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DEPOIS DA TEMPESTADE

Condessa de Ségur

EDITORIALPUBLICA

Os medronhos

JORGE - Ó Genoveva, queres vir brincar? O papá deu-me hoje feriado por eu ter estudado
muito bem as lições.

GENOVEVA - Pois sim; como desejas tu passar o tempo?

JORGE - Vamos para o campo apanhar medronhos.

GENOVEVA - Vou, então, chamar a minha criada.

JORGE - Para quê? É tão pertinho. . . podemos muito bem ir sozinhos.

GENOVEVA - É que tenho medo. .

JORGE - Medo de quê?

GENOVEVA - De que faças asneiras, pois hás-de disparatar sempre que estamos sós.

JORGE - Garanto que desta não farei, Vevinha; apanharemos tranquilamente medronhos,
colocá-los-emos sobre folhas na tua cestinha e servi-los-emos ao papá, como sobremesa, ao
jantar.

GENOVEVA - Sim ! Acho bem ! Tiveste uma bela ideia. O tio gosta muito de medronhos; vai
ficar contentíssimo.

JORGE - Então, vamos lá depressa; há-de levar tempo

a apanhá-los.

E Jorge precipitou-se para fora do quarto, seguido pela prima, correndo ambos para a mata,
que ficava a cem passos do solar. A princípio, não viam grande quantidade de medronhos;
mas, à medida que iam avançando pela mata dentro, encontraram tal porção, que em breve
ficou cheia a cesta.

Satisfeitíssimos com a colheita, sentaram-se na relva para cobrirem a cesta de folhas. Feito
isso, entendeu Genoveva que era tempo de voltarem para casa.

Mal tinham dado umas passadas, quando ouviram o primeiro toque para jantar.

- Já! - disse Jorge. - Voltemos depressa, para não chegarmos com atraso.

GENOVEVA - Receio bem termos de chegar atrasados, pois estamos ainda muito longe. Não
percebeste como a campainha soava distante?
JORGE - Está bem. Para maior rapidez, metamos através da mata; pelo caminho é muito longe.

GENOVEVA - Achas? Não vês que rasgo o vestido cortando por entre o tojo e as silvas?

JORGE - Sossega; passaremos pelas clareiras, por cima da relva.

Genoveva ainda resistiu uns momentos; mas, à ameaça do primo de a abandonar, decidiu-se a
acompanhá- lo, metendo-se no matagal; por momentos, andaram com facilidade, o Jorge na
frente, seguido da prima. Às vezes, Genoveva sentia o vestido preso no tojo, mas desprendia-o
e corria para ir ter com Jorge; porém, dentro em breve, o matagal era tão fechado, que negava
passagem ao próprio Jorge. Mais de uma vez ouvira já Genoveva rasgar-se-lhe o vestido, mas
seguia sempre; foi, por fim, obrigada a atravessar um matagal tão espesso que se viu
impossibilitada de avançar mais.

- Ó Jorge - gritou ela -, anda-me ajudar; o tojo não me deixa avançar.

JORGE - Puxa, que hás-de sair.

GENOVEVA - Impossível; os espinhos entram-me pelos braços e pelas pernas. Anda ajudar-me;
peço-te por favor.

Aborrecido com os gritos de angústia de Genoveva, Jorge retrocedeu. Quando chegava perto
dela, fez-se ouvir o segundo toque da sineta.

GENOVEVA - Ai ! Senhor ! A sineta a tocar pela segunda vez! E então o tio que não gosta nada
que o façamos esperar. Ó Jorge, tira-me daqui; nem posso avançar nem recuar.

E chorava. Lançando-se ao matagal, Jorge pegou nas mãos da prima e, puxando com toda a
força, conseguiu fazê-la atravessar os obstáculos que a cercavam. Saiu, sim, mas com o vestido
esfarrapado, e os braços, as pernas e até a cara cheios de arranhões. Nenhum dos dois
reparou nisso; a mata era menos fechada e o tempo apertava. Chegaram a casa precisamente
quando o Sr. Dormere os chamava para a mesa.

Ao aparecerem, todos corados, a transpirar, desgrenhados - Genoveva a arrastar os farrapos


do vestido, e Jorge de cara arranhada e a calça branca esverdeada pela folhagem que tinha
sido preciso atravessar à força -, o Sr. Dormere ficou estupefacto.

SR. DORMERE - Donde é que vêm nesse lindo estado? Que aconteceu ?

JORGE - Vimos da mata, papá, e nada nos aconteceu de extraordinário.

SR. DORMERE - Como assim? Porque estás então esverdeado da cabeça aos pés? E tu,
Genoveva, toda

esfarrapada e esgadanhada, como se tivesses estado fechada com gatos furiosos?

O Jorge olha para a Genoveva e não dá resposta. Esta baixa a cabeça, hesita e acaba por dizer:

- Foram os tojos, meu tio. . . nós não temos culpa.


SR. DORMERE - A culpa não é vossa? Para que te foste meter nos tojos, levando contigo o
Jorge, que te segue para toda a parte como um tolo?

Genoveva esperava que o Jorge dissesse ao pai que não fora ela, mas ele, que quisera ir
através da mata; Jorge, porém, continuava calado; o pai parecia cada vez mais irritado.
Cuidando aplacá-lo, Genoveva apresentou-lhe a cesta da fruta, dizendo:

- Queríamos trazer medronhos de que o tio tanto gosta. Se quiser prová-los, dar-nos-á grande
prazer.

SR. DORMERE - Não tenho empenho nenhum em dar-lhe prazer, menina, e não preciso dos
seus medronhos. Leve-os.

E com as costas da mão o Sr. Dormere repeliu a cesta, que caiu ao chão, sendo os medronhos
projectados a distância, o que fez Genoveva soltar um grito.

SR. DORMERE - Que é isso? Vai pôr-se agora a gritar como um bebé de dois anos? Deixe tudo
isso e vá mas é lavar-se e mudar de vestido. Anda, Jorge, vamos comer que já é tarde.

E passou à sala de jantar na companhia de Jorge, enquanto Genoveva ia ter com a ama, que a
recebeu muito mal.

AMA - Mais um vestido rasgado ! Se continuas a rasgar um vestido cada semana, daqui a
pouco não sei que te hei-de vestir, e o tio ficará muito descontente.

GENOVEVA - Peço desculpa; o Jorge é que quis vir através da mata; o tojo e as silvas
rasgaram-me o vestido, a cara e as mãos. O tio já me ralhou.

AMA - E ao Jorge?

GENOVEVA - Não disse nada ao Jorge; levou-o para a mesa. ? AMA - Então o Jorge não
procurou desculpar-te.

GENOVEVA - Não, ele não disse nada.

- É sempre assim - murmurou a ama -; é ele que faz as tolices, mas as censuras são para a
menina e não para ele.

Pelágia lavou o rosto de Genoveva, que sangrava, arrancou-lhe uns picos que haviam ficado
nas arranhaduras, mudou-lhe o vestido e disse-lhe que fosse jantar.

À sobremesa apareceram morangos da horta, o que a fez olhar para o tio.

SR. DORMERE (irónico) - Já vê a menina que não temos precisão do seu auxílio para ter
morangos, que são bem melhores que os seus medronhos.

GENOVEVA - Bem sei, meu tio; nós julgámos, todavia, que o tio preferisse os medronhos.

SR. DORMERE - Porque diz nós? A menina trata sempre de meter o Jorge de permeio nas suas
tolices.
GENOVEVA - Digo a verdade, meu tio. Pois não é verdade, ó Jorge, que foste tu que me pediste
para ir à mata colher medronhos?

JORGE (embaraçado) - Já me não lembro bem. Talvez fosse.

GENOVEVA - O quê? Esqueceste que. . . ?

SR. DORMERE (impaciente) - Basta, menina, basta; acabe lá com as suas acusações. Nada me
aborrece tanto como estas altercações que a menina recomeça sempre que comete algum dos
seus disparates.

Genoveva baixou a cabeça depois de lançar sobre Jorge um olhar de censura; este não disse
nada, mas via-se que não se sentia bem e que nem mesmo ousava olhar para a prima.

A visita

Após o jantar, o Sr. Dormere retirou-se para a sala de visitas, ficando a ler os jornais, cuja
leitura não concluíra, enquanto os meninos saíram a brincar no jardim. Mas Genoveva estava
triste; sentara- se num banco e ali se mantinha sem dizer palavra. O Jorge andava de um lado
para o outro cantarolando em surdina; vontade não lhe faltava de falar à Genoveva, mas
percebia que fora cobarde e cruel para com ela.

No entanto, como se aborrecia, encheu-se de coragem e acercou-se da prima.

- Não queres brincar, Veva?

GENOVEVA - Não, Jorge; não quero brincar contigo; arranjas sempre com que me ralhem.

JORGE - Não fiz que ralhassem contigo: não disse nada.

GENOVEVA - Pois por isso mesmo é que estou zangada. Deverias ter dito ao tio que foste tu o
causador de tudo; mas preferiste deixar que me acusassem e ralhassem, sem proferir uma
palavra. É muito mal feito.

JORGE - É que. . . sabes, Veva. . . tinha medo de ser também censurado: temo muito o papá.

GENOVEVA - E então eu? Tenho bem mais medo dele, do que tu. Tu és filho, e ele quer-te
muito. De mim é que ele não gosta; não passo de uma simples sobrinha.

JORGE - Perdoa-me, Veva, suplico-te: para outra vez hei- de falar; podes ficar certa de que direi
tudo.

GENOVEVA - Dizes isso agora! O mesmo disseste no dia em que a raposa me rasgou o vestido
com os dentes. Já te não acredito.

JORGE - Acredita-me, Vevinha, peço-te, e vamos brincar.

Algo enternecida, Genoveva estava quase a ceder. Eis senão quando surge na avenida uma
carruagem, a trote largo, que veio deter-se junto ao patamar de entrada, saindo dela uma
senhora nova, elegante, acompanhada por uma menina de oito anos, da idade de Genoveva,
por um rapazito de doze, da idade do Jorge, e por uma senhora gorda, dos seus trinta anos,
feia, picada das ? bexigas, mas de rosto amável e bondoso, que a tornava ? agradável. Foi ela
quem primeiro se aproximou de Genoveva.

- Bom dia, pequena; como és linda! Onde é que está o tio? Bom dia, Jorge. Ah! que verde que
estás! Um autêntico periquito ! Verde da cabeça até aos pés ! Como te deixam vestir assim de
forma tão esquisita! Ora anda ver, Cornélia. Vê lá, Helena, não vás pôr-te assim, ao menos !

A Sr.a Saint-Aimar aproximou-se também, beijou Jorge com muito afecto e disse:

- Ele está muito lindo assim! No campo não se muda de vestuário a toda a hora. Não se deve
ter pretensões; provavelmente caiu na relva.

GENOVEVA - Não, minha senhora, foi ao ajudar-me a sair dos tojos que me rasgavam,
que o Jorginho se sujou e picou bastante.

SR.a SAINT-AIMAR - Ai! que lindo o que tu dizes, Genoveva! Ouves, Luís, como ela é generosa;
como desculpa com tanta elegância aqueles de quem gosta! Encantadora menina !

Beijou mais uma vez Genoveva, e entrou com a gorda prima na sala de visitas.

- Bom dia, meu caro senhor - disse, estendendo a mão ao Sr. Dormere. - Acabamos de beijar os
meninos: são uns amores.

PRIMEROSE - Bom dia, meu primo. Que estranho que está o seu filho! Como o deixa andar
assim a criada? Quer que eu vá buscá-lo para o tornar a vestir?

E, sem esperar resposta do Sr. Dormere, Primerose saiu da sala e subiu lesta ao quarto da
criada.

PRIMEROSE - Bom dia, querida Pelágia; venho dizer-lhe que o Jorge não pode continuar com o
fato assim esverdeado. É preciso obrigá-lo a mudar tudo; a menina está asseada; a Pelágia
cuida dela como deve ser, e faz bem; mas não deve desprezar assim o rapaz. Ele está
envergonhado com aquela verdura; só lhe faltam as penas para ficar um periquito ou um
papagaio.

PELÁGIA - Eu ignorava que o Jorge precisava de se mudar. A menina chegou-me com o vestido
em pedaços, mas o Jorge não me apareceu.

PRIMEROSE - Ah! E porquê?

PELÁGIA - Não sei, mas vou já buscá-lo.

PRIMEROSE - Eu vou consigo, Pelágia, e ele há-de contar como isso foi.

Encantada por vir a saber novidades para dar à língua, Primerose desceu as
escadas mais depressa do que a criada e apareceu no meio das crianças, que jogavam o
croquet.
- Sobe depressa - gritou ela ao Jorge -, a criada anda à tua procura, para te fazer mudar de
fato. Ora vamos, sobe depressa; depois nos contarás o suce dido.

JORGE - Não sucedeu nada; que hei-de contar, prima?

PRIMEROSE - Macacos me mordam se acredito no que dizes. Vai mudar de fato, não
precisamos cá de ti. Fico na tua vez, e podes estar certo de que ganharei a partida.

Jorge, pasmado e aborrecido, teve de obedecer à criada, que o chamava. Na sua curta
ausência, a prima Primerose não perdeu o tempo; enquanto jogava, pesada e
desesperadamente como a obrigava a sua gordura, ia inquirindo habilmente da Genoveva,
ficando desse modo a saber o que se passara, excepto o descontentamento do Sr. Dormere e o
papel baixo que Jorge desempenhara junto do pai.

Quando este voltou, ela entregou-lhe o maço do jogo. PRIMEROSE - Fui infeliz, meu amigo;
perdi a tua partida. Mas lucrei na tua ausência vir a saber toda a história do bosque e dos
medronhos.

Jorge corou muito, e deitou à pobre Genoveva um

olhar furioso. Enquanto as crianças recomeçavam nova partida, Primerose voltou para a sala
de visitas.

- Caro primo - disse ela -, venho justificar o

pobre Jorge; conheço toda a história, ele não merece

censuras por ter sujado o fato; pelo contrário, só é digno de elogios, pois foi ao socorrer
Genoveva, que não podia sair do matagal onde imprudentemente se metera, que assim ficou
esverdeado como um trolha.

SR. DORMERE - Bem o sei, prima, e foi por isso mesmo que não ralhei ao Jorge.

PRIMEROSE - A quem ralhou então? Pois o senhor ralhou a alguém?

SR. DORMERE - Ralhei à Genoveva, que bem o mereceu.

PRIMEROSE - Que fez para isso a pobre menina?

SR. DORMERE - Foi ela quem levou e quase forçou Jorge a entrar na mata para comer
medronhos, como se não tivessem dessa fruta no quintal, sendo ainda ela que quis regressar
pelo tojo.

PRIMEROSE - Ora, ora, ora! Que é que o primo me conta? As coisas passaram-se exactamente
ao contrário. Ela é que não queria, e foi o Jorge que a obrigou. Já vejo que não está bem
informado do que se passa em sua casa. Eu só me encontro aqui há meia hora, e já estou mais
ao corrente de tudo do que o primo.

SR. DORMERE - Dá-me licença que lhe pergunte, querida prima, por quem foi tão bem
informada?
PRIMEROSE - Pela própria Genoveva.

SR. DORMERE - Já me não admira que lhe fosse contada a história dessa maneira; a Genoveva
tem sempre a triste habilidade de lançar as culpas sobre o Jorge.

PRIMEROSE - Pelo contrário, ela falou-me elogiosamente do primo; e se lhe toco no assunto, é
só porque ela me confessou que ele não estava contente e eu supunha que tinha ralhado ao
Jorge. E na verdade bem o merecia, não obstante o que me disse a Genoveva.

Surpreendido, pro vê-la acusar o Jorge, o Sr

Dormere não respondeu.

Primerose voltou para o pé das crianças no intuito de tentar esclarecer melhor o caso, que lhe
parecia algo turvo, da parte de Jorge.

Genoveva estava debulhada em lágrimas; Jorge amuado a um canto, e Luís e Helena


esforçavam-se por consolar Genoveva.

PRIMeROSE - Então, então, que mais houve?

GENOVEVA - Nada, minha prima; fui eu que me magoei num? pé - respondeu Genoveva, a
limpar as lágrimas.

PRIMEROSE - E porque está o Jorge sozinho, amuado junto à parede?

HELENA - porque eu e o Luís lhe dissemos queera um maroto e que não queríamos brincar
com ele.

PRIMEROSE - porque lhe disseram isso?

LUÍS - Porque, depois de ter dito muitas coisas

desagradáveis à pobre Genoveva, que não lhe dava resposta, atirou-lhe com o maço às pernas.
Eu e a Helena zangámo-nos, pusemos fora do jogo o atrevido e viemos consolar a Genoveva,
que estava a chorar.

PRIMEROSE - Seu maroto ! O que precisavas era que eu fosse já contar tudo ao teu pai, que te
supõe uma pérola.

GENOVEVA (aterrada) - Ai, não, minha prima, não lhe diga nada, senão ele castigava o Jorge.

PRIMEROSE - Castigava o Jorge? O teu tio? Ora, ora! Talvez lhe ralhasse, por muito
favor.

GENOVEVA - Além de que, minha prima, o Jorge não o fez de propósito. Como eu estava muito
perto da bola dele, aconteceu-lhe dar-me nas pernas em vez de dar na bola.

PRIMEROSE - Isso cheira-me a desculpa infeliz. Vejamos: tu não falas, Jorge? É verdade o que
diz a Genoveva?

JORGE (em voz baixa) - É, sim, minha prima.


PRIMEROSE - Porque não foste então beijá-la e pedir-lhe desculpa ?

JORGE - Não tive tempo; o Luís e a Helena atiraram-se a mim a dizer : Grande maroto, põe-te a
andar ! E expulsaram-me.

PRIMEROSE - Melhor para ti, se falas verdade. Mas, se mentes, és ainda pior do que pensam os
teus primos. Vamos, abracem-se, e que tudo esteja acabado.

Genoveva adiantou-se para Jorge que se aproximava dela para a abraçar; a prima, em vez de
voltar para a sala, subiu ao quarto da ama para lhe fazer umas perguntas a respeito de Jorge,
de quem principiava a formar opinião desfavorável.

Ao cabo de uma hora, a Sr.a Saint-Aimar pediu a sua carruagem e foi-se embora com
Primerose, Luís e Helena. O Sr. Dormere acompanhou as senhoras.

SR.a SAINT-AIMAR - Então, até depois de amanhã; esperamo-lo para almoçar; seja pontual e
não deixe de levar os pequenos às onze e meia.

SR. DORMERE - Não faltarei, minha querida senhora. Adeus, prima.

PRIMEROSE - Adeus, primo, e apareça mais bem-humorado: hoje parece um paxá disposto a
decepar cabeças.

SR.a SAINT-AIMAR - Que ideia a sua, Cunegundes! O Sr. Dormere parece, como sempre, bom e
amável.

PRIMEROSE - Sobretudo neste momento em que franze as sobrancelhas como um sultão.

Ainda os medronhos

Dois dias depois, a ama fez envergar aos pequenos o

melhor vestuário; faltava ainda uma hora. Veva pôs-se a ler e Jorge divertia-se a abrir as
gavetas da prima e a examinar o seu conteúdo. Ao abrir um armariozinho, soltou uma
exclamação de surpresa.

JORGE - Ó Veva, anda cá ver; nós não sabíamos porque cheirava aqui tão bem; é que a cesta
dos medronhos de anteontem está aqui no teu armário de bonecas, bem fechado.

Genoveva acudiu e encontrou, de facto, os medronhos um pouco esmagados mas bem


dispostos na cesta, em folhas.

GENOVEVA - É boa! Quem meteria os medronhos na gaveta? E como estão eles na cesta, se o
tio os lançou ao chão? Pelágia, sabes quem os apanhou e meteu ali dentro ?

AMA - Sei, sim, mas esqueci-me de to dizer. Foi a Júlia, a moça da cozinha, que ia a passar por
diante da porta, mesmo no momento em que o patrão entornou a cesta. Quando ele entrou
com o Jorge na sala de jantar, ela pensou que os meninos gostariam de tornar a encontrá-los.
Apanhou-os, pois, cuidadosamente com uma colher, o que lhe foi fácil visto a cesta ter caído
aos trambolhões com os medronhos; só deixou os que estavam esmagados e que tinham
tocado no chão; tendo limpado tudo muito bem, deu-mos quando eu fui jantar.

GENOVEVA - Obrigada, boa Pelágia! Que boa que foi a Júlia! Dize-lhe quanto lhe agradeço.

JORGE - Vamos comê-los.

VEVA - Não, agora não, pois ficaríamos impedidos de almoçar em casa da Sr.a Saint-Aimar.

JORGE - Que disparate ! Como é que os medronhos nos impediriam de almoçar?

vEvA - Lá isso não sei; mas bem sabes que o tio nos proíbe de comer pouco antes das
refeições.

JORGE - Mas não medronhos. Vejamos, vou começar. E pegou numa porção com os dedos,
metendo-os na boca.

JORGE - Soberbos! Nunca os comi tão bons. Come também.

VEVA - Isso é que não; já te disse que não comia.

JORGE - Isso é que comes. Meto-tos na boca.

VEVA - Disse e repito que não comerei.

JORGE - Pois eu te digo que hás-de comer. E, pegando numa segunda porção, quis metê-la à
força na boca de Veva, que deitou a correr, a rir. Indo atrás dela, Jorge apanhou-a e meteu-lhe
na boca os medronhos que tinha na mão e que ela foi obrigada a engolir. Jorge comeu o resto
dos medronhos, de que tinha as mãos besuntadas, e lavou a boca e as mãos. Mal acabara,
ouviu o Sr. Dormere chamá-los. Jorge desceu a correr, seguido de perto pela Genoveva, que
pouco demorara a pôr o chapéu. Examinando o fato do Jorge, achou-o bem. Examinou
seguidamente o traje da Veva.

Ao primeiro relance notou logo os sinais dos medronhos.

SR. DORMERE - Que é isso? Comeste medronhos?

VEVA - Não, meu tio, não quis comer.

SR. DORMERE - Como mentes descaradamente, amiguinha! Como acontece então que
apresentas nódoas de medronhos na cara, nas mãos e até no vestido?

- Meu tio, garanto-lhe - disse Genoveva, de lágrimas nos olhos - que não queria comer. Foi o
Jorge. . .

SR. DORMERE - Ora aí está; acusas o Jorge, mais uma vez. Mas não me farás crer, ao ver-te a
boca, as mãos e o vestido manchado de medronhos, que fosse o Jorge que os comesse. Proibi
que se comesse antes das refeições. Desobedeceste-me e, ainda por cima, mentes; acusas o
pobre Jorge; vou castigar-te como mereces. Está acolá a carruagem; volta para o quarto, pois
só o Jorge me acompanhará.
E subiu com o filho para o carro, que partiu, enquanto a desditosa Genoveva se debulhava em
lágrimas, no vestíbulo. Momentos decorridos, foi ter com a ama.

- Que mais aconteceu, minha pobre menina? - exclamou a ama, indo ao seu encontro e
beijando-a.

Genoveva atirou-se aos braços dela e soluçou, sem poder falar. Finalmente, acalmando um
pouco, pôde contar o que lhe dissera o tio.

AMA - E o Jorge não fez ver ao pai que fora ele o culpado, que te metera os medronhos na
boca enquanto rias ?

GENOVEVA - Não, ele não disse nada.

AMA - E porque não explicaste tu mesma, ao tio, como as coisas se passaram?

GENOVEVA - Não me deu tempo; fiquei surpreendida, e o tio subiu para a carruagem
antes de eu ter podido articular uma palavra.

AMA - Pobre menina ! Não te incomodes ; vamos tratar de passar uma manhã como talvez o
Jorge não consiga passar.

GENOVEVA - É impossível, Pelágia; como eu gostava de ver o Luís e a Helena! Que bons que
são para mim! Quando os poderei ver agora? Antes de oito dias, talvez não !

AMA - A partir de amanhã, levar-te-ei lá, enquanto o Jorge estiver a dar lição com o pai. E visto
gostares tanto deles, irás muitas vezes; livra-te, porém, de dizer algo ao Jorge, pois havia de
querer acompanhar-nos, e obteria licença do pai. Agora vamos almoçar; vou pedir à cozinheira
que te faça filhós; e, enquanto o almoço se apronta, vamos ao pomar buscar morangos.

Meio consolada, Genoveva despiu o vestido novo, envergou o de todos os dias e desceu com a
ama. Colheram morangos soberbos; o jardineiro deu a Genoveva cerejas que apanhara de
manhã; teve com a ama um almoço excelente.

Saiu depois, divertiu-se a colher flores e a fazer ramalhetes, enquanto a ama trabalhava junto
dela.

Ao regressar a casa, deu com o Jorge e o pai, já de volta.

A ama queixa-se de Jorge

O Sr. Dormere não falou à Veva do que sucedera de manhã; portou-se com ela fria e
severamente, como sempre; com Jorge, pelo contrário, foi mais afectuoso do que de costume.
Após um curto passeio no pomar e pelo pátio, disse ao Jorge que fosse brincar com a prima.
Este, porém, receoso das censuras de Veva e da ama, pediu ao pai para ficar com ele.

-És muito amável, meu rapaz, em preferir a minha companhia à da tua prima, mas tenho que
fazer e preciso de estar só - respondeu o Sr. Dormere, abraçando-o.
Teve, pois, o Jorge de ir, embora contrariado, ter com a prima. Esta lia e não interrompeu a
leitura; a criada também lhe não disse nada, continuando o seu trabalho.

Jorge sentou-se e bocejou. Momentos depois, bocejou novamente com ruído, soltando um
profundo suspiro. Por fim decidiu-se a falar.

- Não estás nada amável hoje - disse à Veva. Não teve resposta; a prima continuava a ler.

JORGE - Estás então resolvida a ficar muda?

VEVA - Absolutamente decidida.

JORGE - E a razão desse silêncio?

VEVA - É para estar menos exposta às tuas maldades.

JORGE - Que maldades cometi para contigo?

vEVA - Não preciso de lembrar-te o que sabes tão bem como eu.

JORGE - Sei que o papá não quis que o acompanhasses, por estares suja.

vEVA - E porque estava eu suja?

JORGE - Porque não te lembraste de te lavar antes de descer.

VEVA - E quem foi que me enlambuzou?

JORGE - Eu é que não fui.

VEvA-(saltando da cadeira) - Não foste tu, não foste tu! E atreves-te a dizê-lo diante da minha
ama, que viu que me perseguiste para me obrigares a desobedecer ao tio?

JORGE - Não te forcei a desobedecer; quis fazer-te comer os medronhos que estavam divinos;
tinhas a boca aberta e eu meti lá os frutos; cuspiste como uma doida e sujaste-te: a culpa foi
tua.

GENOVEVA (indignada) - Cala-te, mentiroso; bastante me maltrataste hoje; deixa-me em paz.


Não quero brincar contigo, pois arranjas sempre meio de me fazer censurar.

JORGE - Eu? Ora essa! Nunca digo nada; é o papá que te ralha por estares sempre a fazer
tolices.

AMA - Jorge, estou irritada com o que tens dito à minha pobre Genoveva desde que
apareceste. Demais sabes tu que uma simples palavra tua esta manhã bas taria para justificar a
tua prima; tiveste tão pouco coração, que a não desculpaste; lá foste tranquila e alegremente,
deixando a pobre Veva, que sabias inocente, a soluçar no vestíbulo por um castigo injusto, que
só tu merecias.

JORGE - O castigo não foi grande, pois aquilo foi muito aborrecido lá em casa das primas ; o
Luís e a Helena estavam sempre a suspirar pela Veva, sem brincar comigo, indo passear com o
papá, a menina Primerose e as outras pessoas que lá estavam, deixando-me a mim
horrivelmente aborrecido.

AMA - Foi bem feito; Deus castigou-te, o que acontece sempre aos maus.

JORGE - Hei-de dizer ao papá como ambas me tratam, e ele há-de passar às duas um tremendo
raspanete.

AMA - Ah ! então ele é isso ! Pois vou já ao gabinete do patrão justificar a Vevinha, contando-
lhe a cena desta manhã, explicando-lhe o passeio na mata aquela vez, e veremos então quem
terá o raspanete.

JORGE (aterrado) - Oh! não, Pelágia, não diga nada ao papá, suplico- lhe; fique certa de que
não torno a fazer outra.

