viva Justina e o seu jantar! É melhor que no restaurante!

ANTONINO - Chegarás a pagar tudo isso sem que se venha a saber?

JUSTINA - Basta saber fazer as coisas! São o vendedor de fruta da esquina e o negociante de
criação, caça e peixe fresco, que forneceram tudo. Em vez de nos maçarmos a ir ao mercado,
vamos a casa deles, não se regateia e trazemos, não só isto, mas tudo o que for preciso, e sem
pagar, bem entendido.. .

ANTONINO - Quer dizer, são os patrões que pagam.. . JUSTINA - Que importância tem isso?
Eles, chegam porventura a sabê-lo? Para que me hei-de esfalfar a correr para a praça, a
regatear, a cansar, a gastar as solas sem tirar nenhum proveito? Só para lhes dar o ganho que
eles esbanjam?

JÚLIO - Com toda essa conversa, nunca mais comemos as coisas que Justina nos anunciou!.. .
Estão a fazer-me crescer água na boca! O que eu sei dizer é que estou

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quase em jejum. Estando desempregado, tenho de fazer economias.. .

SIDÓNIA - Isso é verdade! Pobre Júlio!

JUSTINA - Vou já, vou já. (Sai. )

ANTONINO - Digam lá o que disserem, é um bocado arriscado o que Justina faz. Qualquer dia é
apanhada!

SIDÓNIA - Ouve! Francamente não é nada que não mereça. Ela mete para o seu bolso e para os
da mãe e do pai! Quando nos lembramos de que fica com o ordenado da pobre ajudante de
cozinha, com o pretexto de que é em paga da aprendizagem.. .

JÚLIO - Quanto a isso é o costume. Todos os chefes de cozinha e cozinheiras fazem outro
tanto.

ANTONINO - Pois sim; mas pelo menos sempre se dá ao aprendiz alguma coisita para o
calçado!

SIDÓNIA - E Justina não dá nada, absolutamente nada!.. . Que demora é esta com o jantar?.. .
O tempo passa! Vou apressá-la. (Sai. )

ANTONINO (rindo) - Esta Sidónia é uma boa língua e uma boa amiga.. .
JÚLIO (rindo) - É má como uma víbora! Conheço-a bem! Estive aqui com ela durante um ano!
Não há nada mau que ela não invente. E preguiçosa?.. . Só vendo! Não costura nada, não
arruma nada e nada limpa!

ANTONINO - Não foi ela que, por embirração, fez com que saísses daqui?

JÚLIO - É muito possível! Não sei de nada.. . Ela e Justina dão-me de comer. Sidónia ajuda-me a
conservar aqui o meu antigo quarto, sem que ninguém o saiba. Sendo assim, tu compreendes..
. não digo nada. Deixo-a à vontade.

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ANTONINO - Mas como te governas, sem dinheiro? Disseste-me que não tinhas quase nada
quando te desempregaste.. .

JÚLIO (embaraçado) - Como vês, o meu alojamento e a minha alimentação pouco me custam.
Quanto a dinheiro para as despesas correntes, Sidónia dá-me, de vez em quando, uma moeda
de cinco francos.

JUSTINA (pondo os pratos na mesa) - Aqui estão as ostras que esperam! A sopa, o cabrito, a
galinha e a lagosta.. . A ajudante trará o resto quando chamarmos.

SIDÓNIA (pondo na mesa seis garrafas de vinho) - Cá está o vinho que estes senhores
trouxeram! Júlio, abre o vinho de Sauterne para bebermos com as ostras. Para cada um, duas
dúzias! (Sentam-se à mesa. Comem e bebem. )

ANTONINO - Ostras secas como Vénus a sair das ondas.

JUSTINA (bebendo) - E um vinho que não as estraga!

SIDÓNIA - Boa sopa! Magnífico caldo!

JUSTINA (rindo) - Caldo!.. . é desdenhar.. . Diz, consommé.

SIDÓNIA - Seja consommé, se quiseres.

JÚLIO - Suculento como o talento da menina Justina!

JUSTINA - E delicioso como o espírito de Júlio. (Trincha. ) Corto eu o cabrito! A cada um, duas
fatias!

ANTONINO - E não é demais! Cabrito soberbo!.. . E um molho que faria estar a comer até
amanhã.

JÚLIO (oferecendo vinho) - Vinho de Bordéus ou de Volnay?

ANTONINO - Dos dois, meu caro; Volnay primeiro, Bordéus depois. (Continuam a comer e a
beber e não notam que a porta se entreabre devagarinho. )

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JUSTINA (rindo) - Ó Sidónia; e se os patrões nos aparecessem agora?.. . Estás a ver a cara que
eles faziam!

ANTONINO - E que nós fazíamos também.. .

JÚLIO - Felizmente estão no Franconi. Esta gente não pensa senão em divertir-se. É de pasmar,
na verdade!

SIDÓNIA - Em que querem vocês que eles pensem? Gente sem coração, egoístas! Bem
merecem as partidas que Lhes fazemos..

JUSTINA - Devemos concordar que são estúpidos! Não desconfiarem de nada.. .

SIDÓNIA - Se vocês vissem a cara que a senhora fez quando lhe representei uma cena de
afecto, de dedicação e de consciência, a propósito desse velhaquete do Hilário.. . É que tinha
de o afastar fosse como fosse: ele sabia de mais.. .

JÚLIO - Sim, tu prometeste. Temos de nos desembaraçar dele o mais breve possível, e não dar
tempo à senhora para se arrepender.. .

SIDÓNIA - Penso que isso não será difícil. Ela acreditava em tudo com tão boa-fé, que pouco
me faltou para começar a rir.

JÚLIO - São tão estúpidos os patrões, que não se faz ideia!

ANTONINO - No entanto, há alguns que são manhosos. Convém não nos fiarmos. Não há nada
como perceber-lhes o jogo e não nos deixarmos cair na ratoeira. (Continuam a comer e a
beber, parecendo já embriagados; cantam e falam todos ao mesmo tempo.)

JUSTINA - Vou chamar a rapariga para que nos traga os espargos, os cogumelos e o creme de
marrasquino. (Vai à porta, abre-a, solta um grito de terror e cai de joelhos; os

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companheiros levantam-se precipitadamente e ficam estupefactos ao verem o Sr Gaubert. )

TODOS (ao mesmo tempo) - O patrão!.. .

SR. GAUBERT (entrando) - Desgraçados! É assim que reconheceis os nossos favores!.. .


Largamente pagos, abundantemente alimentados, tratados com brandura, confiança e
afabilidade, podiam e deviam apegar-se à casa e desejar passar aqui a vossa vida! Em lugar de
reconhecimento, não encontramos em vocês senão ódio e maldade. Vão ser tratados como
merecem: você, Antonino, vai ser desmascarado junto do seu patrão esta noite mesmo.. .
Você, Sidónia, e você, Justina, saiam imediatamente. Podem seguir o vosso amigo Antonino!

SIDÓNIA (que consultou os colegas) - Não se despedem assim as pessoas, senhor! Deve-nos
oito dias de ordenado, de alimentação e de alojamento; não partiremos sem que nos
indemnize as duas semanas que nos deve.
SR. GAUBERT - Nem um centavo. E ir-se-ão embora assim que eu o ordenar.

JUSTINA - Isso é que vamos ver! Antonino e Júlio não deixarão que nos roubem assim. Hão-de
servir de testemunhas perante o tribunal. Vamo-nos queixar ao juiz!

SR. GAUBERT - Calem-se! Vocês estão embriagados! Deixem-me acabar o que lhes tenho a
dizer!

JÚLIO - Não se fala assim a senhoras.. . É uma grosseria.. . é uma impertinência!

SR. GAUBERT - Insolente. Lá chegará a tua vez! Não te esquecerei.

JÚLIO (embriagado) - Insolente é você! Já não estou ao seu serviço; não tem o direito de me
insultar! Quanto a

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estas senhoras, Antonino e eu saberemos defendê-las, e tome cautela com o que possa
acontecer.

SR. GAUBERT (friamente) - Já que me provocas, não espero mais para te punir como mereces.
A bebedeira não te servirá de desculpa. (Volta-se para a porta. ) Guardas: ouviram tão bem
como eu. Prendam esta gente! Este (indica Júlio) deve ficar separado, por me ter roubado
dinheiro com auxílio de chaves falsas; deve ser julgado em tribunal especial. (Três policias
entram no compartimento. Júlio e Antonino tentam defender-se; Júlio puxa duma navalha.
Dois dos guardas desarmam-no e amarram-no. Antonino é facilmente dominado. Sidónia e
Justina gritam e debatem-se, arranhando e dando pontapés; amarram-nas também. Os
guardas conduzem Júlio, Antonino, Sidónia e Justina. )

SR. A GAUBERT - Não teria acreditado em semelhante coisa, se não visse com os meus olhos e
não ouvisse com os meus ouvidos! Esta Sidónia, que tanto estimava e em cuja afeição
acreditava firmemente.. . Que linguagem! Que falsidade! Que ingratidão! Pobre gente! Que
situação perderam e que futuro preparam!

SR. GAUBERT - Reconheço hoje, mais do que nunca, a verdade daquilo que nos dizia esse bom
Guelfo ao trazer-nos Hilário: Aceitem servidores cristãos, se desejam ser bem servidos. O amor
dispõe o criado cristão a estimar o seu amo; a fidelidade para com Deus torna o servidor fiel
para com o seu patrão. O hábito do serviço de Deus confere ao servo a inteligência e a vontade
necessárias para bem servir. A coragem de, por amor de Deus, afrontar as zombarias e as
censuras dos maus e descrentes, dá ao servo ânimo de repelir maus conselhos e as

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tentações que o podem desviar do devido serviço do seu amo.

SR. GAUBERT - Sim, ele tinha razão. De hoje em diante não mais tomaremos criados sem fé e
sem religião. Mas, como nos havemos de nos governar só com Hilário?

SR. GAUBERT - Procuraremos arranjar o mais depressa possível uma criada de quartos e uma
cozinheira.
SR. A GAUBERT - O Sr. Guelfo dizia-me, há dias, que a ajudante da cozinheira era uma
excelente rapariga.

SR. GAUBERT - Veremos isso amanhã. Agora, voltemos a casa de tua irmã buscar as crianças.

SR. GAUBERT - Olha, não trates com dureza esses desgraçados, sobretudo as mulheres. Pobre
Sidónia! Pobre Justina! Que noite vão passar!

SR. GAUBERT - Amanhã vou ver como elas se encontram na sua nova situação e dar-lhes algum
dinheiro para que não passem muito mal; mas, francamente, não posso lamentá-las devido ao
mau procedimento que tiveram para connosco. (Saem. )

Com vinagre não se apanham moscas

Personagens

Sr. a d'Ulsac, 33 anos

Sr. a d'Atale, sua irmã, 30 anos

Sr. a d'Embrun, sua prima, 65 anos

Matilde d'Ulsac, 13 anos

Clemência d'Ulsac, 13 anos

Octávia, professora, 25 anos

Berta d'Atale, 12 anos

Alice d'Atale, 10 anos

Guilherme, velho criado, 61 anos

I Acto

Solar da Senhora d'Ulsac. Sala de estar e de trabalho das crianças. Mesas e cadeiras dispersas.

M. LLE OCTÁVIA - Vejamos o seu ditado, Matilde


(Matilde apresenta-lhe o caderno. ) Muito bem. Muito bem escrito; apenas dois erros numa
página inteira.. .

MATILDE - Dois erros, como?.. . Julgava que não tinha nenhum!

M. LLE OCTÁVIA - Não, são dois. Veja: Renoceronte

em vez de rinoceronte; hepopótamo em vez de hipopótamo.

MATILDE - Oh! Mademoiselle: isso não são erros; nomes da história natural?.. .

M. LLE OCTÁVIA - No entanto, têm de se emendar.

São erros.

MATILDE - Que aborrecido! Contava ganhar a moeda.

M. LLE OCTÁVIA - Amanhã será. Mas, porque tem

tanto interesse em ganhar essa moeda?

MATILDE - Ah! preciso de muitas mais!

CLEMÊNCIA - E eu também! Preciso de muitas!

M. LLE OCTÁVIA (sorrindo) - Vão então comprar coisas magníficas?

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MATILDE - Magníficas, não, infelizmente! Mas muito úteis: um enxoval para o filhinho da
senhora Léger!

M. LLE OCTÁVIA (com alegria) - Então continuem as

lições se querem ter muito dinheiro para as vossas compras. (Matilde e Clemência agarram-se
ao trabalho com ardor. Abre-se a porta. Berta espreita e entra precipitadamente. )

BERTA - Mademoiselle, dá-me licença que me esconda aqui? Minha prima d'Embrun procura-
me por toda a parte.

M. LLE OCTÁVIA - Mas, minha filha, faz muito mal em

se esconder da senhora d'Embrun. Deve, pelo contrário, ir ao seu encontro.

BERTA - Oh! não, Mademoiselle! Ela procura-me para me fechar num quarto escuro. Alice já lá
está. Deixou-se agarrar, mas eu fugi.

MATILDE - Porque quer a senhora d'Embrun fechar-te com Alice?

BERTA - Porque é má, como sempre. Pretende que nos portámos mal e quer obrigar-nos a
trabalhar com uma cinta de ferro e com placas nas costas, que fazem doer horrivelmente e
que nos impedem de mexer os braços e a cabeça. Ela chama àquilo a cinta de boa posição. É
muito má e eu não quero.

CLEMÊNCIA - A pobre Alice está fechada?

BERTA - Está sim. A senhora d'Embrun conseguiu agarrá-la, pôs-lhe a cinta e as placas e
fechou-a no quarto escuro, como castigo de lhe ter resistido. Enquanto a fechava e ela gritava,
eu fugi. Peço-Lhes do fundo do coração, minhas boas primas e minha boa Mademoiselle, que
me escondam!

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M. LLE OCTÁVIA - Minha filha, não posso ajudá-la a

desobedecer à senhora d'Embrun, a quem a sua mamã as confiou durante a sua estadia nas
termas.

BERTA - Ó Mademoiselle! Peço-lhe por tudo! Ela aparece por aí, com certeza, e estou perdida.

M. LLE OCTÁVIA - Escute, minha filha: tudo o que

posso fazer é ir-me embora para o meu quarto, e deixá-la com as suas primas, que farão como
melhor entenderem. (Sai. Matilde e Clemência correm para Berta e procuram um bom
esconderijo. Enquanto elas andam de um lado para o outro, ouve-se a voz da Sr a d'Embrun. )

BERTA (chorando) -. Meu Deus, meu Deus, salvai-me! Que hei-de fazer? (Matilde e Clemência
metem-na debaixo da mesa coberta com um pano pendente até ao chão. Pegam
precipitadamente no trabalho. Matilde abre um livro de pernas para o ar. Clemência pega num
lápis, em vez duma caneta. Acto continuo entra a senhora d'Embrun. )

SR. ^ D'EMBRUN (olha para todos os lados com ar desconfiado) - As meninas estão sós? Não
está aqui mais ninguém?

MATILDE - A Mademoiselle Octávia foi para o quarto dela, minha senhora.

SR. D'EMBRUN - Sozinha?

CLEMêNCIA - Sim, minha senhora, sozinha.

SR. A D'EMBRUN (aproximando-se das crianças) - Parece que não trabalham muito na sua
ausência.. .

MATILDE - Por que diz isso, minha senhora?

SR. D'EMBRUN - Porque a Matilde tem o livro de pernas para o ar. (Matilde cora e volta o livro.
) Clemência tem um lápis para continuar uma página começada com

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tinta. (Clemência deixa o lápis e pega na caneta, corando. ) Mas que ar tão embaraçado que
têm! Verdadeiras caras de culpadas! Aqui está o que estraga as crianças! Deixam-vos fazer
todas as vontades.. . Resultam disso lindas coisas!.. .

MATILDE (com vivacidade) - A mamã e a nossa querida Octávia não se queixam de nós, minha
senhora; assim, escusa de censurar a educação que elas nos dão.

SR. D'EMBRUN - Educação que vos torna delicadas e encantadoras, na verdade!.. . Ah! se eu
vos educasse, era outra coisa!

MATILDE - Sim, era outra coisa, porque nós seríamos infelizes em lugar de sermos felizes.

CLEMÊNCIA - E más e preguiçosas como aconteceu a Berta e a Alice.

BERTA (debaixo da mesa) - Isso não é verdade! Eu não sou má quando a minha prima não está
cá!

SR. D'EMBRUN - Que oiço? Eis a causa do vosso embaraço e da vossa impertinência! Saia do
esconderijo, menina, e siga-me! (Enquanto a Sr. a d'Embrun fala, Berta sai de gatas debaixo da
mesa do lado oposto à Sr. a d'Embrun e foge por uma porta entreaberta que dá para o jardim.
A senhora d'Embrun espera alguns instantes, e, não vendo aparecer a Berta, levanta o pano da
mesa, e como não vê ninguém, mostra-se surpreendida. ) Que é isto? Ela estava ali! Tenho a
certeza de a ter ouvido falar debaixo da mesa. Matilde, Clemência, digam-me onde está a
vossa prima! Ouviram? Vocês sabem. Falem, ordeno-o!

MATILDE (rindo) - Nada lhe posso dizer, minha senhora, porque nada sei.

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SR. D'EMBRUN - Mas as meninas sabem onde ela está! Para onde foi?

CLEMÊNCIA (rindo) - Asseguro-lhe que sabemos tanto como a senhora. Procure, veja se a
encontra.. .

SR. D'EMBRUN - Bem, bem, meninas.. . Vou ver se encontro Berta, e quando a agarrar,
castigarei essa serigaita como merece. (Sai muito irritada. )

MATILDE (rindo) - É extraordinário! Por onde se teria ela escapado?

CLEMÊNCIA - Não percebo.. . Como estava voltada para a senhora d'Embrun, que nos lançava
uns olhares medonhos, não vi fugir Berta.

MATILDE - Não teria saído pela porta do jardim?

CLEMÊNCIA - Julgo que não. A senhora d'Embrun tê-la-ia visto.

MATILDE - Talvez não. Repara como a distância é pequena..


CLEMÊNCIA - É verdade! Salvou-se por pouco! E a pobre Alice? Faz-me pena! Fechada naquele
quarto escuro com aquela medonha cinta que a magoa quando baixa a cabeça. Vou ver se a
solto. Espera-me aqui; volto num instante. (Sai. )

MATILDE - Pobre Alice! Pobre Berta! Como elas são atormentadas e infelizes desde que a
prima d'Embrun substitui a sua mamã. Que infelicidade a mamã e a tia terem ido para as
termas ao mesmo tempo! A mamã teria certamente impedido que a senhora d'Embrun
tratasse assim as minhas primas com tanta severidade! Se a minha tia soubesse que ela tratava
assim as pequenas de certeza que não lhas teria confiado.. . Que felicidade a mamã ter
encontrado a nossa querida Octávia! É tão meiga, tão

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paciente, tão boa e justa, que não se pode ser má nem preguiçosa com ela.

CLEMÊNCIA - Matilde, ajuda-me depressa a tirar esta abominável cinta, esta placa das costas e
este braço de ferro que segura o queixo de Alice. Depressa! Se a senhora d'Embrun aparece,
rouba-nos outra vez a pobre Alice!

MATILDE - Não deixaremos! Dá-me uma tesoura para cortar os nós. Pronto! Vamos esconder
Alice e, sobretudo, este aparelho. Onde havemos de o meter?

CLEMÊNCIA - Atira-o pela janela fora!

MATILDE - Encontrá-lo-iam! Espera! No fundo do jarrão! Logo à noite peço à minha criada que
o deite ao lume.

ALICE - Obrigada, minhas boas primas! Que felicidade ver-me liberta desse aparelho que
aperta, que faz dores nas costas, no estômago e no queixo. Nos aposentos da minha prima
d'Embrun há outro. Se o pudessem queimar também!

CLEMÊNCIA - Vou tentar. (Clemência quer sair; avista a senhora d'Embrun que continua à
procura de Berta. Entra precipitadamente e diz a meia-voz. ) A senhora d'Embrun! (Alice solta
um grito abafado. Matilde fá-la sair rapidamente pela porta do jardim. )

MATILDE (a meia-voz) - Vê se vais ter com Berta, que fugiu para ali.

SR. A D'EMBRUN (parece muito contrariada; senta-se numa poltrona com ar majestoso) - É
verdadeiramente inacreditável atreverem-se a fazer-me correr assim! E com este calor! Tenho
visto muitas crianças na minha vida, mas nunca lhes permiti semelhantes coisas! (Voltando-se
para Matilde e para Clemência. ) E as meninas

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que favorecem as insolências e más-criações da sua prima hão-de ser castigadas como ela.
Exigi-lo-ei de Mademoiselle Octávia!
MATILDE (com calma) - Como não somos culpadas, minha senhora, não teremos o castigo com
que nos ameaça.

SR. D'EMBRUN - Não são culpadas!.. . Pequena mal-educada! Não são culpadas, auxiliando a
sua prima a fugir à minha justiça!?.. .

MATILDE - Não diga justiça, minha senhora, diga.. . (Contém -se. )

SR. A D'EMBRUN - O quê? Que quer dizer?

MATILDE - Quero falar dessa cintura com placa nas costas e uma forquilha de ferro debaixo do
pescoço, que faz doer e que é uma crueldade para as minhas primas. Como quer que elas
trabalhem com esse aparelho?

SR. D'EMBRUN - Uma vez que está tão bem informada, menina espevitada, é porque viu Berta,
conversou com ela, sabe onde ela está, e auxiliou-a a esconder-se. É tão culpada como ela.