AMA - Se mostrasses arrependimento, ter-te-ia perdoado mais uma vez e não diria nada;
como, porém, decorridas horas de reflexão, nos apareces com piores sentimentos ainda, pois
te atreves a pretender justificar-te com uma falsidade de que a tua prima está indignada,
apesar da sua grande bondade e indulgência, não estou disposta a perdoar, e vou já ter com o
teu pai, convencida de que ele me acreditará e te aplicará o merecido castigo.

Jorge chorava e suplicava; a Vevinha juntou aos dele os seus rogos; a ama, porém, manteve-se
inflexível.

- Querida filhinha - disse à Genoveva -, eu faltaria ao meu dever se não te justificasse perante o
teu tio; perdeste os pais, necessário se torna que ele saiba a verdade; demasiado esperei eu
para o esclarecer. No próprio interesse do Jorge e do seu futuro, tenho de o informar de tudo
e não hesitarei em fazê-lo.

E, sem esperar novas súplicas, saiu, indo ter com o Sr. Dormere.

Pelágia entrou resolutamente no gabinete do patrão, que estava a escrever. Este voltou- se,
parecendo surpreso e contrariado ao vê-la.

- Que me quer? - perguntou-lhe friamente.

PELÁGIA - Senhor, venho cumprir um doloroso dever de que demasiado demorei a


desempenhar-me. Trata-se do Jorge, não me restando dúvida de que me ouvirá até final.

SR. DORMERE - Fale, Pelágia; sou todo ouvidos. Sabe a ternura que nutro por Jorge e o
interesse que ligo a tudo que lhe respeita.

PELÁGIA - É por isso mesmo, senhor, que lhe peço que se digne escutar bem o que tenho a
dizer-lhe.

E começou então a narração do que se passara de manhã, fazendo ver ao Sr. Dormere o
procedimento desleal do Jorge e a injustiça do castigo de Veva; explicou-lhe ainda o caso do
vestido rasgado, salientando a generosidade da menina nessa como em tantas outras
circunstâncias.
O Sr. Dormere ouvira a narração de Pelágia sem a interromper, ficando, no final, uns
momentos mergulhado em reflexões dolorosas. Por fim, ergueu-se, caminhou para Pelágia,
estendeu-lhe a mão e estreitou fortemente a dela.

SR. DORMERE - Muito obrigado, Pelágia; agradeço-lhe o serviço que presta a meu filho e a mim
próprio.

Na verdade, tenho sido demasiado tolerante para com o Jorge, e por demais severo com a
pobre orfãzinha confiada aos meus cuidados pela ternura de meu irmão e da minha desditosa
cunhada. O Jorge que venha cá; preciso de falar-lhe a sós.

Pelágia retirou-se e subiu ao quarto, onde encontrou o Jorge inquieto e trémulo. Veva
procurava sossegá-lo, mas também partilhava dos receios do primo. Considerava o Jorge muito
culpado, entendendo que o tio não podia perdoar-lhe a falta de coração e a deslealdade.

AMA - O pai quer falar-te, Jorge; vai ter com ele ao gabinete de trabalho.

JORGE - Ele está muito irritado comigo?

AMA - Sabê-lo-ás quando lhe tiveres falado.

JORGE - Que foi que lhe contou? De que falaram?

AMA - Ele to dirá.

Percebendo que nada tirava da ama, resolveu-se a ir ter com o pai. Entrou de mansinho, foi-se
adiantando devagar, de olhos fitos no rosto do pai. Aterrado com a sua expressão fria e severa,
deteve-se a distância.

SR. DORMERE - Chega-te cá, Jorge. Preciso de te falar.

Jorge aproximou-se, a tremer.

SR. DORMERE - Já sabes que a Pelágia acaba de sair daqui, aonde veio falar de ti, não sabes?

JORGE - Sei, sim, papá.

SR. DORMERE - Não tenho, pois, necessidade de repetir-te o que ela me veio dizer; contou-
me o que eu não sabia, as tuas discussões com a tua prima, em muitas ocasiões em que tu e só
tu devias ser repreendido, dei xando, contudo, acusar Veva sem dizeres uma palavra em sua
defesa.

JORGE (animando-se) - O papá não me fez pergunta nenhuma; se ma tivesse feito, ter-lhe- ia
respondi do. Também a Veva não dizia nada.

SR. DORMERE - Será isso uma razão para me deixares repreender e castigar Genoveva, sem o
menor esforço da tua parte para a justificar, quando sabias que não era ela só a culpada?

JORGE - Papá, é que. . . é que. . . eu cuidava. . . eu não sabia. . .


SR. DORMERE (com vivacidade) - Procedeste irreflectidamente, daí resultando não poderes
viver em boa paz com tua prima aqui em casa; como não a posso mandar embora a ela, visto
não ter outro asilo que não seja a minha casa, sou forçado a um sacrifício bem doloroso para
mim, o qual é o de me separar de ti. És o meu filho único, Jorge, e vejo-me forçado a pôr-te
num colé gio dois ou três anos mais cedo do que planeava. Tenho de andar à procura de um
colégio, e, por melhor que ele seja, não deixarão os professores de castigar as tuas faltas,
mesmo as mais leves, nem os teus condiscípulos deixarão de repreender severamente as tuas
travessuras. Espero que o tempo e a reflexão te habituarão à vida colegial, mas receio bem
que tenhas saudades da vida descuidada que aqui levavas sob a minha indulgente direcção.
Vai comunicar a tua próxima partida à Geno veva e à ama.

JORGE - Oh ! papá, por favor !

SR. DORMERE - Não cuides, filho, que me vais fazer mudar de resolução; no teu interesse, para
teu bem tens de ir para um colégio. Vai, filho; tenho de tratar agora de negócios urgentes.

O Sr. Dormere abraçou o filho e fê-lo sair do escritório. Animado pela ternura do pai,
Jorge subiu lentamente a escadaria e foi ter com Genoveva, que o aguardava impaciente.

GENOVEVA - Então, que te disse o tio? Que lhe respondeste?

JORGE - Não lhe respondi nada, visto que nada me perguntou. Disse-me que me ia meter
dentro de alguns dias num colégio.

GENOVEVA (aterrada) - Num colégio ! Oh ! pobre Jorge ! Há-de ser horrível !

JORGE - Isso é que não, não é nada horrível. Pelo contrário, há-de ser muito agradável. A
princípio tive medo como tu agora, mas pensando bem, acho que vou ter condiscípulos com
quem vou brincar à vontade, como se brinca entre rapazes; vejo ainda que não mais serei
obrigado a trabalhar sozinho, e que não serei repreendido e enfadado todo o santo dia pela
tua criada.

GENOVEVA (com vivacidade) - A minha criada! Coitada dela! Que excelente criatura não é !

JORGE - Para ti pode ser; agora para mim, é que não. Não a posso ver, e ela paga-me na
mesma moeda.

GENOVEVA - Oh ! Jorge, como é que tu podes. . .

JORGE (mal-humorado) - Ora deixa-me em paz; também me enfastias. Estou encantado por
vos deixar a ambas.

Decide-se a partida de Jorge

A sineta tocou para o jantar, e os meninos desceram à sala. Depressa se lhes juntou o Sr.
Dormere, sorrindo amigavelmente para Veva, com grande surpresa desta.

SR. DORMERE - Então, Veva, já sabes que te vou separar de Jorge?


GENOVEVA - Sei, sim, tio; disse-mo ele mesmo, e sinto muito a separação.

SR. DORMERE - Eu supunha- te, ao contrário, muito satisfeita, pois nem sempre estais de
acordo.

GENOVEVA - Verdade seja, meu tio, que, às vezes, questionamos, mas gostamos muito de
brincar juntos; pois não é verdade, Jorge?

JORGE - É, sim; mas eu prefiro brincar com rapazes.

SR. DORMERE - Então não estás triste por ires para o colégio ?

JORGE - Não, papá; sinto apenas ter de o deixar, é o que é. Em que colégio me quer meter,
papá?

SR. DORMERE - Ainda não sei, meu pequeno; amanhã tratarei de saber se há lugar para ti no
colégio dos Padres Jesuítas.

JORGE - Aquele em que está o primo Tiago?

SR. DORMERE - Exactamente; dizem que os alunos se dão lá muito bem e que gostam muito
dos padres.

JORGE - O Tiago gosta muito deles; afirma que são bons como verdadeiros pais; porém, o
primo Rodolfo diz que se trabalha lá exageradamente.

SR. DORMERE - Em toda a parte se tem de trabalhar, meu amigo.

JORGE - Mas o Rodolfo é frequentemente castigado.

GENOVEVA - Se te parece. . . Ele não faz nada. Da última vez que saiu, disse-te que não
estudava as lições, e que não estava para as estudar, porque o aborrecia o estudo.

JORGE - É porque tem muito que estudar, e se sente desanimado.

GENOVEVA - O Tiago tem precisamente as mesmas lições para estudar, e acha que não são de
mais.

JORGE - É que esse é urso; é sempre o primeiro ou o segundo do curso.

SR. DORMERE - Olha, meu amigo. Se o Tiago é o primeiro ou o segundo, é porque trabalha a
valer; faze o mesmo, para seres também urso e feliz como ele é.

JORGE - E se não houver lugar nos Jesuítas onde me colocará o papá?

SR. DORMERE - Ainda não sei; hei-de ver.

JORGE - O papá vai tratar do caso depressa, não vai ?

SR. DORMERE - Tens assim tanta urgência de me deixar ?


JORGE - Não é isso, papá; é que estou morto por brincar com os meus condiscípulos; aqui
aborreço-me com a Veva.

Decorreram assim uns dias. O Sr. Dormere ausentou-se para ir ter com o padre-director. Ainda
havia duas vagas,e ficou assente que o Jorge iria ocupar uma delas na semana seguinte.

Quando,no regresso do pai,o Jorge soube que ia entrar,dias depois,no colégio,não pôde
ocultar a

alegria, chegando até a censurar Veva por não a partilhar.

? Uma vez decidida a retirada de Jorge,o Sr.Dormere levou as crianças em visita de


despedida aos primos.

À chegada deles,encontraram sentadas em frente do sofá

a Sr.a Saint-Aimar,Primerose e as crianças.

Após as palavras de cumprimentos,disse o Sr.Dormere :

- Venho dar-lhes parte,querida senhora e querida

? prima,da partida de Jorge..

- Da partida de Jorge! ?- exclamou a Sr.a

Saint-Aimar. - Para onde vai ele?

? SR.DORMERE - Para o colégio dos Padres Jesuítas,

minha senhora.

?? PRIMEROSE - Meu Deus ! Porquê tal resolução? Faz muito mal em retirar de casa o seu
filho único! Pobre

menino ! Lamento-o deveras.

SR.DORMERE - pois faz mal,minha prima; ele está

? satisfeitíssimo e quer entrar o mais depressa possível.

PRIMEROSE - O primo tem razão: na verdade, ?

? Jorge é de uma coragem heróica ; a não ser que...

SR.DORMERE - A não ser o quê,minha prima?

? PRIMEROSE - A não ser que... não, não quero

dizer o que penso.

SR.DORMERE - Se é boa a sua ideia,prima,porque


não ma dá a conhecer?

PRIMEROSE - Porque...até o senhor talvez não tenha...Decididamente,prefiro calar-me...É mais


prudente.

SR. DORMERE - Mais prudente? Bem desagradável deve ser para mim o que a prima
não ousa dizer.

PRIMEROSE - Oh, não me atrevo. . . é um modo de falar. Se quisesse, dir- lhe-ia. Pessoas há,
contudo, às quais. . . com as quais. enfim, prefiro calar-me. . . e para não falar, vou-me
embora.

Primerose executou uma larga pirueta e meteu-se no quarto.

Esse homem não tem mais coração do que um tigre

- pensou ela, consigo. - Afugenta o filho com uma indiferença, com uma alegria !. . . É incrível !
Era isto que eu pensava dizer-lhe. . . e que fiz bem em guardar para mim.

Pouco depois, chegavam-se as crianças. O Sr. Dormere mandou vir a carruagem e despediu-se.

Ramoramor

Durante a visita do Sr. Dormere à casa da Sr.a Saint-Aimar, dava-se no solar de Plaisance um
acontecimento fora do vulgar. No solar de Plaisance - assim se chamava a residência do Sr.
Dormere - estavam os criados conversando na cozinha, quando viram um preto de uns
quarenta anos de idade, trajando à marujo, alto, robusto de aspecto vivo e decidido. Entrou
sem pedir licença, tirou o chapéu, sentou-se e olhou para os semblantes dos que o cercavam.

- Ora - disse ele esfregando as mãos - todos pa?ecer boa pessoa. Vós dar comer a mim.
Ramoramor ter fome; Ramoramor estar cansado. Eu não ver siô Dormere, nem ver Siorinha;
não ver boa Pelágia e vir para isso.

- Está doido, homenzinho? - disse um criado.Quem é você? Donde vem? Que pretende?

PRETO - Eu ter dito : Eu Ramoramor ; eu querer comida; eu querer ver siô Dormere, ver patroa
menina Genoveva, ver criada da patroinha, ter fome.

CRIADO - Você não pense em instalar-se aqui, amigo; esta casa não é estalagem.

PRETO - Eu querer ficar para sempre; eu ficar com patroinha.

CRIADO - Este homem é doido! Temos de o pôr fora.

COZINHEIRA - Isso não, Pedro; nem parece doido nem mau. Vou dar-lhe de comer e, visto que
conhece o patrão e a Vevinha, que espere o regresso deles.

PRETO (a rir) - Você mulher boa; eu ser amigo de você.


A cozinheira pôs-se também a rir e pôs-lhe na mesa uns restos de carneiro, batatas, salada,
meio pão e um copo de vinho. O preto ria, pondo a descoberto uns dentes alvos que, pelo
contraste com a sua cara negra, mais alvos pareciam. Pôs-se a comer e a beber com um
apetite que fez rir os criados e depressa desapareceu tudo o que a cozinheira lhe servira.
Rodearam-no então, e fizeram-lhe uma série de perguntas. Ramoramor voltava a cabeça para
a direita e para a esquerda, mal tendo tempo de responder a uma pergunta quando já lhe
faziam outra. Deu um valente murro na mesa, gritando em voz de estentor:

- Calar todos! Eu não ter dez bocas para responder a dez ao mesmo tempo. Eu vai contar
minha vida. Eu Ramoramor servir siô, siora Dormere, Siorinha Genoveva; eu gostar muito
Siorinha, muito boa, muito meiga para pobre preto; eu levar ao colo menina, quando menina
estar cansada. Eu partir com patrões. Siorinha e menina Pelágia; embarcar todos num grande
navio. Ir muito tempo, muito tempo. Navio parar; eu nadar e ir a terra; barco partir, deixar
Ramoramor sozinho; eu querer agarrar patrões, e embarcar navio mais grande; mas grande
navio enganar pobre mim, e ir outra parte muito tempo, muito tempo, eu aborrecer-me e
fazer-me

marinheiro; chegar, por fim, na França, capitão dizer: Está aqui França, vai procurar
patrões de ti. Tu valente marujo e eu pagar a ti. Bom capitão pôr na mão a mim muitas
moedas amarelas que chegar para três anos. Eu tirar chapéu, dizer adeus e ir à cata de siô
Dormere, siora Dormera e Siorinha. Eu não encontrar e andar sempre; eu chegar aqui perto e
perguntar siô Dormere. É aqui

- diz boa mulher -; não longe grande estrada você ver casa siô Dormere. Eu chegar, enfim, a
casa siô Dormere, e querer ver patrões e menina e siora Pelágia; e patrões muito contentes ver
Ramoramor, e eu muito contente e abraçar muito pequena menina.

- Já vejo que você é um bom homem - disse a cozinheira. - Vou chamar a Sr.a Pelágia.

Subiu e voltou pouco depois com Pelágia. Ao avistar o preto, ela soltou um grito:

- Rame! - exclamou, lançando-se sobre ele. O preto exultou por sua vez, tomou-a nos braços,
estreitando-a com uma satisfação que depois exprimiu com risos, pinchos e gestos múltiplos.

Todos riam; Pelágia interrogava e Ramoramor respondia a torto e a direito. Entretanto,


chegava o Sr. Dormere na sua carruagem, que parou em frente ao átrio.

Sentindo o carro, saíram de roldão os criados, desejosos de assistirem ao encontro do preto


com Genoveva.

- Que é isto? - perguntou o Sr. Dormere. - Porque estarão eles ali todos?

Os meninos tinham descido do carro e estavam a

olhar. O preto avançou para eles. Ao vê-lo, Genoveva lançou-se-lhe nos braços. Depois de a ter
abraçado com gritos de alegria, o preto depô-la, finalmente, no chão.

GENOVEVA - Rame, meu pobre Rame! Nem quero crer no que vejo! Pois és tu? Que
ventura a minha em tornar a ver-te ! Onde ficaste tanto tempo ? Porque nos deixaste ?
RAME - Pobre siorinha, querida siorinha, como estar crescida! i Rame não mais trazer ao colo
patroinha. Onde estão patrões de mim? Siô Dormere, siora Dormere ?

- Não fales neles, Rame - recomendou Pelágia, que estava junto deles -, morreram ambos. A
Vevinha está em casa do tio, Sr. Dormere.

RAME (consternado) - Mortos ! Coitados ! Pobre menina !

Desaparecera toda a jovialidade do preto; correu-lhe pela face uma grossa lágrima. Veva
também chorava; a presença do preto recordava-lhe a infância e os pais.

- Que diabo significa tudo isto? - disse, por fim, o Sr. Dormere, que ficara tão surpreendido
com esta cena, que permanecera imóvel junto de Jorge.

- Senhor - disse Pelágia, adiantando-se para o Sr. Dormere -, é o pobre Ramoramor, esse preto
tão fiel, tão dedicado, em quem tantas vezes lhe falaram seu mano e sua cunhada. Esteve ao
serviço dos Srs. Dormere durante os cinco anos que passaram na América; embarcou com eles,
nunca os tendo querido abandonar; desapareceu na viagem de regresso, não se sabendo mais
o que fora feito dele. E ei-lo aqui, sem que eu saiba como pôde dar connosco.

SR. DoRMERE - Ah! É este o Rame, como lhe chamavam? Lembro-me de que, na verdade o
meu irmão me falou muitas vezes nele. Então, aonde se dirige, meu amigo? É marinheiro, pelo
que vejo.

RAME - Eu não ser já marinheiro, meu siô; eu ir parte nenhuma, eu ficar aqui.

SR. DORMERE - Como assim! Ficar aqui? Em casa de quem ?

RAME - Em casa de patroinha, menina Genoveva.

SR. DORMERE - É que Genoveva não está em casa dela, mas na minha.

RAME - Isso ser o mesmo, meu siô. Eu ficar na casa de siô.

SR. DORMERE - Se eu precisar. . . Criados já tenho eu de mais, meu caro; não tenho que dar a
fazer a tanta gente.

RAME (aterrado) - Oh ! Siô, eu fazer tudo que siô manda. Eu não pedir dinheiro, não pedir
comer, não pedir nada; só eu servir patroinha, ver patroinha. Eu comer pão seco, beber água,
dormir no chão e estar feliz com patroinha; eu querer muito patroinha, tão meiga, tão boa
para pobre Rame.

O pobre Rame mostrava-se tão suplicante, tão humilde, que o Sr. Dormere se sentiu comovido
com tamanha dedicação. Vendo-o indeciso, Genoveva juntou as suas súplicas às de Rame,
chorou, pôs-se de joelhos. Da parte dos criados, o Sr. Dormere ouvia exclamações abafadas:
Pobre homem ! - É comovente ! - Causa dó ! - É cruel mandá-lo embora ! Eu não tinha coragem
para isso !

- Que bom homem ! - Vejam como a menina chora !

- Realmente dá pena !
SR. DORMERE - Vamos, Genoveva, não chores. Vou deixá-lo ficar, mas só para o teu serviço
particular e para o de Pelágia. Não me venha ele depois aborrecer com questões com os
criados.

GENOVEVA - Obrigada, meu tio, mil vezes obrigada. Nunca me há-de esquecer esta bondade
da sua parte, meu tio - acrescentou beijando-lhe a mão.

SR. DORMERE (beijando-a) - Muito bem, Genoveva, és muito boa rapariga; vai instalar o teu
amigo. A Pelágia que lhe dê um quarto e o que lhe for preciso.

PELÁGIA - Obrigada, senhor. Pelo reconhecimento eterno do Rame fico eu.

Genoveva tornou a beijar a mão do tio e correu para o seu caro Rame, que chorava de alegria
por a ter encontrado, e de dor pela morte dos antigos patrões.

GENOVEVA - Deixa-te de choro, meu pobre Rame; que felizes não vamos ser! Nunca mais me
deixarás, pois sabes que gostarei sempre de ti.

RAME - Oh! sim, menina. Rame ser muito feliz agora! Pobres patrões de Rame! Eu chorar sem
querer, patroinha; pode crer que é sem querer.

E o bom do Rame voltava a abraçá-la, estreitava-a contra o peito, a chorar cada vez mais. Mas
depressa se consolou; impressionados com a sua dedicação aos patrões, os criados
manifestaram-lhe a sua satisfação pelo consentimento do Sr. Dormere, e, em reconhecimento,
o Rame ofereceu-lhes os seus serviços, dizendo:

- O Rame é sempre vosso amigo; vós hoje ser bom para mim e mim não esquecer nunca. O
Rame estar sempre pronto a correr, a trabalhar, para ajudar todos, todos.

Jorge mostra cada vez mais o que é

Quando Ramoramor se retirara com Pelágia e Genoveva, Jorge seguira o pai à biblioteca, que
era também o seu gabinete de trabalho. Sentou-se numa poltrona pensativo.

- Papá - disse -, porque deixou ficar em casa ess negralhão ?

SR. DORMERE - Para dar gosto à Veva, que não se conformava com a ideia de o ver partir.

JORGE - Ora! Genoveva passou bem sem ele nos três anos que está em nossa casa; podia, pois,
continuar a passar na mesma.

SR. DORMERE - E ainda por dó desse homenzinho, que lhe mostra tanta afeição.

JORGE - Voltaria para a sua terra. É horrendo esse preto; antes de mais nada, eu não
consentirei que ele me toque.

SR. DORMERE - Descansa que o não terás ao teu serviço; nem sequer o verás.
JORGE - Torna-se, então, necessário que o papá o proíba de servir à mesa; com aquelas
nojentas mãos pretas, é repugnante.

SR. DORMERE - Não vai servir à mesa; não tenciono torná-lo meu chefe-de-mesa.

JORGE - Mesmo assim, é bem aborrecido tê-lo em casa.

SR. DORMERE - Meu rapaz, fazes mal em ter aversão ao preto; bem farias em pensar que ele
serviu com fidelidade meu irmão e sua mulher durante cinco anos. Ambos me contaram dele
belos rasgos de afecto e dedicação.

JORGE - Não vejo que isso seja razão para o termos em nossa casa.

Sr. Dormere - Pois eu acho que é motivo mais que suficiente para tê-lo junto de Veva e peço-te
que

não interfiras nisso, pois manifestas mau coração, e eu bem quisera ver-te melhores
sentimentos, sobretudo em vésperas de nos separarmos.

Jorge não replicou; pegou num livro e fingia que lia, até a sineta tocar para o jantar.

?Veva entrou na sala no mesmo momento que o tio; dirigindo-se para ele, radiante de
ventura, beijou-lhe a mão.

Estás então muito satisfeita, Vevinha?

VEVA - Contentíssima, querido tio, a ponto de sentir o coração a pular-me no peito. Hás-de
ver, Jorge, como é bom e agradável ! Se tiveres precisão de qualquer coisa, só tens de lhe pedir
que ta arranja logo.

JORGE (de mau humor) - Não preciso de nada e

nada lhe pedirei. Além de pensar que é boa parvoíce o que acabas de dizer; pode lá esse
negralhão, que nada tem, que não está em sua casa mas na do papá, obter-me um cavalo, um
elefante, uma espingarda ou um móvel !

GENOvéVA (sorrindo) - Não, não é isso o que eu

queria dizer: mas sim ir-te buscar um ninho, fazer-te uma linda bengala de uma vara
apanhada na mata e coisas assim.

Jorge encolheu os ombros, sem dar resposta.

GENOVEVA - Que é que tens, Jorge? Pareces zangado ! Diria eu alguma coisa desagradável
para ti ? Que foi ? Dize-mo francamente, Jorge, peço- te.

JORGE - Deixa-me em paz. Desde que nos sentámos à mesa que nos estás a aborrecer com o
teu negralhão. Não gosto dos pretos e, muito menos, desse. Peço-te, pois, que não me
atormentes mais os ouvidos com ele.

Genoveva corou como uma cereja, encheram-se-lhe os olhos de lágrimas e ficou silenciosa.
SR. DORMERE (severamente) - Jorge, estás a responder parva e grosseiramente a tua prima; é
a minha vez de te pedir que não uses desse tom para com ela.

JORGE - Bem; agora é o papá que me ralha por causa desse maldito negro.

SR. DORMERE - Ou se cala já, ou sai da mesa.

Bem queria o Jorge sair da mesa; ia-se, porém, servir sorvete de morangos e cerejas, que não
queria perder. Calou-se, pois, não tornando a abrir a boca. Genoveva calou-se também, e o Sr.
Dormere pensou que estava a ser demasiado severo com o filho; que era mal feito repreendê-
lo assim asperamente por uns ditos de criança.

É estranho - dizia consigo - que seja sempre Genoveva quem provoca dissabores ao meu pobre
filho. Esta menina, tão boa, afinal perturba o sossego da casa dando margem a que eu magoe
Jorge, dois ou três dias antes da sua partida. Pobre Jorge!

Pelo que Pelágia transmitira ao Rame sobre os sentimentos de Jorge para com Genoveva, o
bom do preyto não ficou a simpatizar com ele. Ao encontrarem-se no dia seguinte, Rame
descobriu- se, mas sem, contudo proferir palavra. Acompanhava a sua patroinha e não a
perdia de vista.

GENOVEVA - Ó Jorge, queres vir até ao jardim? Apanharemos morangos para a merenda.

JORGE - Com muito gosto, mas só na tua companhia. Não quero ir com o preto.

GENOVEVA - Não é na tua companhia que ele vai, mas na minha.

JORGE - Pois então vai lá pelo teu lado, que eu não preciso de quem me guarde; não sou
nenhum menino de dois anos.

GENOVEVA - Então, boa tarde; eu prefiro ser guardada. Com o Rame posso ir seja para onde
for.

Dizendo isto, Genoveva aproximou-se do preto.

GENOVEVA - Rame, não vamos ao jardim; vamos à outra extremidade da mata, em cujo ribeiro
pescaremos camarões.

JORGE - Eu também quero ir aos camarões.

GENOVEVA - Mas se não queres que o Rame te acompanhe. . .

JORGE - Ao jardim, não; mas aos camarões, está bem.

GENOVEVA - Pois então anda. Eu cá vou. Dando a mão a Rame, Genoveva conduziu-o à mata
atravessada pelo regato ; as árvores eram muito densas ; o caminho fresco e delicioso. Eram
seguidos pelo Jorge que, desejoso de pescar, quisera, todavia, desfazer-se do protector de
Veva; ia de mau humor, não ousando, contudo, manifestá-lo.

Se digo qualquer chalaça a Veva - pensava consigo - esse negralhão é bem capaz de disparatar.
Sentindo-se
agora apoiada, Veva passará a ser insuportável; terei de lhe fazer todas as
vontadinhas; já me parece com ar de independência : Eu quero; eu não quero; vou embora.
Não me entra na cachimónia que o papá tivesse consentido na permanência, aqui, de tal
monstro e Felizmente que me vou embora depois de amanhã. E ao voltar de férias, irritá-lo-ei
a tal ponto que o obriga? a desaparecer.

Enquanto assim pensava, Rame e Genoveva conversavam animadamente. Chegaram, deste


modo, à orla do prado, perto da matazinha entalhada no bosque.

- Agora - disse Genoveva - vamos aos camarões.

JORGE - Com que os queres apanhar?

GENOVEVA - Ai, céus! Tens razão! Esqueci-me da isca, da carne e de tudo.