MATILDE - Mademoiselle Octávia decidirá agora mesmo, minha senhora. Aí está ela. (Entra
Octávia. )

SR. D'EMBRUN (dirige-se com dignidade a Octávia)

- Minha querida menina, previno-a de que exijo um castigo exemplar para estas meninas;
sobretudo para a insolente Matilde.

M. LLE OCTÁVIA - Minha senhora, que fizeram as

pobres pequenas para provocar, até esse ponto, a sua indignação?

SR. D'EMBRUN (colérica) - Furtaram Berta ao castigo que merecia; auxiliaram a sua fuga!
Persistem em escondê-la; fizeram-me correr a ponto de suar em bica, e,

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para terminar, dirigem-me insolências e acusam-me de crueldade.

M. LLE OCTÁVIA - Perdão, minha senhora, se duvido

um pouco da acusação; as minhas meninas são sempre tão correctas! Queira sentar-se, minha
senhora, e repousar um pouco.

SR. D'EMBRUN (admirada) - Para quê?

M. LLE OCTÁVIA - Para repousar, minha senhora.

Está tão excitada por ter corrido tanto, que o repouso só lhe fará bem. Quando acalmar peço
que exponha as suas queixas.

SR. A D'EMBRUN - Queixo-me delas porque me esconderam Berta! Quero-a aqui. Exijo que ma
restituam.
M. LLE OCTÁVIA - Restituí-la no estado de desespero

em que se encontra, minha senhora, seria, incontestavelmente, desagradável tanto para a


senhora como para ela. De resto, ignoro por completo onde se encontra.

MATILDE - E nós também, minha senhora; nem eu nem Clemência sabemos onde ela está.

SR. A D'EMBRUN - Não mo conseguem fazer acreditar, meninas, e acho o vosso procedimento
muito ridículo. (Sai. )

M. LLE OCTÁVIA - É desastroso para vossas primas o

encontrarem-se sob a direcção da senhora d'Embrun; acabarão, finalmente, por se submeter,


porque, enfim, a senhora d'Embrun é prima de sua mãe, que lhe pediu que tomasse conta das
filhas enquanto estivesse nas termas de Vichy. Terão que obedecer à vontade de seus pais.
Onde estão essas pobres pequenas?

MATILDE - Não sei, Mademoiselle. Esta é a pura verdade.

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M. LLE OCTÁVIA - Como? Deixei-as aqui e dei-vos

campo livre para esconder Berta se quisessem!

MATILDE - Escondemo-la debaixo da mesa, mas ela

cometeu a imprudência de falar. A senhora d'Embrun ordenou-lhe que saísse do esconderijo.


Como Berta não saía, a senhora d'Embrun espreitou para debaixo da mesa e já a não viu. Ficou
convencida de que eu e Clemência a tínhamos escondido, mas Berta fugiu sem que nós
víssemos; não sabemos para onde se escapou.

CLEMÊNCIA - Creio que saiu de gatas pela porta que dá para o jardim. Não vejo outra
explicação para o seu desaparecimento. Quanto a Alice, que eu soltei enquanto a senhora
d'Embrun andava à procura de Berta, fiz com que ela fugisse para o jardim no momento em
que a prima entrava aqui e queria que lhe entregássemos Berta.

M. -LE OCTÁVIA - É esquisito que desaparecesse assim. Estou realmente inquieta.

MATILDE - Deseja, querida Mademoiselle, que vamos as duas procurá-la?

M. LLE OCTÁVIA - Sim, minhas queridas filhas, vão e

diligenciem por as trazer.

M. LLE OCTÁVIA (só) - É severidade de mais. As pequenas eram tão gentis! Há seis semanas
que a senhora d'Embrun as tem sob a sua direcção; ela tornou-as más e ariscas à força de as
repreender, de lhes ralhar inutilmente, e de as punir injustamente! Mas tudo vai acabar! As
mamãs voltam amanhã. Não creio que a senhora d'Atale fique contente com a transformação
que sofreram as filhas.
SR. D'EMBRUN (entra muito agitada; cai numa cadeira junto da mesa) - Estou aflita, estou
inquieta. Não há

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meio de encontrar Berta! E o pior é que Alice desapareceu também! As suas pequenas
procuram-nas pelo jardim e em todo o parque. Mandei os criados procurá-las. Que será de
mim, meu Deus, se as não encontram? Contanto que a Berta não tenha ido nem para o lado do
tanque, nem do poço, nem da fonte! Não sei! Tudo é de esperar.. .

M. LLE OCTÁVIA - Lamento-a, minha senhora, porque

esse género de desassossego é terrível quando há a responsabilidade de crianças e sobretudo..


.

SR. D'EMBRUN - Sobretudo o quê? Diga.. . sobretudo o quê?

M. LLE OCTÁVIA - Sobretudo quando se podem evitar

censuras usando de mais doçura e condescendência.

SR. D'EMBRUN - Censuras de quê?

M. LLE OCTÁVIA - De severidade excessiva! Pelo menos assim o penso. Creia, minha senhora,
que esse sistema de educação é perigoso.. . e, perdoe-me que acrescente, mau.

SR. A D'EMBRUN - Afianço-lhe que a severidade é precisa com as crianças, sem o que elas se
tornam desobedientes, impertinentes, preguiçosas e mentirosas! Em casa dos Northson, dos
Castwind, da senhora Southway, três ilustres famílias com quem muito convivi durante a vida
de meu marido, quando foi ministro nos Estados Unidos, as crianças eram educadas,
habituando-as a obedecer como máquinas: as educadoras tinham licença de fazer uso de
todos os castigos e privações que julgassem necessários. Ficam umas crianças admiráveis! Essa
cinta que as suas pequenas acham cruel tenho-a visto empregar para os defeitos de estatura e
foi de Nova Iorque que a trouxe. Compreende-se que este sistema dê bom resultado, como

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a coleira torna os cães dóceis e excelentes. A severidade e os castigos são o grande meio de
acção; quanto ao resto, repreensões brandas, censuras de segunda ordem, são insuficientes.

M. LLE OCTÁVIA - Mas, minha senhora, porque é que

as minhas pequenas, que jamais castigo, com quem não ralho, a quem, pelo contrário,
testemunho grande amizade, são tão obedientes, tão conscienciosas, tão amáveis, tão
piedosas, tão boas, enquanto que Berta e Alice a que está constantemente a ralhar e a
castigar, se tornam de dia para dia cada vez menos dóceis, mais revoltadas, mais difíceis de
aturar?
SR. A D'EMBRUN - Porque não estou junto delas senão há seis semanas e porque elas se
sentem apoiadas pela criada, pelas primas e por si, Mademoiselle.

M. LLE OCTÁVIA - Mas, minha senhora, há dois anos

que as conheço de virem passar seis meses no ano aqui, no campo, em casa de sua tia, a
senhora d'Ulsac! Asseguro-Lhe que eram muito boas, muito gentis. A sua transformação data
do dia em que a senhora quis, por amizade para com os pais, encarregar-se de as dirigir na
ausência da senhora d'Atale. A senhora acusa-me de as apoiar; a mãe delas prevendo
severidade demasiada da sua parte, pediu-me que não as abandonasse e que as protegesse
em caso de necessidade. Eis porque me permito intrometer-me nos seus assuntos e apoiar
algumas vezes essas crianças de que tenho realmente pena.

SR. D'EMBRUN - Basta, minha querida Mademoiselle! Sabe o que deduzo do que me diz? Que
as crianças francesas são muito mal-educadas, comportam-se mal, falam demasiado, têm
brincadeiras de rapazes da rua, não

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conhecem a delicadeza francesa, nem as boas maneiras. Eram esses convenientes propósitos
que eu queria dar às minhas priminhas durante a ausência de seus pais, mas julgo que devo
renunciar a tal e deixá-las voltar a ser filhas mal-educadas, comportando-se mal e falando a
torto e a direito como pobres aldeãs. (Levanta-se. ) Com tudo isto, essas crianças terríveis não
aparecem. Não sei que fazer! Oxalá que não se tenham afogado nalgum tanque! Seria horrível!
(Dirige-se para a porta. )

BERTA (debaixo da mesa) - Descanse que estão bem. (A senhora d'Embrun pára estupefacta.
Mademoiselle parece não menos admirada. )

SR. A D'EMBRUN (volta-se, avança para a mesa e levanta o pano) - Nada! Berta não está cá. É a
segunda vez que a oiço aqui e não consigo vê-la. (Mademoiselle Octávia levanta o pano, olha e
não vê ninguém. Fica muito surpreendida. )

MATILDE (entrando) - Minha senhora, encontrámos Alice no jardim; ela andava à procura de
Berta como nós. Não sei aonde se meteu.

M. LLE OCTÁVIA - Mesmo agora falou debaixo da

mesa; espreitámos e não vimos ninguém.. .

MATILDE (surpreendida) - Por onde passará ela? Já por duas vezes aparece e desaparece.. .

M, LLE OCTÁVIA - Vou perguntar ao Guilherme.

Talvez saiba onde ela está.

SR. D'EMBRUN - Vou também, Mademoiselle; quero ver se apanho Alice. (Saem. )
BERTA (deita a cabeça pela porta do jardim e pergunta a meia-voz) - Foi-se embora? (Olha para
todos os lados e entra.) Parece que estou em segurança.

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CLEMÊNCIA - De onde vens tu? Onde tens estado?

BERTA - Venho da estufa, aqui ao lado. Tenho lá estado todo este tempo.

MATILDE - Isso não é possível! A senhora d'Embrun esteve lá connosco; tu não estavas lá!

BERTA - Estava! Se não respondi e não apareci, foi porque estava a senhora d'Embrun na vossa
companhia.

CLEMÊNCIA - Onde estavas escondida?

BERTA - Atrás dos gerânios que estão no canto.

MATILDE - Como o conseguiste? Os vasos estavam todos perfeitamente arrumados.. . nem um


arredado.. .

BERTA - Porque o Guilherme os arrumou depois de eu ter passado para trás deles.

CLEMÊNCIA - Ah! O Guilherme auxiliou-te?

BERTA - Auxiliou sim. Sabes que esse bom velho vem sempre em nosso auxílio.. .

MATILDE - Mas como conseguiste fugir debaixo da mesa?

BERTA - De gatas. A porta estava entreaberta. Não tinha senão dois passos a dar para me
encontrar fora daqui.

MATILDE - Porque voltaste para lá? Para que falaste outra vez debaixo da mesa?

BERTA - Sentia-me cansada e aborrecida de estar acocorada atrás dos gerânimos. Entrei do
mesmo modo como saí, para as prevenir que não me procurassem, mas, apenas cheguei à
soleira da porta, ouvi a voz da minha prima d'Embrun; escondi-me imediatamente debaixo da
mesa.

MATILDE - Como te atreveste a falar com o risco de ser apanhada?

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BERTA - Porque ouvi a conversa da minha prima com Mademoiselle Octávia e porque a vi
hesitar no seu sistema de severidade. Em primeiro lugar, porque tinha medo que o desespero
me levasse a deitar-me a afogar (o que nunca faria, como certamente pensas), em segundo
lugar, porque a mamã volta amanhã. Então arrisquei uma travessura para lhe meter medo.
Retirei-me de debaixo da mesa, de gatas, sem que ela tivesse tempo de espreitar, e voltei para
a estufa.
CLEMÊNCIA - Tu deves ter fome; há muito tempo que passou a hora da merenda.

BERTA - Não; comi um cacho de uvas na estufa, e que bom que era!

GUILHERME (trazendo Alice pela mão) - Aqui têm a menina Alice. A pobre criança está cansada
de correr. É conveniente que a senhora d'Embrun não volte a pôr-lhe o colete de forças nem a
atormente até à chegada da mamã. Na verdade, estas crianças fazem dó. Ah! cá temos
também a menina Berta! Deu-se bem com as flores e com o cacho de uvas?

BERTA - Sim, meu bom Guilherme; voltei porque estava muito aborrecida. Preciso que nos
faças ainda um grande favor.

GUILHERME - Tudo o que queiram, minhas queridas meninas! Vi nascer as vossas mamãs;
embalei-as, e passeei-as; fiz outro tanto com as meninas, e enquanto viver ser-lhes-ei
dedicado de corpo e alma, pronto para tudo o que seja servi-las. Que é preciso fazer agora?

BERTA - Primeiramente, meu bom Guilherme, tens de queimar esta horrível cinta que a minha
prima d'Embrun quer apertar-nos ao corpo para nos obrigar a estar

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direitas. (Berta tira a cinta do fundo do jarrão. ) Em seguida, é preciso que vás aos aposentos
da minha prima e tragas uma outra cinta igual a esta; encontrá-la-ás na gaveta da cómoda.
Queimá-la-ás também.

GUILHERME (coçando a cabeça) - Hum! hum! Queimar a droga que tirou do jarrão é fácil, mas
vasculhar nas gavetas.. . não me agrada nada!

BERTA - Porquê, Guilherme?

GUILHERME - Porque dá uma aparência.. . uma aparência.. . pouco airosa.

ALICE - Pouco airosa porquê?

GUILHERME - Sim.. . como quem diria, uma aparência.. . de ladrão.. . É esta a verdade,
meninas.

BERTA - Ó meu bom Guilherme! Se esse aparelho fica na posse da minha prima, temos de o
suportar: e se tu soubesses como magoa!.. . como aperta o queixo!

MATILDE - Berta, se isso não agrada ao bom Guilherme, vale mais que a tiremos nós.

BERTA - E se somos apanhadas? Põe-nos outra vez a cinta.

GUILHERME - Sem dúvida, sem dúvida, minha querida menina. Mais vale que seja eu. Vou já;
fiquem tranquilas. Não se aflijam. Lá vou. (Guilherme sai. )

MATILDE - Berta, estou pouco satisfeita por teres incumbido o Guilherme de tal missão; ele
não tinha vontade nenhuma.
BERTA - Julgas? E se eu corresse a impedi-lo?

CLEMÊnCIA - E se a senhora d'Embrun te vê?

BERTA - É verdade! Que havemos de fazer?

MATILDE - Vou lá eu. Esperem aqui.

BERTA (vendo Matilde regressar) - Que tal?

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MATILDE - Cheguei tarde. Guilherme já a tinha tirado. (Olha para Guilherme. ) Ah! Meu Deus!
Que tens, Guilherme? Como estás pálido!

GUILHERME - Não é nada, querida menina! Um pouco incomodado por ter procedido como.. .
um ladrão.

BERTA - Ó Guilherme, não digas isso! Tu, um ladrão! Porque tens semelhante ideia!

ALICE - Ninguém te viu, não é verdade?

GUILHERME - Julgo que não, minha boa menina. Preferia que me tivessem visto.. . Se me
tivessem encontrado, teria confessado a culpa e teria dito porque o fazia, sem nomear
nenhuma das meninas, é claro.

BERTA - Meu pobre Guilherme! Para que me escutaste? Devias recusar-te.

GUILHERME - Recusar! Recusar-Lhes? Minhas queridas meninas: quando lhes recusar um


serviço, é porque o vosso velho Guilherme perdeu o juízo e está próximo do seu fim!

MATILDE - Meu bom Guilherme! (As crianças rodeiam-no e abraçam-no. )

GUILHERME - Muito agradecido, minhas queridas filhas! Vou descer para queimar essas ruins
cintas. Enquanto as tiver na mão, parecer-me-á que queimam.. . Sentirei que mexi no que não
me pertencia. (Guilherme vai para sair. )

SR. D'EMBRUN (entrando) - Esperem, meninas! Apanhei-as, finalmente; e vão ter as cintas
bem apertadas. Uma cada uma. (Fecha a porta com duas voltas de chave e mete-a na
algibeira; sai pela porta Que dá para o jardim, que fecha igualmente, e desaparece. Todos
trocam olhares entre si. )

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GUILHERME (com um ar desanimado tendo as cintas escondidas atrás das costas) - Estamos
presos como ratos numa ratoeira! Que hei-de fazer às cintas?

M. L-E OCTÁVIA - Quais cintas, Guilherme?

GUILHERME (embaraçado) - Ah! perdão, Mademoiselle, não me lembrava que estava aqui.
Não é nada.. . uma brincadeira.
M. LLE OCTÁVIA (, sorrindo) - Que é que tem tão cuidadosamente escondido atrás das costas,
meu bom Guilherme?.. . Bem, estão todos mudos?.. . Que aconteceu?

GUILHERME - Mademoiselle.. . é que.. . veja.. . eu não sou nenhum rapaz.. . tenho os meus
velhos hábitos.. . Olhe.. . (Coça a cabeça. Octávia olha-o, sorrindo. ) Olhe, Mademoiselle, eu
queria sair daqui! Não é próprio que eu esteja nos aposentos destas meninas.

M. L-E OCTÁVIA (sorrindo) - Mas que tem atrás das costas?

GUILHERME (agitado) - Alguma coisa é, Mademoiselle.. . com certeza, Mademoiselle.. . Pode


crer.. .

M. LLE OCTÁVIA - Mas que coisa? Que é, afinal?

GUILHERME (muito agitado) - Meu Deus! eu já disse.. . é uma coisa.. . uma coisa que não é
minha. . está satisfeita agora?

SR. A D'EMBRUN (entrando) - Roubaram-me! Estou roubada! Restituam-me o que me tiraram.

M. LLE OCTÁVIA - Que diz, minha senhora? Quem vos

poderia aqui roubar?

SR. D'EMBRUN - Não sei, Mademoiselle; mas o que sei, do que estou certa, é que alguém se
introduziu nos meus aposentos; abriu a gaveta da minha cómoda, tirou uma cinta de boa
posição e, o que é mais grave, uma nota

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de mil francos que, inadvertidamente, eu tinha deixado nessa gaveta. (Guilherme empalidece
e treme. Coloca-se atrás de Octávia e examina furtivamente o embrulho que contém a cinta e
vê a nota de mil francos presa no fio que ata o embrulho. Fica aterrado.

Sr. a d'Embrun, continua. ) Bem! Ninguém responde! E todos têm ar de culpadas.


Mademoiselle Octávia, permitia-me que examine cada uma em separado.

M. LLE OCTÁVIA - Como queira, minha senhora. Estou convencida de que lhe roubaram,
realmente, uma nota de mil francos, mas não é aqui que a encontrará. Vamos, minhas filhas,
coloquemo-nos todos em fila. (Colocam-se em fila. ) Pronto! Para aqui, meu bom Guilherme,
para a ponta da fila. (Guilherme desembaraça-se do embrulho atirando-o para debaixo da
mesa e coloca-se junto de Octávia. Cada um denota extrema palidez. )

M. LLE OCTÁVIA - Tranquilize-se, meu pobre GuiLherme: nenhuma das suas queridas meninas
está culpada; respondo por isso. (A senhora d'Embrun revista as crianças: volta-lhe os bolsos,
examina os fatos. Parece contrariada e não se atreve a fazer o mesmo a Octávia nem a
Guilherme, que ela observa com olhar penetrante e perscrutador. )

M. LLE OCTÁVIA (ri e volta as algibeiras) - Aqui tem, minha senhora; vamos Guilherme, faça o
mesmo, meu querido amigo. (Guilherme despe o casaco, dá-o à senhora d'Embrun e na sua
atrapalhação dispõe-se a despir também o colete. )
M. LLE OCTÁVIA (rindo) - Basta, basta, meu bom Guilherme; a senhora d'Embrun já viu que
estamos todos inocentes.

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SR. D'EMBRUN - Sim, apraz-me reconhecê-lo; mas vou prosseguir na minha busca sujeitando.. .
a ela as criadas de quarto e os outros criados. Mil francos! a quarta parte dos meus
rendimentos! (Sai. )

GUILHERME (aproxima-se precipitadamente de Octávia, entrega-lhe o embrulho e atira-se


para uma cadeira exclamando numa voz estrangulada. ) - Atem tudo! Entregue-lho como
puder, sem que ela saiba que fui eu. (Octávia faz um movimento de surpresa. ) Sim, fui eu! Fui
eu que tirei da gaveta o embrulho e a maldita nota veio agarrada.

M. LLE OCTÁVIA - Ó Guilherme!.. . Não, não! Não é

verdade! Nunca acreditarei! É impossível! (Guilherme solta um gemido de angústia e perde os


sentidos. Octávia ampara-o; as crianças trazem água-de-colónia, água fresca e banham-lhe a
testa e as fontes. )

GUILHERME (recupera os sentidos, olha-as espavorido, aperta a cabeça com as mãos e repete
várias vezes. )Ladrão! Ladrão! (Berta desata a soluçar )

BERTA - Mademoiselle, ó Mademoiselle! Eu é que fui a culpada. Fui eu que consegui do bom
Guilherme, apesar da sua repugnância, que fosse buscar esta cinta que nos fazia doer tanto!
Nós queríamos que ele a fosse buscar e a queimasse. Ia fazê-lo quando entrou a senhora
d'Embrun.

GUILHERME (um pouco mais calmo) - Foi Deus que não permitiu que a queimasse, porque essa
maldita nota de mil francos, que não vi e que estava agarrada, teria sido queimada com o
embrulho e poderiam suspeitar de mim.

M. LLE OCTÁVIA - Nunca, Guilherme! Nunca! Mas

Deus tudo fez pelo melhor. Dê-me tudo isso; vou eu arranjar as coisas. Fingirei que procuro a
nota na gaveta e

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terei o cuidado de a encontrar.. . no fundo.. . Quanto à cinta, vou queimá-la e direi que uma
pessoa da família a levou com pena das meninas e que esse instrumento de tortura já não está
cá. Anime-se, Guilherme e para o futuro não seja demasiado bom para as crianças; siga de
preferência o seu próprio instinto. (Octávia sai. )

BERTA (agarra-se ao pescoço de Guilherme, chorando)

- Ó Guilherme! Meu bom Guilherme! Perdoa-me, perdoa-nos! Que mal que eu te fiz sem
querer e como estou desolada!
GUILHERME - Não pense mais nisso, minha querida menina; mas é bem certo que procedi
como um pateta. Veja o que seria de mim se alguém me tivesse visto abrir a gaveta, se me
tivessem visto trazer o embrulho, ou, ainda, se eu tivesse queimado tudo, inclusivamente a
nota de mil francos! Tremo só de o pensar!

MATILDE - Não penses nisso, meu bom Guilherme, não penses nisso, peço-te. Também eu
tremo só de o imaginar.

GUILHERME - Que irá suceder agora a estas crianças, uma vez que a prima as encontrou? Que
hei-de fazer para as proteger até à chegada das mamãs?

BERTA - Espero que a Mademoiselle Octávia nos defenda. Enquanto estava debaixo da mesa,
ouvi-a aconselhar a prima para que fosse menos severa e a Sr. a d'Embrun parecia ceder, pois
não podia fazer de nós umas crianças bem-educadas.. . como ela diz. Apesar disso, meu bom
Guilherme, virás em nosso auxílio, só até amanhã.. .

GUILHERME - Sim, minhas filhas, mas não como agora!.. . Tenho muito medo! Mademoiselle
Octávia tem razão. Sou um lamecha com as meninas. Não sei resistir-lhes...

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Nada lhes sei recusar.. . Por meu lado peço-lhes uma mercê, um favor, minhas filhas. Não me
peçam nunca coisas perigosas e más. E quando eu mostrar relutância em lhes fazer a vontade,
não insistam, peço-lhes, porque se resisto, é porque a minha consciência me diz que o que me
pedem é mau. Olhai, minhas filhas: sois muito novas, não reflectis, não podeis prever; eu, que
sou velho, prevejo tudo. Se sou pateta com as meninas, é porque as amo muito, sim muito. E
esta amizade faz-me praticar tolices e inconveniências.

AS CRIANÇAS - Sim, sim, meu bom, meu querido Guilherme. Prometemos. (Todas o rodeiam e
beijam. )

M. LLE OCTÁVIA (regressando) - Bem. Tudo se passou

às mil maravilhas. Sempre encontrei a nota de mil francos caída atrás da gaveta.. . Aproveitei a
ocasião para fazer sentir à senhora d'Embrun quão penosa foi para nós a cena de nos revistar.
Confessei a destruição das cintas americanas. Ela ficou um pouco envergonhada pelo barulho
que fez, para nada. Aproveitei também a ocasião para obter o perdão para Berta e Alice. Creio
que daqui até amanhã nada terão a temer porque a senhora d'Embrun está sem coragem
contra a vossa turbulência e espírito de resistência. O regresso da mamã obriga-a a renunciar
ao aperfeiçoamento que esperava obter em seis meses pelos meios violentos que tem
empregado.

BERTA e ALICE - Obrigada, obrigada, Mademoiselle! Como é boa!

M. LLE OCTÁVIA - Minhas filhas, sejam boas e amáveis para com vossa prima; devem-lhe
respeito porque é velha, porque é vossa parente, porque os vossos pais a estimam, e porque,
enfim, ela quis proceder em vosso
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benefício, e, embora esteja enganada, empenhou, na sua missão, muito cuidado e zelo.

BERTA - Sim, querida Mademoiselle, seremos muito correctas com ela; mas esperamos não
ficar debaixo da sua direcção.

M. LLE OCTÁVIA - Agora retomemos o trabalho. Já

não temos muito tempo antes de jantar. (As crianças tomam os seus lugares. )

II Acto

Salão principal do mesmo solar. Poltronas e mesas de sala. Jarros com flores, dando um ar
festivo.

SR. A D'EMBRUN (com mau modo) - Berta e Alice, estejam quietas. Que desassossego. É uma
péssima maneira de estar.

BERTA - Minha prima, nós não vemos a mamã há seis semanas! Esperamo-la a cada momento!

SR. D'EMBRUN - Não é razão para andarem de cá para lá como ursos numa jaula, a fazerem o
trabalho dos criados, guarnecendo as jarras de flores, ter, enfim, maneiras vulgares e de mau
gosto.

MATILDE - Parece-me que oiço o carro. (Correm as quatro para a janela. )

BERTA - Não; não é nada.

SR. D'EMBRUN - Continuam? É intolerável! Venham as duas sentar-se ao pé de mim e estejam


quietas.

ALICE - Mas.. . Minha prima.. .

SR. D'EMBRUN - Aqui não há mas.. . menina. Quando era da vossa idade e a minha mãe (que
eu nunca tive o mau gosto de lhe chamar mamã) e quando a minha mãe, dizia eu, se
ausentava, era tranquila e com maneiras decentes

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que eu esperava o seu regresso, no salão, em trajo de cerimónia.

BERTA - E quando a via chegar?

SR. A D'EMBRUN - Esperava-a de pé, no meio do salão e quando a porta se abria.. .

ALICE - Corria para ela e pendurava-se-lhe ao pescoço.


SR. A D'EMBRUN - Oh! Nada disso! Esperava que ela se dirigisse para mim: fazia uma profunda
reverência, inclinava-me para lhe beijar a mão enquanto ela me beijava a testa e esperava que
ela se dignasse falar-me para lhe responder.

BERTA - Eu nunca poderia ser assim fria com a mamã.

SR. D'EMBRUN - Não é frieza, menina, é o decoro, é a etiqueta.. .

MATILDE e CLEMÊNCIA - Mamã, mamã! Ela aí está! (As quatro crianças precipitam-se para a
porta e correm até à escadaria.)

SR. A D'EMBRUN - Berta, Alice, esperem! Ei-las em carreira! Que maneiras! E pensar que não
consegui transformá-las em seis semanas! (Ouvem-se gritos de alegria e risadas. ) É
inacreditável! Uma verdadeira cena de camponeses! E a professora foi com elas! No meu
tempo, nunca se viu coisa semelhante.. . Ei-las que voltam. Quero portar-me com dignidade
para dar a todos uma lição de boas maneiras. (A Sr. d'Embrun, de pé, no meio do salão, meio

inclinada, coloca as mãos no estômago. A Sr. d'Atale e a Sr. a d'Ulsac entram, rodeadas de suas
filhas. Avançam rapidamente para abraçarem a Sr. a d'Embrun, que recua, fazendo
reverências, e afastando-se para deixar passar as senhoras. )

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SR. A D'ATALE (surpreendida) - Como, minha prima, não quer abraçar-nos?

SR. D'EMBRUN (com solenidade) - Permita-me, senhora e querida prima, que antes de abraçar
a parente, saúde a dona da casa.

SR. D'ULSAC - Por favor, não veja em mim, querida prima, senão uma amiga muito reconhecida
pelos cuidados que fez o favor de prestar a minhas sobrinhas, durante a minha ausência.

SR. A D'EMBRUN - Lamento, minha prima, que esses cuidados não fossem coroados de
completo êxito.

SR. D'ULSAC - Como! Terá razão de queixa de Berta e de Alice? Admira-me bastante, porque
elas são boas e fáceis de tratar.

SR. D'EMBRUN - Perdão, minha prima se não respondo directamente à sua pergunta. Quando
tiver repousado, pedir-lhe-ei que me escute por alguns momentos e então lhe exporei os meus
receios e as minhas esperanças. (As crianças rodeiam a Sr a d'Ulsac que as abraça mais uma
vez e sai do salão acompanhada de Matilde e Clemência. )

SR. D'ATALE - Bem, minha prima, alivio-a, finalmente, do fardo que quis ter a bondade de
aceitar durante seis semanas. Foi-lhe muito custoso de suportar, não é verdade?

SR. D'EMBRUN - Permita-me, minha prima, que aguarde um momento mais oportuno para
responder à sua pergunta. Não devemos discutir, a rir, assuntos tão sérios.
SR. D'ATALE - Minha prima, a sua frieza e gravidade assustam-me. Em que a descontentaram
as minhas filhas?

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SR. A D'EMBRUN - Não há descontentamento, minha prima, mas tristeza e desgosto.

SR. D'ATALE - Como! As minhas filhas não se comportaram bem durante a minha ausência?

BERTA - Com efeito, mamã, nós fomos tão bem comportadas, que mais não podíamos ser, mas
com a prima é impossível sê-lo, na verdade, porque ela ralha por tudo.

SR. D'ATALE - Berta, como te permites falar assim da tua prima?

ALICE - É que não faz outra coisa senão atormentar-nos e aborrecer-nos todo o dia, e depois.. .

SR. A D'ATALE - Alice, cala-te e pede desculpa à senhora d'Embrun pela tua falta de delicadeza.

ALICE - Não, não posso.

SR. D'ATALE - Como! Não podes? Que maneira é essa de responder? Nunca te ouvi falar assim!

ALICE - Perdão, mamã! É que para pedir perdão a minha prima, é preciso pôr-mo-nos de
joelhos, juntar as mãos, beijar as mãos dela e dizer não sei quê que sempre me esquece.

SR. A D'ATALE - Só dizes tolices para te desculpares. Obedece-me! Pede perdão à senhora
d'Embrun.

ALICE (aproxima-se da senhora d'Embrun e diz tentando beijá-la. ) - Perdão, minha prima, não
volto a fazer o que fiz.

SR. D'EMBRUN (ergue-se e recua) - Menina, não devemos beijar uma pessoa que ofendemos.
Espera-se, modesta e respeitosamente, que ela queira perdoar-nos, e depois não nos
agarramos a ela para a beijar como o faria uma leiteira mal-educada; fazemos uma vénia
profunda, e

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avançamos para lhe beijar a mão que nos quiser estender. (A senhora d'Embrun estende-Lhe a
mão; Alice não a vê e volta-se para a mãe. )

ALICE - Vê, mamã? É sempre assim. Que havemos de fazer?

SR. D'ATALE (beijando-a) - Obedeceste; pediste perdão, minha filha! Está muito bem. Agora,
vem comigo para me ajudares a desembrulhar uns pequenos presentes que vos trago. Adeus,
minha prima. Até já, minha boa Mademoiselle.

SR. D'EMBRUN (indignada) - É deplorável! É humilhante! A mãe necessita tanto de ser educada
como as filhas. Não viu como ela se retirou satisfeita com as pretensas desculpas que me
dirigiu Alice?
M. LLE OCTÁVIA - Peço-Lhe, minha senhora, que

desculpe a senhora d'Atale e que siga os costumes de agora. A educação de hoje já não é
assim.. . assim tão perfeita como noutro tempo.

SR. D'EMBRUN - Eis o que é falar acertado, Mademoiselle, com perfeição é o termo. No meu
tempo, o respeito era a primeira das ciências. Porque é uma ciência, uma verdadeira, grande e
bela ciência. Agora ama-se!.. . Belo progresso, na verdade, o amor! Mas é ridículo,
inconveniente e impertinente, amar aqueles a quem devemos temer e respeitar.
Presentemente, querem amar toda a gente, até o bom Deus! Não é o temor que se inculca às
crianças, é o amor! Meu pai, que era um velho cavaleiro de S. Luís e que me educou num velho
castelo, transmitiu-me as suas tradições, mostrou-me aqueles que é preciso temer, aqueles
que devemos respeitar e aqueles que podemos amar.

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M, LLE OCTÁVIA (reprimindo um sorriso) - Parece-me, minha senhora, que se pode respeitar e
amar ao mesmo tempo; e até temer e amar.

SR. A D'EMBRUN (com solenidade) - Não, Mademoiselle. Teme-se Deus e o Soberano.


Respeitam-se os pais, os superiores e as pessoas de idade; amam-se as crianças, os nossos
iguais, o cão e o gato.

SR. D'ATALE (regressando) - Estou pronta a ouvi-la, minha prima. Parece-me que só vou ouvir
queixas, porque encontro as minhas filhas muito diferentes do que elas eram. Perderam a
docilidade, a amabilidade, e, sobretudo, a sua alegria calma. Elas que estavam sempre de
acordo, disputam por um nada, respondem-me com vivacidade, discutem as minhas ordens,
encontro-as, enfim, mudadas, e não posso dizer que seja para melhor.

SR. D'EMBRUN - Minha prima, o que observou foi

objecto da minha solicitude e da minha mais severa repressão. Queria torná-las dóceis como
máquinas, tranquilas e calmas como as águas dormentes, silenciosas como estátuas de pedra,
corajosas, suportando o sofrimento como os lacedemónios, de maneiras nobres e correctas
como as damas da corte do grande rei Luís XIV. Fracassei em toda a linha. Ser-me-ia preciso
mais tempo e uma autoridade mais absoluta. Empreguei, inutilmente, repreensões severas,
privações, castigos corporais, mas tudo isto era atenuado pela falta de autoridade e pela falta
de tempo.

SR. D'ATALE - O que acaba de me dizer, minha prima, desgosta-me profundamente. Vejo as
minhas filhas infelizes e que a senhora se sente bastante pesarosa de não ter obtido a
satisfação de um êxito. Receba, todavia, os

113

meus agradecimentos pela sua excelente intenção e peço-lhe que perdoe as faltas de que as
minhas filhas se tornaram culpadas.
SR. A D'EMBRUlV - Continuarei com prazer a educação apenas esboçada, minha prima.

SR. A D'ATALE - Mil agradecimentos, minha prima; a educação de minhas filhas é um dever que
eu não devo deixar a cargo de ninguém. De hoje em diante, ocupar-me-ei eu própria, só eu
própria, dela.

SR. A D'EMBRUlV (que faz uma vénia desajeitada)Como queira, minha prima; não deve temer
que eu una as minhas ideias às suas. Elas são tão incompatíveis como o bem e o mal.. . (A Sr. a
d'Atale faz também uma vénia à Sr. a d'Embrun que sai. )

SR. d'Atale - Querida Mademoiselle, as minhas filhas deviam ter sido muito infelizes com esta
severa e velha prima. Porque não me escreveram elas? Porque é que não me informou?

M. LLE OCTÁVIA - Minha senhora, eu protegi as crianças o melhor que pude e soube, mas
como foi a Sr. a d'Embrun que recebeu todo o poder de educação sobre Berta e Alice.. .
Julgava que conhecia o seu sistema de educação e que o aprovava.

SR. D'ATALE - De forma nenhuma. Nunca tinha visto a senhora d'Embrun senão de visita; sabia
que tinha excelente reputação; ela desejava muito passar o Verão no campo, e eu tinha de ir
para as termas. Pensei que era uma boa ideia aliviá-la, a si, dum encargo que de boa vontade
aceitaria; ao mesmo tempo tornava-me agradável à minha prima e deixava as minhas filhas
entregues em boas mãos. Mas o que eu vejo da Sr. a d'Embrun dá-me

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sérias apreensões no que respeita às minhas pobres filhas.. .

ALICE (entra discutindo com Berta) - Afianço-te que vou dizer à mamã.

BERTA - E eu proíbo-te que o digas.

ALICE - Julgas que te dou ouvidos?.. .

BERTA - Se não me atenderes, direi à mamã que obrigaste o Guilherme a roubar.

ALICE - Se te atreves a dizer isso, eu digo à mamã que roubaste um cacho de uvas da estufa.

BERTA - Dir-lhe-ei que és mentirosa.

ALICE - eu digo-lhe que tu és uma ladra.

BERTA - Cala-te mentirosa!

ALICE - Deixa-me tranquila, ladra!

SR. D'ATALE (interrompendo-as) - Que bonitas coisas que eu oiço, minhas filhas! Não me
admira que a Sr. a d'Embrun as ache mal-educadas.. . Há quanto tempo falam com tanta
grosseria?
ALICE - É que Berta quer queixar-se sempre de mim para me castigarem, eu não quero que me
metam a cinta de boa posição.

BERTA - E eu não quero que me fechem e que venham de cinco em cinco minutos bater-me,
para me obrigar a pedir perdão de joelhos. Quando faço queixas dão-me uma recompensa; por
isso, quero dizer à mamã que tu tiraste.. .

SR. D'ATALE - Caluda! Não quero ouvir mais nada! Não se envergonham minhas filhas, de
discutir dessa maneira uma hora depois da minha chegada? Esqueceram-se que não permito
queixas? Que nunca as escuto?

ALICE - Mas a prima ordenava-nos o contrário.

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BERTA - Quando nós não dizíamos nada, quando nada tínhamos a contar, castigava-nos
porque Lhe escondíamos alguma coisa, dizia ela.

ALICE - Porque tu mentias, queixando-te de mim por coisas que eu não fazia.

BERTA - E tu, quando disseste que eu tinha atirado o meu livro de fábulas para o poço!

SR. D'ATALE - Peço-Lhes que se calem, minhas filhas! Se soubessem o desgosto que me causam
comportando-se dessa maneira!

BERTA (beijando-a) - Perdão, mamã, eu estou muito zangada; mas, para que nos deixaste
tanto tempo com a nossa prima que é tão má?

ALICE - Ó mamã não tornes a deixar-nos com ela! Faz-nos más, bem vês!

SR. D'ATALE - Não, minhas filhas, nunca mais. Porque não me informaram do que me estão
dizendo? Pelo contrário: escreviam-me a dizer que era muito boa, que as amava muito.

BERTA - Ela proibia-nos que nos queixássemos e obrigava-nos a escrever as cartas na sua
presença; era ela quem as fechava e metia no correio.

SR. D'ATALE - Porque não pediram às suas primas que me escrevessem?

BERTA - Ela nunca nos deixava sós com as primas. Obrigava-nos a ficar ao pé dela, para que
pudesse ouvir tudo o que dizíamos.

ALICE - Uma vez, escrevi a Clemência um bilhete, para que mandasse dizer à mamã que
éramos muito infelizes. Viu-me passar o bilhete a Clemência, deitou-lhe a mão e leu-o; levou-
me para casa, deu-me açoites até me

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fazer gritar como uma desgraçada, e depois fechou-me com Berta num quarto escuro, até ao
jantar.

SR. D'ATALE (beijando-as) - É medonho o que oiço! Estou desolada com o que sofreram.
M. LLE OCTÁVIA - Agora que já regressou, minha

senhora, elas voltarão a ser como antigamente.

SR. D'ULSAC (entrando) - Eis-nos reunidas. Vamos

para a mesa. Que tens, Paulina? Estás pálida, trémula.. .

SR. D'ATALE - Acabo de saber por minhas filhas de

coisas fantásticas da nossa velha prima d'Embrun.

SR. A D'ULSAC - Matilde e Clemência contaram-me

também coisas inacreditáveis da sua severidade para com Berta e Alice. Parece que essa
severidade deu às pobres crianças defeitos que elas nunca tinham tido antes.

M. LLE OCTÁVIA - Certamente. Elas mentiam para

evitar os castigos; revoltavam-se contra medidas demasiado severas; discutiam, zangavam-se,


desobedeciam, mas como dizia à senhora, a sua presença e a ternura materna farão com que
tudo entre de novo na ordem. Berta e Alice voltarão a ser como a Matilde e a Clemência.

BERTA - Sim, sim, Mademoiselle; vivíamos mais felizes quando éramos boas, e, agora que a
mamã está connosco, não terá nada a censurar-nos.

GUILHERME - As senhoras dão licença? (Apresenta uma carta à Sr. d' Ulsac. )

SR. D'ULSAC - De quem é a carta, Guilherme?

GUILHERME - Da senhora d'Embrun.

SRª D'ATALE - Como! Da Sr. a d'Embrun? Ela não almoça connosco? Está doente?

GUILHERME - Não sei, minha senhora. Foi Brígida que me trouxe a carta.

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SR. A D'ATALE - Vê o que ela te diz.

SR. A D'ULSAC (abre a carta e lê alto) - Senhora e prima: permita-me que fuja a uma posição
falsa e penosa. Não posso ver sem tremer de indignação, as maneiras burguesas, modernas, o
comportamento excêntrico e campónio das rapariguinhas ainda há pouco confiadas aos meus
cuidados. Não poderei guardar silêncio, e não me permitem que fale. Não querendo, minha
senhora e prima, alterar os seus hábitos do moderno regime nem impor-Lhe os do meu nobre
e antigo regime, maneiras tão justamente apelidadas de perfeitas pela amável Mademoiselle
Octávia (digna de ser iniciada na nobre vida de outro tempo), resigno-me a informá-la da
minha resolução irrevogável. Dentro de duas horas terei deixado o vosso solar para não mais
voltar. A senhora d'Atale deu-me a entender claramente que a minha voz não seria mais
escutada. Adeus, minha senhora e prima. Queira aceitar a homenagem respeitosa da sua mui
modesta e obediente prima,

Clorinda d'Ipermont Viúva d'Embrun

Solar d' Ullsac, 20 de Agosto de 1864. "

SR. D'ULSAC - É estranho, mas eu não me sinto penalizada. Guilherme, veja se Lhe leva o
almoço. A pobre senhora não deve partir com jejum, nem a sua Brígida. E nós, burgueses e
vilões, vamos almoçar e esqueçamos este triste acontecimento que confirma o provérbio:

COM VINAGRE NÃO SE APANHAM MOSCAS!

Toda a culpa tem perdão

Personagens

Valentim, marceneiro, 30 anos

Mendigo, 35 anos

Sargento, 38 anos

Guarda, 32 anos

Désiré, 13 anos

Luciano, 13 anos

Carlitos, 10 anos

Julião, 12 anos

Sr. a Clopet, 33 anos

Sr. Pupusse, adjunto

Cura

Médico

Magarefe

Padeiro

Albardeiro
Ferrador

Várias crianças da escola

I Acto

Oficina de marceneiro; pela porta aberta vê-se um pátio; dum lado a casa da senhora Clopet e
do outro, o edifício da escola.

VALENTIM (trabalha num armário; descansa por momentos) - Até agora, nada tem perturbado
a minha vida. Ninguém sabe de onde vim, nem o que tenho feito. Deus protege-me, desde que
me voltei para Ele!.. . De que inferno me arrancou!.. . Procuro afastar de mim essas
recordações! São tão horríveis! Enquanto trabalho, penso menos nisso. (Volta a trabalhar)

LUCIANO (cantando) - Tenho bom tabaco na minha tabaqueira.