JORGE (triunfante) - Ora aí está o que é lançares-te à doida por aí fora com um preto
ignorante, e sem me prevenir, para eu poder preparar o necessário para a pesca.

GENOVEVA - Como é aborrecido! E que fazer agora?. . . Queres tu, ó Jorge, ir dizer ao Lucas
para nos?. . .

JORGE - Ah! Isso é que não. Vai tu, que mandar o preto de nada vale, pois ninguém o
atenderia.

PRETO (rindo) - Não se afligir, patroinha; o Rame arranjar camarões para querida menina.

VEVA - Como te vais arranjar, meu pobre Rame, se não tens nada para os agarrar?

RAME - Mim não precisa nada. Agarrar camarões sozinho.

VEVA - Mas como te vais arranjar?

RAME - Veja! Água nada funda; mim entrar, camarão morder pernas; eu apanhar
depressa, um, dois, dez, vinte. Patroinha ter muitos.

JORGE - Ora aí está uma boa ideia; vamos lá; o negro para a água, depressa!

GENOVEVA - Não, não, Rame não quero que te deixes morder por minha causa; isso vai-te
magoar, e portanto não quero.

RAME - Não magoa nada, patroinha; mim saber bem.

E começou a descalçar-se.

JORGE - Deixa-o lá, visto que o deseja.

GENOVEVA - O Rame quer-se deixar morder, para eu ter camarões; mas isso não quero eu.

JORGE - Pois quero eu; mando mais que tu. Rame está na casa do papá e não na tua. Ordeno-
lhe que vá para a água.

O negro não se mexia.


RAME - Mim obedecer à patroinha. Que manda ao Rame?

GENOVEVA - Proíbo-te de te deixares morder, Rame; não o faças, Rame, querido Rame, não
quero!

Ele abraçou a patroinha, dizendo:

- Rame obedecer à patroinha.

E tornou a calçar um dos sapatos que já tinha descalçado.

JORGE - Se te ordenei que te metesses à água, porque tornas a calçar os sapatos?

RAME (friamente) - Rame obedecer à patroinha.

JORGE - Seu insolente! Vou dizê-lo ao papá; veremos o que ele dirá; eu te arranjarei, deixa
estar.

GENOVEVA (aflita) - Não digas nada ao tio, Jorge. vais-lhe mentir e ele acreditar-te-á.

JORGE - Hei-de dizer o que entender, mentindo se me apetecer, e fazendo expulsar o


negralhão, se me agradar, e mesmo tu com ele, se me aborreceres.

Genoveva debulhou-se em lágrimas. Desolado, Rame olhava para Jorge com uma cólera que
não ousava dar a perceber e que mais aumentava o triunfo de Jorge.

- Adeus, chorona; adeus, negralhão; vou ter com o meu pai. - exclamou a rir malevolamente.

- Não terás de andar muito - disse uma voz, muito perto deles.

Jorge voltou-se, aterrado.

- É a voz do papá - exclamou.

SR. DORMERE (surgindo da mata) - Sou eu, sou; parece que me procuras; que desejas?

JORGE (perturbado) - Nada, nada, papá.

SR. DORMERE - Mas parece que tinhas alguma coisa a dizer-me?

JORGE - Não tinha, não, papá. Onde é que o papá estava ?

SR. DORMERE - Nesta mata a ler. Vamos lá, conta-me o que há bocadinho me desejavas
transmitir. Fala. Não nos vês aqui todos reunidos?

Jorge estava medroso; adivinhava que o pai ouvira tudo; calava-se, pois, não sabendo como
desculpar-se.

SR. DORMERE - Já que não queres falar, sou eu que te digo que ouvi tudo o que há um quarto
de hora se passou; procedeste muito mal para com este pobre preto, tão dedicado a tua
prima; foste muito grosseiro e muito mau com Genoveva. Como partes depois de amanhã,
não te aplico castigo algum; ficas, no entanto, proibido de brincar com a tua prima, a
quem não cessas de atormentar; ficas ainda proibido de falar a este bom homem a quem
insultas por palavras e gestos desdenhosos. Causas-me imensa pena, Jorge: Deus queira que o
colégio te emende! Agora, anda comigo.

O Sr. Dormere lá se foi, triste, com o Jorge, que o seguia desconcertado. Quando já iam longe,
disse o preto:

- Siô Dormere não mau. Fazer bem, dizer bem a Jorge; mas portar-se mal com patroinha.

GENOVEVA - Como assim, meu bom Rame? Como é que ele se portou mal?

RAME - Menina chorar; dever abraçar menina, como fazer Rame. Siô Dormere partir sem
abraçar menina, como Rame abraça. Siô Dormere partir sem olhar, sem consolar. Não bem,
não bem isso, não gostar menina.

GENOVEVA - A culpa não é dele, meu pobre Rame: não sou sua filha.

RAME (enternecido) - Menina não ser filha de Rame,

e Rame gostar muito dela, enquanto tiver coração, Rame morrer por patroinha.

? GENOVEVA - Querido Rame, como eu também ? gosto de ti !

Rame reconduziu Genoveva a Pelágia e foram os três à pesca dos camarões, depois de
haverem empacotado tudo o que era preciso para os agarrar. Deixaram-se ficar

ali uma parte da tarde, e Rame voltou com um grande cesto cheio de camarões.

Entrada de Jorge no colégio . ?

Na véspera da saída de Jorge para o colégio, acabavam o Sr. Dormere e as crianças de almoçar,
e passeavam havia uma hora diante do solar, quando viram chegar Primerose.

PRIMEROSE - Bom dia, meu primo; bom dia, meus meninos ; venho dizer adeus ao futuro
colegial. . . Ah ! Como estão hoje tristes! Ninguém fala. É assim mesmo. Deve-se sempre chorar
um pouco na ocasião da partida. Não gosto de quem está sempre a rir. Quem acompanha o
Jorge? É o primo?

SR. DORMERE - Pois decerto: só me separarei do meu filho, o mais tarde possível.

PRIMEROSE - Ainda bem. O primo estava tão alegre da outra vez, que eu vinha oferecer-me
para lhe evitar o aborrecimento da viagem, acompanhando eu o Jorge.

SR. DORMERE - Obrigado, minha prima, mas a ninguém cedo esta triste satisfação.

PRIMEROSE - E tu, Genoveva, também queres ir?

GENOVEVA - Se o tio der licença, prima, terei grande prazer em conhecer a casa onde Jorge vai
ficar.
PRIMEROSE - O primo deixa ir a Genoveva?

SR. DORMERE - Não desejo outra coisa; são apenas duas horas de comboio; não será, pois,
maçadora a viagem. Estaremos de volta à noitinha, para o jantar.

PRIMEROSE - Ai ! Céus ! Que é que eu vejo? Um

preto retinto ! Um preto, Deus me perdoe ! E vem para aqui! Cuidado, ele aproxima-se.

? De facto, Rame aproximava-se. Descobriu-se e, com grande pasmo de Primerose, pegou na


mão de Veva.

RAME - Mim vir saber se patroinha precisar de Rame.

GENOVEVA - Agora não, meu bom Rame; vai ter com Pelágia; depois chamar- te-ei.

PRIMEROSE - Que é aquilo, meu Deus? Onde foi que o primo pescou este preto? E como se
atreve ele a pegar na mão de Veva?

SR. DORMERE - É um antigo e fiel servidor de meu irmão e de minha cunhada ; está aqui há
três dias ; parece muito afeiçoado a minha sobrinha, de quem cuidou e a quem trouxe ao colo,
quando pequenina. Dei- lhe licença de ficar junto dela, para o seu serviço particular.

PRIMEROSE - Bom! Bela novidade! Um oficial às ordens! Como se chama?

JORGE - Chama-se Rámoramor.

PRIMEROSE - Ra. . . Rato Morto ! Esquisito nome ! Muito queria eu ouvi- lo falar. Os pretos são
tão engraçados a falar!

GENOVEVA - A prima quer vê-lo? Foi ter com a minha ama. Não imagina como é bondoso !
Gosta tanto de nim! O papá e a mamã queriam-lhe deveras ; andava sempre comigo.

PRIMEROSE - Ó Vevinha, decerto que gostarei de travar conhecimento com ele.

GENOVEVA - Subamos então ao quarto da Rame e vê-lo-á à sua vontade.

Encantada, Primerose acompanhou Veva ao quarto de Pelágia. .?.

PRIMEROSE - Bom dia, minha boa Pelágia; vim vê-la e dar os bons- dias a este senhor. Viva, Sr.
Ram.

RAME - Bom dia, mia siora. Eu não ser siô Rame, pobre negro, não siô.

PRIMEROSE - Ah ! Como ele é atilado ! Então gosta muito da sua patroa?

RAME - Oh, sim ! Mim gostar, mim servir patroinha, sempre, sempre!

PRIMEROSE - E de quem gosta mais, excelente servidor ?

RAME - Mim estimar quem estima patroinha; ram não gostar, mim odiar quem maltrata
patroinha.
PRIMEROSE - Céus ! Que olhar o dele ! É medonho! E diga, caro Sr. Rame, gosta do Jorge?

RAME (friamente) - Mim não conhecer.

PRIMEROSE - O quê, não o conhece? O primo da Veva?

RAME (da mesma forma) - Mim não conhecer.

PRIMEROSE - E o Sr. Dormere? Conhece-o? Gosta dele?

RAME - Mim não conhecer.

PRIMEROSE - Ah ! Já vejo o que é. Você percebe que nem o Jorge nem o Sr. Dormere gostam
da Vevinha.

RAME (encolerizado) - Mim dizer: não conhecer eles.

PRIMEROSE - Mete-me medo com aqueles olhos reluzentes! Não conhecer, não
conhecer. Bem ?percebo o que isso significa: não conhecer. Vejamos, meu excelente amigo,
não se irrite: eu gosto muito da patroinha; por isso, é preciso gostar também de mim, meu
bom Rame, e não mostrar esses olhos medonhos à Primerose.

RAME (sorrindo) - Rosa?

PRIMEROSE - Rosa, não: Primerose. E gosto muito da minha priminha Genoveva, não esqueça.

Rame lançou a Pelágia e a Genoveva um olhar interrogador. Primerose começou a fazer-lhe


grande número de perguntas, que fizeram enfastiar Veva, a qual se pôs a bocejar. Rame
acercou-se logo dela e pegou-lhe na mão dizendo :

- Patroinha estar aborrecida: Rame não falar mais. PRIMEROSE (a meia voz) - Olha! Que pouco
educado que é este fiel servidor! Os pretos são uns malcriados ! - (Em voz alta): Vou-me
embora. Queres vir, Genoveva?

GENOVEVA - Não, minha prima; fico com o Rame, que me vai fazer, com o canivete, uma
mobiliazinha para a minha boneca.

Primerose desceu sozinha, indo ter com o Sr. Dormere e com Jorge, que estava a embrulhar
uns objectos que o pailhe dera para o colégio.

PRIMEROSE - Estão a fazer os últimos preparativos para a viagem, não é assim? Pois não quero
incomodar-vos; vou-me retirar. Até à vista, meu primo; adeus, Jorge. Estive a falar com Ramor.
. . Não há maneira de me habituar a semelhante nome. É uma pessoa bem estranha: tem uns
olhos tão reluzentes, que me assusta. Voltei para conversar um bocado com ele, pois
aborreço-me na casa de Saint-Aimar. A Cornélia nem sempre está bem disposta, e o Sr. Saint-
Aimar encontra-se sempre ausente. Hei-de vir frequentemente a sua casa, e, uma vez por
outra, levarei comigo a Veva; o primo autoriza, não é verdade? Adeus, vou-me embora. Boa
viagem. Quando for visitar o Jorge, há-de prevenir- me, sim? Quero acompanhá-lo. Adeus,
Jorge. Diverte-te bem e sê bom rapaz. Olha, não maltrates os condiscípulos, como fazes à
Veva. Com uma menina ainda vá, pois ela não tem defesa ; mas com rapazes. . . fia mais fino !
São uns autênticos demónios; não o esqueças. Malhavam em ti como em centeio verde. Sabes
o significado desta expressão?..

SR. DORMERE (impaciente) - Adeus, adeus, minha prima; estamos muito ocupados.

No dia seguinte, preparavam-se o pai e o filho para ir para a estação. Genoveva já punha o
chapéu para os acompanhar.

JORGE - Papá, sinto que a Genoveva vá connosco; vai com certeza estorvá-lo nas voltas que o
papá tem a dar em Paris.

SR. DORMERE - Era mesmo nisso que eu estava a pensar; mas ela pediu para nos acompanhar,
e eu supunha que isso te daria prazer.

JORGE - A mim! Não me causa prazer nenhum, papá; pelo contrário, aborrece-me. E ainda por
cima o preto é capaz de a querer seguir. Ainda por aí vai haver alguma cena, pela certa.

SR. DORMERE - Não desejo contrariar-te, meu rapaz. Vou dar-lhe uma desculpa, dizendo que
tenho voltas

a dar em Paris. Anda, vai chamá-la; dir-lhe-ei isto mesmo por bons modos.

O Jorge lá foi, a correr.

- Genoveva, ó Genoveva - gritou-lhe -, não precisas de pôr o teu chapéu novo, o papá não te
leva.

GENOVEVA (admirada) - Então, porquê?

JORGE - Porque lhe servirias de estorvo; como tem que fazer em Paris, prefere ir sozinho
comigo.

GENOVEVA (tristemente) - Mas o tio disse ontem. . .

JORGE - Ontem, talvez; hoje, não; mudou de ideias. Venho dizer-te adeus, pois estamos de
partida.

Genoveva abraçou Jorge repetidas vezes.

- Adeus, Jorge, adeus. Sinto deixar-te tão inesperadamente. Olha, Jorge, toma lá este estojo
como lembrança da mínha parte; deve-te ser útil. Tencionava dar-to à despedida, no colégio.

E dizendo isto, tirou da algibeira uma bonita carteira de couro da Rússia, que lhe meteu na
mão. Comovido com esta atenção, Jorge abraçou afectuosamente a prima e saiu algo
arrependido desta derradeira maldade que para com ela cometera.

SR. DORMERE - Então a Veva não vem dizer-nos adeus?

? JORGE - Não, papá; despediu-se de mim lá em cima, e presenteou-me com uma linda
carteira.
Subiram para o carro. Jorge quis ver o conteúdo da carteira. Abrindo-a, viu, pasmado e
prazenteiro, que encerrava uma navalhinha, uma tesoura, uma caneta, uma lapiseira, uma
limazinha, uma pinça, diversos com partimentos para papéis, um para estampilhas, outro com
uma almofada de alfinetes, finalmente, um espelhinho e um pente de tartaruga.

JORGE - Olhe que lindo, papá! A Veva é boa rapariga, não há dúvida. Tudo isto me vai ser de
grande utilidade no colégio.

SR. DORMERE - É na verdade muito lindo e muito útil. Veva foi amável; sinto não a ter trazido.
A pobre menina vai, talvez, supor que foi um capricho da minha parte.

JORCE - Isso não, papá; eu disse-lhe que os seus negócios o impediam de a levar, e ela
compreendeu que o estorvaria.

SR. DORMERE - Pobre criança! Felizmente que tem o Rame e a Pelágia que tanto lhe querem, e
que a consolarão.

Três horas depois, chegavam, o pai e o filho, à Rua de Vaugirard onde ficava o colégio dos
Padres Jesuítas. A princípio, o Jorge sentiu-se un pouco amedrontado; porém, o acolhimento
que lhe fizeram os bons padres, logo o sossegou e foi ele que pediu para travar conhecimento
com os futuros condiscípulos.

SR. DORMERE - Já vejo, reverendo, que me posso ir embora sem penalizar meu filho. Adeus,
Jorge; adeus, meu rapaz. Virei visitar-te no próximo domingo.

O Sr. Dormere beijou o filho repetidas vezes.

JORGE (friamente) - Até à vista, papá; fique des cansado, que eu estou satisfeito.

E voltou-se para o padre, para se retirar.

O PADRE - Não acompanha o papá até à porta, Jorge?

JORGE - É que eu muito queria ir ter com os meus condiscípulos.

?SR. DORMERE - Pois vai, meu rapaz, vai. Não se dê ao incómodo de me acompanhar,
reverendo; eu darei bem com a porta. Adeus, Jorge.

E retirou-se. O reverendo franziu um pouco o sobrolho, mas não disse nada ao novo aluno, que
foi apresentado ao Padre de Lanoix.

Ao voltar para a carruagem, o Sr. Dormere sentiu assomarem-lhe aos olhos as lágrimas,
grandemente impressionado com a frieza do adeus do filho.

Será ele ingrato? - perguntava a si mesmo. - E eu que sou tão amigo dele, e que tenho sido tão
indulgente em tantas ocasiões! Com que desprendimento ele me deixou !. . . A Genoveva teria
sido muito mais afectuosa.

Primeira vinda de Jorge a casa


O primeiro mês da ausência de Jorge passou-se menos mal. O pai ia vê-lo uma vez por semana
ao domingo, ? de todas as vezes chegava de mau humor e sempre dis posto a achar mal tudo o
que Veva dizia ou fazia. Tentava dissimular a sua pouca amizade por ela, mas nem Ramoramor
nem Pelágia se iludiam, e falavam frequentemente a esse respeito entre si.

Decorreu assim um mês, sem que Genoveva obtivesse licença do tio para o acompanhar,
quando ia ver o filho a Vaugirard.

Um dia em que ela lhe pedia licença para o ir ver no dia seguinte - uma quarta-feira - recebeu
esta resposta do Sr. Dormere :

- É inútil ires lá, pois que Jorge deve sair amanhã quando forem seis horas. Vou ficar a Paris,
estarei no colégio amanhã àquela hora, almoçaremos no Café do Caminho-de-Ferro, tomando
o comboio das sete, que chega aqui pelas nove horas. Virá também teu primo Tiago, que não
tem ninguém que o leve a passar as férias.

GENOVEVA - Oh ! tio, como estou contente por tornar a ver o Jorge e o Tiago! Dá-me licença
que convide para o almoço o Luís e a Helena?

SR.DORMERE - MeS deCerto,querida; isso dará ao

Jorge um grande prazer.

Veva deitou a correr para o quarto de Pelágia para

lhe anunciar esta boa nova.

GENOVEVA - Vamos depressa,boa Pelágia,convidar o Luís e a Helena para passar connosco o


dia de amanhã.

AMA - Eu vou,minha boa menina.Vou já prevenir

o Rame para nos acompanhar. Temos de nos aviar, que

quando chegarmos lá é tarde.

Dez minutos depois,lá iam os três para o palacete dos Saint-Aimar.

Não tardaram a chegar. Helena e Luís estavam a brincar na relva.

- Caros amigos,venham amanhã a Plaisance! -

gritou-lhes Veva,logo que os avistou.

LUÍS e HELENA (correndo para Veva) - E porquê

amanhã? Que há lá de novo?

GENOvEVa - É o Jorge que vem do colégío e traz o

Tiago consigo.Chegam às nove horas com o tio,que vai


ficar esta noite a París.

LUÍS - Vou pedir licença à mamã; espera por mim.

Ouvindo falar,Primerose apareceu à janela,e desceu

? rapidamente.

- Que foi ? Porque estão assim agitados ?

GENOVEVA - Amanhã é o dia de saída de Jorge do colégio,minha prima.

HELENA - E do Tiago também.

PRIMEROSE - Que tem isso para gritarem como loucos E é caso para correrem como se
houvesse fogo em casa?

ELENA - A Veva veio convidar-nos para o almoço e para o jantar.

PRIMEROSE - Pois bem, acompanhá-los-ei lá. Pareces aterrada, Veva! O tio proibiu-te de me
convidar?

GENOVEVA (embaraçada) - Não, prima, não me disse nada ; eu é que receio. . . talvez que. . .
tenho medo de que me ralhe; não gosta que eu faça convites sem licença dele.

PRIMEROSE - Muito bem; já compreendo. Não quer nada comigo. Receia que eu veja coisas
que ele ? quer ocultar. É tudo por causa do seu malvado filho, mas eu hei-de saber tudo, deixa
estar. . . Ah ! Como ele me julga estúpida e cega! Pois engana-se; vejo mais do que supõe.
Olha, pobre amiguinha, tu não podes viver com semelhante homem, que te faz tão infeliz!
Vou-lhe falar.

GENOVEVA (aterrada) - Pelo amor de Deus, minha boa prima, não lhe fale em nada, pois ficaria
furioso comigo; ia supor que me queixara dele. Garanto-lhe que é agora muito bom para mim,
que eu sou felicíssima. Além de que, ainda tenho a Pelágia e o Rame, que me compensam bem
de tudo.

PRIMEROSE - Compensam-te? Então precisas de

ser compensada. És, portanto, infeliz? Mas eu não quero isso.

Genoveva estava desolada. Primerose, muito irritada

e persistindo em querer falar a sério - dizia - ao Sr. Dormere. O que não custou à Pelágia obter
dela a promessa de um silêncio absoluto a respeito de Genoveva!

Genoveva não prolongou a visita, com receio de fazer

esperar o tio para o jantar: regressou com a Pelágia e o Rame, depois de recomendar aos seus
amiguinhos que fossem cedinho.
No dia seguinte, levantou-se de manhãzinha para colher flores e dispô- las em jarras,
no quarto de Jorge. Às nove horas em ponto, ouviu a carruagem que trazia o tio e os dois
colegiais.

Desceu a escada e beijou afectuosamente o Jorge e o Tiago.

GENOVEVA - Como estás fero, Jorge, e como o Tiago está crescido! Há que séculos te não via,
Tiago !

TIAGO - Sim, há uns três meses: desde a tua partida para o campo.

VEVA - Ó Jorge, anda ao quarto ver os lindos ramos que pus nas tuas jarras.

E lá foram os três.

TIAGO - Que lindos que são ! Bonitas rosas ! Que aroma delicioso !

JORGE - Bem podias poupar-te ao incómodo de as colher e arranjar, pois bem sabes que eu
não ligo importância nenhuma a flores.

VEVA - Mas são tão bonitas ! Pensei que te causariam prazer.

JORGE - O papá não gosta que lhe apanhem as flores, para não estragar o jardim.

VEVA - Há lá tantas! De resto, eu pedi ontem ao tio licença, e ele respondeu que apanhasse as
que quisesse, visto serem para ti.

TIAGO - Como eu ficava contente se tivesse no quarto flores tão lindas!

JORGE - Oh! Tu és bom de contentar.

TIAGO - É por isso que estou sempre alegre e satisfeito.

VEVA - E tu, Jorge, estás contente com o colégio?

JORGE - Muito satisfeito ; os padres são bons ; só fazem trabalhar de mais.

TIAGO - Falas assim, porque ainda não adquiriste o hábito do trabalho. Uma vez habituado, já
assim não pensarás.

JORGE - O Rodolfo não é do mesmo parecer.

TIAGO - Se te parece! Um cábula incorrigível; um preguiçoso que não quer trabalhar!


Aconselho-te a não lhe dares ouvidos: se fizeres como ele, estarás sempre de castigo.

JORGE - És um maçador; sempre a pregar sermões.

TIAGO - Não prego: aconselho.

JORGE - Dispenso conselhos; sei bem o que hei-de fazer.


TIAGO - Faze como entenderes; vejo, porém, que dás ouvidos ao Rodolfo. Ora, sendo tu meu
primo, lamentaria ver-te como ele. Olha cá, Genoveva, eu não podia ver esse bom Rame que
tanto gosta de ti?

GENOVEVA - Como sabes isso?

TIAGO - Foi o Jorge que mo disse; acrescentou ainda que o Rame nunca te deixava sozinha,
que fazia tudo o que te apetecia e, até, que certo dia deixou comer os pés pelos camarões, só
para te ser agradável.

GENOVEVA (indignada) - Para me ser agradável! E acreditaste nisso ! Pobre Rame ! Hei-de
contar-te a história. Ele é, de facto, excelente, o meu pobre Rame, mas não quero que sofra
por minha causa. Bem má seria eu, se tivesse feito o que te contou o Jorge. Anda vê-lo; está no
quarto da minha ama. Queres vir também, Jorge?

JORGE (desdenhoso) - Não, obrigado; espero por vós no pomar.

Genoveva conduziu o Tiago ao quarto da ama onde, na verdade, estava o Rame.

- Bom dia, Pelágia; bom dia, Rame - disse ele, ao entrar.

GENOVEVA - Meu caro Rame, aqui tens o Tiago; é preciso que gostes muito dele, porque é
muito bondoso.

RAME - Se siô Tiago gostar patroinha, mim gostar siô Tiago.

GENOVEVA - Ah ! isso gosta, Rame; gostas muito de mim, não é verdade?

- Decerto - respondeu o rapaz, beijando-a e rindo.Quem não gostaria de ti?

RAME (a rir) - Isso, bom! Siô Tiago, boa figura, boa pessoa. Rame gostar dele, pela certa. E siô
Jorge? Não vir a a casa?

TIAGO - Veio comigo; cuido que está no pomar. Queres vir, Vevinha?

GENOVEVA - Decerto; contigo vou para toda a parte. Não precisas de vir, meu pobre Rame.

TIAGO - Porque não ? Deixa-o vir ; gosto de o ver. GENOVEVA - Não, Tiago; o Jorge não gosta
dele e ficaria descontente.

TIAGO (admirado) - O Jorge não gosta dele! E porquê? Se parece tão bom e gosta tanto de ti!

O Rame sorria, mostrando os dentes alvos e esfregando as mãos.

RAME - Siozinho bom ! Ele compreender; ter bom coração. Não como siô Jorge, que não gostar
Rame. Rame gostar muito patroinha ; e ele ciumento ; ele não gostar patroinha; fazer ralhar
patroinha, fazer chorar patroinha: Rame não gostar dele.

Enquanto esperavam pelo Luís e pela Helena, que nunca mais chegavam,
desceram ao pomar, onde se encontraram com o Jorge, que tinha a boca cheia com u
volumoso damasco, cujo sumo lhe escorria pelas faces e pelo queixo: era o quarto que comia,
e não escolhera os mais pequenos. Não houve disputa nem discussão. O Sr. Dormere veio ter
com eles, dando todos um lindo passeio pela mata.

Era chegada a hora do almoço. Vendo que, decidi damente, os seus amigos de Saint-Aimar não
vinham, foram para a sala de jantar e puseram-se à mesa. O almoço era bom e abundante; os
meninos atiraram-se a ele como esfaimados, excepto o Jorge, que já estava enfartado com os
quatro damascos. O Sr. Dormere parecia felicíssimo com a presença do filho, mostrando-se
muito agradável para com Tiago e muito mais afectuoso para Genoveva.

De tarde, enquanto Rame arranjava um arco e setas o Sr. Dormere levou Jorge até ao pomar.

SR. DORMERE - Vou dar-te dois lindos damascos que guardei para ti, meu amigo, e hás-de
levar outros dois para te regalares no caminho.

JORGE - Mas talvez o Tiago os veja, e terei de lhe dar um.

SR. DORMERE - Não, não terás, pois reservo dois mais pequenos para ele; os teus são
extraordinariamente bons e grandes.

Ao chegarem à espaldeira, o Sr. Dormere já não encontrou os lindos frutos.

- Então - disse com surpresa -, que foi feito deles? Só há dois pequenos. Ó Júlio, Júlio, venha
aqui. Que é feito dos quatro bonitos damascos, que eu reservava para meu filho?

JARDINEIRO - Não sei, meu senhor; ainda esta manhã aqui estavam.

SR. DORMERE - Então você deixa-me apanhar a fruta ?

JARDINEIRO - Nunca, patrão; ninguém entra no pomar.

SR. DORMERE - Como foi então que desapareceram os magníficos damascos? Veio alguém ao
pomar?

JARDINEIRO - Ninguém, patrão, a não ser os meninos. O Sr. Tiago ficou comigo a ver semear as
ervilhas. a menina Genoveva foi ter com o Sr. Jorge, que examinava as espaldeiras.

SR. DORMERE - Serias tu, Jorge? Se foste, confessa-mo, pois bem sabes que tens licença para
pegar em tudo o que te agradar.

JORGE (hesitante) - Não papá, não fui eu.

SR. DORMERE - Então foi a Veva.

JARDINEIRO (com vivacidade) - A menina Genoveva nunca toca em nada, senhor. Posso
garantir que não foi ela.