DÉSIRÉ (cantando) - Tenho bom tabaco, mas não é para ti.

LUCIANO - No entanto, vais dar-me do teu.

DÉSIRÉ - Nem uma pitada! É todo para mim.

LUCIANO - Dá-me! Egoísta!

VALENTIM - Que aconteceu, meus meninos? Parece que estão a discutir.. .

LUCIANO - Parece bem que sim. Désiré tinha umas moedas e eu também. Combinámos: Vais
comprar um

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cachimbo.

- E tu vais comprar tabaco.

- Empresta-me o teu cachimbo.

- E tu dás-me tabaco.

- Está dito! Comprei o cachimbo, e ele comprou o tabaco. Eu disse: Dá-me cá que eu encho o
cachimbo!

Ele respondeu: Não, eu é que começo.

- Está bem, mas depois será a minha vez.

- Está entendido! Dá cá o cachimbo. E dei-lho. Ele encheu-o, acendeu-o, fumou e pronto.

E eu? - disse-lhe.
- Tu? - disse ele. - Toma lá o teu cachimbo.

- Sem nada dentro? - disse-Lhe eu.

Dá-me com que o encher

- Enche-o com as aparas do Valentim. Fugiu; corri atrás dele e, para que ele me desse tabaco,
comecei a cantar: Tenho bom tabaco na minha tabaqueira. Depois entrámos na sua oficina,
senhor Valentim; ouviu o que ele me respondeu: Tenho bom tabaco, mas não é para ti, .
Quero que ele me dê porque foi o que combinámos. Assim é roubar.

DÉSIRÉ (rindo) - Parvo! Roubar é tirar alguma coisa! Que é que eu te tirei?

LUCIANO - O meu cachimbo!

DÉSIRÉ - Não é verdade. Tu meteste-o no bolso!

LUCIANO - Mas foste tu que te serviste dele. E eu?

DÉSIRÉ (imitando-o) - E eu?.. . Servir-te-ás dele quando tiveres tabaco.

LUCIANO - Mas és tu que tens o meu tabaco!

DÉSIRÉ - Não é verdade. É meu, é só meu. Paguei-o

do meu bolso. Pergunta ao Sr. Dinis, o vendedor; vais ver o que ele te diz.

VALENTIM (que escutou com atenção) - Désiré, meu rapaz, compreendo o negócio: cometeste
uma burla; nem mais nem menos. Tens esperteza, não digo que não. Quiseste fazer uma
partida, bem o vejo; mas, não está certo; o

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que se combina está combinado. Dá-lhe o tabaco. Se assim não fizeres és um burlão.

DÉSIRÉ (inquieto) - Acha, senhor Valentim?

VALENTIM - Tenho a certeza disso. Crê no que te digo, meu amigo.

DÉSIRÉ (dá tabaco a Luciano) - Toma! Não quero ser um burlão.

LUCIANO - Obrigado, Désiré! Obrigado, Sr. Valentim!

VALENTIM - E agora que cada um cumpriu o seu dever, tenho ainda uma coisa a dizer. Porque
fumam vocês? Porque estragam o dinheiro a comprar tabaco? Não sabem o mal que faz? As
doenças que causa? Os vícios que cria?

DÉSIRÉ - Oh! Quanto ao dinheiro não nos custa muito. Ainda não somos grandes fumadores.. .

VALENTIM - Porque são ainda crianças.


LUCIANO (com desdém) - Oh! crianças! As crianças não fumam!

VALENTIM (sorrindo) - Ora aí está onde bate o ponto. Vocês não querem ser crianças! Querem
ser como os homens! Fumam porque vêem os homens fumar! Olha lá, Désiré: traz-me aquele
malho que está acolá ao fundo, a um canto. Não é o pequeno, o outro, o maior. (Désiré
experimenta levantá-lo; não consegue. ) Vês? Não podes! Reparem como eu o manejo.
(Levanta o malho com uma das mãos e fá-lo girar com facilidade. ) Porque é que não o
levantas?

DÉSIRÉ - Ah! Senhor Valentim, como é maldoso! O senhor é um homem cheio de força!

VALENTIM - E tu?

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DÉSIRÉ (sorrindo) - Eu? Ora! É claro que não tenho a força de um homem! Lembre-se de que
tenho treze anos!

VALENTIM - Se não tens a força de um homem para levantar um peso, porque queres tu ter a
sua força para

absorver um veneno que mata muitos homens mais fortes do que eu? Vês tu, meu amigo?
Cada coisa no seu lugar! O trabalho pesado e difícil não convém à tua idade.. . nem

o tabaco tão-pouco.

LUCIANO - Quando poderemos nós fumar?

VALENTIM - Se me quiseres dar ouvidos, nunca fumarás. O fumador gasta o seu dinheiro,
perde o seu tempo, arruina a saúde e, pior do que isso, toma maus hábitos.. . Agora, trabalho!
E vocês, vão para a escola! (Os rapazes saem. )

GUARDA (entrando) - Então tu não foste visitar-nos como devias? E no entanto, ontem o
sargento esperou por ti por causa da tua licença.

VALENTIM - Desculpe-me, senhor guarda. Eu julgava que a licença era válida até hoje à noite e
como tinha uma encomenda urgente.. .

GUARDA - A encomenda não importa! Um condenado em liberdade condicional é, apesar


disso, um condenado, e se não fosse a primeira vez que cometes a falta de não te apresentares
ao sargento no dia que tens marcado, levar-te-ia preso.

VALENTIM - Agradeço a sua benevolência, senhor guarda. Fique certo de que, de futuro, não
faltarei.

GUARDA (com mais brandura) - Fazes bem. Se cá no sítio sabem que és um condenado em
breve perderás a clientela.

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VALENTIM - Ai de mim! Sim, eu sei. A miséria viria como noutro tempo. Todavia sinto que me
tornei um homem honesto. Tenho horror à preguiça, à embriaguez, ao jogo, e sobretudo, à
desonestidade. Antes queria morrer de fome do que cometer uma má acção.

GUARDA - Está bem, meu pobre rapaz! Acredito-te, e não me envergonho de apertar a mão a
um homem hoje honrado. (Estende a mão a Valentim que agarra, aperta-a fortemente nas
suas, e Quer falar, mas fica mudo e retoma o trabalho sem dizer palavra. ) Pobre rapaz!
Coragem meu amigo: sabes bem que não seremos nós, os guardas que te trairemos.. . Adeus!
Farei o meu relatório; não tens necessidade de lá ir antes de quinze dias. (Sai. Valentim
trabalha e de tempos a tempos olha para Julião, Désiré, Carlitos e Luciano, que brincam no
pátio. )

JULIÃO - Désiré. Não viste um guarda a falar com o senhor Valentim?

DÉSIRÉ - Sim, vi; e até Lhe apertou a mão.

JULIÃO - Apertou-lhe a mão?.. . Toma! Essa é que é muito boa! E eu que julgava que um
guarda não falava com uma pessoa senão para a ameaçar ou pôr-lhe as algemas.

DÉSIRÉ - Que tolice! Um guarda tem amigos como qualquer outra pessoa.

JULIÃO - Está bem, mas eu é que não gostava de ser amigo de um guarda.

DÉSIRÉ - Porquê?

JULIÃO - Porque.. . porque.. . enfim não me agradava. Quando me vejo em frente de um


guarda não me sinto à vontade, sinto arrepios na espinha.

LUCIANO - Ouve lá, Carlitos: não tens dinheiro?

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CARLITOS - Para quê?

LUCIANO - Empresta-me, para comprar amêndoas na casa da senhora Jolivet.

CARLITOS - Depois não mo pagas.. . bem te conheço! Gastas todo o dinheiro em tabaco.. .

LUCIANO - Tu não és amável! Fica-te mal recusar um

favor a um amigo.. .

CARLITOS - Pois se tu não me pagas.. .

LUCIANO - Afianço-te que pago.

CARLITOS - E eu afianço-te que não.

LUCIANO - És um malcriado! És um mau colega.

CARLITOS - Como é que tu me pagavas? Onde arranjas o dinheiro?


LUCIANO - Essa é boa! Sempre se encontra duma forma ou doutra.

CARLITOS - Mas onde? Em casa de quem?

LUCIANO - És enfadonho!.. . Encontra-se uma gaveta aberta em casa, mete-se a mão dentro, e
retira-se com a moeda que lá se encontrar.

CARLITOS - Isso é roubar!

LUCIANO - Ora essa! Em casa dos pais tira-se o que nos agrada!

VALENTIM (que ouviu tudo, aproxima-se das crianças)

- Sim, Carlitos, dizes bem; é roubar! És um rapaz honrado! E tu, Luciano, presta atenção, meu
amigo. Toma sentido no que disse Carlitos, e não andes à caça de dinheiro nem de gulodices.
Começa-se por pouco e acaba-se por muito e.. . na prisão!

MENDIGO (que entra com um macaco ao ombro) Uma esmola, meus meninos! Uma esmola,
por favor!

LUCIANO - Não temos que lhe dar, bom homem.

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MENDIGO - Não têm uma moedinha para mim e para o meu pobre amigo?

CARLITOS - Qual amigo? Onde está ele?

MENDIGO - Aqui no meu ombro, meus meninos.

DÉSIRÉ - Olha que bicho tão engraçado! Como ele olha para nós! (O macaco tira o chapéu e
cumprimenta. As crianças riem. )

MENDIGO (solta o macaco da corrente) - Vai, pobre animal, vai pedir uma esmola para ti e
para teu pobre dono. (O macaco salta para o chão num pulo, tira o chapéu e apresenta-o aos
rapazinhos. Carlitos e outros deitam algum dinheiro no chapéu; quando chega junto de
Luciano, este mete a mão e em lugar de deixar alguma coisa tira duas moedas. O macaco que
não tira os olhos do chapéu, apercebe-se do estratagema, guincha e range os dentes, atira-se a
Luciano e faz menção de o morder. ) Dá-lhe o que lhe tiraste, garoto mau. O meu macaco não
te fará mercê nem de um cêntimo. (Luciano, apavorado, dá o que tirara ao macaco. Este olha
atentamente para as moedas, examina as mãos de Luciano, olha para o dono que Lhe faz sinal
de voltar, e leva-lhe o chapéu com o dinheiro. As crianças riem e troçam de Luciano, gritando. )
O macaco foi mais manhoso do que tu! (Désiré fica sozinho à porta da oficina e arruma
pedaços de madeira. O mendigo vai pedir esmola à oficina. )

MENDIGO - Uma esmola, se faz favor.

VALENTIM (olhando-o) - Porque não trabalha em lugar de mendigar? Pode muito bem ganhar
a vida.
MENDIGO (depois de o examinar atentamente) - Olá! se não me engano.. . a sua voz, o seu ar!
É bem ele! Como te estabeleceste com marcenaria, Tristão?

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VALENTIM (estupefacto) - Quem é você? Não o conheço.

MENDIGO - Conheces, conheces!.. . Ah! nem ao menos te recordas dos amigos!.. . Procura
bem! Não te lembras do teu amigo, o Eremita?

VALENTIM (com assombro) - O Eremita! (Fica aterrado e balbucia. ) Eu não sei.. . Não acredito.

MENDIGO (com um sorriso de maldade) - Tu sabes, meu Tristão, tu sabes! A tua cara aterrada
e contraída

bem o diz. Não se esquece assim tão depressa o camarada de prisão! Andávamos sempre
juntos! Como dois corações! Como éramos ambos um pouco selvagens, um pouco calados, os
camaradas alcunharam-nos bem de: TRISTÃO e o EREMITA.

VALENTIM - Vamos! Que desejas? Não quero fingir que não te conheço. Recordas-me um
tempo terrível, a vergonha da minha vida! Aqui, ninguém me conhece; vivo honestamente,
como um bom operário; dão-me trabalho; ganho mais do que é preciso para o meu sustento e
alojamento. Se revelares o meu passado, fico desonrado e perdido.

MENDIGO - Fica descansado. Eu não sou mau; não quero perder-te. Somente quero que me
dês de jantar e

dormida, e depois algum dinheiro para pagar outra dormida.

VALENTIM (sucumbindo) - Leva tudo o que quiseres. Deixa-me as ferramentas, nada mais te
peço. Quanto ao jantar, não to posso dar porque não como em minha casa e aqui nada tenho.

MENDIGO - Está bem! Não te peço o impossível! Passa-me o dinheiro.

129

VALENTIM - Aqui tens. Leva!

MENDIGO (conta o dinheiro e mete-o nos bolsos) -

Cinquenta, cem, cento e trinta e quatro francos!.. . Como

sou generoso deixo-te quatro francos e embolso o resto.

(Vai-se embora. Valentim cai numa cadeira. )

DÉSIRÉ (aproxima-se vagarosamente e olha-o surpreendido) - Senhor Valentim, está doente?


(Valentim

faz-Lhe sinal que não. ) Quer que chame a senhora Clopet


aqui do lado? (Valentim faz-lhe sinal que não. ) Mas o

senhor não está doente? Está tão pálido! Foi esse homem

mau que o transtornou por completo. (Valentim olha-o

com terror. ) Não tenha medo, senhor Valentim; foi-se

embora. Passou pela casa da senhora Clopet, entrou e saiu

pela porta do fundo. Eu ouvi alguma coisa do que ele

dizia, e vi que Lhe levou todo o seu dinheiro. (Valentim

faz-se cada vez mais pálido; quer falar e não pode; cai, sem

sentidos. )

DÉSIRÉ (correndo para a casa que fica em frente, no

pátio) - Socorro! O senhor Valentim está a morrer.

Senhora Clopet depressa, socorro!

SR. CLOPET (acorrendo, entra na oficina de Valentim)

Que foi? Ah! Meu Deus! O pobre Valentim! Vai

depressa, Désiré, vai chamar gente. (Désiré sai correndo.

Regressa com o Sr. Pupusse, o Ferrador, o Padeiro, o

Magarefe e o Estalajadeiro. )

DÉSIRÉ - Está melhor? Já voltou a si?

ALBARDEIRO - Que aconteceu ao pobre Valentim?

SR. A CLOPET - Não sei. Encontrei-o quase morto.

Désiré, tu estavas aqui. Que aconteceu?

DÉSIRÉ - Aconteceu que o mendigo de há pouco lhe

disse coisas que o contrariaram.

130

FERRADOR - O quê?.. . Que coisas?

DÉSIRÉ - Disse-lhe que se chamava o EREMITA e

chamou-lhe TRISTÃO. Depois tratou-o por tu; depois


disse-lhe que não era mau; depois que ele era o seu

camarada de prisão; depois que queria comer e dormir;

depois que queria o dinheiro. E depois o senhor Valentim

deu-lho; depois levou cento e trinta francos e deixou-lhe

quatro francos; depois partiu e depois olhei e vi o senhor

Valentim branco como a cal da parede; chamei, e pronto!

(Ficam todos estupefactos. )

SR. PUPUSSE (com ar misterioso) - Escutem, meus

amigos: há alguma coisa nisto tudo. Como sabem, eu sou

letrado. Li um livro muito bom em que o Tristão, o

Eremita, era um carrasco, mas de alto lá com ele!.. . Compreenderam o que Désiré disse? O
mendigo chamou a

Valentim, Tristão, o Eremita. Então.. . compreendem?

(Fica-se. )

SR. CLOPET - Não, Sr. Pupusse, não compreendemos. Então o que é?

SR. PUPUSSE - Não compreendem que Valentim é

um carrasco?

SR. CLOPET - E então o outro?

SR. PUPUSSE - O outro? O outro era o seu companheiro; que segurava as correntes da
guilhotina e do cutelo.

PADEIRO - É medonho!

MAGAREFE - É horrível!

ALBARDEIRO - Um carrasco na nossa terra!

ESTALAJADEIRO - Um carrasco no povoado! Que

havemos de fazer?

SR. PUPUSSE - Oiçam, meus amigos: metam-se na

minha carroça e vão já à cidade avisar o sargento. (Todos


131

se recusam e dizem que não sabem nada. ) Désiré, que

ouviu tudo, é quem vocês devem levar na vossa companhia.

DÉSIRÉ - Não! Eu não vou! Não quero depor contra

o senhor Valentim que me tem tratado tão bem, que me

tem dado tão bons conselhos. (Désiré foge; o senhor Pupusse corre atrás dele; os outros
correm atrás do senhor

Pupusse. )

VALENTIM (sozinho, abre os olhos e olha à volta,

surpreendido) - Estou só! Ele foi-se embora! Graças!

meu Deus!.. . Oxalá que Désiré não tenha compreendido e

que não diga nada. Se eles soubessem! Se um só deles

soubesse!.. . Estava perdido! Meu Deus, tende piedade de

mim! Que o meu segredo fique sepultado no meu coração! !

E se for divulgado, que eu deixe este mundo!

CURA (que entra à pressa e com ar preocupado) Então, meu rapaz, meu bom Valentim,
disseram-me que

estavas doente, muito doente.. .

VALENTIM - Obrigado, senhor cura, a minha doença

é do espírito. Deus mandou-me uma terrível prova. Mais !

uma punição do crime que me fez estar cinco anos na

prisão.

CURA (inquieto) - Que foi? De facto, estás tão pálido, tão transtornado.. .

VALENTIM - Senhor cura: o meu companheiro de

prisão veio mendigar no povoado; reconheceu-me e deu-se a conhecer, eu dei-Lhe todo o


dinheiro que possuía

para que ele guardasse silêncio, mas receio que volte e me

denuncie.

CURA - Descansa, meu caro Valentim. Deus faz tudo


para nosso bem mesmo que esse celerado te viesse a trair,

132

eu não te abandonaria e proteger-te-ia contra todos os

que te atacassem. Toda a culpa tem perdão. Eu me

encarregarei de o fazer compreender.

VALENTIM - Como é bom, senhor cura! Do fundo do

coração lhe agradeço.

CURA (sorrindo) - Eu sou o servo de Deus, meu caro

Valentim, e esforço-me para que digam de mim: Tal

senhor tal servo. Toma coragem e conta com a misericórdia divina. (Entra o Sr. Pupusse
arrastando Désiré que

resiste; um sargento e dois guardas. )

SARGENTO - Senhor Valentim, o senhor foi vítima

dum roubo, segundo diz o Sr. Pupusse que acabámos de

encontrar na estrada. (Valentim não responde. ) Precisamos do seu depoimento para


prosseguirmos. Julgo estar

na peugada do ladrão.

VALENTIM - Eu não fui roubado, senhor sargento.

SARGENTO - Como! (Volta-se para o senhor Pupusse.) O senhor disse-me que tinham roubado
ao Valentim

marceneiro, tudo quanto ele possuía.

SR. PUPUSSE - E ainda o afirmo, sargento; interrogue

Désiré. Aproxima-te, rapaz. Conta o que ouviste. (Désiré

olha para Valentim e faz-Lhe um sinal para não se inquietar. )

DÉSIRÉ - Senhor sargento: eu vi o mendigo pedir

esmola ao senhor Valentim, que foi à gaveta e deu-Lhe

dinheiro.

SARGENTO - Mas isso não é roubar.


DÉSIRÉ - Pois não, senhor sargento. O senhor Valentim deu-lho.

SARGENTO - É verdade?

VALENTIM - A pura verdade.

133

SARGENTO (descontente) - Senhor Pupusse, o senhor

enganou-nos.

SR. PUPUSSE (muito animado) - Enganei-os? Digo-lhes que são os senhores que se enganam!
Digo-lhes, já

que a isso me obrigam, que Valentim é o carrasco Tristão, i

o Eremita, carrasco dum rei. (O sargento, o cura e os

guardas desatam a rir; até o próprio Valentim sorri. )

SARGENTO (rindo) - Devia ter-se explicado mais

cedo, senhor Pupusse. Se eu tivesse sabido que o senhor Valentim foi um carrasco e, de
mais a mais, um carrasco

do rei, eu teria tomado todo o cuidado em não me aproximar dele. Adeus, senhor Valentim,
desculpe-nos o incómodo. (O sargento prepara-se para sair quando a Sr.

Clopet entra muito assustada. )

SR. A CLOPET (esbaforida) - Senhor sargento, estou

roubada! Roubaram-me! Ele roubou-me!

SARGENTO - Que é que lhe roubaram? Quem a roubou? De quem desconfia?

SR. CLOPET - Roubaram-me o meu dinheiro!

Roubaram-me sessenta e dois francos que eu tinha numa

caixa! Foi o patife do mendigo de há bocado que me

roubou! É dele que desconfio.

SARGENTO - Ah! É justamente o homem que procuramos. Um preso evadido. (O sargento olha
para Valentim que está muito pálido.) Senhor Valentim, esse mendigo, a quem o senhor deu o
dinheiro, que sinais tem?

VALENTIM - Eu não reparei muito nele; não sei


dizer-Lhe que aparência tem.

SARGENTO - Não pode dar-me os sinais dele? Preciso absolutamente (acentua esta palavra) de
que se recorde

e que nos diga o máximo.

134

VALENTIM - É alto como eu, tem cabelos ruivos, rosto avermelhado, nariz pontiagudo, lábios
finos e muito fechados, e queixo de velha.

SARGENTO - É justamente o homem que procuramos. Para onde foi ele quando saiu de sua
casa?

VALENTIM - Entrou em casa da senhora Clopet, e não o vi mais. (O sargento faz sinal aos
guardas para o seguirem e afasta-se rapidamente. A senhora Clopet entra em sua casa muito
agitada)

SR. PUPUSSE (descontente) - Senhor Valentim.. .

VALENTIM - Senhor Pupusse.. .

SR. PUPUSSE - Há qualquer coisa de tenebroso nesse caso! Tenho de o desvendar e o senhor
tem de me auxiliar. Em primeiro lugar preciso de saber donde veio e qual é a terra da sua
naturalidade.

VALENTIM (friamente) - Não vejo necessidade disso.

SR. PUPUSSE - Há sim, senhor, há necessidade; e ordeno-lhe que me elucide sobre este ponto
importante.

VALENTIM - Já lhe disse, Sr. Pupusse, que não vejo necessidade.

SR. PUPUSSE - Ah! ele é isso? Está bem. Digo e mantenho que o senhor é carrasco, e carrasco
famoso na História. As suas mãos estão tintas de sangue dos seus semelhantes, das
desgraçadas vítimas que imolou à ferocidade do seu real senhor! Conheço a história,
cavalheiro! Li a história dos seus delitos, e intimo o sr. cura a que lhe interdite os lugares
sagrados, a igreja e o cemitério, e que não o sepulte em terra sagrada.

VALENTIM - Senhor Pupusse, parece-me que ainda é cedo para me enterrarem.. . Por isso, não
vale a pena discutir o assunto.

135

SR. PUPUSSE - Senhor cura intimo a que me responda.

CURA - Senhor Pupusse, o senhor não tem direitoalgum de me interrogar; portanto não tenho
obrigação de lhe responder.
SR. PUPUSSE - Na qualidade de adjunto da Administração do Concelho, ordeno a Désiré que
repita ao senhor cura a conversa que o senhor Valentim teve com o seu companheiro de
prisão.

VALENTIM (trémulo e empalidecendo) - E eu, senhor, ordeno-lhe que se cale e que me deixe
sossegado e às pessoas que aqui se encontram.

SR. PUPUSSE - Está bem, senhor Valentim; vou-me embora. O senhor não tornará a ver-me pôr
os pés em sua casa! Bonita companhia. (Sai indignado. )

DÉSIRÉ - Senhor Valentim; o senhor tem sido sempre bom para mim: sempre me tem dado
bons conselhos, e eu sou seu amigo. Portanto, esteja tranquilo que nunca o trairei.

VALENTIM (inquieto) - Como poderias tu trair-me, meu amigo?

DÉSIRÉ - Contando o que disse ao seu amigo, o Eremita, que lhe chamava Tristão, que foi seu
companheiro de prisão e que parecia causar-Lhe medo. Vi que foi ele quem lhe levou o
dinheiro, que não foi o senhor que lho deu, mas sim que não se atreveu a recusar-lho. Estou
muito arrependido de ter dito aos outros alguma coisa do que ouvi, porque agora vejo que isso
podia prejudicá-lo. Não sei porquê, mas percebo que isso o contraria. Bem vi que o senhor
Pupusse tomou o seu companheiro pelo camarada que carrega com as correntes com que se
amarram

os condenados à morte. Mas eu vi muito bem que não é nada disso; as correntes são outras.. .

CURA - Que queres tu dizer, Désiré? Revela o teu pensamento, meu rapaz; não tenhas medo.

DÉSIRÉ (baixando a voz) - São as correntes.. . dos condenados. (Valentim apoia-se ao seu
banco de marceneiro. O cura diz-lhe ao ouvido, ao mesmo tempo que Lhe aperta a mão.
Coragem! não se denuncie!)

CURA (dando uma palmadinha amigável na face de Désiré) - És um bom rapaz, Désiré; fica-te
muito bem mostrares-te reconhecido e não comprometeres um homem que te tem feito bem,
mas tranquiliza-te: Valentim é um bom e honrado operário! Conheço-o a fundo; garanto que é
merecedor da estima e da confiança de todos, independentemente do que possa ter sido o
seu passado.

DÉSIRÉ - Estou muito contente, senhor cura, de o ouvir falar assim a respeito do Sr. Valentim.
Eu poderia contar aos outros mas não contarei palavra daquilo que o outro disse.

CURA - Não, meu rapaz, não digas. Há pessoas que poderiam compreender mal as coisas,
como sucede, por exemplo, com o Sr. Pupusse. Isso seria desagradável para o Sr. Valentim.
(Ouve-se um grande alarido na rua. Aparece a Sr. Clopet, o Sr Pupusse, o sargento e os dois
guardas, que seguram o mendigo. )

MENDIGO (debatendo-se) - Digo-lhes que estão redondamente enganados! Sou um pobre


mendigo; não conheço tão pouco a Sr. a Clopet, e quanto a esse honrado marceneiro que se
comoveu com a minha infelicidade e me deu algum dinheiro, nada lhe tirei. Ele vos dirá isto,
certamente.

137

SARGENTO - Pouco barulho, Rondebeuf. Bem te

conheço! É inútil desculpares-te! Como justificas o

dinheiro que tens contigo?

MENDIGO - Não é difícil! Foi o bom marceneiro que

mo deu. Não é verdade, marceneiro?

VALENTIM (com voz fraca) - É verdade.

SARGENTO - Quanto lhe deu, senhor Valentim?

VALENTIM - Cento e trinta francos, senhor sargento.

(Ficam todos surpreendidos. )

SARGENTO - Mas tu tens cento e noventa e dois

francos no saco!.. .

SR. A CLOPET - Vejam! São justamente os meus

sessenta e dois francos.

MENDIGO - A senhora está enganada! Não a conheço, nunca a vi!

SARGENTO - Entraste, no entanto, em casa da Sr. a

Clopet.. .

MENDIGO - Não a conheço, nunca a vi, meu sargento. Juro-lhe.

SARGENTO - O Sr. Valentim declarou que entraste e

saíste da casa da Sr. a Clopet.

MENDIGO (voltando-se vivamente para Valentim) Tu disseste isso? Atreveste-te a dizer isso?

VALENTIM - Disse a verdade! Devia dizê-la.

MENDIGO - Ah! tu gostas da verdade!.. . Traíste um

amigo pela tua verdade! Está bem, eu também gosto da

verdade, e vou dizê-la porque vale mais dizer a verdade


do que mentir, já que este diabo do sargento sabe quem eu

sou, me reconheceu e me deitou a mão. Digo, pois, que tu

és um tratante, um vadio, um ladrão; foste meu companheiro de prisão em Brest; estiveste lá


cinco anos; fizeste-te

138

agora honesto, para pilhar algum palerma da região.

Espero-te na prisão onde te recomendarei e onde te farei

a cama, tratante, falso irmão, canalha.. .

VALENTIM (deita ao mendigo um olhar doloroso e diz

com voz abafada) - Eremita, tu perdeste-me, mataste-me! Perdoo-te como Deus me perdoou
as minhas ofensas. Roubei, é verdade! Desonrei-me! Mas creio e espero que os sofrimentos da
prisão me tenham servido de expiação e me tenham reabilitado perante o Deus de
misericórdia. Em face dos homens fico sendo um miserável, um maldito. Só o santo servo de
Deus (indica o cura), o consolador dos desgraçados, se compadeceu de mim apesar de saber
o que eu fui.. . Dou-te, Eremita, o dinheiro

que me tiraste; que te aproveite; é o dinheiro dum homem

honrado e ganho honradamente. (O cura aperta Valentim

nos braços. Désiré, soluçando, agarra-se-lhe ao pescoço;

Valentim, enternecido, abraça-os; a senhora Clopet limpa

os olhos; o Sr. Pupusse fica estupefacto. O sargento

aproxima-se de Valentim e bate-lhe no ombro com a mão;

os dois guardas fazem o mesmo. O mendigo faz tombar um guarda com uma rasteira, atinge
outro com um soco e

atira-se para a porta para se safar. O sargento segura-o

pela gola do casaco e luta com ele. Antes que alguém tivesse tempo de o impedir, o mendigo
puxa dum punhal e levanta-o para ferir o sargento em pleno peito. Valentim, que

seguia com ansiedade os movimentos do mendigo, coloca-se diante do sargento, recebe o


golpe e cai exclamando.

- Perdoo-te, Eremita! (O sargento aproveita-se do primeiro momento de assombro do


mendigo, agarra-o e deita-o ao chão e põe-lhe um joelho no peito. Os guardas que
se levantaram, precipitam-se em socorro do seu sargento e

139

amarram solidamente o pedinte. Conduzem-no sem haver resistência. )

SARGENTO - Pobre Valentim! Pobre rapaz! Cuidem dele, meus amigos, ficar-lhes-ei muito
reconhecido. Vou levar este celerado para a prisão da cidade. Voltarei a saber notícias do meu
salvador.

SR. PUPUSSE (de boca aberta, os olhos esbugalhados e aterrorizados, mas triunfante) - Então
que dizia eu?.. . Ainda é pior do que julgava! Um condenado! Dou-lhe os meus parabéns, sr.
cura.. . Lindo paroquiano que tem!

CURA - É verdade, Sr. Pupusse: um bom e digno paroquiano! Oxalá que todos os outros se
parecessem com ele!

SR. PUPUSSE - Muito obrigado, sr. cura! Prefiro não ter estado na prisão! Cada um com seu
gosto.. . Entretanto, deixo de ser seu freguês.

CURA - Não se trata agora de encomendas, Sr. Pupusse. Faça favor de ir chamar o médico.

SR. PUPUSSE - Eu! Eu, Pupusse! Eu, o adjunto, correr em serviço dum condenado! Esperem
que já vou.. . O senhor está aí para o absolver dos seus crimes! Não deve precisar de outra
coisa. Eu vou mas é contar o caso às pessoas da terra. (Sai. )

CURA - Senhora Clopet, peço-lhe que vá chamar o médico. Eu não posso abandonar o pobre
Valentim. Tenho de comprimir a ferida para estancar o sangue.

SR. CLOPET - Ai de mim, senhor cura! já não tenho pernas para isso. Elas mal suportam o meu
pobre corpo. O terror, a emoção, a surpresa!.. . Não posso! Deixo-vos! Vou ver se me refaço
junto de pessoas amigas e contar-Lhes o que acaba de se passar. Isso há-de aliviar-me. (Sai. )

140

CURA - Désiré, meu filho, por amor de Deus, vai chamar o médico! Vou apertar a ferida com o
meu lenço.. . ele perde tanto sangue! Temo que o pobre Valentim não resista.. .

DÉSIRÉ - Vou imediatamente, senhor cura! Coitado do senhor Valentim! Ele é tão bom! Gosto
tanto dele!

MÉDICO (entrando) - Que aconteceu, sr. cura? (Vê Valentim. ) Como! O Sr. Valentim sem
sentidos?.. Sangue?.. . Que se passou, sr. cura?

CURA - Uma punhalada que este bom rapaz apanhou em lugar do sargento, atravessando-se
entre ele e o assassino. É urgente, doutor! Valentim está a perder muito sangue. (O médico
despe o casaco, puxa do lenço e comprime fortemente a ferida. )
MÉDICO - Depressa! Vão buscar bálsamo do Comendador a minha casa e dêem-me
compressas; tenho aqui o meu estojo de cirurgia. (O cura sai com Désiré e volta pouco depois
trazendo o que o médico tinha pedido. O médico, ajudado pelo cura, sonda a ferida, unes as
carnes, deita na ferida bálsamo com água, aplica-lhe uma compressa embebida na mesma
mistura; liga-a fortemente com duas ligaduras e ergue-se. )

CURA (com ansiedade) - Então, doutor?

MÉDICO - Parece que não é nada de gravidade; o coração não foi atingido nem o pulmão.
Dentro de dois dias espero poder-lhe dizer que está salvo. (O cura aperta a mão do médico. )

CURA - E o tratamento?

MÉDICO - É muito fácil. Não se mexer; ter a compressa sempre embebida numa solução de
bálsamo e igual percentagem de água. Não convém sacudi-lo. Devem conservá-lo

141

deitado e aquecer-Lhe os pés e as pernas. Dar-lhe água se ele tiver sede. Voltarei à noite e
amanhã de manhã.

CURA - Mande-me alguém, doutor, para o transportar para minha casa, para o presbitério. Ali
será tratado com mais cuidado. aqui, o pobre rapaz está sozinho. (O doutor sai. )

ALBARDEIRO (entrando) - Aqui estamos, sr. cura. Como pediu alguém, aqui estamos prontos
para o que for preciso.

CURA - Sabem do que se trata, meus amigos?

PADEIRO - Sabemos, sim, sr. cura. Pupusse contou-nos tudo.

MAGAREFE - Ele queria impedir-nos, mas.. . um homem é um homem, e um cristão é um


cristão.

CURA - Muito bem, meus bons amigos! Tirem o colchão do leito com os lençóis e os
cobertores.. . Ponham no chão.. . aí.. . Agora deitemo-lo em cima.. . e vamos com ele para
minha casa, o mais cuidadosamente possível. (O padeiro e o albardeiro pegam no colchão pela
frente; o cura e o magarefe pela retaguarda. Partem a passo vagaroso, transportando
Valentim, sempre sem sentidos. Désiré segue-os. )

142

II Acto

Pátio de Valentim e da senhora Clopet e a escola ao fundo, várias crianças brincam e


conversam; depois aparece Désiré.
JULIÃO - Nunca mais vimos Désiré! Que será feito dele? Viu-o algum de vocês?

CARLITOS - Raras vezes desde que o senhor Valentim voltou para casa. Só de fugida, quando
passa a correr para ir buscar alguma coisa ou comprar remédios.

JULIÃO - Porque lhe chamas senhor?

CARLITOS - Como queres que eu lhe chame?

JULIÃO - Valentim e mais nada, pois então! Com um condenado não devemos ter tantas
atenções!

NICOLAU - Realmente.. . isso é verdade. Quando ele tornar a abrir a oficina temos de o tratar
com menos respeito.

FILHO DO FERRADOR - O meu pai diz que não lhe dará mais trabalho.

FILHO DO MAGAREFE - E o meu diz que não lhe fornecerá mais carne.

PEQUENO CLOPET - E a minha mãe diz que não o quer mais em casa. Não lhe dará mais
alojamento.

144

FILHO DO ALBARDEIRO - O meu pai não diz o mesmo que os vossos.. . Diz ele que é uma
desgraça para Valentim, mas que nem por isso ele é o menos honesto, e que um condenado,
quando honesto, vale mais do que qualquer outra pessoa que não conhecemos.

NICOLAU - Olhem lá, a que vamos nós agora brincar?

CARLITOS - Bem, brinquemos aos polícias e ladrões; um de nós será o ladrão evadido: os
outros serão os guardas que correm atrás dele. Vá, Julião, esconde-te! Tu és o ladrão.

JULIÃO - Nada, nada! Eu não quero ser. Tu que assim falas é que deves ser. Eu antes quero ser
guarda.

TODAS AS CRIANÇAS - E eu também!

CARLITOS - Mas nós temos de prender alguém.

JULIÃO - Olha o Désiré a sair da casa do Valentim! É ele o ladrão. Corramos atrás dele. (Correm
todos para Désiré, que se defende e procura abrir caminho; os companheiros rodeiam-no,
maltratam-no, puxam-lhe pelo fato e pelos cabelos. Désiré impacienta-se e distribui socos,
para se desembaraçar dos companheiros. Acaba por cair; os outros caem-Lhe em cima. Désiré
chama por socorro. Aparece o sacerdote. )

CURA - Porque é todo este barulho, esta algazarra? Quem estão vocês a agarrar? Quem
atiraram ao chão? (As crianças afastam-se envergonhadas. O cura vê Désiré estendido, mas
este, logo que se vê livre, levanta-se rápido sacudindo a poeira. )
DÉSIRÉ - Perdão, sr. cura, eu ainda não pude ir buscar o que me pediu o Sr. Valentim, porque
eles, não sei por que razão, atacaram-me e atiraram-me ao chão.

145

CARLITOS - Nós queríamos ir brincar aos polícias e ladrões e como não havia nenhum que
quisesse fazer de ladrão agarrámos o Désiré.

DÉSIRÉ - Ah!.. . Se me tivessem dito não Lhes diria que não: o pior é que não teria tempo agora
porque o Sr. Valentim acaba de me mandar fazer um recado.

CURA - Meus filhos, não brinquem a esse jogo. É um jogo mau.

JULIÃO - Porquê, sr. cura?

CURA - Porque o Sr. Valentim está em casa, aqui pertinho e pode ouvi-los.

NICOLAU - E que tem isso?

CURA - Isso desgostá-lo-ia, e não devem dar-lhe desgostos porque ele tem sido sempre bom
para vocês.

DÉSIRÉ - E tem-nos dado tão bons conselhos!

JULIÃO - Essa é boa! Um condenado não é assim tão delicado como isso!

CURA - É tanto como qualquer outro, e até mais do que muitos! O que dizes, Julião, é muito
feio. (As crianças dispersam-se e vão brincar para mais longe. Désiré retira-se. O cura,
pensativo, anda de cá para lá no pátio. ) Pobre Valentim! Até as crianças! Toda a gente lhe foge
e o despreza. Receio que ele não suporte este abandono geral. Mas eu é que não o
abandonarei! E como poderá ele viver sem trabalho, se todos os clientes o abandonam?
(Senta-se num banco à porta de Valentim e parece reflectir. A porta abre-se e Valentim
aparece, pálido e fraco. Senta-se ao lado do cura e estende-Lhe a mão; o cura estremece.) Ah!
és tu, meu rapaz! Para que saíste do quarto?

VALENTIM - Tinha necessidade de ar, sr. cura. Desde que fui ferido, sufoco, não respiro à
vontade senão ao ar

146

livre. Ouvi o que acaba de se passar. Deixe as crianças, sr. cura, deixe-as lá; Deus castiga-me e
é justo! Fui tão culpado!

CURA - E tão cruelmente punido, meu amigo!

VALENTIM - Mas veja como eu tenho tirado proveito do castigo. Deus permitiu que durante a
minha estadia naquele inferno, ali chegassem santos missionários. Deus tocou-me no coração;
voltei à fé da minha infância; conservo-a e sinto-me feliz em expiar com a vergonha o roubo
vergonhoso que cometi em casa do benfeitor da minha primeira infância.
CURA - É um sentimento belo e cristão, meu caro Valentim mas como poderás viver se todos
fugirem de ti e não tiveres trabalho?

VALENTIM - Espero tê-lo, sr. cura. Com o vosso auxílio e o do sargento, que prometeu falar a
todos em meu favor, espero vencer a relutância de toda a gente.

CURA - Também tenho uma certa esperança nisso, meu amigo, mas eles mostram-se contra ti..
.

VALENTIM - Nem todos, sr. cura; veja o bom Désiré que já pediu ao pai que o deixasse ficar na
minha oficina como aprendiz. O que é preciso é ter um pouco de dinheiro para custear a obra.

CURA - Quanto a isso, meu amigo, não te rales: sabes o que te disse o sargento; e além disso, a
minha bolsa, se bem que magra, ainda está aberta para ti. Coragem! Deus não abandona os
seus. Ganha forças e, quando elas vierem, o trabalho não faltará.

SARGENTO (aparecendo) - Ainda bem que estás salvo, meu bom rapaz. Estou bem contente
por te ver curado. Se aquele tratante te houvesse atingido o coração,

147

o meu estaria agora bem doente. Pensar que um honrado rapaz como tu se tinha sacrificado
por mim, seria uma cruciante lembrança. Mas, vá lá.. . tudo foi pelo melhor!

CURA - O que é preciso agora, meu bom sargento, é impedir o povo de voltar as costas com
desprezo ao nosso amigo.

SARGENTO - Deixe isso comigo. Valentim, meu amigo: sentes-te disposto a receber uma visita
das pessoas de destaque cá da terra, acompanhadas por mim?

VALENTIM - Creio que sim, senhor!

SARGENTO - Bom! espera-me aqui; e o sr. cura também porque talvez tenha necessidade do
seu auxílio. (Sai. )

DÉSIRÉ - Aqui tem, Sr. Valentim. Demorei-me muito porque o padeiro não queria vender-me o
pão. Foi preciso que o meu pai o fosse comprar, como se fosse para ele.

VALENTIM (suspirando) - Obrigado, meu filho, obrigado! Dou-te bem maus bocados, mas a tua
coragem dá-te forças; não foges diante do pobre condenado.

DÉSIRÉ - Não fale assim, Sr. Valentim; é como se me insultasse, quando diz essas coisas. O
senhor impediu-me tantas vezes de fazer asneiras.. . não me esqueço; sou por isso muito seu
amigo. Estou muito contente por o meu pai me deixar ficar na sua oficina como aprendiz.
Havemos de ser sempre amigos, tenho a certeza.

VALENTIM - Sim, meu amiguinho, sempre, se Deus quiser! Jamais esquecerei como te tens
portado comigo desde que fui ferido há um mês. (Chega o sargento, seguido duma grande
parte das pessoas da aldeia. Valentim quer pôr-se de pé; o sargento fá-lo sentar. )
148

SARGENTO - Deixa-te estar aí, meu rapaz, deixa-te

estar. Trouxe-te esta gente, que eu já ontem tinha prevenido, para te cumprimentar pela bela
atitude que tomaste

no dia em que esse tratante, teu antigo companheiro de

prisão, me quis livrar dos sofrimentos da vida, enviando-me para o outro mundo. É um
malvado! Já está onde

deve estar: na prisão. Tu és um homem bom e honesto, a

quem me sinto feliz por apertar a mão. Serás estimado, respeitado e amado por todos,
embora tenhas cometido

uma falta na vida, por cuja expiação sofreste um rude

castigo. (Voltando-se para a multidão. ) Os senhores julgam que é pouca coisa, que é uma
penitência insignificante, passar cinco anos na prisão no meio de uma caterva de

bandidos, de celerados? É preciso ter uma força e uma

coragem de Sansão para resistir a esses canalhas e de lá

sair um homem honesto e bom cristão. Digo-vos que um

condenado honesto é mais digno de confiança e de respeito, que o mais honesto de entre nós,
incluindo a minha

brigada que é composta pela nata dos bons, e a mim também, que vos falo. Aquele que
desprezar o meu amigo, o meu salvador Valentim, aquele que o não honrar e respeitar, esse
será um cobarde sem coração. Todos devem ver nele um bravo, um bom cristão, uma alma de
eleição. Não é isto verdade, sr. cura? É cobarde quem desprezar o bom Valentim, e perante
todos testemunho-lhe o meu reconhecimento por me ter salvo a vida com desprezo pela sua.
(O sargento abraça Valentim. Este agradece muito comovido. )

CURA - É belo o que acaba de fazer, meu caro sargento! O que disse é justo e verdadeiro. Tal
como o

senhor, proclamo, diante de todos, que estimo Valentim.