SR. DORMERE (de um modo seco) - Não lhe pedi o seu parecer; guarde para si as suas
reflexões. O certo é que os damascos já lá não estão.

JARDINEIRO - Mas estão aqui os caroços, patrão, ainda frescos, ao lado da espaldeira.

SR. DORMERE - É verdade. Apanhe nas outras árvores seis damascos madurinhos.
O jardineiro trouxe seis muito bons, porém, inferiores

aos que Jorge comera. O pai deu-lhe dois, guardando os demais para os partilhar com Tiago.

- Foi, por certo, Veva que comeu os que eu reservava

para o meu pobre Jorge - disse ele, de mau humor.Demónio de rapariga !

Voltando para o solar, Jorge viu Tiago e Genoveva a atirarem setas.

JORGE - Olha! O Rame arranjou-lhes arcos e setas e para mim não arranjou nada.

SR. DORMERE - Deixa, que já tos arranjo, meu filho.

JORGE - O Rame não mos há-de querer fazer, papá.

SR. DORMERE - Que remédio terá ele senão fazer-tos, se eu lho ordenar. Mas, para não teres
de esperar, vais ter o arco de Veva.

E aproximou-se da sobrinha.

SR. DORMERE - Dê o arco e as setas ao Jorge, menina. Esse jogo de rapazes não lhe fica bem.

TIAGO - Estávamos a jogar ao país das amazonas, meu tio; a Veva é uma amazona e recebe
uma lição de arco.

GENOVEVA - Não faz mal, Tiago; dou o meu arco ao Jorge, visto que o tio assim o quer. Olha,
Jorge, é excelente: as setas passam por cima do pinheiro grande.

Jorge pegou no arco e nas setas, com certo embaraço. Tiago fitou-o, pasmado.

- Tio - disse ele, voltando-se para o Sr. Dormere -, dá licença que continuemos o jogo de
amazonas? Veva atirará com o meu arco.

- Faze como entenderes, meu rapaz - respondeu o Sr. Dormere, bastante envergonhado da sua
injustiça.

- Obrigada, tio - disse Veva, com o seu habitual bom humor. - Obrigada, Tiago, tu és bom
rapaz; vamos atirar à vez.

Depois de brincarem ainda um bocado, o Sr. Dormere preveniu o Jorge e Tiago de que eram
horas de partir.

- São quase cinco horas - disse -, só temos o tempo de chegar à estação; às sete estaremos em
Paris. Jantaremos no restaurante; acompanhar-vos-ei ao colégio às oito e meia e estarei aqui
de volta antes das onze horas.

Tiago e Jorge despediram-se de Veva; o primeiro apertou a mão à Pelágia e ao Rame e já


estava para subir para a carruagem, quando o tio lhe meteu na mão dois damascos, dizendo:

- Comê-los-ás no caminho, meu amigo.


TIAGO - E o Jorge e a Veva?

SR. DORMERE - O Jorge recebeu dois como tu; quanto à Veva, ela comeu os quatro lindos
damascos que eu reservava para o Jorge, e portanto já teve a sua parte : bem largo quinhão!

GENOVEVA - Não comi nem um só, meu tio, pode ficar certo. Eu bem sabia que o tio os
reservava para o Jorge, e longe de mim a ideia de lhes mexer. Demais, o tio bem sabe que eu
nunca tocaria num fruto do pomar sem sua licença.

SR. DORMERE - O que sei é que tu comeste aqueles de que falo. Disse- me o jardineiro que
andaste a passear com o Jorge em torno das espaldeiras; e encontrámos no chão os caroços
dos damascos.

TIAGO (com vivacidade) - Mas, tio, eram os caroços dos damascos que Jorge comeu antes da
nossa entrada; ainda lhe vimos a boca cheia e o sumo dos damascos a escorrer-lhe pelo
queixo, à chegada.

SR. DORMERE - O quê, Jorge? E disseste-me que

não os tinhas comido !

JORGE - Pois, não, papá, não comi nenhum; ele diz

aquilo para desculpar Veva.

TIAGO (irritado) - Homessa! Queres então acusar-me de mentir, quando o mentiroso


és tu? Pois vou provar ao tio que mentes e deixas covardemente acusar Veva. Tira do bolso o
lenço com que limpaste a boca: aposto que o tio vai encontrar nele os vestígios do teu
damasco E, se comeste um, podias bem ter comido os quatro.

Jorge pôs-se vermelho; teve medo e quis subir para a carruagem, sem responder a Tiago; este,
porém, puxou-lhe vigorosamente pelo braço.

TIAGO (com firmeza) - Não, não te rasparás dessa maneira, já te disse; mostra cá o lenço.

SR. DORMERE - Dá-o, Jorge, pois será o meio de te justificares, se estás inocente.

TIAGO - E de te desmascarares se estiveres culpado.

Dizendo isto, Tiago meteu a mão no bolso de Jorge que tremia, tirou de lá o lenço,
desembrulhou-o, podendo todos ver nele as nódoas alaranjadas e bem nítidas dos damascos
da manhã.

TIAGO - Então, meu tio, quem é o mentiroso? E quem fala verdade?

SR. DORMERE - Falas tu, meu rapaz, não há dúvida.

TIAGO - E também a Genoveva, de quem o tio desconfiava.

SR. DORMERE (triste) - Tens razão e eu estava enganado. Não podia capacitar-me de que Jorge
mentisse tão descaradamente.
O Sr. Dormere beijou Veva como para lhe pedir desculpa da sua injustiça, e subiu para a
carruagem; Tiago beijou-a também, triunfante, dizendo-lhe em voz baixa:

- Como estou contente por ter podido justificar-te!

Veva deu-lhe um grande abraço,exclamando:

? - Como te agradeço,meu bom,meu querido Tiago !

Rame,que estava perto de Veva,pegou na mão de

Tiago e beijou-a repetidas vezes.Jorge já estava no carro;

Tiago subiu também,e a carruagem largou.

PRIMERose muda de casa

No dia imediato à partida de Jorge e de Tiago, Veva

que não deixava de pensar na ausência dos seus amiguinhos de Saint-Aimar, perguntou à ama
por que motivo não tinham eles vindo ao almoço.

AMA - Não posso saber. Talvez a mãe não os autorizasse a vir sozinhos.

VEVA - Não estarão doentes? Se fôssemos até lá esta tarde, Pelágia?

AMA - Da melhor vontade; sairemos aí pelas duas horas.

Genoveva lançou-se ao trabalho; a ama, que era bastante instruída, ensinava-lhe leitura,
escrita, cálculo e costura. Pouco antes do almoço, Veva foi ao quarto do tio. Este mostrou-se
frio, e não lhe falou no Jorge nem no Tiago.

O almoço decorreu silencioso. No final, mal tinham dado uns passos na frente do solar, viram
chegar Primerose. O Sr. Dormere adiantou-se ao encontro dela.

PRIMEROSE - Bom dia, meu primo; creio ter sido

muito discreta ontem.

SR. DORMERE - Porque foi que não vieram, prima?

Eu ficaria encantado com a vossa presença.

PRIMEROSE - Como o podia eu adivinhar, se o primo

o?não mandou dizer? Com um homem como o senhor, é preciso ser-se muito cauteloso. ?

SR. DORMERE (sorrindo) - Um homem como eu.

Que juízo faz de mim, para se crer obrigada a tanta dÌscrição!


PRIMEROSE - O primo é o homem mais autoritário que tenho encontrado. Para tudo é preciso
pedir-lhe licença.

SR. DORMERE - Quem foi que a pôs assim de prevenção contra mim? Seria. .

PRIMEROSE - Bem, lá ?vai o primo acusar agora toda a gente. Não que eu não tenho boa vista
e excelente ouvido. . .

SR. DORMERE - Bons até de mais, prima, visto que vê e ouve o que não existe. Porque não
vieram o Luís e a Helena, ontem, passar o dia com Jorge?

PRIMEROSE - Por eu ter aconselhado a mãe a não os deixar vir.

SR. DORMERE - E o motivo?

PRIMEROSE - Ora, porquê! Vinham talvez maçá-lo.

SR. DORMERE - Maçar-me, a mim? Mas a visita era para Jorge, e não para mim.

PRIMEROSE - É o mesmo; eu sei bem o que estou a dizer.

SR. DORMERE (voltando-se para a sobrinha) Veva, não convidaste os teus amigos a virem
almoçar com Jorge?

VEVA - Convidei, sim, meu tio; e ambos me disseram que vinham.

PRIMEROSE (em reverência trocista) - Eu, porém, senhor, é que não fui convidada e. .

SR. DORMERE -. . . e ficou melindrada? Fez muito mal; bem sabe que não precisa de convite,
pois vem quando lhe apetece, e nunca é mal recebida. Há tantos anos que a conheço e nunca
fiz cerimónia com a prima. Se queria acompanhar as crianças, porque não o disse à Veva?

PRIMEROSE - Eu bem lho disse; ela é que não se

atreveu a convidar-me sem licença do paxá de Plaisance.

SR. DORMERE - Foi tolice de Veva, que, como sempre, quis armar em vítima.

PRIMEROSE - Não é nada disso. O senhor é que quer arranjar pretexto, como sempre, para a
tiranizar.

SR. DORMERE - Tiranizar! Eu, tirano? Mas que

bicho lhe mordeu hoje, minha prima?

PRIMEROSE - Nenhum bicho me mordeu, senhor; foi o espírito de justiça, que em mim é,
felizmente, superior

ao seu.

SR. DORMERE - Deixe-me perguntar outra vez, prima, que bicho lhe mordeu? Foi para me
atirar à cara
qom todas essas bonitas coisas que veio hoje ver-me?

PRIMEROSE - De forma alguma; saíram-me contra a vontade; venho fazer-lhe uma visita de
amizade.

SR. DORMERE (irónico) - Não está má a amizade, a julgar pela amostra.

PRIMEROSE - Pois sou mais sua amiga do que cuida, meu caro. Ora, vamos conversar como
velhos

amigos. Quer ceder-me por hoje Veva, Pelágia e Rame?

SR. DORMERE - Com muito gosto; com a partida do meu pobre Jorge, fui-me habituando a
viver sozinho.

PRIMEROSE - Sozinho ! Homessa ! Se está só é porque assim o quer. E, visto a culpa ser
sua, não o ? lamento. O primo tem a Veva, que é encantadora, e o Rame, que é divertidíssimo.
Tem-me ainda a mim, que muito me agradava andar sempre por cá, se o primo quisesse. Já me
estou a aborrecer em casa da Cornélia; não obstante a nossa amizade, ela acabrunha-me
horrivelmente com o seu todo frio, os seus ares de rainha e o seu carácter imperioso. Veja,
para lhe ser franca, eu vinha pedir ao primo se me deixava passar uns quinze dias no seu
paxalique.

SR. DORMERE - Quantos lhe aprouver, se a não enfada a solidão.

PRIMEROSE - Enfadar-me ! Não há perigo ; nunca me enfado quando posso falar à vontade.
Mande preparar-me aposentos. Levo comigo Veva, mas estaremos de volta dentro de duas
horas, com a minha bagagem e a criada de quarto. Anda daí Genoveva, nada de sustos; já vês
que o tio dá licença.

E partiu quase de corrida, arrastando consigo Genoveva, que mal a podia acompanhar.

Ficando só, o Sr. Dormere perguntava a si mesmo se se sentiria com forças para sofrer a
tagarelice enfadonha de Primerose.

O rápido regresso de Primerose surpreendeu a Sr.a Saint-Aimar. Primerose costumava


prolongar as suas visitas até ao jantar sempre que ia a Plaisance.

SR.a SAINT-AIMAR - O quê? Já de volta, Cunegundes? Não te esperava tão depressa.

PRIMEROSE - Não me demorarei muito; o Sr. Dormere está à minha espera.

SR.a SAINT-AIMAR - Então não vens de casa dele? PRIMEROSE - Lá isso venho;
basta ver a sua sobrinha, que me acompanha. É que venho buscar a minha bagagem e a criada
de quarto.

SR.a SAINT-AIMAR (pasmada) - Porquê? Para onde é que queres ir ?

PRIMEROSE - Passar uns quinze dias em casa do primo Dormere, que está só e muito
aborrecido.
SR.a SAINT-AIMAR - Porque não mo disseste?

PRIMEROSE - Porque não sabia de nada; foi depois de o ver triste e cabisbaixo que me veio a
ideia de ir alegrá-lo com a minha companhia. Foi o que foi. Deixo Veva com as crianças, e subo
a preparar a mala e a prevenir a criada para a partida.

Algo surpresa, a Sr.a Saint-Aimar conduziu Veva ao quarto dos filhos. Primerose sacudia a
criada para que se aviasse.

Tendo as malas preparadas e descendo para se despedir da sua amiga, Primerose lembrou-se
de que se esquecera de pedir a carruagem.

PRIMEROSE - Ó Cornélia, então não mandas atrelar ?

SR.a SAINT-AIMAR - Pois não, se não me disseste nada !. . Cuidava que ias na carruagem do
primo Dor mere.

PRIMEROSE - Ora essa! Então não me viste chegar a pé! Manda atrelar depressa. Bem podias
ter-me perguntado se precisava do carro; claro está que não vou carregar com as malas às
costas. És sempre assim: não pensas em nada.

SR.a SAINT-AIMAR - E tu mobilizas tudo, como se estivesses em tua casa.

PRINeROSE - Sendo assim, folgo muito em me retirar.

SR.a SAINT-AIMAR - Vai ser um descanso para mim: não fazes senão enredar tudo.

PRIMEROSE - Muito obrigada pelo elogio, mas não era pressa. Vai tudo comigo para me
instalar na casa do primo Dormere, que não tem comparação contigo.

SR a SAINT-AIMAR - Muitos parabéns ! Pobre Sr. Dormere !

PRIMEROSE - És de um requinte de amabilidade!

SR.a SAINT-AIMAR - Sou franca, e acabou-se. Adeus, Cunegundes.

PRIMEROSE - Adeus, Cornélia, até mais ver.

SR.a SAINT-AIMAR - Até quando quiseres.

Aprontaram-se e fizeram descer as malas, mandando aproximar a carruagem. A bagagem foi


amarrada para não cair.

Esquecida de Veva, Primerose subiu para o carro abarrotado de embrulhos; A ama trepou para
a boleia, e instalou-se ao lado do cocheiro, com uma caixa aos pés, um fardo nos joelhos, uma
almofada debaixo do braço, e lá foram a caminho de Plaisance.

Foi o Sr. Dormere quem recebeu Primerose, à chegada.

- Onde está Veva? - perguntou ele.

- Veva? - exclamou Primerose. - Esqueci-me dela: ficou a brincar com as crianças.


Admirado e algum tanto descontente, o Sr. Dormere chamou a Pelágia e o Rame, e, dirigindo-
se ao cocheiro, que estava a ajudar a descarregar as malas disse:

- Peço-lhe que espere um momento; há-de levar no carro Pelágia e o Rame, que virão a pé
com a menina Genoveva.

E meteu-lhe na mão uma moeda de cinco francos. O cocheiro tirou o chapéu e


lembrou que era melhor trazer a menina no carro.

- Obrigado, Félix, mas não é preciso; voltar a pé pelos atalhos é pertinho.

Dando o braço à prima, o Sr. Dormere conduziu-a aos seus aposentos, que tinham vistas para o
rio e para o parque. Constavam de uma sala, de um quarto de cama e de vestir e um quarto
para a criada, com guarda-vestidos, armários para roupa branca, e tudo o que era preciso para
arrumar fosse o que fosse.

Instalação de Primerose

Enquanto Primerose arrumava as suas coisas, chegava Genoveva com Pelágia e o Rame, este
ainda irritado pelo esquecimento de Primerose.

- Mim nunca deixar patroinha ir só com prima murmurava ele baixinho. - Ela falar, falar e não
pensar em nada mais. Esquecer patroinha!

Ao notar que Veva estava de regresso, Primerose correu a recebê-la; mas o Rame colocou-se
na frente de Primerose e quis impedi-la de ir ter com a pequena.

- Deixe-me passar, Rame - objectou Primerose.

RAME - Não, senhora não passar.

PRIMEROSE - Que é que tem?

RAME - Senhora esquecer patroinha.

- Estúpido ! - exclamou Primerose dando-lhe um soco no estômago para o fazer desviar.

RAME - Rame não se mexer, Rame não contente.

A princípio Veva ria da altercação de Primerose com o Rame; mas ao ver a obstinação com que
ele impedia a passagem, tomou-lhe um braço, dizendo:

- Deixa vir a prima, meu bom Rame; bem vês que ela está arrependida de se ter esquecido de
mim. Anda, Rame não sejas teimoso. Queres penalizar- me com a tua incorrecção para com
minha prima?

Rame fez descair os braços e perfilou-se, dizendo em tom de voz sereno:

- Mim fazer o que manda patroinha.


Genoveva abeirou-se de Primerose, que estava afogueada de cólera, lançando ao Rame
olhares furibundos sem pensar em beijar Veva.

PRIMEROSE - Vou fazer, Sr. Rame, com que o Sr. Dormere lhe ralhe, dizendo que você cometeu
uma grosseria para comigo.

RAME - E o Rame não mais contar histórias a Sr.a Primerose; não dizer que diz siô Dormere,
não contar que faz siô Jorge, siô Tiago. Sr.a Primerose não mais saber nada. Pronto.

E é que o fazia mesmo - pensou consigo Primerose. - Isto de pretos é fraca raça.

Estendeu a mão ao Rame; este pôs-se a rir.

RAME - Mim saber que senhora gostar e mim não ter medo. Mim não apertar mão que dá
murro no estômago a Rame.

Primerose pôs-se a rir também e foi-se embora com Veva.

PRIMEROSE - Vês, Genoveva, como o meu quarto está lindo ? Hás-de vir aqui dar lições :
ensinar-te- ei História, Geografia, Desenho, Música, tudo o que ainda não sabes.

VEVA - Ai ! Como serei venturosa, boa prima! Tenho tanta vontade de aprender, mas não sei
nada.

Primerose acabou de se instalar e preparou os objectos necessários às lições, que Genoveva


desejava começar a receber já no dia seguinte.

A primeira noite que passou em Plaisance, levou-a Primerose a falar com o Sr. Dormere sobre
o seu desejo

de começar a instruir Genoveva, para o que lhe era preciso obter autorização do primo, o qual
se apressou a dar-lha.

PRIMEROSE - Quer, então, primo, que lhe ensine História, de que ela não sabe patavina?

SR. DORMERE - Evidentemente, minha prima, isso nem se fala.

PRIMEROSE - O primo bem sabe que a História é um estudo necessário a uma menina. Ainda
ninguém lhe ensinou uma só palavra. Se eu aqui não estivesse para lha ensinar, ela ficava
ignorante toda a vida. Tenho de ensinar-lhe também a contar. A pobre menina nem sequer
sabe que dois e dois são quatro. O primo dá licença, não dá?

SR. DORMERE (impaciente) - Sim, sim, três vezes sim, prima; pode ensinar tudo o que quiser,
até chinês, se o entender.

PRIMEROSE - Ai! De chinês não sei eu nem uma palavra; como quer, pois, que lho ensine?
Sempre tem umas ideias sobre educação! Para que lhe servia o chinês? É absurdo, agora o
chinês. Ainda bem que o senhor não tem que se incomodar com a educação dela. Que ideia
esta de lhe ensinar chinês!
SR. DORMERE (na mesma) - Mas, querida prima, não percebeu que estava a brincar, para lhe
mostrar que tinha plena confiança na prima para lhe ensinar o que lhe aprouvesse ?

PRIMEROSE - Com a educação não se brinca. É coisa muito séria o ensino. A propósito, devo
preveni-lo de que, se tenho de ficar aqui quinze dias apenas, não terei tempo de lhe ensinar
nada. No interesse de Veva, tenho de pedir-lhe que me deixe ficar aqui mais tempo.

SR. DORMERE - É uma ideia excelente, que muito lhe agradeço, prima.

PRIMEROSE - Que tempo posso estar em sua casa?

SR. DORMERE - Enquanto lhe agradar. Seis meses, um ano, dez anos, querendo.

PRIMEROSE - Que exagero ! Dez anos ! Como se eu pudesse garantir a permanência em sua
casa por dez anos!

SR. DORMERE - Será o tempo que a prima julgar necessário; não sou eu quem tem de resolver
o assunto.

A conversa prosseguiu neste pé uma hora ainda. Por fim, o Sr. Dormere, aborrecido, cansado e
já impaciente, propôs-lhe uma partida de cartas, que ela aceitou prazenteira. Nos dias
seguintes, ele teve o cuidado de propor-lhe a partida de cartas ou de gamão, logo após a
primeira meia hora de colóquio. O Sr. Dormere convi dava frequentes vezes os vizinhos para o
jantar e para o serão.

Havia muito que estava feita a paz entre Primerose e o Rame. Ao ver Genoveva tão contente
com as lições que lhe dava Primerose, foi-se o ligeiro ressentimento que ele ainda conservava
contra a gorda Primerose e veio muitas vezes escutar as lições e admirar os progressos da sua
patroinha. O que mais lhe interessava era o desenho em que Veva progredia
extraordinariamente em pouco tempo. Primerose era um primor no desenho e na pintura.
Veva gostava muito do desenho; por cada lição marcava um progresso.

Um dia, Primerose quis traçar o retrato de Veva. O

Rame só o viu quando ele estava em princípio, mas já bastante parecido. Reconhecendo-a,
manifestou a sua alegria batendo as mãos a saltar e a exclamar:

É a patroinha, é a patroinha do Rame !

PRIMEROSE - Caluda, Rame! Não deve dizê-lo antes de estar acabado. Quero fazer uma
surpresa ao primo Dormere, que não sabe que nós andamos a desenhar.

RAME - Siô Dormere não saber; Rame saber, Rame muito contente. Mim dizer à Sr.a Pelágia.

PRIMEROSE - Não e não, Rame; não o diga a ninguém; o Sr. Dormere vinha a sabê-lo.

RAME - Que mal tem siô Dormere saber? Mim dizer a siô. Siô não falar nada ; não dizer nada a
ninguém : Menina Primerose não querer? Que tem isso?

PRIMEROSE - Tem, porque ele sabê-lo-ia, e eu não quero que o saiba.


RAME - Mim não compreender.

PRIMEROSE - Seja como for; não quero que lho diga.

RAME - Mim não compreender.

PRIMEROSE - Pois não compreenda, meu caro, mas cale-se. Faça de conta que não sabe.

RAME - Contudo, mim saber. Mim não poder não saber, pois mim sabe.

PRIMEROSE - Céus! Como ele é irritante. Vevinha,

faça-lhe compreender que tem de se calar.

GENOVEVA - Meu bom Rame, tu sabes que a prima me faz o retrato, porque és meu amigo; os
outros, porém, não são meus amigos, e nós não lho diremos. Bem sabes que os amigos não
dizem tudo aos outros, porque têm segredos; pois bem: é um segredo, e só tu o sabes por
seres meu amigo. Compreendes agora?

RAME - Sim, mim compreender, patroinha. Mim

não dizer nada a ninguém.

PRIMEROSE - Está muito bem; quando acabar o retrato de Veva, farei o seu.

RAME - O meu? O de Rame?

PRIMEROSE - Sim, o seu.

RAME - Como senhora fazer preto?

PRIMEROSE - Com tinta. Pintarei o seu retrato.

RAME - Como senhora não fazer rosa e branco patroinha?

PRIMEROSE - Porque leva muito tempo; e Genoveva não tem muito tempo por causa das suas
lições. ?

Rame não disse mais nada, mas pensou que, vendo

como Primerose fazia o retrato à menina, ficaria ele também a sabê-lo fazer.

? ?? Bem contente estava o Sr. Dormere por ter em casa a prima Primerose; esta
enfastiava-o às vezes com a sua tagarelice, mas ocupava as manhãs e as tardes com as lições à
Veva e com as suas coisas, de forma que só as via às horas das refeições e à noite. Ela alegrava
a sala de visitas com o seu à- vontade, que nunca a abandonava. Mesmo zangada ria-se; era
geralmente com prazer que todos a viam, e ela mesma sentia como era agradável a vida que
levava.

Jorge e Tiago saem pela segunda vez


Um mês, pouco mais ou menos, depois da instalação de Primerose em Plaisance, o Sr.
Dormere trouxe, na manhã de uma quarta-feira, Jorge e Tiago. Esta saída era a derradeira
antes das férias. Ao ouvir a carruagem, Genoveva correu para o átrio, a recebê-los. Jorge, o
primeiro a descer, beijou a prima friamente. Tiago recebeu-a mais afectuosamente, beijando-a
várias vezes.

TIAGO - Então, não nos foste ver nem uma vez com o tio, Genoveva? Porque foi isso?

Genoveva ia a responder, mas Primerose cortou-lhe a palavra.

PRIMEROSE - Porque ela não faz o que quer, meu amigo. O tio não quis nunca levá-la consigo.

SR. DORMERE - Bem sabe, prima, que tenho negócios a tratar, pessoas a visitar, no que seria
incomodado pela presença de Veva.

PRIMEROSE - Bem sei que ela é sempre incómoda. Uma rapariga! É coisa para deixar de lado.
Às vezes uma solteirona ainda pode ser útil. Eu, por exemplo, que ensino à Vevinha tantas
coisas ! À parte o latim, ela sabe agora tanto como tu, Jorge.

JORGE - Num ? mês ? Aprendeu tudo o que eu

aprendi ?

PRIMEROSE - Decerto, e talvez mais.

E saiu a rir, indo comunicar ao Sr. Dormere a conversa que acabara de ter com o Jorge. Este,
em vista da risota de Primerose, não tomou o caso a sério; supôs tratar-se de uma brincadeira;
só se mostrou descontent contra Genoveva, que pensava ele, tomara a sério esta brincadeira e
procurara arranjar amigos à custa d Jorge.

Por isso, ao tornar a vê-la ao almoço, mostrou-se com ela tão frio e sombrio, que Genoveva
sentiu-se aterrada e Tiago lhe perguntou se estava doente.

SR. DORMERE - Não, meu rapaz, estou muito bem.

TIAGO - Ó Jorge, já entregaste ao teu pai a carta que para ele te deu o padre?

JORGE - Não, esqueci-me: mas não é nada de im portância.

SR. DORMERE - Que é, filho?

JORGE - É a comunicar que as férias começam a 1 de Agosto.

TIAGO - Eu supunha que era uma carta do Padre-Director.

JORGE - De forma nenhuma. Como querias que Padre-Director se queixasse de mim? Pois que
foi que eu fiz?

TIAGO - Não sei nada disso; não digo que o Padre-Director se queixe de ti; digo apenas que me
parecia que o padre te dissera: Não te esqueças; a carta é importante para ti. Ora, como não ta
vi entregar, receava que te tivesses esquecido.
PRIMEROSE - E como é que já sabes que o Director se queixa de ti?

JORGE - Não sei nada; disse isso, como podia dizer outra coisa.

SR. DORMERE - E onde está essa carta, filho? Procura bem nos bolsos.

Jorge remexe os bolsos, sem encontrar nada.

JORGE - Não acho; devo tê- la perdido.

PRIMEROSE - Talvez tenha caído na carruagem.

JORGE - Isso não pode ser; tê-la-íamos visto.

O Rame mete a cabeça pela porta, perguntando se pode entrar.

SR. DORMERE - Que deseja?

RAME - Dar papel a siô.

E entrou, fazendo a entrega de uma carta.

RAME - Mim ir caminho-de-ferro; mim ver siô Chefe; ele dar a mim carta: Que é? - perguntei. -
É carta para siô Dormere. Mim receber e trazer.

E estendeu a mão, entregando a carta ao Sr. Dormere, que a abriu, carregou o sobrolho e
olhou para o Jorge, que estava muito corado e embaraçado.

SR. DORMERE - Está bem; obrigado.

E não disse nada mais. Releu a carta, pô-la no bolso e lançou a Jorge um olhar de censura.

A refeição prosseguiu silenciosa e triste; Tiago reconhecera a carta que o Director entregara ao
Jorge e que estava aberta. Primerose desconfiou logo do que se tratava; Jorge temia os ralhos
do pai, e Genoveva receava o aspecto severo do tio.

Quando se levantaram da mesa, o Sr. Dormere ordenou ao filho que fosse ao seu gabinete de
trabalho. Primerose acompanhou Tiago e Veva até ao parque.

Uma vez a sós com o filho, disse o Sr. Dormere:

- Jorge, como te atreveste a abrir esta carta, a lê-la e a deitá- la fora no


comboio, para ma ocultares?

JORGE - papá, é que tinha medo de o ver zangar comigo; só queria entregar-lha, ao deixá- lo.

SR. DORMERE - Tu mentes, infeliz, mentes! Se ma quisesses entregar, não a tinhas deitado fora
no comboi ou na estação, mas guardá-la- ias cuidadosamente no fun do do bolso. E como te
atreveste a abrir uma carta que me era dirigida?

Jorge baixou a cabeça sem responder.


SR. DORMERE - Já leste que o bom do Director para nos poupar à vergonha da tua expulsão,
nos foi prevenindo de que não voltarias a ser admitido no colégio, depois das férias,
queixando-se de que és preguiçoso, que andas sempre de má vontade, que és constantemente
castigado, privado dos passeios e recreios, e com lições dobradas, sem valer de nada tudo isso.
Cuida ele que nunca serás bom aluno; que por instinto procuras ligações com os piores
condiscípulos, sendo um péssimo exemplo para os teus colegas; finalmente, não esconde que
está tomada a resolução de nunca mais te receberem e que só por consideração para comigo
te conservam no colégio até às férias. Oh ! Jorge, que triste situação a tua !

JORGE - Papá, tenho a certeza de que noutro colégio serei muito melhor, e até estudarei mais.
Os jesuítas são muito severos, fazem trabalhar tanto, que é impossível chegar a satisfazê-los.
Castigam por nada, come-se mal, não temos distracção suficiente. Se continuasse lá parece-me
que morreria, ou ficaria doente.

SR. DORMERE - Essas desculpas, Jorge, são as dos maus alunos; pois, a ser verdade o
que afirmas, como é que o teu primo Tiago estaria sempre entre os primeiros? Como é que a
saúde dele, tão precária outrora, se fortaleceria até ao ponto em que agora está? Como é que
se sente tão contente, a ponto de constituir para ele grande desgosto não mais para lá voltar?
Como havia ele de gostar tanto de todos os padres, em especial, daqueles que foram seus
professores? Não, não, pobre Jorge, se te sentes mal em Vaugirard, é por seres indigno de lá
continuar; e receio bem que o mesmo aconteça em todos os outros colégios ; nem serás mais
feliz nem mais estimado neles. És meu filho único; esperava que me viesses, um dia, a dar
gosto, e só desgosto me causas, afinal.

Jorge não respondia; permanecia imóvel, na atitude de um rapaz que é censurado mas que
não sente arrependimento; não teve para o pai uma só palavra de afecto. Quando este,
desanimado, lhe disse tristemente: Podes retirar-te, Jorge; nada mais tenho a dizer-te, ele
ergueu-se e deixou o gabinete com ar de visível satisfação.

Enquanto o Sr. Dormere assim censurava demasiado brandamente o filho, Primerose afastava-
se com Tiago e Veva.

- Meus meninos - disse ela, alegremente -, claro está que o Jorge praticou uma feia acção;
tenho a certeza de que ele abriu e leu a carta; como via que se queixavam dele, perdeu-a, isto
é, deitou-a fora, com medo de ser repreendido.

VEVA - Ó prima, espero que se engane, pois o Jorge não é capaz de acção tão má.

PRIMEROSE - Então como é que ele soube que faziam queixa dele? Como perdeu uma
carta que o Director lhe entregara, dizendo-lhe que era importante? Ora, ora, menina, és boa e
indulgente de mais com esse rapaz.

VEVA - Estou certa, minha prima, de que o Tiago não o julga tão severamente. Não é verdade?

TIAGO (após certa hesitação) - Eu cuido. . . que Primerose tem razão.

PRIMEROSE - Já vês, minha Veva. E olha que ele conhece-o bem. No colégio a gente depressa
se conhece.
Tiago sorriu, sem responder.

PRIMEROSE - Aposto que o Sr. Dormere vai fazer como sempre: dir-lhe-á brandamente: Meu
Jorge, fizeste mal. Penalizas-me, meu rapaz. Quero-te tanto, meu Jorginho ! Vê se passas a ser
bem comportado ; não faças outra, meu querido filho! E não passará disto. Ora eu quero
castigá-lo. Vou conduzir-vos a casa de Saint-Aimar, para ele não dar convosco. Apressemo-nos;
estuguemos mais o passo. Não nos encontrando, não se atreverá a ir a casa dos Saint- Aimar.
Há-de andar à nossa procura, há-de praguejar e ficar furioso, o que será um castigo muito leve
e mais que justo do seu péssimo procedimento.

Achando a ideia excelente, Tiago alongou o passo, enquanto ia animando Veva, que se
apiedava de Jorge. Encantada com a ideia que tivera para castigar Jorge, Primerose andava o
mais depressa que podia, voltando-se amiudadas vezes para ver se ele os seguiria. Em breve
ficaram fora do alcance da vista e não tardaram a chegar a Saint-Aimar, onde foram recebidos
com gritos de alegria, pois as crianças estavam satisfeitíssimas por tornarem a ver Tiago e
Veva.

LUÍS - Que boa ideia a tua, Tiago, de vir até cá! Devíamos ter ido a Plaisance, a última vez que
lá estiveste, mas a Primerose impediu que a mamã nos deixasse ir, por não ter sido convidada.

HELENA - E o Jorge, que é feito dele?

Veva estava atrapalhada para explicar a sua ausência, respondendo na sua vez Primerose:

- Ficou com o pai, o que é muito natural quando se não sai do colégio senão uma vez por mês.

HELENA - Bem ; então não o veremos ?

PRIMEROSE - Vê-lo-ão, se quiserem vir jantar connosco. Como o Sr. Dormere vai levar os
rapazes às cinco horas, a mamã dos meninos manda-os buscar à noite. Vou-lho pedir.
Partiremos às três horas.

As crianças ficaram todas contentes com a proposta. Tiago disse a Genoveva:

- Prefiro não nos encontrarmos sozinhos com Jorge, que deve estar fulo contra mim, contra ti e
contra o pobre Rame. Havíamos de ter discussões a propósito de tudo e de nada. Ora, como
não quero vê-lo atormentar-te, podia bem ser que houvesse mais qualquer coisa além da
simples discussão, o que faria pena ao tio; e como ele é muito bom para mim, custar-me-ia
contristá-lo.

GENOVEVA - E tens muita razão; o Luís e a Helena servirão para o impedir de se exceder. E
agora, vamos a uma partida de croquet.

Os quatro passaram duas horas a jogar. Após um quarto de hora de descanso, de que se
aproveitaram para comerem uma farta merenda, despediram-se da Srá Saint-Aimar, que
prometeu aos filhos mandar-lhes o carro, com a criada, às oito horas, e largaram todos a
correr. O regresso levou mais de meia hora, pois a cada passo se detinham a colher flores e
juncos de entrançar, a saltar valados, a apanhar avelãs.

Ao chegarem perto do solar, viram Jorge a dormir na relva, à sombra de um carvalho gigante.
Primerose acenou-lhes para não fazerem barulho, e, aproximando-se devagarinho, pôs-lhe
sobre o estômago um punhado de avelãs já partidas e vazias. Levando, em seguida, as quatro
crianças para uma moita, aí se esconderam todos, a fim de assistirem ao despertar de Jorge.
Soltaram juntos um uh! uh! lamentoso. Jorge acordou, olhou à roda e não viu ninguém, mas
notou as avelãs em cima do estômago.

-Quem foi o atrevido que me pôs isto aqui?

- exclamou, encolerizado. - Não vejo ninguém; seria uma partida do pateta do Rame? Ele
rondava à minha volta, quando adormeci. Ora nem mais nem menos; lá está ele a meter pela
porta da copa a carapinha. . .

- Rame! - chamou em voz de estentor.

RAME (acercando-se a passo lento) - Quê siô querer?

JORGE - Chegue-se cá, seu negralhão.

Rame avançou alguns passos. Quando teve o Rame ao alcance, Jorge apanhou as cascas das
avelãs e atirou-lhe à cara um punhado delas. Surpreso, Rame deu um salto para trás.

RAME - Quê temos, siô Jorge?

JORGE - Devolvo-te a tua prenda, insolente, atrevido, grosseirão.

Cada vez mais admirado, Rame fitava-o com olhos

esbugalhados, supondo que ele enlouquecera.

RAME - Deixe estar, siô Jorge! Mim ir buscar siô

Dormere. Deixe estar! Não mexer. Rame bom. Rame não fazer mal. Você maluco. Rame não
zangar, não.

Foi a vez de Jorge cuidar que o preto escarnecia dele;

pôs-se em pé de um salto e quis bater no Rame, quando ouviu por trás de si uma sonora
gargalhada e viu Primerose a sair da moita.

PRIMEROSE - Detenha-se, cavaleiro da triste figura. Quem lhe trouxe as avelãs, que representa
o seu quinhão do passeio que demos, fui eu e não o Rame.

JORGE - Foi a prima, na verdade?

PRIMEROSE - Se é verdade! Então não me ouves confEssá-lo? Ou julgas-me mentirosa como


tu?

JORGE - Eu não minto.

PRIMEROSE - Ah! sim? Ora dize-me, então: como perdeste a carta para teu pai e, sobretudo,
perdê-la de? pois de a ter lido?
? JORGE - Deixe-me em paz. Onde é que estão o Tiago e a Veva?

PRIMEROSE - Estão onde não os acharás, meu rapaz: e não te deixarei sossegado, enquanto
deres mostras de seres tão mal-educado; vou ensinar- te o respeito ? que me deves, e queixar-
me-ei, se for preciso, ao Padre-director; mas podes estar certo de que não serás tu o portador
da minha carta.

JORGE - Peço-lhe, prima, que não escreva ao Padre-Director, que se riria da prima, pois nada
tem com o que fazem os alunos fora do colégio.

PRIMEROSE - Enganas-te, meu caro; ele ocupa-se ? de tudo, e é muito bem-educado para se rir
de mim.

Vou, pois, escrever-lhe, e não me esquecerei de contar a história da carta de teu pai.

JORGE (aterrado) - Oh! Não, minha prima; suplico-lhe que não lhe escreva. Eu não quero ser
mal-educado, pode ter a certeza. Simplesmente, não estava ainda bem acordado, não
sabendo, portanto, bem o que dizia.

PRIMEROSE - Causas-me dó, infeliz; és mentiroso e baixo de sentimentos. Perdoo-te por teu
pai, que tu já afliges bastante, para que não tenha de lhe aumentar o desgosto. Mas se fizeres
ou disseres a mais pequena maldade a Genoveva, ao Tiago ou ao Rame, daqui até recolheres
ao colégio, fica certo de que escreverei ao Padre-Director.

Primerose retirou-se, seguida de Rame, deixando Jorge só, irritado e confuso. Os meninos
tinham ouvido ? tudo. Por delicadeza continuavam escondidos, para Jorge não ter de corar
diante deles. A um sinal de Tiago, todos os amiguinhos saíram da moita: devagar, pelo lado
oposto àquele em que estava Jorge, deram a volta ao solar e chegaram a casa por outro
caminho.

- Até que te encontramos! - disse Tiago. - Onde foi que te meteste?

JORGE - Esperei por vós, procurei-vos, e não houve meio de vos encontrar. Onde vos
escondestes? Aborreci-me deveras.

GENOVEVA - Fomos com Primerose dar um passeio para as bandas de Saint- Aimar, e
trouxemos connosco Luís e Helena.

JORGE - Bem podíeis esperar por mim.

GENOVEVA - Ora escuta: como o tio te chamou, não sabíamos que tempo ficaria contigo, e
tivemos de seguir a Primerose, que nos queria distrair.

TIAGO - Agora que estamos juntos, aproveitemos o tempo que nos sobra, para jogar às
escondidas na mata, ou à cabra-cega.

- Vamos às escondidas ! - gritaram todos.

LUÍS - Qual de nós é que fica?

JORGE - A Veva.
TIAGO - Não; tiremos à sorte. Punhamo-nos todos numa roda; conto eu:

Um, dois, três.

Aqui passa um inglês, A cavalo numa cana.

Para as ruas de Viana, Ó tlim, tlim, tlim,

Menos um são vinte e três!

Sola, Sapata, Rei, Rainha, Foi ao mar buscar sardinha, Para o filho do Luís,

Que está preso pelo nariz; Os cavalos a correr,

As meninas a aprender, Qual for a mais bonita, É que terá de se esconder.

A cada sílaba, Tiago tocava com o dedo em cada um deles, incluindo-se a si também. Aquele
sobre quem recaiu a última sílaba é que ficou pilha. Foi ele próprio.

- Vou lembrar uma coisa: aquele que ficar, terá o Rame para auxiliar, visto que sozinho não
pode agarrar ninguém na mata. O marco é a carvalheira.

TODOS - Muito bem, chamemos o Rame.

- Rame, ó Rame ! - puseram-se todos a chamar.

Ele apareceu.

- Quê querer a Rame? Patroinha chamar Rame?

Anda, meu bom Rame, anda cá ajudar-;quem fica é o Tiago; nós vamo-nos esconder na mata,
por entre as moitas, e tu vais ajudá-lo a a encontrar-nos.

RAME - Mim contente ajudar siô Tiago! mim contente!

Após a brincadeira, entraram em casa ofegantes e cansados; Primerose aconselhou que lhes
servissem um ou dois cálices de moscatel com bolachas.

- Para não resfriarem - disse ela. Acharam o conselho excelente; todos molharam bolachas nos
cálices, que os rapazes bisaram.

Fizeram-se as despedidas. Tiago com saudades . eram partilhadas pela Veva e pelos
amiguinhos de Saint ???? -Aimar, porque tinham de passar as férias em casa de seus

pais.

As despedidas de Jorge foram mais amáveis que de

costume, beijando todos, incluindo a Primerose, tendo mesmo levado a condescendência ao


ponto de fazer uma ? ligeira vénia ao Rame. O carro partiu. Veva e os seus amiguinhos
voltaram para casa a descansar até à refeição principal, divertindo-se com jogos de sala,
jantando com apetite. A carruagem da Sr.a Saint-Aimar chegou às oito horas, como ficara
combinado, para conduzir as criadas e os meninos, e, no dia seguinte Veva retomou a sua vida
pacata e laboriosa.

Retrato de Rame

O Sr. Dormere voltou à sua frieza e antipatia para com Genoveva. Tinha má vontade contra o
Rame por haver trazido a carta do Padre-Director, embora bem compreendesse a injustiça
deste sentimento. O Rame queria ternamente à Genoveva, a qual lhe retribuía a sua amizade,
e o Sr. Dormere tornava Genoveva responsável pela animosidade do Rame contra Jorge.

Bastas vezes, interpunha-se Primerose, com a sua terrível franqueza, entre a Veva e o tio, que
incessantemente lhe ralhava, não lhe permitindo prazer algum, nenhuma distracção; até já
nem queria que ela aparecesse à mesa nos dias em que houvesse gente de fora, chegando
mesmo a proibi-la de vir à sala de visitas, quando lá estivessem pessoas de fora.

Primerose continuava a educação de Genoveva, tratando de lhe fazer aceitar sem grande
desgosto as frequentes e injustas repreensões do tio, bem como a frieza que, de dia para dia,
ele lhe mostrava.

Tendo acabado o retrato de Veva, Primerose empreendeu o de Rame, pintado a óleo. Difícil
coisa era fazê-lo manter-se na devida posição, pois era tamanho o seu desejo de ver, que
abandonava o posto a cada instante, para julgar da parecença. No dia em que lhe cobriu de
preto a cara e as mãos, deu-se a uma alegria tamanha e tão esfuziante, que Primerose teve de
lhe ralhar a sério.

- Rame, se continua a mexer- se e a gargalhar dessa maneira, deixo o retrato como ele está e
você ficará sem nariz e de olhos pisados. Acha bonito?

RAME - Ó querida siora, mim não poder! Mim rir, não por maldade ; mim tão contente ! Mim
não poder ficar boca fechada. Não há dúvida, siora, mim ser sério. Mim querer tanto ver como
siora põe olhos a Rame e nariz a Rame, e boca a Rame!

PRIMEROSE - Mas como posso eu arranjar-lhe os olhos, se está sempre a mexer com eles em
todos os sentidos; o nariz, quando vira a cabeça para a direita e para a esquerda; a boca,
quando você fala, quando se põe a mostrar os dentes, a rir?

RAME - Não faz mal, siora; pode arranjar os dentes; dentes de mim ser lindos, branquinhos.

PRIMEROSE - Que entende você disso? Só lhe peço que se cale. Bom, não se mexa. Fique
sossegado, já lhe disse. Olhe sempre para mim; estou a traçar-lhe os olhos.

Não eram decorridos cinco minutos, já o Rame mudava de posição.

PRIMEROSE - Então, que faz? Lá está voltado para o outro lado.

RAME - Não faz mal. Mim cansado; mim querer ver como escreve a patroinha.

PRIMEROSE - Mas não pode ser! Torne a colocar-se como estava.


RAME - Porquê não pode ser? Mim não mudar cabeça, olhos, cara; mim sempre Rame.

PRIMEROSE - Se me não quer atender, não faço mais nada.

GENOVEVA - Ó Rame, peço-te que fiques sossegadinho. Não podes ficar sossegado uma hora?

RAME - Mim ficar sossegado um ano para patroinha.

GENOVEVA (a rir) - Obrigada, Rame; quando tiver concluído o exercício de


cálculo, dir- to-ei; poderás então ver e mexer-te; isto leva-me uma hora.

A hora decorreu admiravelmente; o Rame quase nem se mexeu; à parte uns saltinhos, uns
bocejos e pequenas contracções nervosas, manteve-se em excelente posição.

- Pronto! - disse por fim Veva.

De um pulo o Rame estava ao pé de Primerose; bateu? as palmas, riu às gargalhadas e deu


umas piruetas em sinal de admiração.

RAME - Patroinha vir ver. Como Rame bonito! Como Rame ter lindos olhos; tudo branco, tudo
preto! ?

VEVA - Vai agora descansar, meu pobre Rame; bebe um copo de vinho ; entretanto a prima vai
dar- me novo exercício a fazer.

Rame saiu a pular. Primerose levantou-se.

- Vou também descansar um bocado. Apressei-me tanto que tenho o pulso fatigado.

Repetiam-se diariamente as mesmas cenas. Quando, ao fim de cinco ou seis dias, a cabeça
ficou pronta? a destacar-se num lindo céu sem nuvens, o Rame ficou encantado. A sua alegria
foi, todavia, de pouca dura. Começou a entristecer-se.

- Coitado do Rame! - exclamou ele.

PRIMEROSE (rindo) - Coitado, porquê? Que mais temos nós?

RAME - Pobre Rame, sem farda. Cabeça cortada, ? sem corpo.

PRIMEROSE (ainda a rir) - Mas, tolinho, não percebe que só farei o corpo depois de ter
acabado a cabeça? Ainda não percebeu que não posso fazer tudo ao mesmo tempo? Vou
começar hoje o pescoço e os ombros ; amanhã estará pronto.

GENOVEVA - E vais ter uma farda berrante. Como a queres ?

RAME - Mim querer vermelho com ouro, como capitão inglês.

? PRIMEROSE - Assim fica a parecer um dançarino de corda, meu rapaz.

RAME (com orgulho) - Rame não dançarino. Na terra de Rame, soba pôr farda vermelha
bordada a ouro. Farda magnífica! Soba matar capitão inglês e tomar farda. Rame
querer farda como soba.
PRIMEROSE - Pois bem, tê-la-á, meu amigo. Representará de soba, como o da sua terra.

RAME - E eu mandar retrato à terra, e todos crer Ramoramor soba entre os brancos.

VEVA - E sabes o que vou fazer, Rame? Vou pedir à Pelágia que te mande fazer uma linda
farda, de casaca vermelha com galões de ouro, para vestires nos dias de grande festa.

Então é que Rame não pôde reprimir a sua alegria, saltando, rodopiando, gritando e cantando.
Nunca o tinham visto em semelhante satisfação. Correu ao quarto de Pelágia em tal
exteriorização de felicidade, que ela o julgou doido; só se tranquilizou quando Primerose e
Genoveva lhe contaram o que se passara.

Rame, por seu lado, fez saber a toda a gente que o iam vestir de soba, a vermelho e oiro.
Ninguém entendeu as explicações dele, entremeadas de pulos e risadas; fez, porém, tal
barulho, que todos em volta dele riam tanto e interrogavam-no de um modo tão bulhento,
que o Sr. Dormere, que passeava perto, veio ver o que se passava na cozinha. Ao saber a causa
do alarido, até ele se pôs a rir da figura que havia de fazer o preto vestido de soba, e foi ter
com a Primerose para a pôr inteiramente ao facto da alegria tão ruidosa do Rame.

A primeira coisa que viu ao entrar, foi o retrato do preto.

SR. DORMERE - Quem foi que fez isto?

PRIMEROSE - Fui eu, primo, a fim de não me destreinar do pincel.

SR. DORMERE - Mas que bem ! É ele todo ! Que lindo quadro! Muito bonito, afirmo-lhe. Não
conheço amadores que fossem melhor sucedidos. Não lhe conhecia este talento, prima;
felicito-a sinceramente. Está bem parecido ! E que bela posição ! Nada falta !

PRIMEROSE - A não ser a farda, primo. Imagine que o Rame pediu e eu prometi que o ia vestir
de vermelho e oiro!

SR. DORMERE - Foi o que me disseram na cozinha, onde vi todos agrupados à roda do Rame,
que pula e grita como um danado; todos juntos fazem uma barulheira infernal.

PRIMEROSE - Nunca vi homem tão satisfeito! Foi uma risota de morrer.

Jorge continua a ser mau

Chegado o tempo das férias, voltou o Sr. Dormere para Plaisance, com o Jorge, este sem
prémio algum, enquanto o pai de Tiago levava o filho coberto de louros; recebera prémios em
todos os trabalhos escolares, e felicitações e louvores, que mereciam o seu óptimo
comportamento, o seu trabalho perseverante e a sua pronta obediência. Fora ainda nesse ano
um dos melhores alunos de Vaugirard. Embora sentindo que Jorge fosse tão diferente de
Tiago, Genoveva fez-lhe o melhor acolhimento, e mostrou-lhe o que ele ainda não conhecia,
entre outras coisas, o retrato do Rame, já acabado.

- Que traje de palhaço é esse? - perguntou Jorge, em grande risota.


GENOVEVA (embaraçada) - É a linda farda de gala que o tio deu ao Rame; quando a enverga
mostra-se tão satisfeito, que é um regalo vê-lo.

JORGE - É um traje de bobo, querida amiga; muito me admira que o papá autorizasse uma
coisa tão ridícula, e que a Primerose se dignasse pintá- lo assim mascarado.

GENOVEVA - A prima mostrou o retrato a diversos vizinhos, que o acharam magnífico.

JORGE - Pois está horrível, caricato; se fosse meu, retalhava-o já em bocadinhos.

GENOVEVA - Felizmente que não é teu, mas meu, pois a prima fez-me presente dele.

JORGE - Pois não percas essa preciosidade! Olha, retiro-me, que só a vista dele me enoja.

E saiu do aposento. Genoveva suspirou.

Sempre o mesmo! - pensou para consigo. - Não está melhor do que era. Porque não há-de ele
parecer-se com o Tiago? Que satisfação eu não teria! Já vejo que vou ter umas férias bem
desagradáveis.

Tinha razão a pobre menina; não havia dia em que não tivesse qualquer desgosto, devido ao
mau coração e ao péssimo carácter de Jorge. Cada dia que passava mais vincava a sua maldade
e inveja. Queixava-se constantemente ao pai, ora da Veva, ora da Pelágia, outras vezes de
Primerose e do Rame, odiando principalmente Primerose, por lhe dizer as verdades, sem
rebuço.

Dias antes de acabarem as férias, ele recusou-se a acompanhar Primerose e Veva, num passeio
ao campo. Como sempre, Rame devia segui-las. Um quarto de hora antes de elas saírem, Jorge
entrou de mansinho nos aposentos de Primerose, arregaçou as mangas, pegou nos pincéis e
na paleta, que estava cheia de tintas, trepou a uma cadeira e pôs-se a sujar o retrato do Rame,
ao mesmo tempo que ia dizendo, como se o pobre preto o estivesse a ouvir:

- Ora espera, malandro, que já te vou pintar; vou-te pôr uns chifres, como diabo que és. Vou-
te enfeitar a farda de preto. Assim! Já não te sentirás ancho, nem mais poderás dançar na
frente do teu horrível retrato. Como estou satisfeito por te haver desfeiteado desta maneira !
Há tanto tempo que suspirava por este momento !

Mal acabou esta palavra, ouviu um grito semelhante a um rugido. Voltou-se, aterrado, mas
não viu ninguém. Nos primeiros instantes do seu terror, ficou imóvel, sem saber de onde viria
tal grito que nada tinha de humano.

Apressou-se a pôr tudo no lugar, e safou-se para o seu quarto, inquieto, à escuta dos rumores
do exterior. Decorreu meia hora, sem que ouvisse nada de alarmante. Finalmente, ressoou na
mata um grito, seguido de muitos outros. Jorge continuava à escuta; os gritos aproximavam-
se, mas tornavam-se mais fracos. Depois, misturaram-se com eles umas vozes confusas, entre
as quais distinguiu a de Primerose, destacando-se sobre a voz mais suave de Genoveva.
Reconheceu ainda a do Rame, entrecortada de gemidos. Calou-se tudo ao aproximar-se do
solar; precipitaram-se várias pessoas escada acima, na direcção dos aposentos de Primerose.
Estou perdido! - disse consigo. - Fui visto por alguém que foi avisar a gorda Primerose, a doida
da Veva e o estúpido do preto. Mas oxalá me não tenham reconhecido. Ao voltar-me, não vi
ninguém. Hei-de dizer que não fui eu. Acreditem, se quiserem; insistirei em que não saí do
quarto. Um livro na minha frente, depressinha.

Mas ao pegar no livro, viu que tinha tinta nas mãos; deu-se pressa em lavá-las com sabão, até
desaparecerem os vestígios.

Simplesmente, quando a consciência está sobressaltada, não se pode pensar em tudo;


esqueceu-se de esvaziar a bacia, cuja água estava tingida de vermelho e preto, e de revirar os
punhos das mangas que tinham chegado à tinta e que estavam pintadas por dentro, bem
como as mangas da camisa. Pegou no livro e aguardou os acontecimentos.

Enquanto ele engendrava a mentira que devia ocultar ? a sua malvadez, Rame
- pois era ele quem surpreendera ? Jorge e soltara o grito medonho, ao fugir - soluçava ?
postado em frente do seu retrato.

RAME - Menina Primerose, vir ver, patroinha ver também; pobre Rame, pobre Rame dos
chifres, Rame sem farda encarnada de soba. Pobre Rame, que morre de desgosto !

Veva chorava pelo desespero do seu pobre Rame; Primerose mostrava- se consternada.

PRIMEROSE - Tens a certeza de que foi o Jorge o autor dessa proeza? Viste-o?

RAME - Mim ver siô Jorge trepado em cadeira e fazer farda preta. Mim soltar grande grito e
deitar a correr ? procurar menina Primerose e patroinha. Que fazer, boa

menina ? Como lavar ?

PRIMEROSE (alegre) - Lavar ! Que boa ideia ! Tragam depressa um esfregão e azeite. Vou
compor tudo.

RAME - Cá está esfregão. Como esfregão compor? PRIMEROSE - Já verás. Antes de mais nada,
vai depressa pedir à Pelágia uns trapos velhos e azeite.

Primerose desprendeu o quadro, colocou-o sobre o cavalete e, com o esfregão, pôs-se a tirar a
tinta, ainda fresca, do rosto, e em seguida, da farda, tendo voltado

tudo à primeira cor; acabou a limpeza com os trapos que o Rame trouxera. Não decorrera um
quarto de hora, e nada restava já das tintas do Jorge; as de baixo, que estavam bem secas,
reapareceram tão vivas como dantes.

O Rame manifestou a sua alegria, lançando-se aos pés de Primerose e beijando-lhos. Veva
estava encantada com a ventura do Rame e beijava Primerose com mil agradecimentos.