Declaro que o dever de todos é auxiliá-lo a ganhar a vida honradamente, dando-Lhe trabalho
como noutro tempo. Ele já não tem nada a esconder-nos; pode falar, sem vergonha, do seu
passado. Tributar-vos-á a todos um grande reconhecimento pela vossa generosidade. Está
muito comovido com a oferta que lhe fez o Sr. Grand, o estimado albardeiro, que, como antigo
soldado, compreende bem o dever. Confiou-lhe seu filho Désiré, como aprendiz de
marceneiro.
VÁRIAS VOZES - Muito bem! Faremos todos nós outro tanto.

OUTRAS VOZES - Incluímos o Sr. Valentim no número dos nossos.

OUTRAS VOZES - Havemos de o tratar como o sr. cura e como o sr. sargento.

TODOS - Viva Valentim! Viva o nosso amigo Valentim! (O burburinho provoca sensação na
escola; o professor abre a porta; as crianças saem e gritam todas sem saber porquê: Viva o
senhor Valentim! Viva o nosso amigo, o senhor Valentim! Valentim está muito comovido;
agradece a todos; o sargento distribui apertos de mão para todos os lados. Aparece o Sr.
Pupusse. )

SR. PUPUSSE - Que temos em casa do condenado? Fizeram-no em pedaços, ou demoliram-lhe


a casa?

SR. CLOPET - Toma cautela com a tua má língua, malvado sem coração! Tu bem querias que
fizessem em pedaços aquele que sempre tens invejado e detestado! Ele é mais puro do que tu
alma de corvo! Nós respeitamos e estimamos o Sr. Valentim.. .

SR. PUPUSSE - Valentim, o condenado?.. . Ah! ah! ah! Boa farsa!

150

MAGAREFE - Toma cautela não te façam a ti alguma farsa, má língua Ou que não te façam
dançar como mereces!

SR. PUPUSSE - Eles estão doidos, sr. sargento! Expulse esse condenado que desonra a nossa
aldeia.

PADEIRO - Tu é que vais ser expulso daqui, língua de víbora! Fora com o Pupusse que é indigno
de ser nosso adjunto! Fora! (Rodeiam todos o senhor Pupusse que está branco como a cal da
parede; empurram-no e expulsam-no. )

CURA - Agradeço-lhes, em nome de Valentim, meus bons amigos, por terem tão
calorosamente tomado o seu partido; e agradeço ao sr. sargento ter feito compreender a
todos a bondade e a justiça do provérbio:

TODA A CULPA TEM PERDÃO.

O Mentiroso

Personagens

Sr. Ramière

Sr. a Ramière
Sr. Pontisse

Sr. a Pontisse

Gertrudes Ramière, 13 anos

Francelina Ramière, 12 anos

Heitor, seu primo, 14 anos

Aquiles, seu primo, 13 anos

Gúdula Pontisse, 12 anos

Leôncio Pontisse, 14 anos

I Acto

Casa do senhor Ramière. Um terraço que dá para um jardim; ao fundo, um salão e outras
dependências com portas para o terraço.

GERTRUDES - É extraordinário que Leôncio e Gúdula ainda não tenham chegado! Já passa da
hora, e eles costumam ser pontuais!

FRANCELINA - Sabes muito bem como Leôncio é: em lhe passando pela cabeça qualquer ideia
extravagante, esquece-se de tudo o que tem a fazer.

GERTRUDES - Oxalá que ele não se esqueça de que o esperamos para ensaiar a peça e que os
primos Heitor e Aquiles vêm cá para o ver.

FRANCELINA (sorrindo) - Sobretudo para ouvir e vê-lo fazer as suas habilidades.

GERTRUDES - Há quanto tempo que ele nos fala das suas habilidades! Promete sempre, mas
nunca começa com elas.. .

HEITOR - Bom dia, minhas primas. Estão sozinhas? Leôncio e Gúdula ainda não chegaram?

FRANCELINA - Não; não sei por que se demoram; há meia hora que os esperamos.

154

GERTRUDES - Escuta: o melhor que temos a fazer é não os esperarmos mais e


passarmos sem eles.

AQUILES - Muito bem! Vamos então preparar o nosso teatro.


HEITOR - Depois podemos ensaiar os nossos papéis. GERTRUDES - Pois sim! Mas faltam-nos
dois personagens; e, além disso, não temos as deixas. Leôncio ficou com elas para copiar o
papel dele.

FRANCELINA - Eles aí vêm! Estou a ouvi-los.

TODOS - Ora, até que enfim!

GERTRUDES - Fizeram-nos perder mais de uma hora.

GÚDULA - A culpa foi de Leôncio; nunca está pronto.. . i LEÔNCIO - Eu?.. . Essa é boa!
Estou pronto há mais de uma hora!

HEITOR - Então porque não vieste mais cedo?

LEÔNCIO - Porque, por grande azar, estive fechado no quarto. AQUILES - Quê? Quem te
fechou? Como aconteceu isso. LEÔNCIO - Quem? Não sei! Como? Também não sei; mas o que
sei é que estive fechado e tive de saltar pela janela.

FRANCELINA - Ah! Meu Deus! Logo de um terceiro andar:

LEÔNCIO - Sim! mas eu não me atrapalho! Era das coisas mais fáceis: abri a janela, galguei-a,
encontrei-me sobre um parapeito de tijolos, enchi-me de coragem e avancei. Passei de casa
para casa, desci um pouco de cada vez que encontrei um parapeito mais abaixo, e corri assim
toda a rua.. .

HEITOR (impaciente) Oh! Isso é forte!

155

LEÔNCIO - Deixa-me continuar: cheguei à esquina e

vi um ónibus a virar à esquina; passava muito mais baixo

do que o parapeito de tijolos onde eu estava, atirei-me.. .

AQUILES (rindo) - De que altura?

LEÔNCIO - De uns vinte pés quanto muito. Caí precisamente no meio do ónibus que me levou a
toda a

velocidade. Chamei o condutor, mas, infelizmente, era

surdo. Marchou sem parar e eu só pude descer a uma

légua de minha casa que foi quando o ónibus parou.

GÚDULA - Como voltaste?

LEÔNCIO - Tinha trinta cêntimos no bolso; subi para


outro ónibus que me conduziu a casa, e aqui têm porque

cheguei atrasado. Vocês compreendem que a culpa não

foi minha.

HEITOR - Compreendo sim.. . compreendo que inventaste uma história como é teu costume.
Vejo que fugiste de casa, que estiveste numa pastelaria onde gastaste os

trinta cêntimos, e que Gúdula esteve à tua espera durante

esse tempo.

GÚDULA - Creio que acertaste, Heitor.

LEÔNCIO - Bem, não falemos mais nisso! Não se

trata aqui de discutir, mas sim de nos divertirmos. Estão

desculpados por não me acreditarem; o que agora quero é

divertir-me. A que vamos brincar?

FRANCELINA - Vamos ensaiar a peça que temos de

representar no domingo, na festa do nosso tio.

LEÔNCIO - Então, vamos lá. Eu sou bom rapaz;

quero tudo o que vocês quiserem.

GÚDULA - Trouxeste os papéis que levaste para deles copiar o teu?

LEÔNCIO - Claro que trouxe.

156

GÚDULA - Então dá-mos cá.

LEÔNCIO - Pois claro.. .

GÚDULA (esperando) - Então?

LEÔNCIO - Espera: deixa-me procurar. (Procura nos bolsos.) É extraordinário! Não os


encontro.. . Que lhes fiz eu?

GÚDULA - É fácil de adivinhar: deixaste-os em casa. LEÔNCIO - Ah! já sei! Tinha-os quando saí
pela janela, e caíram da algibeira para o ónibus quando saltei para cima dele.

HEITOR - Ouve, Leôncio, deixemo-nos de tolices. Tu bem sabes que não acreditamos uma
palavra a respeito do ónibus, nem do teu passeio pela cornija de tijolos, onde nem um rato se
poderia aguentar. Diz-nos francamente: esqueceste-te do papel em tua casa, ou deixaste-o de
propósito por não o teres copiado e não saberes dele nem uma palavra?
LEÔNCIO - Digo-te que o tinha comigo.

GÚDULA - Então vai ver se ele ficou na pastelaria. LEÔNCIO - Peço-te que te cales! Falas a torto
e a direito, e as tuas palavras ofendem-me.

GÚDULA - Ah! ah! ah! Com que então o cavalheiro ofende-se?.. . Peço desculpa a V. Ex. a (faz
uma grande mesura) mas não acredito nas enormes mentiras que nos impinges.

LEÔNCIO (encolhendo os ombros) - Parva! Se eu não me sentisse com força de te esmagar


como uma pulga entre o polegar e o indicador, responder-te-ia como mereces.

GÚDULA - Experimenta! Mostra lá o polegar e o indicador, e verás se sou fácil de esmagar.

157

LEÔNCIO - Tu não conheces a minha força, desgraçada!

GÚDULA - Não a conheço bem, isso é verdade.

GERTRUDES - Gostávamos de a conhecer.

FRANCELINA - E pedimos-te que no-la mostres.

LEÔNCIO - Vocês não sabem, imprudentes, que há poucos dias ainda levantei ao ar um cavalo
que passava na rua.

FRANCELINA - Como é que conseguiste fazer isso?

LEÔNCIO - Com as minhas duas mãos! O cavalo escorregou, e encontrava-se preso nos arreios
sem se poder

levantar. Juntou-se uma multidão à volta dele. Puxavam-no, empurravam-no, e nada.. . Que fiz
eu? Afasto toda a

gente; chego-me ao cavalo, empurro-o com ambas as mãos

e amparo-o. Ele ergue-se a pouco e pouco até que se põe

de pé. A multidão pôs-se a gritar: Bravo! Viva o jovem

Hércules! Viva o Hércules! Quando vi que iam levantar-me em triunfo, safei-me para casa.

GÚDULA - Quando fizeste essa bela demonstração

de força?

LEÔNCIO - Na semana passada.

GÚDULA - Em que dia?


LEÔNCIO - Eu sei lá! O caso não é tão extraordinário, que o aponte como um facto maravilhoso
da minha vida.

GÚDULA - Então porque não tinhas ainda falado

nisso?

LEÔNCIO - Porque não me lembrei.

GÚDULA - Provavelmente como a do ónibus.

GERTRUDES - Mas tudo isso não nos restitui a peça e nós não a poderemos ensaiar.

158

LEÔNCIO - Oiçam, meus amigos: para lhes fazer a vontade, vou num instante à estação do
ónibus ver se encontro o papel. Adeus; voltarei daqui a um quarto de hora. (Sai. )

FRANCELINA - Sabes, Gúdula, que Leôncio está cada vez mais mentiroso?

GÚDULA - Estou farta de o saber. Cada palavra, cada mentira.. . É impossível acreditar no que
ele diz.

FRANCELINA - Porque não experimentas tu própria corrigi-lo?

GÚDULA - Não me dá ouvidos. Tudo o que lhe digo é inútil.

GERTRUDES - E os teus pais não o castigam?

GÚDULA - Ele tem o cuidado de não mentir na presença deles. O papá um dia deu-lhe tal tareia
por ele ter inventado uma história impossível, que, de então para cá, não mais se atreveu a
fazê-lo diante dele, mas, connosco, é insuportável.

GERTRUDES - Heitor, vê se te lembras de alguma coisa que lhe sirva de lição.

HEITOR - Ouve, Tenho uma ideia. Já que não temos o nosso ensaio hoje.. .

FRANCELINA - Ele foi procurar os papéis. Deve estar a chegar com eles.

HEITOR - Acreditas nisso? Ele não copiou nem estudou nada. Volta com as mãos vazias, e com
mais uma peta para nos impingir.

LEÔNCIO (arquejante) - Meus amigos, meus bons amigos, volto com as mãos vazias.

HEITOR - Não tinha necessidade de o dizer. Já contávamos com isso.

159

LEÔNCIO - Como podem adivinhar o que me aconteceu, e que me impediu de trazer os papéis?
AQUILES - Nós não sabemos o que te aconteceu, mas sabíamos que alguma coisa havia de
acontecer e que essa coisa te impediria de trazer o caderno para o ensaio.

LEÔNCIO - Bem, meus amigos, vão ver se eu podia trazer o caderno. Entro em casa a correr e
chamo; ninguém me responde; subo e torno a chamar! Nada! Entro no corredor e oiço um
grunhido. Aproximo-me e ponho-me à escuta. Oiço um rugido abafado. Sem medo algum
avanço: vejo uma enorme massa escura à porta do meu quarto. Sempre sem receio aproximo-
me para ver o que era aquilo. A massa escura avança para mim devagarinho. Oiço grunhidos,
rugidos, mas não me mexo. O vulto à medida que se aproxima torna-se cada vez maior, e eu
vejo, adivinhem o quê!

GÚDULA - Não era nada!

LEÔNCIO - Não conseguem adivinhar.

GERTRUDES - Um ladrão?

LEÔNCIO - Pior que isso!

FRANCELINA - Um cão?

LEÔNCIO - Pior ainda.

HEITOR (rindo) - Um cavalo.. . um toiro?

LEÔNCIO - Pior, muito pior..

AQUILES - Então era o diabo?

LEÔNCIO - Nada disso.. . era um urso!

TODOS (ao mesmo tempo) - Um urso?! Um urso numa casa, em Paris?

LEÔNCIO - Um urso, meus amigos, um urso pardo, enorme, furioso, que se aproximava de mim
de olhos chamejantes, goelas abertas, pronto a devorar-me, de patas

160

no ar prestes a esmagarem-me. Calculem a minha atrapalhação.

GÚDULA (com ironia) - E o teu pavor!

LEÔNCIO (com dignidade) - Digo-te que não tinha medo. Mas que fazer? Não tinha um minuto
sequer para reflectir, nem tempo para fugir. O urso avançava sempre e quase que já me
tocava. Felizmente reparo que em cima de uma mesa, perto de mim, está uma enorme faca de
cozinha.. .

HEITOR - No corredor?

LEÔNCIO - Sim, meu caro, no corredor. Agarro na faca e, no momento em que o nariz do
animal toca no meu, enfio-lha pela boca, com a ponta voltada para cima e o cabo para a
língua. O urso, ao pretender fechar a boca para me devorar o braço, enterra a faca pelo céu da
boca. Enfurecido, quer arrancar a faca com as patas, mas não a consegue tirar e cada vez a
enterra mais nas goelas. Na sua raiva, põe-se a dançar, a saltar, a rebolar-se. Eu danço, salto e
rebolo-me como ele. Quando ele urra, eu rio; bato as palmas quando ruge. Persegue-me e eu
esquivo-me; anda à volta e eu faço o mesmo; avança e eu recuo. Parecia que estávamos a
dançar uma valsa. Por fim, o pobre animal, esvaído em sangue, verga-se e cai. Debate-se por
momentos e estende-se à porta do meu quarto semimorto. Compreendem, meus amigos, que
eu não podia entrar no quarto com um corpo tão pesado e tão grande atravessado à entrada..
.

AQUILES - Porque não o rebolaste para longe?

LEÔNCIO - Eu podia lá! Um animal tão grande!

AQUILES (com ar zombeteiro) - Mas há poucos dias levantaste com tanta facilidade um cavalo
enorme.. .

161

LEÔNCIO - Pois sim, mas.. . era outra coisa.. . E depois.. o urso esperneava ainda.. . podia filar-
me.. . e tu sabes que uma patada de urso não é brincadeira.

HEITOR - Meu caro, eu penso que a pata desse urso não poderia fazer-te mal.. . urso da altura
do quarto!

LEÔNCIO - Essa agora.

HEITOR - Ora, deixa-te disso! O urso estava lá tanto

como aqui na palma da minha mão. Se queres, vou já contigo a casa vê-lo.

LEÔNCIO - Já não verias absolutamente nada.

HEITOR - Porquê?

LEÔNCIO - Porque ele já lá não está.

HEITOR - Como? Já lá não está? Tu acabas de dizer que não podias mover tão enorme massa..
.

LEÔNCIO - Certamente. Por isso não quis tentá-lo, se bem que pudesse, provavelmente,
empurrá-lo, mas pensei que um bife de urso e patas de urso eram um manjar delicioso, e corri
a chamar o cozinheiro.

GÚDULA - Qual cozinheiro?

LEÔNCIO - O nosso cozinheiro! Qual havia de ser?

GÚDULA - Mas nós não temos senão uma cozinheira, bem o sabes.

LEÔNCIO - Deixa-me contar! Distrais-me as ideias. Já não sei onde ia.. .


GÚDULA - Ias na invenção dum urso morto e dum cozinheiro.

LEÔNCIO - Ah, é verdade! Corri a chamar o cozinheiro para esquartejar o urso: ele agarrou
numa pata e deu-lhe um golpe para a decepar.

GERTRUDES - Então vamos comer urso. Porque tu vais dar-nos um bocado, julgo eu.. .

162

LEÔNCIO - Dar-lhes-ia metade se a pudesse guardar, mas não pude.

FRANCELINA (surpreendida) - Não pudeste?.. . Comeste tudo?

LEÔNCIO - Não provei um pedacinho sequer, mas Paris inteira vai comê-lo esta tarde.

AQUILES - Como é que isso pode ser?

LEÔNCIO - Porque o cozinheiro achou este urso tão gordo, tão apetitoso, tão grande, que foi
chamar o porteiro para lho mostrar e ele pôs-se a gritar à porta: Um urso! Um urso! Toda a
gente que passava entrava para ver o urso. Todos queriam levar um bocado e não ficou nada
do soberbo animal. Nada! Nem sequer a cauda!

HEITOR - E tudo isso começou e acabou em dez minutos? O urso vivo a grunhir, em seguida
morto por ti, cortado aos bocados e levado pela multidão. Tudo isso foi então feito em dez
minutos, hem?.. .

LEÔNCIO - É verdade! Foi um instante! Pif! Paf! Matei-o. Cric! Crac! Esquartejaram-no. Vlin!
Vlan! Desapareceu tudo!

GERTRUDES - Leôncio, isso que acabas de inventar é forte de mais! Afianço-te que ainda
podem vir a dar mau resultado as tuas mentiras. Se um dia tiveres necessidade de auxílio,
ninguém te acreditará, e não te socorrem.

LEÔNCIO - Oh! Oh! Eu não tenho necessidade de ninguém e passo bem sem o vosso auxílio.

FRANCELINA - Tudo isso é muito bonito, mas o que é certo é que não temos a peça e não
podemos ensaiá-la.

GERTRUDES - Arranjemos uma charada.

GÚDULA - Acho que é melhor; mas para castigo de Leôncio, tem de ser ele a decifrá-la.

163

HEITOR - Sim, sim, vamos prepará-la. Leôncio espera-nos aqui uns momentos, nós não nos
demoraremos muito. (Saem).

LEÔNCIO (só, parece contrariado e deixa-se cair numa poltrona) - Foram-se todos embora!
Deixaram-me sozinho! Não acreditaram no que eu lhes disse.. . Creio que fui longe de mais.. .
Não devia ter falado dum urso, mas dum cão danado que se tivesse metido no vestíbulo e me
tivesse impedido de entrar.. . era mais verosímil... . Heitor é que é mais maçador: não acredita
em nada.. . As raparigas são mulheres, engolem tudo.. . E a pobre Gúdula! Quantas vezes não
tem acreditado nas minhas mentiras! No outro dia, quando lhe disse que a avó tinha tido
gripe, como ela correu mais a criada! (Ri. ) Mas, tive medo! Se o papá sabe, aplica-me um
castigo severo. Felizmente que Gúdulula não disse que tinha sido eu que havia contado. É boa
rapariga! Tem-me salvo mais de uma vez da cólera do papá e da mamã!.. . Como eles se
demoram! Nunca mais acabam! Que maçada!

SR. A RAMIÈRE - Bom dia, Leôncio. Então, estás só? Onde estão as minhas filhas e os primos?

LEÔNCIO - Foram ensaiar uma comédia, minha senhora.

SR. A RAMIÈRE - Porque não foste com eles?

LEÔNCIO - Porque, quando eles saíram daqui, estava eu muito doente, minha senhora.

SR RAMIÈRE - Muito doente! Que tens, meu pobre

rapaz? Porque te deixaram os teus amigos sozinho, sem socorros?

LEÔNCIO - É que eles tiveram medo, minha senhora, e puseram-se a salvo.

164

SR. RAMIÈRE - Que queres tu dizer? O quê?.. . Em lugar de cuidarem de ti, de chamarem gente
para os auxiliarem, fugiram?

LEÔNCIO - É que eles tiveram medo de ser mordidos!

SR. RAMIÈRE - Mordidos!.. . Por quem!

LEÔNCIO - Por mim, minha senhora, porque eu tive um pequeno ataque de raiva.

SR. RAMIÈRE (com terror) - De raiva!.. . Mas tu foste mordido por algum cão raivoso?