Agora - disse Primerose -, tenho de lavar as mãos e depois irei contar ao Sr. Dormere a
baixa malvadez do seu querido Jorge; veremos então se se atreverá a perdoar-lhe.

Desta vez, Veva não solicitou clemência para o primo; ficara indignada com o desgosto por ele
causado ao pobre Rame, e também era de parecer que o Jorge merecia um castigo rigoroso.
PRIMEROSE (entrando no gabinete do Sr. Dormere)

- Meu caro primo, o seu Jorge acaba de praticar um Grande acto de malvadez.

SR. DORMERE (sorrindo) - À Genoveva, pela certa! Enredou-lhe uma meada de lã ou rasgou-lhe
um vestido?

PRIMEROSE - Nada disso; não viria incomodá-lo por tão pouco; não foi à Veva mas a mim que
ele pregou uma partida inconcebível.

SR. DORMERE - À prima? Como se atreveria ele? Deve haver equívoco, pela certa.

PRIMEROSE - Equívoco nenhum, senhor; e quanto a atrever-se, o seu malvado filho atreve-se a
tudo. Porque não havia de se atrever? Bem sabe ele que nada tem a recear.

SR. DORMERE - Mas que foi, minha prima? Queira explicar-me. . .

PRIMEROSE - É bem fácil de compreender. O primo conhece o retrato que fiz do Rame?

SR. DORMERE - Pois decerto; por sinal que a prima pinta com muito talento. O Jorge permitiu-
se notar-lhe defeitos ?

PRIMEROSE - O crime não seria grande; antes de mais, ele não percebe nada disso, pouco me
importando a sua apreciação; além de que, toda a gente está no direito de manifestar o seu
gosto.

SR. DORMERE - Que foi então que fez o Jorge? Não sou capaz de adivinhar o que ele
podia ter feito para irritar dessa maneira a prima, a propósito do retrato.

PRIMEROSE - Lembrou-se de dar cabo do meu trabalho, que representava uma pessoa que ele
abomina, retrato pertencente à Veva, que ele procura desgostar de todas as formas, e feito
por mim, que ele também não tolera. O Sr. Jorge trepou a uma cadeira depois de ter pegado
na minha paleta, nas minhas tintas e nos meus pincéis; sujou a cara de Rame, pintou-lhe dois
chifres na cabeça, cobriu de preto a linda farda encarnada e, enquanto estava nesse bonito
serviço, foi surpreendido pelo Rame, que não saíra connosco, e que o apanhou com a boca na
botija. Desta vez, não pode ele negar.

SR. DORMERE (irritado) - Foi o Jorge que fez isso? O Rame não se enganaria?

PRIMEROSE - Se o viu com os seus olhos ! Rame soltou um grito e deitou a correr para o
parque para me avisar: voltámos com ele e presenciámos, todas, o que acabo de expor.

SR. DORMERE - É de mais, na verdade! Não se pode tolerar! Onde é que ele se meteu ?

PRIMEROSE - Isso não sei; naturalmente, vendo-se descoberto, não ficou à minha espera.
Meteu-se em qualquer canto.

O Sr. Dormere saiu do gabinete, seguido de Primerose, e começou por entrar no quarto de
Jorge, que foi encontrar, com grande surpresa sua, adormecido, com a cabeça e os braços
sobre o livro.
- Jorge! - exclamou o Sr. Dormere.

Fingiu despertar sobressaltado, esfregou os olhos como quem tem dificuldade em abri-los, e
respondeu com voz entorpecida :

- Que deseja, papá? Estava a dormir, cansei-me a ler.

SR. DORMERE - Porque estragaste tu o retrato do Rame, pintado pela prima?

JORGE - Estraguei o retrato do Rame! Eu? Como? Quando?

SR. DORMERE - Há bocado; por sinal que foi visto pelo Rame a sujar- lhe o retrato.

JORGE - Rame? Onde foi? Nem vi o Rame nem vi retrato nenhum.

SR. DORMERE - O menino estava nos aposentos da prima, quando lá entrou o Rame.

JORGE - Eu estive lá porventura, nos aposentos da prima? Se eu percebo. . . não sei o que o
papá quer dizer.

O pai começava a duvidar e a olhar com espanto para a prima. Esta, que conhecia a falsidade
de Jorge, pasmava também, não da acusação, de que não duvidava, mas do descaramento
com que ele mentia.

PRIMEROSE - Como ousas tu, Jorge, negar com tal firmeza aquilo que o Rame te viu fazer?

JORGE - Então, que é que ele me viu fazer? É o que lhe pergunto, prima.

PRIMEROSE - Viu-te subir a uma cadeira e começar a sujar-lhe o retrato de preto e de


vermelho.

JORGE - Sempre queria ver se ele tem cara de o dizer na minha presença.

- Vamos já vê-lo - disse Primerose, indignada, saindo precipitadamente.

SR. DORMERE (estreitando ambas as mãos do filho)

- Suplico-te, Jorge, que me digas a verdade; só a mim; a mim, teu pai que te estima, te acredita
e te perdoará se confessares francamente a falta, que, afinal, é mais uma

rapaziada do que uma malvadez. Responde, meu filho: foi o Rame que se enganou supondo
reconhecer-te, ou és tu que me enganas deturpando a verdade?

Houve um instante de hesitação; Jorge esteve vai não vai para confessar a falta, lançando-se
ao pescoço do pai, cuja bondade o comovia.

JORGE - Rame enganou-se, Papá - disse ele.

Tomou-me por outro, juro-lhe que não o tornei a ver depois do almoço.

SR. DORMERE - Acredito-te, Estou a ouvir a prima, vou desenganá-la, pois está convencida de
que eras tu.
JORGE - E ponha na rua esse negralhão, papá, que está sempre pronto a prejudicar-me
perante o papá.

PRIMEROSE - Trago-lhe o Rame, meu primo. Queira interrogá-lo, para fazer o seu juízo.

SR. DORMERE - Rame, quando foi que você viu o Jorge, e que viu?

RAME - Siô Dormere, mim entrar na casa da menina Primerose. mim ver siô Jorge trepado em
cadeira grande vermelha; ele ter nas mãos pincéis, paleta de menina Primerose, mim ver o
pobre Rame com chifres, com casaca feia, negra; mim aterrado ver Rame diabo, mim soltar
grito grande, e mim correr depressa chamar meni na Primerose e patroinha. É isto que ver
Rame.

SR. DORMERE - Pois, meu caro, o Jorge não saiu do quarto; você enganou-se; não era ele.

RAME - Mim garantir, mim ter visto siô Jorge; mim jurar ser siô Jorge. Ele fazer Rame diabo.

SR. DORMERE - E eu digo que você é um mentiroso; e como não desejo que meu filho seja
vítima da sua malvadez, expulso-o de minha casa, proibindo-lhe voltar a ela.

- Patroinha ! Patroinha ! - exclamou dolorosamente o Rame, que se rojou aos pés de


Primerose, implorando a sua protecção.

JORGE (triunfante) - Demais, papá, se eu tivesse feito aquele serviço, como afirma o Rame,
teria as mãos com tinta; ora elas podem ver-se: estão limpas, sem sinais de cor.

O Rame estava pasmado das palavras do Sr. Dormere e do impudor do filho. Primerose não
estava menos indignada, mas carecia de provas para justificar o pobre Rame e demonstrar as
mentiras do Jorge. Voltando-se para todos os lados para dar com alguns sinais de tintas,
deparou-se-lhe a bacia cheia de água vermelha e preta.

PRIMEROSE - Que é aquilo? Há tinta naquela água suja !

Jorge estremeceu e corou, mas não respondeu. Prim ? rose abeirou-se dele, tomou-lhe as
mãos e, revistando-?

com atenção, notou, sob as mangas do casaco, as da camisa com manchas pretas e vermelhas.
Revirou de pronto as mangas do fato; o forro apresentava manchas da tinta vermelha e preta,
ainda fresca, o mesmo se dando com a camisa.

PRIMEROSE - Que será isto, Sr. Dormere? Será tin ta? Que lhe parece?

Inteirado da verdade, o Sr. Dormere repeliu com aspereza Jorge, que foi cair na poltrona com a
cara escondida entre as mãos.

PRIMEROSE - Ora fale, Sr. Dormere, fale. Diga qual dos dois merece ser expulso!

O interpelado não respondeu a princípio, mas, perante a insistência de Primerose, empenhada


em que se fizesse
justiça, o Sr. Dormere ergueu-se; o seu rosto pálido e alterado era resposta antecipada à
pergunta:

- Deixe-me, por favor - disse ele - deixe-me só com o Jorge. Fica tu - continuou, dirigindo-se ao
filhoì

que tentava sair. - Antes, porém, de deixar sair a prinerose e o Rame, pede-lhes perdão. Já. . .
Obedece ! De joelhos! E pousando as mãos nos ombros do filho, obrigou-o a ajoelhar-se e a
repetir as palavras de perdão que lhe di? tava ele mesmo.

- Agora, deixe-me, prima, e leve o pobre Rame. E aproximando-se de Primerose, disse-lhe em


voz baixa :

- Suplico-lhe, minha querida prima, que não diga? nada a ninguém; e ordene ao Rame que não
fale cá em casa neste assunto.

Primerose apertou-lhe a mão,em sinal de assentimento,e saiu com o Rame.

Ficando só com Jorge,disse-lhe,muito triste:?

- Vê tu,Jorge,o que arranjaste com o teu indigno

procedimento! Em vez de expiares a malvadez com uma confissão completa da falta


cometida,mentes,deixas

culpar um criado, a quem sou forçado a obrigar-te a pedir desculpa.Que vergonha,Jorge,para ti


e para mim!

Supões que eu não fiquei humilhado com isso? Porque

não me confessaste tudo,quando to pedi com uma ternura que deveria banir todo o receio? Já
não posso tornar a pôr-te em contacto com Primerose nem com esse imfeliz Rame,que
pretendias que eu expulsasse.Vais esta noite para Paris: iremos passar o resto das férias em
casa de um dos meus tios,e partirás a concluir os teus estudos no colégio dos Padres
Dominicanos.Mas se queres que acredite no teu procedimento, e se queres que te perdoe,
promete-me que nunca mais me causarás dissabores,que me tornam tão infeliz.

JORGE - Prometo,sim,papá.Creia que só há-de ter ?

de mim motivos de contentamento,no futuro. ?

Jorge ficou mais tranquilo ao ver-se livre do castigo merecido. O Sr. Dormere abraçou-o. O
resto da tarde foi empregado na preparação de tudo para a partida.À volta das cinco horas, foi
a carruagem,carregada de malas,postar-se na estrada,à espera deles ; dirigiram-se à estação
ferroviária e tomaram o comboio para Paris,onde chegaram duas horas

depois.

À hora do jantar,um criado apresentou a Primerose

uma carta.
PRIMEROSE - De quem é a carta,Pedro?

PEDRO - É do patrão, que me disse para a entregar à senhora às seis horas.

PRIMEROSE - Do Sr. Dormere? Que o levou a escrever-me ?

Primerose manifestava a maior surpresa com a leitura da carta. Esta anunciava-lhe a partida, a
ausência de Jorge, a entrada dele no colégio de Arcueil e a resolução do Sr. Dormere de passar
a viver sozinho, de futuro. Rogava-lhe instantemente que internasse Veva num pensionato,
cuja escolha deixava ao cuidado da prima, e acrescentava que o Rame devia tratar de arranjar
colocação o um lugar qualquer, pois estava decidido a não voltar a Plaisance senão depois de
estar certo de não encontrar os que lhe tinham ocasionado, a ele e ao filho, aqueLa
humilhação que nunca mais poderia esquecer.

Plaisance fica abandonada

Esta carta surpreendeu e descontentou Primerose a tal ponto, que sentiu a imperiosa
necessidade de comunicar a alguém o conteúdo da mesma; chamou, pois, Genoveva e Pelágia.

PRIMEROSE - Ora, minha querida amiga e minha boa Pelágia, temos grossa novidade ! Uma
notícia inacreditável. Quereis saber a grande asneira do disparatado do meu primo e Sr.
Dormere? Pois deixou Plaisance, levando consigo o tratante do Jorge.

PELÁGIA - Deixou? Para onde? E qual a razão?

PRIMEROSE - Para onde não sei, como também

ignoro a razão, minha querida; ele não o diz, mas é, com certeza, por causa do maroto do filho.

GENOVEVA - E quando é que o tio voltará?

PRIMEROSE - Aí é que está o ponto mais odioso. Diz que só voltará quando todos nós - eu, tu, a
Pelágia ?? e o Rame - tivermos abandonado a casa para não mais cá pormos os pés.

GENOVEVA - Ai ! meu Deus ! Então ele põe-nos fora a todos? E o motivo ? Pois que fizemos
nós ?

PRIMEROSE - Vós não o sabeis, pobres infelizes, mas sei-o eu. Põe-nos fora, porque o Jorge é,
como já disse, um tratante, um patifório, um valente malandro.

GENOVEVA - Então, que foi que o Jorge fez? Não percebo nada.

PELÁGIA - Também eu não: e não entendo coisa alguma.

PRIMEROSE - É que eu guardei o segredo de uma cena terrível passada no quarto de Jorge.

Contentíssima por lhe ser dado descartar-se de um segredo, Primerose contou por miúdos,
com os pormenores mais desagradáveis para o Jorge, toda a fita que desenrolara às três horas.
A indignação de que estava possuída foi partilhada por Pelágia e, até, pela Veva, que ficara tão
aflita com a mágoa do Rame.

VEVA (chorosa) - Meu Deus, que vai agora ser d nós, do pobre Rame, da Pelágia e de mim? E a
prima que tem sido de tanta dedicação para mim, que tanto bem me fez, e que eu tanto
estimo e venero, vai também abandonar-nos? Não a hei-de tornar a ver?

PRIMEROSE (em ar decidido) - De maneira nenh ? ma, pobre amiguinha; sossega; hei-de ver-te
e tu hás-de ver-me, hás-de ver a Pelágia e o Rame. Tenho cá meus planos, e conto bem ir
envergonhar esse paxá para vingar o seu querido menino do vexame de que pela sua
malvadez, foi causa, pretende vexar-nos a nós. Ai meu rico primo! Queres apanhar-nos a todos
na mesma rede julgando castigar-nos, não é assim? Pois muito te enganas; não levas a melhor;
estou aqui para te descobrir o jogo e cortar-te as vazas. Eis o que vou fazer: alugo uma casa em
Auteuil, às portas de Paris, e instalo-me nela contigo, com Pelágia e o Rame. Tu entras como
externa nas Damas da Assunção, mas comes e dormes em minha casa; descansa, que viverás
tranquila e feliz. O tio ficará enraivecido, mas não farei caso dele; antes, aproveitarei todas as
ocasiões de o fazer remorder-se.

GENOVEVA (beijando-a) - Muito obrigada, minha

boa prima,pela sua feliz ideia; mas o tio estará pelos

ajustes?

PRIMEROSE - Que remédio! A carta dele autoriza-me a fazer de ti o que eu melhor


entender.Ora,eu quero isto e ele não mo pode impedir.

PELÁGIA - Mas deixe-me observar-lhe, menina, que me parece que a instalação vai ser muito
dispendiosa.

Sente-se com forças para arcar com tamanha despesa?

PRIMEROSE - Esteja tranquila a esse respeito,minha boa Pelágia; antes de mais nada,tenho
rendimentos

suficientes; e,depois,não acha que ele terá de pagar o ?

sustento da sua pupila? Obrigá-lo-ei a entregar-me a importância necessária, anualmente, para


ela e para o pessoal ao seu serviço,e sempre quero ver se mos recusa,

com a fortuna que ela possui.Estou contentíssima por

ter tomado esta resolução.Azema,ó Azema,anda cá depressa.

A criada entrou.

- Às ordens da senhora.

PRIMEROSE - Tens de ir amanhã de manhã a Paris.

Diriges-te a Auteuil,percorres todas as ruas que dão para


o convento da Assunção,entras em todas as casas que

estiverem para alugar.Preciso de uma onde se possa alojar ?

uma senhora com uma menina de dez a doze anos,uma

criada de quarto e um criado; que tenha sala de jantar,

sala de visitas,quartos de cama,sala de estudo,etc.Percebeste?

AZEMA - Percebi,sim,senhora.

PRIMEROSE - Se deres com uma casa que tenha

jardim,melhor será.

AZEMA - Pois sim,minha senhora.

PRIMEROSE - Que tenha cozinha, antecâmara, adega, ? loja para lenha, celeiro.
Entendes?

AZEMA - Entendo, sim, minha senhora.

PRIMEROSE - Bem; tomas o comboio das sete ? horas, amanhã de manhã, e voltas à tardinha,
ou mais cedo, se mais depressa encontrares o que te peço. Percebes?

AZEMA - Não é dificil de perceber. Só uma idiota

- o que eu não sou, graças a Deus - deixaria de compreender coisa tão simples.

Temporada de pensionato e de colégio

O plano de Primerose cumpriu-se com felicidade; foi ver a casa que Azema lhe indicara e que
ficava pertinho da Assunção; as senhoras do pensionato consentiram em açeitar a menina
Dormere como externa com a modificação da refeição do meio-dia. Genoveva devia chegar às
oito horas da manhã e só voltar a casa da prima às seis horas, para o jantar; aproveitava, desta
forma, os recreios com as companheiras. Rame ou Pelágia acompanhavam-na e, de tarde, iam
buscá-la. Pelágia encarregava- se da cozinha.

Veva sentia-se inteiramente feliz. A prima Primerose levava-a a casa do tio uma ou duas vezes
por mês; às vezes, encontrava-se lá com Tiago, que também a ia ver a Auteuil, mas não com
Jorge, cujas saídas não coincidiam com as dele, do que nenhum tinha pena. ?

Nos sete anos que Genoveva passou no convento, não foi vez nenhuma passar as férias a
Plaisance; o tio levava Jorge às Termas e a casa dos parentes ou amigos. E Genoveva ia todos
os anos com Primerose, Rame e Pelágia, ou a banhos de mar, ou à Suíça, perto de Genebra,
onde Primerose tinha uma tia idosa que lhe queria muito e que dedicava à Genoveva uma
grande afeição.
Durante esse tempo, Jorge tornava-se cada vez mais preguiçoso, indisciplinado e mau.
A primeira comunhão, que incutira em Genoveva uma boa e sólida piedade, não produziu
efeito algum no coração e na alma de Jorge. Ao deixar o colégio de Arcueil aos dezoito anos,
instalou-o seu pai em Paris para concluir os estudos. Mas a liberdade que tinha só lhe serviu,
não para trabalhar, mas para gastar à larga e fazer disparates; ia frequentes vezes ao teatro,
oferecia aos amigos almoços e jantares nos mais caros restaurantes; finalmente, tornou-se um
gastador e um valdevinos. Apesar da liberdade do pai, contraíra dívidas, que não ousava
confessar.

Bem diverso era o procedimento de Tiago. Depois de um curso brilhante no colégio de


Vaugirard, continuou com igual ardor a preparar-se para o exame de bacharelato, sendo
aprovado com distinção. Estudou, depois, Direito, fez provas brilhantes e alcançou o grau de
doutor em Letras.

Nesses dez anos nunca ele descurou as boas relações com a priminha e a amiga Genoveva, e
bem assim com Primerose. Enquanto estava no colégio, encontrava sempre tempo, todas as
vezes que saía, para estar com elas uma ou duas horas. Depois de sair do colégio, quando
dispunha de mais liberdade, nunca deixava passar mais de dois dias sem as visitar, e
consagrava-lhes sempre os domingos; assim foi que a amizade das duas crianças não sofreu
interrupção, convertendo-se numa amizade fraterna, verdadeiramente afectuosa.

Jorge, esse, não tornara a ver Veva durante os dez anos de separação; tinha ela agora dezoito
anos, e deixara o convento havia dois anos.

Ao cabo de tanto tempo, o Sr. Dormere convidou Primerose e Veva a irem passar um ou dois
meses a Plaisance.

- Também cá estará o Jorge - disse ele -, de forma que se avivarão as nossas relações.Genoveva
deve estar agora uma senhora; e como o Jorge vai já nos vinte e três,não há motivo para
recear as antigas altercações.

PRIMEROSE - Aceitamos com prazer,primo.Genoveva tem saudades de Plaisance; deve gostar


muito de lá

ir ver o Jorge.Tenho,porém,a fazer-lhe um pedido,meu

primo.

SR.DORMERE - Concedido de antemão,minha prima. ?

PRIMEROSE - Há-de permitir que o Rame e a Pelágia vão connosco para o nosso serviço
particular.

SR.DORMERE (sorridente) - Mas isso nem é preciso dizer,prima; podia lá o pobre Rame passar
sem a sua patroinha !

Ficou combinado que a chegada a Plaisance fosse oito dias depois de começarem as
férias,quando Jorge estivesse liberto dos estudos.Rame ficou encantado por se

encontrar de novo em Plaisance,com Veva,a quem já


não chamava patroinha,mas jovem patroa,ou linda patroa.Veva proibira-o de lhe chamar linda
patroa,mas- pela primeira vez - ele negou-se a obedecer.

RAME - Boa patroinha,deixar Rame dizer linda patroa; menina ser tão linda ! Toda a gente
dizer : Oh ! que

linda menina! Oh! o Rame feliz por ter tão linda patroa.?

Rame,vaidoso e contente,por dizer linda patroa.

GENOVEVA - Faz como entenderes,meu bom Rame: mas fica certo de que é muito ridículo.

RAME - Quê isso fazer ao Rame? Mim rir de

ridículo. Mim dizer: linda patroa.

O mais que pôde obter foi que o Rame a não tratasse por linda patroa quando se lhe dirigisse.
Ao chegarem à estação de Plaisance, Genoveva e Primerose encontraram o Sr.Dormere que as
esperava com a carruagem,atenção esta que muito as sensibilizou e que muito lhe
agradeceram.

SR.DORMERE - É muito natural que venha recebê-las para voltar a instalá-las em minha casa,
onde as espera o Jorge.

GENOVEVA - Que eu estimarei tornar a ver, tio; há que tempos o não vejo!

SR. DORMERE - Também ele aguarda com muita impaciência

a tua chegada.

Pouco depois,desceram da carruagem.

Jorge não estava em casa, o que visivelmente contrariou o Sr. Dormere.- Onde estará ele -
disse de mau humor.

Enquanto as senhoras subiam aos conhecidos aposentos,e Pelágia desatava os embrulhos,com


a ajuda

de Rame, foi o Sr.Dormere à procura do filho. Jorge acabara de se preparar; vaidoso,mirava-


se e

remirava-se ao espelho do guarda-fato,dando a perceber, no seu todo satisfeito,que tinha


garantido o triunfo.

Deixando o pai,foi ter com Genoveva aos aposentos

desta,a cuja porta bateu.

Ouvindo uma voz meiga dizer: entre, abriu e deteve-se à porta um instante.

GENOVEVA (correndo para ele) - Ah ! és tu, Jorge? Que satisfação a minha em tornar a ver-te!
Há que tempos não me era dado esse prazer!
Jorge beijou-a várias vezes antes de poder falar. Parecia comovido.

JORGE (enternecido) - Veva! Minha prima, minha irmã, quão feliz me sinto por tornar a ver-te!
Tanto tenho pensado em ti! Que felicidade a deste encontro!

Deteve-se, olhou em torno e prosseguiu em ar contrito:

- Este quarto traz-me ao pensamento recordações bem tristes. Foi aqui que pratiquei uma
acção cuja vergonhosa lembrança me perseguiu por muito tempo. Conhecia bem quanto
merecera o teu desprezo!

GENOVEVA - O quê? Pois ainda pensas nisso, depois de terem decorrido tantos anos? Que
disparate, Jorge! Cuidas que te avalio pelos actos da tua infância, e te conservo rancor? Tudo
isso se desfez como um sonho. Deves esquecê-lo, como eu fiz, e começarmos vida nova de
sincera amizade, sem pensarmos nos tempos distantes da nossa infância.

Primerose entrou; Jorge adiantou-se para ela, beijando-a com ternura.

PRIMEROSE (admirada) - Então gostas de mim? Supunha que continuavas a odiar-me.

JORGE (com animaÇão) - Odiá-la, eu? Ah! prima, não me avalie pelo meu triste passado; há
muito que desejava tornar a vê-la, a fim de lhe renovar espontaneamente as desculpas que o
pai me obrigou a pedir- lhe a última vez que a vi; aguardava impaciente o dia em que nos
encontrássemos nesta mesma habitação, onde a prima me conheceu tão mau.

PRIMEROSE (friamente) - Tudo isso te fica muito bem, meu amigo; mas, porque não me foste
visitar a Auteuil ?

JORGE - Ai, prima, como eu tinha os dias ocupados ! Cursos a seguir, exames a
preparar. . . Tinha lá tempo para os amigos!

PRIMEROSE (em tom zombeteiro) - Não venhas com tretas! Cuidas que não sei dos teus
jantares elegantes, dos espectáculos e outros divertimentos? Acabemos logo com esta
comédia; eu não tenho dezoito anos, como? Veva; não armes ao sentimento, ao
arrependimento. O que tu queres sei-o eu, mas estão verdes; não é para ti garanto-te. Deixa-
nos acabar as nossas arrumações: iremos já ter contigo à sala de jantar.

Jorge saiu sem responder, irritadíssimo contra a prima que lhe inspirava a mesma antipatia de
outrora.

Se fosse possível afastá-la - pensava ele -, pô-la a andar! Esta doida solteirona vai estragar os
planos de meu pai, e fico sem a Veva. E a tolinha sem me defender, sem uma palavra em meu
favor! Mas que linda que ela está! E com oitenta mil libras de rendimento! É absolutamente
preciso obrigá-la a consentir em tornar-se a Sr. a Dormere.

E foi contar ao pai a sua derrota junto de Primerose.

- Imagine, meu pai - disse terminando a história -, que ela teve a maldade de recordar a peça
que lhe preguei, estragando-lhe o retrato do negralhão. Nem sei como me contive. Isto é
desagradabilíssimo.
SR. DORMERE - E como te recebeu Veva?

JORGE - Recebeu-me admiravelmente; já não pensa em nada; esqueceu tudo.

SR. DORMERE - Isso é o que importa. Sê amável e

solícito junto dela, e conseguirás que te ame.

JORGE - Não peço outra coisa. Mas se casar com

ela, porei na rua essa solteirona, e proibirei Veva de tornar a vê-la.

SR. DORMERE - Não se trata ainda disso; o que importa, para já, é agradar a
Veva.

JORGE - Vou fazer todo o possível, pode ficar certo. Elas não tardam aí, pois são quase horas
do jantar.

Pai e filho passaram para a sala de visitas, onde esperaram as senhoras.

Ao primeiro toque da sineta, Primerose e Genoveva desceram. Depois de umas palavras ao tio,
Genoveva aproximou-se de Jorge, que se pusera um pouco de lado a examinar a prima com
atenção.

GENOVEVA - Já não estavas acostumado aos acessos de franqueza da prima, meu pobre Jorge;
mostras-te preocupado; suplico-te que não lhe conserves rancor nem suponhas que partilho o
ressentimento dela a respeito do teu prolongado esquecimento. Acho até muito natural:
vivíamos tão isoladas! Eu uma menina, e tu um rapaz feito e entregue a estudos de
responsabilidade.

JORGE - Estou-te muito agradecido por me sossegares sobre os teus sentimentos para comigo;
não era, porém, na prima Primerose que eu estava a pensar, mas sim em ti, cuja graça,
elegância e distinção não me farto de admirar. Não te tinha visto bem esta manhã, tão enleado
fiquei; mas agora que te vejo à vontade compreendo que ninguém se canse de te ver e ouvir.
Nem o encanto da voz te falta.

Í? GENOVEVA (séria) - Jorge, não digas tolices dessas, a que não estou habituada e tanto me
desagradam.

JORGE - Porque te desagradam?

GENOVEVA - Porque abomino o exagero, mesmo quando em meu proveito. Não procedas
comigo como um rapaz que vê pela primeira vez uma rapariga; sejamos como velhos amigos,
embora novos na idade, com a sem-cerimónia existente entre irmãos.

? JORGE - Visto assim o quereres, assim o farei; espero, porém, que não me proíbas de olhar
para ti.

VEVA - Oh ! lá quanto a isso, faz como entenderes, certo de que me não incomodas.
JORGE - E permites que vá ter contigo para conversarmos sempre que tenha tempo
disponível? ?

GENOVEVA - Sempre que te aprouver, meu amigo; ? exactamente como naqueles tempos da
nossa infância Í Não faço cerimónia contigo; se me encontrares a ler, ou a escrever ou, ainda, a
pintar, não me estorvarás com a tua presença. Mas, onde foi que se meteu o tio?

JORGE - Naturalmente, foi mostrar à prima Prim? rose as transformações operadas no seu
gabinete de tra? balho, que já não é na biblioteca.

Anunciaram o jantar. O Sr. Dormere, dando o braço a Primerose, entrou na sala. Puseram-se
todos à mesa:

Veva esteve muito alegre, muito viva; desaparecera-lhe o medo que, em tempos, lhe inspirava
o tio. Este sentia-se maravilhado com o espírito e o encanto da sobrinha, em quem já não via
rastos da rapariguinha tímida, da menina medrosa de outros tempos; achava-a encantadora;
sentindo-se contente ao pensar que havia, um dia, de ter por nora aquela rapariga, dotada de
tão belos predicados.

Primerose rejubilava com o êxito alcançado pela sua priminha, que tão bem educara, e que lhe
devia grande parte do que era. Jorge, esse falava pouco : temia a troça e a clarividência de
Primerose, contentando-se em não tirar a vista de cima de Veva e de aplaudir tudo o que ela
dizia.

Acabado o jantar, deram um demorado passeio, após o qual houve uma partida de cartas
entre Primerose e o

Sr.Dormere, enquanto Veva desenhava no álbum,sem

deixar de conversar com Jorge.

- Tu sabes desenhar? - perguntou ela.

JORGE - Muito pouco; apenas o bastante para traçar figuras matemáticas e levantar uma
planta.

VEVA - Mas isso é utilíssimo.Gostas de música?

Tocas algum instrumento?

JORGE - Não,nunca tive tempo de me dedicar à

música.

VEVA - pois é pena ! A música é uma distracção

muito agradável.

Passou-se assim a noite sem aborrecimento; os dias


seguintes tiveram a variante da presença de alguns vizinhos,convidados pelo Sr.Dormere a
virem ver sua sobrinha. Os primeiros a acorrer foram a Sr.a. a Saint-Aimar e seus filhos Luís
e Helena; foi com verdadeira alegria

que os amiguinhos da infância se tornaram a ver.Esta

senhora felicitou muito o Sr.Dormere e a sua velha amiga Cunegundes Primerose,pela


beleza,graça e encanto de Genoveva.

SR.ª SAINT-AIMAR - Agora que ela está com dezoito anos,o Sr.Dormere não pensa em casá-la?

SR.DORMERE - Não,ainda não: daqui a um ou dois anos.

Esta resposta pareceu causar satisfação à Sr. Saint-Aimar,que havia dez anos pensava em casar
seu filho Luís com Genoveva,e Helena com Jorge.

O Sr.Dormere saiu um momento para dar ordens a alguém que o estava esperando,ficando as
duas amigas sós.

SR.a SAINT-AIMAR - Cunegundes, favorece o encontro de Veva com Luís o mais possível: tanto
queria que ela fosse minha nora! É um amor, e então riquíssima. Que belo partido para o meu
Luís!

PRIMEROSE - Isso deve surgir naturalmente, Cornélia; bem sei que acarinhas esse projeeto
desde a infância de ambos, e bem assim o de unires a Helena ao Jorge. Pois, deixa correr as
coisas naturalmente, porque, se te intrometes no caso, escangalhas tudo.

SR.a SAINT-AIMAR - Quem te disse que já penso nisso há muito? Foi uma ideia que me ocorreu
à vista da encantadora Genoveva.

PRIMEROSE - Ora, ora, ora! Conheço-te bem, e de há muito que to li no pensamento.

SR.a SAINT-AIMAR - Em vez de me ajudares vais-me contrariar o projecto, não? ?

PRIMEROSE - Não contrariarei coisa nenhuma, minha querida; Luís é um rapaz encantador, e
eu muito es timaria vê-lo casar com Veva. Outros há, porém, com os mesmos projectos, a
quem eu só não contrariarei se não puder.

SR.a SAINT-AIMAR - Então quem é?

PRIMEROSE - Não se apresentou ainda ninguém abertamente, mas há quem se prepare para
isso.

SR.a SAINT-AIMAR - Quem é? E com quem é que ele a pretende casar? És minha velha amiga;
podes, pois, contar-me o que souberes.

PRIMEROSE - Pois bem; fica sabendo que o Sr. Dormere destina Veva para o Jorge.

SR.a SAINT-AIMAR - Para o Jorge! Primo direito dela! Pessoa que ela detestava, pelas maldades
que lhe fazia! O Jorge, de quem me disseste tanto mal e que, rosna-se para aí, não tem feito
senão asneiras desde que saiu do colégio!
PRIMEROSE - Nada disso impede que o pai - que permanece cego perante os defeitos
do filho, e que sabe que Veva com a sua enorme fortuna será uma nora esplêndida - não esteja
muito decidido a casá-la só com o Jorge, negando o seu consentimento a qualquer outro
pretendente.

SR.a SAINT-AIMAR - Mas se Veva recusar o Jorge? Se amar o meu filho, que remédio terá o Sr.
Dormere senão dar o seu consentimento? Em último caso, esperará pelos vinte e um anos,
para casar com quem lhe apetecer.

PRIMEROSE - Preveni-te, não é verdade? Faz agora como te aprouver, mas cuidado, não vás
comprometer a felicidade do pobre Luís. Não lhe toques no assunto, que é o mais sensato; isso
não impedirá de lhe vir ter à mão o que tiver de ser dele.

A Sr.a Saint-Aimar não respondeu, mas ficou pensativa, reservando para mais tarde a execução
da sua ideia.

Fatalidade

Decorreram quatro dias sem que se operasse transformação alguma em qualquer das
situações; só Genoveva

enfastiada com as assiduidades de Jorge e com os forçados madrigais que ele lhe
dirigia,começou a evitá-lo quanto podia,sem susceptibilizar o tio nem o próprio
Jorge.Manifestava,pelo contrário,grande tern ra pelo Sr.Dormere e procurava tornar-se o mais
útil possível.

Uma vez em que o tio lhe falava em arrumar a biblioteca e no cansaço que tal trabalho lhe
ocasionava,ela

propôs-se ajudá-lo. Foi com prazer que o Sr.Dormere aceitou o oferecimento. Puseram-se a
alinhar os livros segundo uma nomenclatura nova. Eram nada menos de cinco a seis mil

volumes. Ocupavam quase metade do salão,e eram separados por arcadas,formadas por
quatro volumosas colunas; as primeiras colunas de cada extremidade estavam

encostadas à parede,que tinha ainda mais um metro pelo

menos de profundidade,de maneira que uma pessoa que

estivesse a arrumar os livros em tais compartimentos estava ali quase escondida.

Ora,certa manhã,trabalhavam o Sr.Dormere e Veva

afanosamente em mudar das prateleiras os volumes desordenados.O Sr.Dormere lia os títulos


dos volumes

e passava-os à Veva, que os alinhava num desses compartimentos, um pouco obscuro, numa
das extremidades da biblioteca. Bateram à porta; o Sr. Dormere abriu-a e deu de rosto com o
ajudante do seu notário.
AJUDANTE - Trago-lhe, senhor, os vinte e cinco mil francos que pediu ao Sr. Merville.

SR. DORMERE - Ah ! muito bem; estava à espera deles, para pagar a casa que mandei fazer
para meu filho ano passado. Queira contar o dinheiro, que eu entrego-lhe o recibo, que já está
preenchido. Desculpe-me de o receber assim com esta pressa. De facto, estou com pressa,
pois ainda tenho de concluir um trabalho.

O ajudante do notário tirou da pasta as notas - dois maços de dez e um de cinco - e entregou-
os ao Sr. Dornere (que lhe deu o recibo sem as tornar a contar), cumprimentou e retirou-se. O
Sr. Dormere pousou os maços na escrivaninha, e prosseguiu no seu trabalho com Genoveva,
que aguardava no seu lugar oculto, continuando a tarefa por meia hora ainda.

Bateu à porta um criado.

SR. DORMERE - Quem é? Entre.

CRIADO - É a conta do marceneiro, que está no ?rio à espera do patrão.

SR. DORMERE - Dê cá. (O Sr. Dormere pôs-se a examinar a conta.) Mande-o entrar para o meu
gabinete. Já lhe falo.

O criado saiu.

SR. DORMERE - Vou deixar-te, Genoveva; tenho de verificar esta conta com o marceneiro que
me apresenta uns preços exorbitantes. Se não estiver de volta dentro de meia hora, podes
retirar-te, mas tem o cuidado de fechar a biblioteca à chave, por causa do dinheiro que fica em
cima da mesa.

GENOVEVA - Pois sim,meu tio; fique descansado

que não esquecerei.

E o Sr.Dormere saiu,deixando Genoveva só.Pouco

depois,esta ouviu à porta um leve ruído.Olhando pela fenda que existia entre a coluna e a
parede,viu Jorge meter a cabeça para dentro e a chamar o pai.Como não

? obtivesse resposta, entrou.

JORGE (a falar sozinho) - Olha, saíram ! Cuidava

que Genoveva estava aqui com meu pai.Ainda bem,porque

já me começa a enfastiar o andar a fazer a corte a essa

rapariga, que já há dias se mostra fria para comigo;

Contudo,não quero largá-la; com o auxílio de meu pai?

? ela terá de casar comigo,fazendo-me senhor da sua riqueza.Tenho dívidas que andam
à roda de seis a sete mil francos ; e como pagá-las ? Se meu pai soubesse,ficava
fulo. Vou dizer-lhe que trate de apressar o casamento. Todavia,é bem aborrecido enforcar-se a
gente tão nova,

mas é preciso...Necessito de dinheiro.

Falando assim consigo,foi-se aproximando da secretária e deu com as notas.

- Olha ! Tantas notas ! Quantas serão ?

E pôs-se a contá-las:

- Vinte e cinco! Que satisfação a minha se tivesse

tudo isto! E que imprudência esta de as deixar à vontade num aposento onde pode entrar toda
a gente.O primeiro a aparecer podia levá-las...sem vir a saber-se quem

era o autor do furto...Esta é que é a verdade...E se eu

pegasse nalgumas ?...O pai nem dava por ela...nem

sabe quantas aqui estão...É pouco metódico,este querido pai...Se eu lhe desse uma lição? Para
o futuro seria

mais cuidadoso... E não sou eu o seu filho único? Tudo o que ele tem me pertence.Não
prejudicaria,portanto,ninguém.

De novo, Jorge olhou à roda e, não vendo ninguém, nem ouvindo outro barulho que
não fossem as pulsações precipitadas do seu próprio coração, pegou nas notas, fez um maço
de dez que meteu no bolso do casaco, deixou o resto num só maço na escrivaninha e saiu em
bicos de pés, receoso de ser apanhado.

De facto, foi encontrado no corredor por Primerose, que o fez parar. Jorge
olhou para ela com ar sobressaltado.

PRIMEROSE - Aonde vais assim tão apressado? Que tens, que Pareces tão agitado! Onde ficou
Veva? Ter- lhe-á sucedido alguma coisa?

JORGE (perturbado) - O quê? A quem? Que aconteceu?

PRIMEROSE - Sei lá. . . Mas tu não pareces estar bem. Sentes-te doente ?

JORGE - Não. . . sim. . . nem sei ao certo. . . não me sinto bem. Vou recolher ao quarto.

PRIMEROSE - Anda ao meu quarto; vou preparar-? qualquer coisa para tomares. De facto,
estás muito pálido.

JORGE - Não, não, obrigado. obrigado, prima, isto não é nada. Trabalhei demasiado. . Vou
descansar até ao almoço.

Jorge deixou-a, apressadamente, indo fechar-se no quarto.


Meu Deus ! Que medo não tive ! Que enguiço encontrar esta mulher terrível! Sabe Deus o que
irá dizer a meu pai. Contanto que ele não desconfie de nada. . . Ela é tão bisbilhoteira!. . Por
sorte, tenho tempo para me preparar.

Enquanto, de facto, o Jorge se preparava para o que viesse, a desventurada Genoveva estava
mais morta do que viva; vira tudo e tudo adivinhara pelas palavras que escaparam ao primo; e
quanto mais via e ouvia, mais tremia com receio de ser vista. Continha a respiração, comprimia
as pulsações do coração, a tremura dos membros. Ao ver, enfim, tornar a fechar-se a porta e
ao ouvir afastarem-se os passos de Jorge,saiu do canto obscuro onde se encontrava
escondida,e procurou chegar a uma poltrona,o que conseguiu,apesar do tremor dos seus
joelhos, caindo nela quase desmaiada.

Que monstro! - disse para consigo. - Roubar o pai, que se mostra tão bom para ele, tão
indulgente. Que irá agora pensar meu tio ao dar pela falta dos dez mil francos? Contanto que
não suponha...E erguendo-se precipitadamente ante a ideia de poder ser acusada do
roubo,soltou um grito de horror e desfaleceu outra vez.

Mas refez-se prontamente do susto.

Meu Deus, meu Deus, valei-me! - exclamou.-

Meu Deus Vós não podeis permitir que meu tio tenha

um pensamento tão horroroso !...Não não,não é possível!...É impossível! - repetiu ainda.

Indo para o quarto,debulhou-se em lágrimas.

Cena terrível

? Vendo chegada a hora do almoço, Genoveva lavou

os olhos, bebeu uns golos de água fresca, invocou Deus

e a Santíssima Virgem,o seu Anjo da Guarda, e sentiu-se

mais aliviada.

Tocaram para o almoço. Genoveva desceu à sala

onde encontrou reunidos o tio, a prima e o Jorge, sorridente e solícito.Viu-se obrigada a lançar
mão de todas as forças para não deixar transparecer o nojo que ele lhe

inspirava.

Primerose depressa notou a perturbação de Veva.

PRIMEROSE - Que é que tu tens,menina? Tão pálida e de olhos vermelhos !

VEVA - Nada,prima; só uma ligeira dor de cabeça


que o descanso fará desaparecer.

SR.DORMERE - Contanto que não seja o cansaço

do nosso trabalho na biblioteca! A propósito, lembraste-te de tirar a chave antes de sair?

VEVA - Sim,meu tio; aqui a tem.

SR.DORMERE - Ai ! pobre menina ! Como te treme

a mão! Estás realmente doente.

VEVA - Não há-de ser nada; rogo-lhe que não se

aflija.

Jorge olhou para ela, admirado. Ofereceu-lhe um copo de vinho; ela, porém, repeliu-o com
um olhar que o perturbou.

JORGE - Cansaste-te assim antes do almoço, Genoveva? Não respondes? Assusta-me a tua
palidez.

VEVA - Garanto-lhe que não é nada. Passa com o almoço.

JORGE - Que significa isto? - pensou para consigo. - Já não me trata por tu ; deitou-me uns
olhos. . Desconfiará de qualquer coisa?. . . Teria visto?. . . É impossível; lá, só estava eu. Além
de que, mesmo que desconfiasse, ela é boazinha e nada diria. . . Para mais, nem meu pai
acreditava.

E acabou por se tranquilizar, convencendo-se de não ter sido visto, pois estava sozinho.

À Veva pareceu o almoço de uma lentidão insuportável. Primerose não despegava dela o olhar
inquieto. Finalmente, levantaram-se da mesa, passando todos ao salão. O Sr. Dormere saiu
dizendo:

- Vou à biblioteca guardar o dinheiro que me enviou o notário; tenho de pagar ao marceneiro,
que me apresentou uma conta de três mil francos, e está à minha espera.

Mal o Sr. Dormere saiu, Primerose, desconfiada de que Jorge fosse o culpado da agitação de
Genoveva, acercou-se dele e disse-lhe em voz baixa:

- Que é que tem a Veva, Jorge? Aposto que lhe disseste alguma das tuas, o que não devias ter
feito.

JORGE - Nem sequer a vi ainda hoje, minha prima. Estou também inquieto com o seu estado,
sem, contudo, lhe saber a causa.

PRIMEROSE - Vai falar-lhe e pede-lhe que ta diga; talvez tenha mais confiança
em ti do que em nós.

E Jorge atreveu-se a acercar-se de Veva, sentada, ou melhor, caída numa poltrona. Quis pegar-
lhe na mão, mas ela retirou-a com vivacidade.
GENOVEVA - Não me toque; proíbo-o de o fazer.

JORGE - Ah! Genoveva, que desgosto me causas com palavras tão desagradáveis, a mim, teu
primo, teu amigo e talvez ainda mais do que isso.

GENOVEVA - Já o proibi de me tocar, senhor; proíbo-o agora de me tratar por tu. Para mim o
senhor não é nem será nunca mais do que primo, título que não lhe posso tirar.

JORGE - Mas, por Deus, Genoveva, dize: que mal te fiz, para assim me tratares?

Antes de Veva poder responder, voltou o Sr. Dormere, muito perturbado.

SR. DORMERE - Ó Genoveva, tu lembras-te da ?? quantia que me deixou o ajudante do


notário?

GENOVEVA - Lembro, sim, tio: foram vinte e cinco

mil francos.

SR. DORMERE - Pois eu não encontro lá senão quinze mil.

Veva não respondeu.

SR. DORMERE - Ó Genoveva. . . entraria alguém na biblioteca, enquanto lá estavas sozinha?

Veva não respondeu.

SR. DORMERE - Que quer dizer esse silêncio, Genoveva? Intimo-te a dizeres- me se lá entrou
alguém depois da minha saída.

GENOVEVA (em voz quase extinta) - Entrou sim, meu tio.

SR. DORMERE - Quem era?

GENOVEVA (no mesmo tom de voz) - Não posso dizer-lho, meu tio.

SR. DORMERE (irritado) - O quê? Não mo podes dizer? Pois deves dizê-lo e quero que o digas.

GENOVEVA - Não devo, nem quero dizer-lho, meu tio.

SR. DORMERE (também no mesmo tom) - Queres então tornar-te cúmplice do roubo,
recusando-te a dizer? -me o nome do ladrão?

? GENOVEVA - Cúmplice de um roubo, eu? Oh! meu tio!

SR. DORMERE - Escuta. Faço-te ainda uma pergunta, a que tens de responder, sob pena de me
levar a apresentar queixa contra o ajudante que deixou ficar as notas sem eu as ter contado
diante dele.

GENOVEVA - Pobre homem! Está inocente. Só partiu depois de ter contado e deixado as notas
na escrivaninha do tio.
SR. DORMERE - Julgas então que as dez notas que faltam foram levadas pela pessoa que viste
entrar?

GENOVEVA (após curta hesitaÇão) - Julgo que sim, meu tio.

SR. DORMERE - Viste-a pegar nelas e levá-las?

GENOVEVA - Vi, sim, meu tio, depois de as ter contado.

SR. DORMERE - E então não me queres dizer om nome dele? Preferes fazer-me suspeitar de
todas as pessoas da casa, em vez de me revelar um miserável, um gatuno, que talvez torne a
roubar-me?

Genoveva não deu resposta.

Durante o interrogatório, Jorge estava mais morto que vivo. Compreendia, finalmente,
que Genoveva tinha visto e ouvido tudo e que uma palavra dela o ia perder para sempre no
ânimo de seu pai; tremia, pois, à ideia de a ouvir proferir essa palavra; à firmeza dela sossegou
um pouco. Era, porém, sempre de recear que cedesse ? por fim, perante uma insistência a que
se juntassem zanga e ameaças.

Fez-se um silêncio, terrível para o criminoso. O Sr. Dormere, voltando-se para Primerose e para
Jorge, disse-lhes com voz agitadíssima:

- Minha prima e tu, Jorge, fazei-lhe compreender que a generosidade dela me causa um
grande mal. Cono

posso eu viver sossegado, conhecendo que albergo em casa um ladrão, talvez até um
assassino, visto não haver grande diferença entre um roubo tão descarado e u

assassínio? E como posso eu ofender com suspeitas pessoas honradas, antigos servidores
como o Rame, o Pedro, ? Julião e os restantes, e ter de os expulsar por uma acção tão vil e
abominável? Nesta incerteza é que eu não posso ficar; falai-lhe, dai-lhe a compreender a falta
que comete.

Primerose acercou-se de Veva, pedindo e suplicando-lhe que indicasse o nome do gatuno.


Genoveva, porém foi inflexível; chorou, soluçou, beijando a prima que chorava com ela, mas
persistiu na sua recusa. ? Pasmado com esta inexplicável resistência, o Sr. Dormere disse,
encolerizado :

- Muito bem, menina; pois que tanto se obstina em calar um nome que lhe seria tão fácil
pronunciar, vou lançar mão de um processo que me repugna, mas a q sou forçado a recorrer:
vou já apresentar queixa à polícia.

E dirigiu-se para a porta.

Veva soltou um grito, precipitou-se para ele, lançou-se-lhe aos pés, barrando-lhe o caminho e
exclamando:

- Por amor de Deus, em nome de tudo o que tem de


mais querido, não leve por diante a sua ameaça! Meu tio, atenda-me, veja a filha do irmão a
quem tanto queria, prostrada a seus pés, a suplicar-lhe que não conspurque a honra da sua
casa!

SR. DORMERE - A minha casa? Como ficaria a minha casa manchada com uma queixa por mim
feita à justiça?. . A minha casa!

Ficou um instante a reflectir; desenhava-se-lhe no rosto um sentimento de cólera; repelindo


Genoveva com violência tal que a fez cair de rosto no chão, exclamou:

- Desgraçado ! Foi o Rame ! Vou pô-lo na rua e entregá-lo aos tribunais!

GENOVEVA - Rame ! Rame ! Misericórdia, meu Deus!. .

Não acabou a frase e perdeu os sentidos.

- O senhor é cruel ! - exclamou por sua vez Primerose, erguendo Genoveva e deitando-a num
canapé.

SR. DORMERE - Cruel! Cruel com uma desgraçada, cúmplice de um roubo para salvar um
miserável!

PRIMEROSE - Não moleste com tais acusações um anjo de virtude, de coragem e dedicação.

SR. DORMERE - Quem mais posso acusar além do Rame? Pela própria confissão dela, só uma
pessoa entrou na biblioteca, e recusa dizer-me o nome dessa pessoa que, ela o disse, me
roubou os dez mil francos que me faltam.

PRIMEROSE - Isso significa que foi o Rame que pegou neles, ou por outra, que os roubou, pois
é essa a palavra própria?

SR.DORMERE - Isso quer dizer que se tivesse dito

que não vira entrar ninguém, claro estava que o gatuno

só podia ser um amigo ou ela mesma.Mas o medo não

a deixou indicar nenhum nome,porque fácil seria

acobertá-la com o indivíduo que ela apontasse.

PRIMEROSE (com desprezo) - O senhor continua

a ser injusto,a estar obcecado: foi-o,é-o e sempre o há-de ser.Faça o favor de mandar
chamar Rame para me ajudar a levá-la para o quarto; mas não se dirija ao Rame,

nem lhe diga palavra alguma da sua injusta suspeita,pois

mataria a sua sobrinha; sempre quero ver se quer ficar

com remorsos para toda a sua vida: é a última palavra


que lhe digo.

SR.DORMERE - Jorge,vai ajudar a prima a levar

essa rapariga para o quarto.

Este quis aproximar-se,mas Primerose impediu-o de

avançar.

PRIMEROSE - Não lhe toque,senhor; ela proibiu-lho.Saia e chame Rame.

Jorge apressou-se a abandonar o aposento; o pai seguiu-lhe o exemplo.

Pelágia empenhou-se toda em fazer voltar a ?

sI a pobre Genoveva.Um gemido anunciou,finalmente,o seu regresso à vida; pouco depois,


descerrou as pálpebras,

olhou à roda e recuperou os sentidos. Contudo, passou a noite numa agitação horrível. Pela
manhã, Primerose pediu a Rame que fosse chamar o médico. Lançando à patroinha um olhar
doloroso,Rame saiu apressado.Ainda não tinha decorrido uma hora e já ele estava de volta
com o doutor.

DR. BOURDON - A Vevinha está doente, Que tem ela?

Primerose contou, então, o que se passara desde o almoço até à terrível acusação e à ameaça
formulada pelo Sr. Dormere, cujo odioso procedimento estigmatizou com vivacidade. Sem
acusar directamente Jorge, falou dele como de um miserável que só desprezo merecia,
acrescentando ser vontade do Sr. Dormere casá-lo com Genoveva, mas que esta nunca a tal
acederia, pois o detestava e desprezava soberanamente.

Do que ouviu à Primerose tirou o médico uma conclusão nada favorável a Jorge e ao Sr.
Dormere. Talvez

até suspeitasse daquilo que Primerose adivinhara, mas não o deu a conhecer. Agradeceu a
confiança com que Primerose o distinguira, prometendo nada dizer sobre o caso.

PRIMEROSE - Não lhe peço discrição; pelo contrário, peço-lhe que fale, conte e comente, o
mais possível.

DR. BOURDON - Mas, minha senhora, talvez o caso possa prejudicar a menina Genoveva, se for
divulgado.

PRIMEROSE - Prejudicar Genoveva? Ela é bem conhecida para não recear tão ridícula e
absurda acusação; como seja a de favorecer o roubo de um bom e fiel servidor como é o
Rame; quem há aí que acredite que um anjo como ela, com aquele rendimento, encantadora e
mais rica do que precisava, educada por mim, ia cair na asneira de deixar roubar o tio, e de
uma forma tão estúpida? Só um idiota como o Sr. Dormere pode fazer tal suposição! Já o
Doutor compreende a terrível impressão que devia sentir; veja agora o que tem a fazer.
DR. BOURDON - Vou receitar-lhe um calmante e não bastando este, terei de voltar a medicar.

Depois de escrever a receita, de recomendar que arejassem o aposento, que lhe


humedecessem a cabeça com água fria e que, por única bebida, lhe dessem água, o médico foi
reconduzido a casa pelo Rame que, depois, encontrou na farmácia a poção que fora receitada.

Incrível falsidade de Jorge

Ao deixar Genoveva, o médico encontrou o Sr. Dormere, que o esperava à porta. Como ouvira
a carruagem e soubera pela Primerose que nela viera o Dr. Bourdon, aguardara a saída dele
para saber ao certo o estado da sobrinha.

DR. BOURDON - É inquietador o estado dela, senhor. Parece que a pobre menina ouviu
acusações graves e injustas contra certa pessoa da sua particular afeição, a quem muito deve,
e isso indignou-a e aterrou-a a ponto tal, que ficou muito tempo sem sentidos, sinal
inequívoco de uma comoção cerebral, tanto mais grave quanto imprevista.

SR. DORMERE - Como imprevista?

DR. BOURDON - Quero dizer, senhor, que era imprevista a acusação, a verdadeira causa da
doença. Quando se tem verdadeiro conhecimento de uma falta, prevê-se a acusação e espera-
se por ela. A impressão não é a mesma ao ouvirmos acusar falsamente uma pessoa que nos é
cara de uma falta de que é incapaz uma pessoa boa, nobre e franca.

SR. DORMERE - Julga-a em perigo?

DR. BOURDON - Sim, senhor. Se o tratamento que vou praticar não desobstruir a cabeça, é de
recear uma doença cerebral.

SR.DORMERE - Mas está em seu juízo? ?

DR.BOURDON - Sem dúvida,senhor; mas sem saber o que diz.Assim é que repete
frequentemente: é um monstro !... ele cala-se !... não

se acusa! a a,quer matar-me... Tudo isto prova a sobreexcitação do cérebro e a


profunda indignação causada por essa falsa acusação.

Julgando ter dito o bastante para abrir os olhos ao

Sr.Dormere,o doutor cumprimentou e partiu. O Sr.Dormere ficou pensativo e imóvel;


começava a formar-se-lhe no espírito a dúvida.

Teria eu acusado falsamente aquele infeliz? Sei que seria horrível para ela ! E se morre? Pobre
menina ! Seria eu

assassino? Digno remate da confiança da tutela com que me honraram meu irmão e minha
cunhada! Pobre menina ! Só foi feliz nos anos que passou longe de mim,quando a expulsei sem
me preocupar com o seu futuro...Mas porque disse ela : A honra da sua casa? Se foi ela mesma
que me desmascarou ess
Rame..Só ela..