LEÔNCIO - Oh! Há muito tempo! Por um cãozinho de Gúdula; mas não estava raivoso; mordeu-
me na mão e há pouco lembrei-me disso. Não sei porquê, mas pareceu-me vê-lo e pus-me a
gritar.. . Não.. . a ladrar julgo eu.. . Eles tiveram medo.. . Ainda estou a vê-los! Ai! Ai! Lá vem ele
perseguir-me.. . quer morder-me! (Leôncio deita-se ao chão, salta, rebola-se, grita, e ladra. A
senhora de Ramière, aterrorizada, foge e fecha a porta com duas voltas de chave. Leôncio
levanta-se, rindo. Dá alguns passos na sala; pára, e parece inquieto. ) Parece-me que fiz
asneira; todos vão acreditar que estou raivoso.. . Vão prevenir o papá e a mamã, eles apanham
um susto medonho e quando verificarem que não estou raivoso de verdade, ficam furiosos.. .
(Coça a orelha. ) Meti-me em bons lençóis.. . Como me hei-de livrar desta? Negar é
impossível!.. . Confessar que menti, é impossível! São capazes de dar cabo de mim no primeiro
momento de cólera! (Passeia agitado. Aparece uma cabeça à janela; ele atira-se como quem
quer morder. A pessoa que espreita solta um grito e desaparece. Leôncio pára; o seu rosto
ilumina-se; sorri. ) Achei! Tenho uma ideia! Estou salvo! (Precipita-se para a janela: abre-a,
quebra dois vidros, salta para fora e desaparece. Seguidamente

165

a porta entreabre-se com precaução. O senhor Ramière mete a cabeça e não vê ninguém.
Entra, seguido de três criados, que trazem cordas para prender Leôncio, antes que morda
alguém.)

SR. RAMIÈRE - Ninguém! Pode ser que ele esteja debaixo de algum móvel. Tomem cautela!
Andem com precaução. Se ele tem um acesso de raiva, como me disse a minha mulher, pode
agarrar-se a algum de nós e morder-nos antes de termos tempo de o amarrar. Procurem com
precaução. (Um dos criados solta um grito. Todos repetem o grito e precipitam -se para a
porta. )

CRIADO (que soltou o primeiro grito) - Olhem para ali! A janela toda aberta, e dois vidros
partidos! Fugiu por aqui, com certeza!

SR. RAMIÈRE - Tem razão! Temos de o procurar. Se encontra uma das crianças prega-lhe um
susto medonho e pode fazer-lhe muito mal. Que barulho! Que será? (Escuta inquieto.
Gertrudes, Francelina, Gúdula, Heitor e Aquiles entram precipitadamente e falam ao mesmo
tempo. O senhor Ramière e os criados parecem cada vez mais assustados. Heitor e Aquiles
desatam a rir. O Sr Ramière reage com indignação. ) Vocês riem, desgraçadas crianças! Não
sabem a horrível desgraça que aconteceu ao pobre Leôncio? (As crianças mostram-se
surpreendidas de assustadas, Gúdula precipita-se para o Sr. Ramière. )

GÚDULA - Uma desgraça! A meu irmão! Que foi, senhor? O meu pobre irmão! (Gúdula, muito
preocupada, desata a chorar. )

SR. RAMIÈRE - Sim! minha filha! O desgraçado do Leôncio foi acometido dum ataque de raiva.
Teve um acesso diante de minha mulher.

166

GÚDULA (muito admirada) - Um ataque de raiva! Leôncio! É impossível! Ainda não há um


quarto de hora que o deixámos aqui; estava calmo e de perfeita saúde.

HEITOR - Quereria ele meter medo à senhora Ramière?

SR. RAMIÈRE - Não se atreveria a semelhante inconveniência; além disso, minha mulher foi
testemunha do começo do ataque. Mas ela aí vem e pode-lhes explicar como o ataque
começou.

SR. RAMIÈRE (que entra cautelosamente olhando para todos os lados) - Onde está a infeliz
criança? Levaram-na para casa?

SR. RAMIÈRE - Não a encontrámos. Estas crianças parecem admiradas de que tivesse dado um
ataque de raiva ao pobre Leôncio. Julgava que ele tivesse tido o primeiro acesso perto deles.
SR. A RAMIÈRE - Com certeza; pelo menos foi o que ele me disse. Disse até que o tinham
deixado sozinho por terem medo de que ele os mordesse.

HEITOR - Isso é uma terrível mentira de Leôncio! Não acredite nem numa palavra do que ele
disse, minha tia. Nós deixámo-lo para inventar uma charada e vir representá-la diante dele.
Tínhamo-lo condenado a adivinhá-la, para o castigar duma enorme mentira que nos pregou há
pouco.

SR. RAMIÈRE - Já não percebo nada. O que é certo é que, quando falava dum cãozinho que o
mordeu, teve o início de um ataque de raiva diante de mim. Fugi fechando a porta à chave.
Mas parece que ele saltou pela janela, pois que o vosso tio encontrou-a aberta e com dois
vidros partidos.

167

GERTRUDES - Asseguro-lhe, mamã, que, quando o deixámos, estava tão raivoso como eu.

GÚDULA - Eu nunca lhe ouvi dizer que tivesse sido morrido por um cãozinho.

SR. A RAMIÈRE - Um cãozito que é teu, Gúdula!

GÚDULA - Eu nunca tive nenhum cão, minha senhora, nem pequeno, nem grande.

SR. RANIIÈRE - Que quer então dizer tudo isto? E para onde fugiu Leôncio? Antes de mais nada,
é preciso encontrá-lo, porque se encontra alguma pessoa, pode mordê-la. (Para os criados. )
Nicolau, João e Damião, saltem pela janela e procurem-no no jardim.

PRIMEIRO CRIADO - O senhor acredita.. . ? É que o senhor não sabe que.. .

SR. RAMIÈRE - O quê? Que queres dizer?

PRIMEIRO CRIADO - O senhor não sabe que.. . pela janela.. .

SR. RAMIÈRE - Tens medo de quebrar a espinha? De uma janela dum rés-do-chão?.. . Uma
janela por onde passou um rapaz de catorze anos?.. .

PRIMEIRO CRIADO - Precisamente porque ele passou por lá senhor.

SR. RAMIÈRE - Então que é que tem isso?

PRIMEIRO CRIADO - Mas, senhor, se ele estiver escondido em qualquer parte, aqui ao lado?.. .

SR. RAMIÈRE - Imbecil! Poltrão! (No mesmo instante abre-se a porta; Leôncio aparece
esguedelhado e com o fato em desordem. Um criado solta um grito e os outros imitam-no.
Leôncio avança. Atiram-se para um canto da sala e soltam gritos assustadores. Leôncio fala,
mas não o ouvem: corre para eles; todos gritam, todos se atrapalham,

168
todos se empurram, aglomerando-se junto da janela. Leôncio vai atrás deles. Heitor e Aquiles,
vendo-o aproximar-se, saltam pela janela. O senhor e a senhora Ramière vão pelo mesmo
caminho; seguem-nos os criados e depois Gertrudes e Francelina. Apenas Gúdula fica imóvel.
Leôncio pára; ela aproxima-se e pega-lhe na não. )

GÚDULA (apreensiva) - Leôncio, que brincadeira tão cruel! Que vais agora fazer? Que vai ser
de ti? O senhor Ramière vai prevenir o papá. Faz ideia de qual não será a sua cólera quando
souber que tudo isto é uma intrujice tua!

LEÔNCIO (confuso) - Afianço-te que estou arrependido! Não pensava que eles me
acreditassem, que teriam tanto medo. Vinha para explicar que, na rua, um senhor, um médico,
me tinha curado.

GÚDULA - Mais uma mentira! Como queres que te acreditem? Como se fosse possível que a
primeira pessoa que se encontra seja um médico e um médico que traz consigo o remédio
contra a raiva e que cura num momento as pessoas raivosas.

LEÔNCIO - Tu verás, tu verás! Comporei tão bem a minha história, que há-de parecer
verdadeira. O que queria é que não dissessem nada ao papá e à mamã. Vê se consegues evitá-
lo, minha boa Gúdula. Corre a procurá-los. Vê se os trazes. Diz-lhes que voltei para lhes
anunciar a minha cura. Vai, Gúdula, vai depressa. Prometo-te, juro-te que não me meterei
noutra!

GÚDULA - Vou ver se consigo salvar-te desta vez, já que me prometes que não vais mentir.
Mas, peço-te.. . suplico-te.. meu querido Leôncio, que cumpras a tua palavra. (Sai. )

169

LEÔNCIO (só) - Estou com medo.. . muito medo! Que ideia tão tola que eu tive!.. . Oxalá que
eles me acreditem!.. . Gúdula tem razão, isto não é muito verosímil.. . Eu prometi-lhe que não
mentia, mas logo se torna necessário que eu minta para me desculpar, para explicar a minha
cura. Parece-me que os oiço. O meu coração palpita! Oxalá que me acreditem!.. . Se não me
acreditarem, estou perdido. (O Sr. e a Sr. a Ramière, Gúdula, Gertrudes, Francelina, Heitor e
Aquiles entram precipitadamente e olham Leôncio com curiosidade. )

SR. RAMIÈRE - Como é possível Leôncio? Curado? Em tão poucos momentos? Isso cheira-me a
peta, meu amigo.

LEÔNCIO - É verdade, senhor! Juro-lho! Estava fora de mim, tal como me viu a senhor Ramière,
não sabendo o que dizia nem o que fazia. Não sei como me encontrei na rua. Recordo-me
confusamente de ter trepado por uma parede e ter saltado para o outro lado. Parece que um
senhor que passava e que era médico, me viu cair, me levantou e me levou a uma farmácia
que havia em frente. Deu-me a tomar um pó que me curou num minuto. Acalmei logo.
Perguntei onde estava, e contaram-me tudo: como me tinham levantado, como o médico
reconheceu que eu estava com um ataque de raiva e como ele me curou. Sentia-me bem e
parti imediatamente para os vir tranquilizar, assim como à minha pobre irmã, e também para
lhes pedir desculpa dos inconvenientes e do susto que lhes preguei sem querer, é claro, e da
desordem que aqui causei em casa.
SR. RAMIÈRE - E como se chama esse hábil médico, que te deu tão maravilhoso remédio?

170

LEÔNCIO - Não sei. No primeiro momento da minha cura, nem pensei em lho perguntar.

SR. RAMIÈRE - Mas devem sabê-lo na farmácia para onde ele te levou! Onde é ela? Em que
rua?

LEÔNCIO - Não sei. Apenas recobrei os sentidos só pensei em vir imediatamente. Não pensei
em mais nada. Tinha a cabeça como que vazia; andei muito; não atinava com o caminho; não
sabia onde estava.

HEITOR - Então, que fizeste para voltar aqui?

LEÔNCIO - Perguntei a um senhor onde era a rua do Cherche-Midi. Esse senhor pôs-se a rir e
disse: Meu rapaz, essa rua é muito longe daqui, mas como vejo que andas perdido, vou lá
levar-te. Então, esse senhor, muito amavelmente, tomou um trem, mandou-me subir, e
trouxe-me até aqui à porta.

SR. A RAMIÈRE - E quem é esse senhor?

LEÔNCIO - Não sei.

SR. RAMIÈRE - Porque não lhe pediste o nome e o endereço, para ires a sua casa agradecer-
lhe!

LEÔNCIO - Pedi-lhos, minha senhora, mas não mos quis dizer.

GERTRUDES - Porquê? É extraordinário!

LEÔNCIO - Porque ele não queria que se soubesse que estava em Paris.

FRANCELINA- Porquê?

LEÔNCIO - Porque tinha medo de ser apanhado pela polícia, que o procura.

SR. RAMIÈRE - Tudo isso é muito estranho! Temo, meu rapaz, que tenhas inventado mais um
labirinto de intrujices.

LEÔNCIO - Oh! não, senhor! É a pura verdade!

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SR. RAMIÈRE - Verdade ou não, fazes bem em contar tudo a teu pai e a tua mãe, que
diligenciarão saber o nome do médico admirável que te curou.

LEÔNCIO - Certamente. É o que tenciono fazer logo que chegue a casa.

SR. RAMIÈRE - Bem! Nesse caso não há necessidade de eu lá ir.


LEÔNCIO - Oh! Não senhor! Não tenha esse incómodo; é inútil.

SR. RAMIÈRE - Muito bem! Adeus, meus filhos. (Baixo, a sua mulher. ) Vou imediatamente a
casa dos pais dele contar-lhes esta aventura extraordinária.

SR. RAMIÈRE (baixo) - Eu vou também, meu caro amigo; tudo o que Leôncio diz julgo que não
passa de pura invenção, do princípio ao fim. (Saem. )

HEITOR - Leôncio, tu és um terrível mentiroso!

LEÔNCIO - Afianço-te.. . que é verdade.. .

HEITOR - É verdade seres mentiroso.. . Isso sei eu! LEÔNCIO - Mas não! É verdade o que eu
disse.. . aquilo que contei.. .

AQUILES - Cala-te! Pelo menos a nós não mintas.

GERTRUDES - Cedo saberemos se disseste a verdade, porque o papá e a mamã foram a casa de
teus pais. Ouvi-os dizerem isso baixinho.

LEÔNCIO - Foram falar com o papá e com a mamã! Meu Deus, meu Deus! Estou perdido! O
papá não vai acreditar. Bate-me, com certeza. Vai castigar-me. Serei um desgraçado durante
um mês, pelo menos!

GÚDULA - Ó Leôncio, Leôncio, porque inventaste

esta estúpida história? Porque disseste mentiras sobre mentiras?

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LEÔNCIO - Não sei o que me deu, o que me passou

pela cabeça, para me mostrar enraivecido diante da

senhora Ramière. Quando ela saiu compreendi o forte

disparate que tinha feito.

GÚDULA - Mas, para que agravaste a situação inventando ainda esta história impossível do
médico?

LEÔNCIO - Porque era o único meio de explicar a

minha cena com a senhora Ramière, a minha fuga pela

janela, partindo os vidros; e depois, a minha cura.. .

porque eu não podia continuar a fingir-me danado. Era

muito fatigante, muito difícil! Além disso, podiam chamar


os médicos, que me tratariam, me fariam deitar e me

amarrariam à cama.. . e sei lá que mais.

GÚDULA - Meu Deus, meu Deus! Em que embrulhada me meteste!.. . (Chora. Gertrudes e
Francelina procuram consolá-la. ).

HEITOR - Vês, desgraçado, o desgosto que causas à

tua irmã?

LEÔNCIO (desolado) - Perdoa-me, Gúdula; perdoem-me todos! Salvem-me, meus amigos;


salvem-me da

cólera do papá e da mamã!

GERTRUDES - Mas como haveremos de te salvar?

Como impedi-los de te verem, de te interrogarem, e de

testemunharem o seu descontentamento.

LEÔNCIO - Impeçam que o senhor e a senhora

Ramière lhes vão contar o que se passou. Não os deixem Ir!

GERTRUDES - Vou ver se ainda é tempo, se eles ainda não saíram. Se os encontrar, que lhes
hei-de dizer?

LEÔNCIO - Que sou um desgraçado, um mentiroso, que estou arrependido, e que não
voltarei a proceder

173

assim. Vai, corre depressa, minha boa Gertrudes! Não percas um minuto. (Gertrudes sai,
correndo. As crianças estão consternadas; Gúdula chora. Leôncio passeia agitado. De repente,
pára, escuta e grita com terror ) Aí vêm eles, aí vêm! Oiço a voz do papá! Aproximam-se! Para
onde hei-de fugir? Onde me hei-de esconder? (Corre de um lado para o outro, repara na janela
ainda aberta e atira-se para a rua. Gúdula solta um grito, e vai atrás dele, os outros ficam
aterrados e imóveis. )

SR. A PONTISSE (entrando) - Bom dia, meus filhos. Leôncio e Gúdula não estão aqui?
Julgávamos que eles estavam em vossa casa.

FRANCELINA (atrapalhada) - Sim, minha senhora.. . isto é.. . não minha senhora. Estavam.. . Já
não estão.. .

SR. A PONTISSE (sorrindo) - Que têm, meus filhos? Estão assustados.. . Têm medo de nós?

FRANCELINA - Oh, não, minha senhora! É que Gertrudes.

SR. PONTISSE - Que foi? Que lhe aconteceu? Com efeito, ela não está aqui. Onde está ela?
HEITOR (vendo o embaraço de Francelina) - Gertrudes já volta, minha senhora. Francelina está
um pouco embaraçada, porque queríamos representar uma comédia, e como é segredo.. .

SR. A PONTISSE - Oh! mas eu estou no segredo. Só o meu marido é que não sabe, mas será
discreto: respondo por ele. Onde estão os vossos pais?

FRANCELINA (hesitante) - Não sei, minha senhora. Gertrudes foi ver se os via. Aí vem ela!

SR. PONTISSE - Bom dia, minha querida amiga;

viemos fazer-lhe uma visita. Já não os vimos há dias!

174

SR. RAMIÈRE - Estávamos justamente para ir a vossa casa, quando Gertrudes nos deteve para
nos contar uma coisa que a interessava. (Os pais sentam-se e conversam; as crianças falam
baixo, a um canto da sala. Ouvem-se gritos do lado do pátio. Heitor e Aquiles saem
precipitadamente. )

SR. PONTISSE (levanta-se) - Que foi? Um desastre? Os gritos redobram!

SR. RAMIÈRE (esforçando-se por parecer calmo e sorridente) - Deve ser na rua. Vou ver, e dir-
vos-ei o que se passa. (Sai. )

SR. ^ PONTISSE - Não vejo nada. Alguma coisa há com certeza. As crianças têm um ar
assustado, agitado, constrangido. (Observa a senhora Ramière com atenção. ) Também a
minha querida amiga tem um ar preocupado.. . (Ela olha para todos os lados, e vê o chapéu de
Gúdula e o de Leôncio. Empalidece e diz com voz trémula. ) Escondem-me alguma coisa; os
meus filhos estão cá!

SR. RAMIÈRE - Não, minha querida amiga!

SR. PONTISSE - Eles estão cá! Vejo ali os seus chapéus.

SR. RAMIÈRE (solta um grito abafado) - Ah! Como é possível? Que temos então? Francelina,
onde estão Gúdula e Leôncio?

FRANCELINA - Não sei, mamã. Saíram.

SR. A RAMIÈRE - Foram para casa?

FRANCELINA - Creio que sim, mamã. Eles não disseram nada.. .

SR. PONTISSE - Nada mais fácil do que nos certificarmos disso; vou a casa e voltarei a dizer-lhes
se eles lá estão.

175

SR. PONTISSE (sai, mas mal transpõe a soleira da porta, ainda aberta, solta um grito
angustioso) - Gúdula! Minha filha! Minha filha!.. . (A senhora Pontisse corre para a porta no
momento em que o Sr Ramière todo molhado, entra com Gúdula nos braços, pálida, de olhos
fechados, sem sentidos e encharcada, como o senhor Ramière. Leôncio vem atrás torcendo as
mãos, amparado por Heitor e Aquiles. )

SR. RAMIÈRE - Depressa! Um médico.. . roupa enxuta.. . uma cama quente! Ela vive.. . respira..
. havemos de a reanimar. (Estende Gúdula sobre um tapete; a sala enche-se de gente; a
senhora Pontisse de joelhos, meio desfalecida, olha para a filha, sem proferir palavra. )

LEÔNCIO (soluçando e gritando) - Fui eu! Foi por minha causa! Sou eu o causador de tudo!.. .
Fui eu que a matei!.. . Gúdula! Minha boa irmã! Perdoa-me!.. . Sou o teu assassino! Mamã!
Papá! Matem-me! Bem o mereço! Vinguem Gúdula!.. . (O senhor Pontisse agarra no braço de
Leôncio e sacode-o vivamente. )

SR. PONTISSE (com voz estrangulada) - Tu um assassino!.. Mentes! É impossível! Diz-me que
mentes! A tua irmã?.. . Digo-te que é impossível! Mentes. (Leôncio pretende falar; Heitor
impede-lho, tapando-Lhe a boca com a mão. )

HEITOR - Senhor, ele acusa-se sem razão. Ele ia a cair no poço: Gúdula quis socorrê-lo e
agarrou-se a um dos baldes. Leôncio estava penosamente agarrado a um pedaço de madeira.
Quando Gúdula já o tinha posto em segurança e queria subir para a borda do poço para sair, a
corda soltou-se e Gúdula caiu lá em baixo. Leôncio gritou por socorro, mas ninguém apareceu..
. Julgava-se que ele

176

gritava para fazer partida aos criados, quando nós aparecemos e gritámos também, até que
chegou meu tio; espreitou para o poço, deixou-se escorregar pela corda, e, chegando à água,
conseguiu agarrar Gúdula pelos cabelos, que boiavam. Segurou-a com uma das mãos,
enquanto, com a outra, se agarrava à corda. Os nossos gritos tinham atraído os criados que
nos auxiliaram, a Aquiles e a mim, a puxar a corda, que, nós dois, sozinhos, não conseguíamos
enrolar com suficiente rapidez. Foi assim que o meu tio e Gúdula se salvaram. Mas, repare,
senhor, que Leôncio se acusa sem razão.

SR. PONTISSE - Que Deus te abençoe, meu filho, pelo que me contas! Meu filho assassino da
irmã, era horroroso em demasia!

SR. RAMIÈRE - Ela abre os olhos! Está salva! Temos de a levar para o quarto das minhas filhas;
vamos despi-la e enxugá-la com toalhas quentes. Deitá-la-emos numa cama bem quente. Não
tarda que se reanime e a

vejam aqui de novo com as amigas. (A senhora Ramière e a senhora Pontisse levam Gúdula;
Gertrudes e Francelina seguem-na; o senhor Pontisse atira-se para os braços do senhor
Ramière. )

SR. PONTISSE - Meu amigo, meu benfeitor! Sem a sua coragem, ficaria sem a minha filha! A
minha boa, a minha querida Gúdula estaria junto de Deus! Como testemunhar-Lhe o meu
reconhecimento, meu excelente amigo?
SR. RAMIÈRE (sorrindo) - Continuando a dispensar-me a sua amizade, meu amigo, e prestando-
me o mesmo serviço se a ocasião se apresentar. Por agora, peço-lhe que me permita ir mudar
de fato, porque este está encharcado como se tivesse estado no fundo do poço. (Sai rindo. )

177

SR. PONTISSE - Explica-me, Leôncio, porque saltaste pela borda do poço, e que é que te levou a
cometer semelhante imprudência?

LEÔNCIO (muito comovido) - Papá, é que eu ouvi a sua voz e a da mamã, e receava a sua
cólera.

SR. PONTISSE (surpreendido) - A minha cólera? Porque me supunhas encolerizado?

LEÔNCIO - Porque sabia que o senhor e a senhora Ramière lhe tinham contado as mentiras
que eu lhes preguei, do cão raivoso, do ataque de raiva e do médico.

SR. PONTISSE (com o mesmo ar) - Não compreendo nem uma palavra do que dizes! Qual cão?
Qual médico?

LEÔNCIO - Então não sabe? Julgava que vinha para me ralhar, bater-me e fechar-me à chave.

SR. PONTISSE - Mas tu estás doido!.. . A que propósito te batia eu e te fechava?

LEÔNCIO - Oh papá! é que eu cometi uma grande falta! Menti descaradamente! Fingi, diante
da senhora Ramière, que estava enraivecido, fugi pela janela, disse que um médico que
passava me tinha curado; enfim, disse tanta mentira, que o senhor e a senhora Ramière
perceberam. Julguei que lhe tinham ido falar nisso. Foi então que ouvi a sua voz e pensei que
me vinha buscar para me castigar. Atirei-me pela janela, corri como um doido, e saltei para
dentro do balde do poço, sem saber o que fazia, e a pobre Gúdula, vendo-me em perigo,
atirou-se atrás de mim, para me salvar.

SR. PONTISSE - Desgraçado!

LEÔNCIO - Oh! papá! perdoe-me! Se soubesse o terror e os remorsos quando vi Gúdula cair
àquele maldito poço! Como eu gritei, como pedi misericórdia a Deus!

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SR. PONTISSE - Veja o resultado das suas mentiras! Não julgue que eu as ignoro. Estou
bastante ao facto delas para tomar a firme resolução de o castigar e de o separar de sua irmã,
que tem vergonha de si e que sofre por sua causa. Dentro de três dias entrará num colégio,
onde o corrigirão desse funesto e vergonhoso hábito de mentir a propósito de tudo.

LEÔNCIO (pondo-se de joelhos) - Perdão, meu pai, perdão! Não mentirei mais! Prometo-lhe,
juro-lhe! Nunca mais, nunca mais! Acredite-me, ao menos desta vez.

SR. PONTISSE - Como acreditar num mentiroso que sente prazer em enganar toda a gente sem
que nada o tenha podido corrigir, nem repreensões, nem bons modos, nem severidade, nem a
vergonha, e que teria sido, finalmente, o causador da morte de sua irmã, se a coragem
intrépida dum amigo a não tivesse salvo! (Leôncio, sempre de joelhos e de mãos postas, rola-
se aos pés do pai, que o repele e faz menção de sair. Heitor põe-se-Lhe à frente. )

HEITOR - Senhor! Meu caro senhor! Perdoe-lhe! Tenha dó dele! Experimente ver se ele se
corrige. O seu arrependimento parece tão sincero! Gúdula ficará tão contente!

SR. PONTISSE (após alguns momentos de hesitação)Está bem.. . cedo ao teu pedido. Por
Gúdula mais que por ele, Lhe perdoo o passado! Mas à primeira mentira, à primeira tentativa
de mentira, Leôncio, mando-te para um internato, para longe e, dessa vez, sem perdão.
(Leôncio agarra na mão do pai e beija-a repetidas vezes, molhando-a de lágrimas. O pai,
enternecido abraça-o. ) Perdoo-te, meu amigo. Não pensemos mais no passado e inicia uma
vida nova de verdade e de franqueza. Obrigado,

179

Heitor; invocaste, muito a propósito, o nome de Gúdula. Vou saber como ela está e comunicar-
lhe o que acaba de se passar com Leôncio. (Sai. )

LEÔNCIO - Heitor, meu amigo, fico-te muito reconhecido. Obrigado! Não esquecerei nunca o
favor que me prestaste.

HEITOR - Quando pensares nisso, Leôncio, que seja para fortaleceres a tua boa resolução, e
para teres horror à mentira.

LEÔNCIO - Prometo-te. Juro-te e ao teu irmão! (Abraçam-se os três e saem para saber do
estado de Gúdula. )

II Acto

Sala em casa do Sr Pontisse.

LEÔNCIO (só, com um livro na frente) - Não

posso. Bem queria aplicar-me, forçar-me, mas não compreendo o que leio. Penso sempre na
pobre Gúdula, no

quando vi essa malfadada corda desenrolar-se e Gúdula descer e mergulhar até ao fundo do
poço.. .

Pobre irmãzinha! Que grito deu!.. . Parece-me ouvi-la ainda: Leôncio! Socorro! É por tua causa
que vou morrer!"

E quando o bom do senhor Ramière a retirou do poço e eu a julguei morta!..


Meu Deus, meu Deus, que horror! Os meus remorsos!

E como ela tem estado tão doente durante estas três semanas! E agora mal se pode levantar e
sentar-se durante uma hora por dia.. está pálida e magra! E fui eu Como um miserável, com as
minhas terríveis mentiras, a causa de todo este mal! (Leôncio

esconde o rosto nas mãos e chora. )

HEITOR (baixo a Aquiles) - Que está ele a fazer?

Parece-me que dorme.

AQUILES (sorrindo) - Adormeceu sobre o livro, que tem em frente dele.

182

HEITOR - Espera, vou acordá-lo. (Aproxima-se silenciosamente de Leôncio e grita-Lhe um bu-


bu formidável ao ouvido. Leôncio dá um salto na cadeira e ergue para Heitor os olhos rasos de
lágrimas. )

LEÔNCIO (com tristeza) - Porque brincas dessa forma, Heitor? O tempo da risota já passou
para mim.

HEITOR - Que tens, meu pobre amigo? Que aconteceu? Gúdula está pior? Peço-te perdão.
Julgava que estavas a dormir. Este livro à tua frente dava-me a impressão de que te tinham
dado uma lição para estudares e, como costume, que.. .

LEÔNCIO -.. . e que, segundo o meu velho hábito, tinha adormecido em vez de a estudar.. .
Não! Este livro é, dizem.. muito divertido; o papá compadeceu-se da minha tristeza e deu-mo
para me distrair.

AQUILES - E então?

LEÔNCIO - E então, meus amigos, não sei o que leio; não compreendo nada. Vejo sempre
Gúdula debatendo-se no fundo do poço e oiço, sem cessar, este grito terrível: "Leôncio,
socorro! É por tua causa que vou morrer!" (Chora. ) Oh! meus amigos, meus queridos amigos!
Como é terrível esta recordação! Ver a minha irmã morrer por me querer salvar! Saber que foi
por causa das minhas mentiras que ela correu esse perigo! Depois, esse excelente senhor
Ramière que esteve em risco de morrer para a retirar do poço!

HEITOR - Tens razão, mas pensa na bondade de Deus que te livrou da desgraça que receavas!
Gúdula salvou-se!

LEÔNCIO - Mas esteve tão doente! Tem sofrido tanto!

183

HEITOR - Isso é verdade! Mas repito-te que está salva, e começa a levantar-se e a comer.

LEÔNCIO - Está tão pálida e tão magra!


HEITOR - Isso é certo: tratamentos cáusticos, três semanas sem comer e sem se levantar! É
natural que esteja pálida como a cera, e magra como um esqueleto.

LEÔNCIO - É precisamente isso que aumenta o meu desgosto, os meus remorsos: o ter sido a
causa de tudo o que ela tem sofrido.

AQUILES - Ouve, Leôncio: o que está feito, feito está; não consegues remediá-lo. Bem podes
chorar, gemer e gritar que não conseguirás reparar o passado. Estás arrependido, tens
chorado, tens sofrido, estás perdoado! Ninguém pensará mais em tal. Gúdula não te ama
menos por isso, e tu queres-lhe ainda mais. Pareces estar emendado de dizeres mentiras.
Assim tudo irá pelo melhor. Pensa no futuro e esquece o passado.

LEÔNCIO - Tentá-lo-ei, mas temo não o conseguir; tudo mo recorda.

AQUILES - Coragem, Leôncio. Não fraquejes! Nós vamos saber do estado de Gúdula e
voltaremos imediatamente. (Saem)

LEÔNCIO (só) - Aquiles tem razão. Vou tentar distrair-me. Vejamos mais uma vez o belo jogo
de xadrez, de marfim esculpido, e o lindo tinteiro de bronze que o papá quer oferecer à
Gertrudes e à Francelina. (Abre um móvel e tira a caixa do jogo de xadrez e o estojo de
escritório. ) Que bonito! Como estão bem feitas estas peças de marfim! O rei e esta rainha,
com o bispo junto dela, estão encantadores.. . mesmo encantadores! (Examina as peças e
mete-as na caixa, que deixa aberta: pega no estojo

184

de escritório, remira-o, pega nas canetas, no sinete, nos lápis, na raspadeira, na faca de cortar
papel, no areeiro e no tinteiro. ) Que lindo que isto é!.. . que encanto de presente!.. . Tenho a
certeza de que elas vão ficar maravilhadas. (Quando vai a pôr o tinteiro no seu lugar, deixa-o
cair dentro da caixa do jogo de xadrez; a tampa solta-se e a tinta entorna-se e mancha várias
peças do jogo. Leôncio abafa um grito de pavor, apanha o tinteiro, pega nas peças e limpa-as o
melhor que pode com um lenço. Limpa o fundo da caixa e o tinteiro, e coloca tudo no seu
lugar; vai para fechar o móvel, mas ouve aproximar-se alguém e foge. ) Vou imediatamente
mudar de lenço e lavar as mãos, para que não vejam o que fiz. Irei, de seguida, juntar-me a
Heitor e Aquiles. (Sai correndo. )

GERTRUDES - Olá! Ninguém aqui? Gúdula disse-nos que encontraríamos Leôncio na sala.

FRANCELINA - Ele virá, certamente. Este pobre Leôncio faz-me pena desde o desastre da irmã.
Está sempre tão triste!

GERTRUDES - E sempre com os olhos vermelhos como se tivesse acabado de chorar.

FRANCELINA - Não tens notado que ele nunca mais mentiu?

GERTRUDES - Tenho sim. Julgo que ele está, realmente, emendado. Seria uma felicidade!

FRANCELINA - É que não se podia acreditar nem numa palavra de tudo o que dizia!
GERTRUDES - Não estou ainda bem convencida de que ele esteja bem emendado! Ainda não
teve ocasião de mentir desde que a pobre Gúdula está doente. Se lhe ralharem e o obrigarem
a confessar alguma asneira, duvido

185

bem que ele não minta como antigamente, inventando alguma história absurda.

FRANCELINA - Ah! Que linda caixa! Que lindo estojo! Repara, Gertrudes!.. . É magnífico!
(Gertrudes aproxima-se e aprecia os objectos com Francelina; abrem a caixa. )

GERTRUDES - Que bonito! Que engraçado! FRANCELINA - Ah! Que pena! As peças estão
manchadas de tinta!

GERTRUDES - Que desastre, O jogo está todo estragado, perdido!

FRANCELINA - Se se esfregasse com força, talvez se sumissem as manchas, pelo menos em


parte; ainda estão frescas.

GERTRUDES - Não creio; mas podemos experimentar. Dá-me esse cavalo que aí tens. A garupa
e o pescoço estão completamente sujos. Vou esfregar com o meu lenço.

FRANCELINA - E eu vou tentar limpar a torre que está cheia de salpicos. (Esfregam as peças e,
passados momentos, ouvem ruído. Metem precipitadamente as peças na caixa, que fecham no
momento em que o senhor e a senhora Ramière entram na sala. )

SR. A RAMIÈRE - Estão sós, minhas filhas? Onde estão os primos e Leôncio?

GERTRUDES (embaraçada) - Não sei, mamã; nós estamos aqui à espera deles.

SR. RAMIÈRE - Porque não estão ao pé de Gúdula? FRANCELINA - Já lá estivemos, papá, a fazer
companhia; mas como ela se sentia fatigada, nós viemos para aqui. Gúdula disse-nos que
certamente encontraríamos

186

aqui Leôncio e os primos. Julgo que estão no quarto de Leôncio, e que não se demoram.

SR. PONTISSE - Bom dia, minha querida e boa amiga; bom dia, meu caro amigo. Cada dia que
passa sinto mais vivamente a afeição e o reconhecimento que lhes devo. Gúdula partilha deste
sentimento, e está cada vez mais afeiçoada às suas excelentes filhas.

SR. PONTISSE - Permite-me, minha senhora, que ofereça às suas queridas filhas uma
lembrança da parte de Gúdula? (Abre o móvel onde estavam a caixa do xadrez e o estojo e fica
muito surpreendido por não os encontrar ) É extraordinário! Ontem meti neste móvel uma
caixa e um estojo de escritório para Gertrudes e para Francelina!

SR. PONTISSE - Não é aquilo que está em cima da mesa?


SR. PONTISSE - É justamente. Como foram ali parar? Eu tinha-as fechado para que não lhes
mexessem. (O senhor Pontisse pega nas prendas e dá-as a Gertrudes e a Francelina que se
mostram embaraçadas. O senhor Pontisse olha-as surpreendido. ) Aceitem, minhas filhas,
aceitem. O vosso papá e a vossa mamã permitem, sem dúvida, que aceitem este pequeno
presente oferecido com vivo e sincero afecto.

SR. RAMIÈRE - Sem dúvida, meu amigo. Podem aceitar de boa vontade. Que encantador
presente! É, na verdade, demasiado rico e demasiado belo para rapariguinhas. (Pega na caixa e
examina-a. ) Encantador! Que trabalho! Que perfeição de escultura!.. . (Abre. ) Ah! meu Deus
Que desastre!

SR. PONTISSE - Que é?

SR. RAMIÈRE - As peças estão manchadas!

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SR. PONTISSE - Manchadas?.. . Como? Por quem? (Aproxima-se rapidamente e pega nas peças.
) É abominável! Quem seria que me pregou esta maldosa partida? Se sei quem foi, há-de ouvir-
me das boas. Sem dúvida, algum criado curioso e desastrado.. . Dá cá, minha Gertrudes; esse
jogo já não serve para te oferecer. (Gertrudes entrega-lhe a caixa e parece embaraçada. ) Que
tens, Gertrudes? A tua mão treme. Empalideces? Não te rales com o desastre que sucedeu ao
teu jogo. Substituí-lo-ei.

GERTRUDES - Oh! Senhor Pontisse! O senhor é muito bom! Agradeço-lhe muito, mas esse jogo
é encantador, mesmo assim.

SR. RAMIÈRE (com severidade) - Como sabes isso? Tu não o viste.. . (Gertrudes cora, baixa a
cabeça e não responde. )

SR. RAMIÈRE (descontente) - Que é que têm as duas, sobretudo, tu, Gertrudes? Nunca te vi
assim tão constrangida, tão acanhada! O senhor Pontisse oferece-te um presente magnífico, e
tu não Lhe agradeces com a satisfação que seria de esperar?.. . Francelina ainda está pior: não
diz nada, nem um simples agradecimento!.. .

FRANCELINA (embaraçada) - Mamã, é que eu não sei o que hei-de dizer.. .

SR. A RAMIÈRE - Não sabes o que hás-de dizer, quando se trata de agradecer a um amigo de
teu pai uma tão amável lembrança?.. .

GERTRUDES - Mamã, é que.. . que.. .

SR. RAMIÈRE - É que, o quê? Acaba!

GERTRUDES - É que.. . a tinta.. . as peças manchadas.. . Eu tinha medo.. . nós pensámos.. . isto
é, temíamos.. . (Gertrudes cora e atrapalha-se cada vez mais; vê a surpresa

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geral e receia que a acusem, assim como a Francelina, de ter entornado a tinta nas peças do
xadrez e, não sabendo como desculpar-se, desata a chorar e limpa os olhos com o lenço que se
encontra cheio de tinta. )

SR. RAMIÈRE (severamente) - Gertrudes, adivinho a causa do teu embaraço e das tuas
lágrimas! Foram vocês que se portaram como meninas curiosas, como raparigas mal-educadas
e desastradas. O teu lenço manchado de tinta é a prova disso. Tiraram esses dois encantadores
objectos do móvel onde o senhor Pontisse os tinha guardado, e, ao quererem ver tudo,
entornaram o tinteiro.

GERTRUDES - Papá.. . eu.. . afianço-lhe.. .

SR. RAMIÈRE -.. . que o não fizeram de propósito? Já sei; era o que faltava! A maldade a
rematar a vossa feia acção! Estou muito descontente, e peço ao senhor Pontisse que retire o
presente que lhes desejava fazer.

FRANCELINA (soluçando) - Papá.. . não foi a Gertrudes..

SR. RAMIÈRE - Foste tu? Ou melhor, foram as duas! Fazes bem em desculpares a tua irmã. Não
passam de duas parvinhas, curiosas, indiscretas e desastradas.

SR. PONTISSE - Meu amigo, não seja tão severo com as pobres crianças. Um pequeno impulso
de curiosidade e uma ligeira falta de habilidade não são erros irreparáveis. E a prova é que
daqui até amanhã tudo será remediado, graças a Deus.

SR. RAMIÈRE - Não, meu caro amigo: peço-lhe encarecidamente que nada remedeie, que retire
a sua oferta. Elas merecem castigo e tê-lo-ão. (Gertrudes e Francelina choram amargamente; a
Sr. a Ramière mostra-se agitada e fala baixo ao marido, que parece impaciente.

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Gúdula aparece apoiada ao braço de Leôncio e amparada do outro lado por Heitor e Aquiles;
está muito pálida, anda com dificuldade e pede uma poltrona, que Aquiles Lhe chega. )

SR. e SR. PONTISSE - Gúdula! Tu, minha filha? Que surpresa!

GÚDULA - Leôncio e os seus amigos trouxeram-me até aqui, para os ver todos reunidos.
Gertrudes e Francelina, cá estou junto de vocês.. . (Gertrudes agarra-se-lhe ao pescoço,
soluçando. Francelina chora. Gúdula, muito assustada, diz. ) Que aconteceu, meu Deus?
Minhas amigas, minhas queridas amigas, que se passa? (Gertrudes e Francelina querem
responder; as lágrimas impedem-nas de falar. )

SR. RAMIÈRE - Minha querida Gúdula, há uma coisa que não honra as tuas amigas. Por uma
indiscrição, por um impulso de curiosidade, imperdoável na sua idade, abriram esse móvel
(indica o móvel com a mão) e tiraram os objectos que.. .

LEÔNCIO (com vivacidade) - Fui eu, fui eu que os tirei para os ver, para me distrair! Não foi
Gertrudes nem Francelina!
SR. RAMIÈRE - Ah! Isso diminui, em parte, a sua falta, mas estas meninas abriram e
examinaram aquilo em que não deviam tocar sequer, e entornaram tinta na linda caixa de
marfim esculpido e mancharam.. .

LEÔNCIO (com vivacidade) - Fui eu, fui também eu, meu caro senhor! Sou eu o único e
exclusivo culpado! Eu vinha exactamente confessar isso ao papá. Gúdula a quem contei o
sucedido, quis ter a bondade de me acompanhar para obter o perdão. (Ficam todos
admirados. Gertrudes e

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Francelina enxugam as lágrimas e abraçam Leôncio, exclamando:)

GERTRUDES e FRANCELINA - Obrigada, obrigada, meu bom Leôncio! O papá tinha-nos acusado
de havermos manchado o jogo do xadrez, ao convencer-se de que tínhamos mexido nele e ao
ver o nosso ar de atrapalhação por recearmos que suspeitassem de nós. As lágrimas
sufocavam-nos, impedindo-nos de nos justificarmos. Quanto mais chorávamos, mais o papá
acreditava na nossa culpa.

SR. RAMIÈRE - Minhas pobres filhas, estou desolado de as ter acusado sem razão; mas como é
que se compreende, Gertrudes, que o teu lenço esteja assim todo sujo de tinta?

GERTRUDES - Porque, ao vermos estas peças tão bonitas sujas de tinta ainda fresca, quisemos
limpá-las, na esperança de lhes tirar por completo as manchas, mas nada mais conseguimos do
que sujar os lenços.

GÚDULA - Leôncio, meu amigo, o que acabas de fazer resgata todas as tuas antigas mentiras,
dá-me uma alegria e uma felicidade que compensam bem tudo que tenho sofrido na minha
longa doença.

LEÔNCIO (apertando-a nos braços) - Fica certa, minha querida Gúdula, que, para o futuro,
nunca mais a mentira manchará os meus lábios. Não, nunca, nem mesmo quando uma
confissão ou uma declaração sincera me causem desgostos, por maiores que sejam.

SR. PONTISSE - Vem a meus braços, meu filho! De hoje em diante, nós acreditamos em ti,
como acreditamos em Gúdula, que nunca falseou a verdade. (Todos felicitam e abraçam
Leôncio, que está comovido e feliz. )

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SR. PONTISSE - Não me resta senão reparar o desastre causado pelo meu bom Leôncio e
presentear as minhas amiguinhas caluniadas com um jogo de xadrez sem mácula que lhes
relembrará que, depois da sua conversão, Leôncio merece toda a confiança.

FIM

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