E o Jorge ! - acrescentou numa angústia que lhe fez estremecer todos os membros.Mas
não,sou doido...O Jorge estava presente ! Não disse nada.., É impossível ! Jorge,que é meu
filho,que dispõe de tudo o que é meu.É uma ideia absurda ! O Jorge ! Que pensamentos tolos !
O Jorge ! Ah ! ah ! ah ! Preciso de o chamar,de o ouvir; quero que saiba o que o médico disse...

Estou arrependido de ter falado ao médico..

Restos de compaixão absurda para saber notícias que bem pouco

me importavam.

IApesar das suas deduções, o Sr. Dormere mantinha a dúvida e certa agitação. Penetrou no
quarto de Jorge que ainda encontrou na cama.

- Então, preguiçoso, ainda deitado às nove horas?disse ele, rindo.

JORGE - Passei mal a noite, meu pai; sinto-me cansado.

SR. DORMERE - Também eu não dormi lá muito bem, abalado pela cena de ontem. Sabes que
chego a duvidar da culpabilidade do Rame? E tu?

O Sr. Dormere fitou Jorge, que empalideceu, tendo de se valer de toda a sua coragem para
responder.

JORGE - Eu não duvido; eu tenho a certeza da inocência do Rame.

SR. DORMERE (inQuieto) - Como podes saber da inucência dele?

JORGE - Antes de mais nada, o carácter desse homem, a sua conduta sempre franca e honrada;
e depois, meu pai. . . deverei dizer-lho? Não me atrevo. Pois não compreendeu que, não lhe
confessando o nome do ladrão, quer salvar uma pessoa querida? Quem lhe diz que essa
pessoa não é a Pelágia, a quem julga dever grande reconhecimento ?

- Pelágia! - exclamou o Sr. Dormere. - Acertaste! Foi-se o mistério ! Oh ! Jorge, meu amigo, que
peso me arrancaste ! Pelágia. . . é ela ; tudo se explica. Generosa menina ! Como a fiz sofrer !

JORGE - Já vê, meu pai, quão injusta era a sua acusação e, consequentemente, quanto era
cruel.

SR. DORMERE - Bem vejo, Jorge, e como primeira reparação, vou mandar expulsar Pelágia,
ficando o caso arrumado de vez.

Por esta é que Jorge não esperava. Era um meio infalível de obrigar Genoveva a falar. Era,
pois, necessário? impedir o pai de pôr em execução esta ideia fatal, custasse? o que custasse.

JORGE - Expulsar Pelágia! Por uma simples suspeita! Quer então o pai acabar de a matar? É
indigno, é bárbaro! Porque não manda, então prender também a Primerose e o Rame? Tanto
podem eles ter-lhe roubado os dez mil francos, como a Pelágia. Repito que é matá-la pela
certa. Prender Pelágia, que é a pessoa a quem ela mais quer no mundo!
SR. DORMERE - Mas, meu amigo, não foste tu mesmo que disseste que a Pelágia era a ladra?
Parece-te que? devemos deixar cá em casa semelhante criatura?

JORGE - Só lhe digo isto, meu pai: à menor tentativa sua contra Pelágia ou contra o Rame,
deixo de vez a sua casa, indo imediatamente apresentar-me ao Doutor Delegado, a quem farei
a declaração de que fui eu o ladrão. Está prevenido; faça agora como entender. Vou preparar-
me para o seguir, à primeira voz, à presença do Procurador.

O Sr. Dormere estava aterrado. Só lhe restava um caminho: calar-se e não mais fazer alusão ao
roubo.

SR. DORMERE - Pois bem, farei o que quiseres, Jorge; és cruel com as tuas ameaças.

JORGE - Menos cruel do que foi o pai para com aquela que amo e que há-de ser minha mulher,
já lho disse, pois é esse o único meio de a tranquilizar. Não pense, pois, em resistir, porquanto,
fazendo-o, condena à morte o seu filho.

O pai deixou o quarto do filho e retirou-se para o seu gabinete numa agitação e angústia de
difícil descrição. ?

Estava um dia Primerose no quarto, a desenhar,

quando viu a porta abrir-se e entrar o Sr. Dormere. Susteve um grito prestes a escapar-lhe:

- Saia, saia já, senhor - disse ela, com voz abafada. - Se a menina o ouvisse, recairia no seu
anterior estado. Saia, já lhe disse!

E empurrou-o para a porta, disposta a fechar-lha na cara.

SR. DORMERE - Eu queria saber. . .

PRIMEROSE - Pois não saberá nada; vá-se embora.

SR. DORMERE - Estou numa horrorosa inquietação.

PRIMEROSE - Tanto melhor! Vá-se embora.

SR. DORMERE - Posso lá viver assim. . .

PRIMEROSE - Pois morra para aí, mas desapareça.

SR. DORMERE - É inacreditável. . .

PRIMEROSE - É, na verdade, repelente, vir lançá-la numa recaída.

SR. DORMERE - Ouça-me, por favor, querida prima. PRIMEROSE - Não tenho nada que o ouvir
nem sou sua prima. Abomino-o ; o senhor causa-me nojo !

SR. DORMERE - Vou mandar cá o Jorge, que talvez a prima queira receber.

PRIMEROSE - O patife do seu filho? Será recebido à vassoura, se tiver o arrojo de me aparecer.
E impeliu o Sr. Dormere para o corredor, dando duas voltas à chave, na fechadura. Ele viu-se
obrigado a descer, indo contar ao seu digno filho o insucesso da sua diligência.

JORGE - Tem o pai de esperar até?poder vê-la sem a interposição de ninguém. A solteirona da
prima é um

autêntico dragão; dela nada há a esperar. Daqui a dias o pai entra sem licença de Primerose,
pelo quarto de Pelágia.

Quatro dias depois, sabendo Genoveva já suficientemente restabelecida, visto andar a pé no


quarto, resolveu pôr em execução um plano audacioso: o de escrever a Veva a pedir-lhe a sua
mão como meio de ficar inteiramente reabilitada no espírito do Sr. Dormere.

Eis o que ele lhe escreveu.

Genoveva

A sua doença afligiu- me profundamente; sofri mais do que posso descrever. Fui eu o seu
algoz; o seu desgosto e remorso dilaceram-me o coração. Para maior desgraça minha, amo-a
como nunca supus vir a amá-la. A Veva

é objecto de todos os meus pensamentos. ?? Quanto maior foi a sua coragem e


generosidade em não me denunciar a meu pai, mais eu amaldiçoei a minha fraqueza que me
represou a língua e fechou a boca, durante essa cena terrível em que Veva heroicamente
recusou apontar o meu nome como o do verdadeiro culpado. Esses quarenta dias de
sofrimento foram a justa punição da minha fraqueza, e fizeram desabrochar em nim uma
ternura de que me não supunha susceptível e cuja vivacidade me aterra. Anima-me uma leve
esperança. Consegui arrancar a meu pai a suspeita injusta e terrível que ele, tão
barbaramente, lhe expressou; e para acabar de abrir-lhe os olhos sobre a inocência do seu
fidelíssino Rame, confessei-lhe o meu amor e ardentíssimo desejo de unir à sua a minha vida,
conservando Rame como o mais fiel e dedicado dos seus amigos. Esta declaração acabou de
dissipar-lhe as derradeiras suspeitas. Efectivamente, como pode imaginar-se que eu lhe
quisesse dar uma filha manchada na sua honestidade pela sua cumplicidade num roubo tão
odioso? Ofereço-lhe, pois, uma reabilitação completa ao suplicar-lhe que aceite, com a minha
mão, o meu coração. Pode ficar certa de que passarei a minha vida a expiar tamanha falta da
minha mocidade. A sua resposta é aguardada com uma ansiedade, de que não faz a mínima
ideia; oxalá ela me conduza a seus pés, para ouvir da sua boca o perdão tão desejado.

Seu fiel e dedicado

Jorge

Foi ao Rame que Jorge incumbiu de entregar a carta à sua ama.

Genoveva ficou uns momentos sem a abrir. Como se atreve ele a escrever-me e que terá a
dizer-me?
No entanto, foi-a abrindo; um sorriso de desprezo, cedo convertido em indignação,
acompanhou a primeira parte da carta; ao chegar, porém, à última página, foi tomada de uma
verdadeira cólera.

Genoveva pegou na pena, e, com mão trémula, escreveu estas linhas:

Senhor

Tenho-o em demasiado desprezo para responder seriamente à vergonhosa proposta que se


atreve a dirigir-me. Não lhe explico os motivos desta recusa, ditada pela minha indignação e
pela minha justa antipatia; o senhor não está à altura de os compreender, pois abjurou todo o
sentimento de honra e de moralidade. Ao deixar Plaisance, não levarei nenhum sentimento de
ódio. Pela sua pessoa só tenho o ressentimento de um soberano desprezo e da maior aversão.
Queira, de futuro, não mais me importunar com as suas cartas e, sob pretexto nenhum, com a
sua presença.

Genoveva Dormere

Genoveva chamou o Rame que, fora de costume, tinha saído; foi ao quarto da criada e rogou-
lhe que mandasse entregar aquela carta ao Sr. Jorge.

? Ao voltar para o quarto, Genoveva quis queimar ? a carta de Jorge, temendo que ela caísse
nas mãos do Sr. Dormere ou de qualquer pessoa mal intencionada. Procurou-a, sem a
encontrar. Rebuscou por toda a parte e, ? não havendo meio de dar com ela, veio-lhe ao
pensamento que talvez Primerose a visse e a levasse consigo; foi, pois, ao quarto da prima,
mas ela não estava, sendo-lhe dito pela Pelágia que saíra havia muito para ir dar notí cias de
Veva aos Saint-Aimar, que se sentiam muito in quietos, tendo vindo diariamente saber como a
menina passava.

Consequentemente, não fora Primerose quem cometera a indiscrição de que, todavia, era
muito capaz, continuando no hábito de ler as cartas que a discípula recebia. Veio à ideia a
Genoveva que fosse o próprio Jorge quem tivesse a ousadia de vir ao quarto dela, e vendo a
carta aberta sobre a mesa a levasse prudentemente para a queimar. Não se incomodou, pois,
mais com o caso. Pediu mesmo à Pelágia e ao Rame para não falarem à Primerose nem na
carta dela nem na de Jorge. Preveniu ainda os seus fiéis amigos de que iria rogar a Primerose
para voltarem para Paris o mais cedo possível, a pretexto de mudar de ares para acabar a sua
convalescença. . - Mas preparai tudo, meus bons amigos, sem que nada transpire, para me
evitar uma entrevista com o tio, entrevista que eu ainda não me sinto com forças para
suportar.

A Pelágia e o Rame prometeram nada dizer a quem quer que fosse.

No seu regresso, Primerose estava tão cansada, que se atirou para uma poltrona e pediu um
cálice de vinho e biscoitos para reparar as forças.

GENOVEVA - Minha boa prima, na sua ausência eu estive a pensar no que nós aqui estávamos
a fazer, prisioneiras, não ousando sair para não esbarrar com o tio ou com o filho dele, sem ver
ninguém, tomando as refeições nos quartos como reclusas, mal nos atrevendo a aparecer à
janela para tomar ar, com receio de nos verem. Contudo, eu bem sinto a precisão de ar puro e
de movimento e, sobretudo, estou mortinha por me ver livre desta casa. Se pudéssemos
regressar a Paris, eu sentia-me logo aliviada da opressão que me indispõe, e respiraria mais
livremente.

PRIMEROSE - Que grande satisfação me dás com essas palavras, querida filha! Para te
falar na deslocação esperava eu que estivesses em condições de suportar os incómodos da
viagem, e, visto que partilhas do meu desejo de abandonarmos esta medonha casa para
nãomais aqui pormos os pés, largaremos quando for do teu agrado.

GENOVEVA - Pois seja amanhã, minha prima; tanto mais que sei pelo Rame que o tio e o filho
vão jantar amanhã a casa dos Saint-Aimar.

PRIMEROSE - Muito bem, querida, está combinado. Comecemos os preparativos. Pelágia


arranjar-nos-á malas e o Rame vai a casa do Dr. Bourdon pagar-lhe as visitas e, na volta,
passará pela farmácia e pelas mercearias onde se esteja a dever alguma coisa; depois
encomendará um carro para amanhã às seis horas, e partinos no comboio das sete, durante a
ausência dos Dormere.

Cumpriu-se à risca o que? fora planeado. No dia seguinte, pai e filho meteram-se numa
carruagem, às cinco horas; às seis exactas chegava a carruagem alugada de véspera;
carregaram-se as malas que tinham sido aprontadas de tarde pela Pelágia, e Primerose desceu
amparando Veva, que ainda estava muito debilitada.

Às nove horas já se encontravam em sua casa, e Veva às dez já estava deitada.

Nesse mesmo dia, à noite, ao regressar com Jorge a Plaisance, o Sr. Dormere ouviu esta
comunicação, que o criado de quarto se apressou a fazer-lhe:

- O patrão não sabe o que se passou na sua ausêi cia?

SR. DORMERE - Não sei nada: então que houve?

CRIADO - É que as senhoras partiram uma hora depois dos patrões, e encontrei esta
carta na escrivaninha da menina Primerose, a qual está endereçada ao Sr. Dormere.

Pegando nela, este leu o seguinte:

Senhor:

A Genoveva pede-me que a leve embora, receosa de um encontro, que já não é fácil evitar. No
seu estado de fraqueza, a sua presença podia ocasionar-lhe uma recaída, que seria mortal.

Sinto-me, pois, muito feliz de a retirar daqui, deixando o seu inóspito lar.

Cunegundes Primerose

A segunda carta era de Veva:

Meu tio:
Perdoe-me deixá-lo sem me despedir. Sinto que não teria força para suportar a sua presença.
Está ainda muito fresca a cena terrível que me pôs às portas da morte Para eu a poder
esquecer. Deixe-me dizer-lhe, meu tio que, ao deixá-lo, não vou nada ressentida, perdoando-
lhe de todo o coração o que se passou.

Sua sobrinha respeitadora

Genoveva

O pai deu ao filho as duas cartas e retirou-se para o seu quarto, sem proferir palavra.

Reaparição de Tiago

Dias após o seu regresso a Paris, Veva sentiu-se mais calma do que estivera em toda a duração
da sua doença: Certa manhã, Primerose entrou cedinho no quarto de Veva e viu-a levantada,
disposta a retomar o antigo hábito de ir à missa todos os días; mas Primerose opôs-se: por a
achar ainda muito debilitada; Veva obedeceu com a sua habitual docilidade; acabou de se
arranjar e entrou? na sala de visitas.

Estava a arrumar com a tia os livros, papéis, música, tudo o que era preciso para recomeçar as
suas ocupações normais. ?

Pouco antes do almoço, estando ela só, ouviu bater à porta.

- Entre - disse ela.

A porta abriu-se, deixando entrar um rapaz encantador, de lindos bigodes e pêra.


Reconhecendo-o imediatamente, adiantou-se para ele, exclamando:

- Ó Tiago ! Pois és tu !

E esquecendo-se, na sua grande alegria, da sua idade e da de Tiago, atirou-se-lhe ao pescoço,


abraçando-o e beijando-o com ternura.

GENOVEVA - Querido Tiago, como me sinto feliz

em ver-te !

TIAGO - E eu então, minha querida Genoveva! Há? quase um ano que te não vejo.
Andei, como sabes, em viagem longa e interessantíssima pelo Oriente, de onde regressei há
uns dois meses. Estive com meus pais na aldeia; tu estavas ausente. Mas que magra e pálida te
encontras, minha pobre Genoveva! Estiveste doente?

GENOVEVA - Estive, sim, Tiago; estive às portas da morte.

TIAGO - À morte ! Ó meu Deus ! E eu que não sabia de nada! Que foi que te sucedeu?

Genoveva quis responder, mas as lágrimas embargaram-lhe a voz, só podendo dizer por entre
soluços:
- Que infeliz eu fui, Tiago. Se soubesses. . . E não pôde continuar, embargada pelos soluços. O
rapaz sentia-se desolado; procurava consolá- la, prodigalizando-lhe os mais afectuosos
testemunhos da sua anizade.

TIAGO - Minha querida Veva ! Minha amiguinha ! Se soubesses quanto me custa ver-te assim !
Deve ter sido bem horroroso, para que só a lembrança te ponha nesse estado !

GENOVEVA - Horroroso, sim, horrível; chama a prima Primerose; ela dir- te-á o que me não
sinto ainda com forças para te dizer.

Muito comovido com o desgosto de Veva, o primo

apressou-se a ir ter com Primerose que, ao reconhecê-lo se lhe atirou ao pescoço, como fizera
Veva, beijando-o repetidas vezes. Tiago não lhe deu tempo de falar, mas rogou-lhe que fosse à
sala de visitas acalmar Veva, que não parava de chorar.

PRIMEROSE - Pobre menina! Está ainda muito fraca

e mal restabelecida do terrível abalo que lhe causaram o seu abominável tio e o celerado do
Jorge.

TIAGO - Sempre esse endiabrado Jorge a desgostar a minha pobre Genoveva !

PRIMEROSE - Mas acabou-se; nunca mais põe os pés naquela casa, nem tornaremos a ver
semelhante mostrengo.

? TIAGO - Mas que foi que ele fez? Por favor não me deixe na dúvida; diga-me como foi que
meu tio

que é, afinal, um bom homem, contribuiu para o tormento de Veva.

PRIMEROSE - Bom homem? Um tolo, um parvo, um animal, de quem o Jorge faria um


assassino, se necessário fosse.

Perante tal explosão colérica de Primerose, Tiago não pôde impedir-se de sorrir.

PRIMEROSE - Olha, não quero contar-te diante dela uma cena tão horrível; far-lhe-ia um
grande mal essa recordação, que a pôs às portas da morte; como vais almoçar

connosco e como a Veva costuma descansar após a refeição, virás ao meu quarto e ficarás a
saber o que se passou.

Terminado o almoço, Primerose acomodou e instalou Veva num canapé, recomendou-lhe que
descansasse. levou Tiago consigo. Antes, porém, dele sair, Veva chamou-o.

- Olha - disse-lhe ela, afectuosamente, não vás embora sem vires despedir-te, não?

TIAGO - pois decerto, minha boa e querida Genoveva, que não partirei sem vir dizer-te adeus.
E saiu para ir ter com Primerose, que aguardava o momento de lhe falar com tanta
impaciência, como a que Tiago tinha em ouvi-la. A conversa prolongou-se ? ? mais de uma
hora; comovidíssimo, o rapaz não se cansava de ouvir e de fazer perguntas.
Chegando ao dia que precedeu a partida de Plaisance, ela ergueu-se, abriu um cofrezinho, de
que sempre trazia a chave consigo, tirou dele uma carta, dizendo-lhe:

- Lê agora esta carta; ela acabará de elucidar-te sobre a perversidade desse monstro. Veva
desconhece que eu a li e guardei; não lhe fales, pois, nela.

Já perturbado com a narração que lhe fizera Primerose, Tiago leu a carta de Jorge com uma
indignação, uma cólera que muito lhe custou a dominar. Acabando de a ler, arrojou-a ao chão,
calcou-a e, atirando-se sobre uma poltrona, de cabeça apertada nas mãos, como se receara
que ela explodisse, proferiu em voz abafada:

- Que monstro ! Nojento celerado ! Ah, que nem tenho palavras que traduzam a minha
indignação, o meu horror!

E ficou imóvel, sufocado sob o peso da sua comoção. Tiago beijou-lhe a mão e saiu. Entrando
na sala de visitas, deu com Genoveva adormecida no canapé. Aproximou-se devagarinho, ficou
muito tempo a olhar para ela com respeito e admiração e, depois, chegando-se mais, pegou-
lhe numa das mãos que ficara estendida e beijou-a ternamente, dizendo em voz baixa:

- Generosa, admirável e queridíssima amiga, amei-te sempre e sempre te amarei. Em mim


encontrarás, até ao último dia da minha vida, um amigo fiel e dedicado.

Pousou de mansinho no canapé a mão de Veva e queria sair, mas esta despertou.

GENOVEVA - És tu, Tiago? Que pálido estás! Foi a prima que te perturbou, não foi? Pobre
Tiago! Senta-te a meu lado e conversemos. Foi terrível, não foi?

TIAGO - Ó Genoveva, querida Genoveva! Como sofreste ! E que generosidade tão heróica não
mostraste !

Que coragem! E esse celerado, esse monstro, calado a ouvir o pai a torturar-te com
perguntas, a atrever-se a acusar o teu amigo, o teu servidor mais dedicado ; não ter coragem
de dizer nada em seu favor! Ele rouba e deixa- te o pesado encargo de o defender com o teu
generoso silêncio !

- Ó Tiago! - exclamou Veva, aterrada.

- Porque dizes que foi ele? Quem to declarou?

TIAGO - Ora, querida amiga, toda a gente o vê; é preciso ser-se redonda e parvamente cego
como o pai dele para não adivinhar logo quem fora o ladrão.

GENOVEVA - Promete-me que o não dirás ao meu tio.

TIAGO - Basta que tu o desejes, minha Veva, para eu não abrir a boca a esse respeito. Mas olha
que é bem cruel: cruel para ti e cruel para as pessoas que tanto te querem.

Tiago levantou-se.

- Preciso de me ir embora; tenho tanto que fazer para mim e para meu pai !
GENOVEVA - Com quem é que estás aqui? Onde te instalaste?

TIAGO - Estou sozinho no hotel.

GENOVEVA - Vem então jantar connosco.

TIAGO - Com muito prazer se não te enfado.

GENOVEVA - Enfadar-me! Pelo contrário, sinto-me muito bem, quando estás aqui!

Tiago sorriu, apertou- lhe a mão e saiu.

Veva passou uma tarde deliciosa: a chegada inesperada do seu amigo de infância, quase lhe
fez esquecer a triste estada em casa do tio; só um cuidado lhe perturbava a alegria: essa
viagem a Roma, que ela tanto desejara e que aguardara tão impaciente, ia separá-la
novamente do primo.

Procurou distracção no trabalho; desenhava bem e fazia admiráveis retratos a aguarela.

Depois de desembrulhar e arranjar as tintas, os pinCéis, o papel, a paleta, ete., viu no relógio
que eram seis horas.

- Ainda não chegou ; é estranho ; ele não ignora que nós jantamos às seis e meia.

Abriu-se por fim a porta, entrando o convidado.

GENOVEVA - Ora, até que enfim, meu amigo; há tanto que estou à tua espera. . .

TIAGO - Se são apenas seis horas. . .

GENOVEVA - Seis horas já batidas, caro senhor; bem sabe que jantamos às seis e meia.

TIAGO - Pois então não estou atrasado, bem vês. . .

GENOVEVA - Acho que estás sempre atrasado quando estou à tua espera.

Tiago sorriu.

TIAGO - Tenho muito que fazer, minha querida Veva; ainda não te disse que, dentro de quinze
dias ou um mês, serei obrigado a deixar-te, por muito tempo, ou talvez para sempre.

Genoveva empalideceu e ficou a tremer.

GENOVEVA - Deixar-me ! Talvez para sempre ! Abandonar-me! Tiago, estou votada à desdita,
não há que ver !

E caiu a soluçar numa poltrona. O primo, também muito comovido, tratou de a consolar o
melhor que pôde, sentando-se ao lado dela.

Ainda muito debilitada pela doença, Veva carecia de força para dominar as suas impressões,
continuando a chorar amargamente.

GENOVEVA - Partir ! Para sempre ! És cruel !


TIAGO - Minha querida Genoveva, esta separação é para mim tão dura quanto o é para ti; mas
o dever deve sobrepor-se à felicidade: Roma está agora mais ameaçada que nunca! O Santo
Padre Pio IX faz um apelo aos católicos para irem em defesa da sede da Fé; alistei-ne nos
zuavos pontifícios, e tenho de partir dentro de quinze dias ou um mês.

Genoveva ia acalmando à medida que Tiago falava. Ao acabar, soltou um grito de alegria e,
pegando com ambas as mãos na cabeça de Tiago, que estreitou contra o seio, disse:

- É para Roma que vais ! Oh ! Que felicidade ! Obrigada, meu Deus! Eu também para lá vou,
para Roma. seguiremos juntos. Não te abandonarei. Estarei junto de ti.

Foi a vez de Tiago se extasiar com a sua ventura, de testemunhar a sua alegria com tal
entusiasmo, que provou à Genoveva a ternura que lhe dedicava. Puseram-se a fazer lindos
projectos para a viagem, a estada em Roma, esquecendo que o Tiago ia lá para combater, e
talvez

para cair, mártir da sua fé. Nenhuma ideia tétrica veio, porém, estragar-lhes a felicidade
daquele momento. nenhum deles procurava penetrar num futuro mais dis tante.

Enquanto falavam da vida encantadora que haviam de levar em Roma, chegou Primerose.

PRIMEROSE - Meus amiguinhos, fi-los esperar mui to, não? Peço desculpa. Tive tanto que
andar e tanto a tratar...

TIAGO - Esperar, nada, boa senhora; ainda não é

tarde.

PRIMEROSE - São quase sete e meia, meus filhos:

ainda não têm fome?

GENOVEVA - Absolutamente nenhuma, prima.

PRIMEROSE - Não tens fome? Então que tens, Gen?oveva, para estares assim tão animada?

GENOVEVA - Se lhe parece, minha prima. . . Sinto-me tão feliz ! Imagine que Tiago dirige-se a
Roma ; está feito zuavo pontifício. Parte dentro de quinze dias, e nós com ele.

PRIMEROSE - Quinze dias? É pouco para o que tenho a fazer. Como é que arranjais isso?

GENOVEVA - Minha boa prima, trate de acabar tudo depressinha, peço-lhe. Não vê a grande
vantagem de viajar sob a protecção de um cavalheiro, de um zuavo principalmente ?

Tiago e Primerose puseram-se a rir da ansiedade e do ar suplicante de Veva.

PRIMEROSE - Vou ver, minha querida; farei o que puder, prometo-vo-lo. Mas jantemos
primeiro, que estou morta de fome; não tenho, como tu, um Tiago para me fazer esquecer as
horas. Vai lá, vai ver que nos sirvam depressa.

Após o jantar, perguntou Primerose à Genoveva que tencionava fazer das tintas e dos pincéis.
- Vou fazer o retrato ao Tiago, prima. Tenho muito empenho em mandá-lo à mãe dele, antes
de partir para Roma.

PRIMEROSE - Muito bem, minha querida; mas julgas que Tiago terá tempo de posar?

TIAGO - Desde que me levante cedinho para acabar o que tenho a fazer,
disporei de três a quatro horas por dia.

Tendo assim combinado tudo, desceram ao jardim para tomar ar, enquanto conversavam
acerca da viagem a Roma.

Na manhã seguinte, Veva levantou-se muito contente após uma noite excelentemente
passada; foi ao convento ouvir missa com Primerose, teve grande apetite ao

almoço, pondo-se logo a esboçar, de cabeça, o retrato de Tiago.

Enquanto desenhava, sentou-se Primerose a trabalhar ao lado dela.

- Genoveva - disse -, sabes que fui visitar a Sr.a Saint-Aimar na véspera da nossa partida?

GENOVEVA - Sei, sim, prima.

PRIMEROSE - Mas, ainda não tive ocasião de te transmitir um recado dela. Incumbiu-me de te
participar

? que o filho - o Luís - te amava do fundo do coração e te pedia em casamento.

GENOVEVA - Também ? Pobre rapaz ! Estimo-o ; que é um bom rapaz, como boa é também a
sua irmã.

PRIMEROSE - Aceitas, então, a proposta da mãe?

GENOVEVA - De casar com o Luís? Isso é que não.

PRIMEROSE - Então porquê, se gostas dele?

GENOVEVA - Gosto dele sim, mas como de um amigo. ? não gosto dele para marido.

PRIMEROSE - Contudo, vais dizendo que é boa pessoa.

GENOVEVA - Lá isso é: o que eu não sou é obrigada a casar com toda a gente que é boa.

PRIMEROSE - Mas o Luís não é toda a gente; como

ele é teu amigo de infância...

genoveva - Como o Tiago! Ó prima! Pode-se lá

comparar! Como o Tiago? Não é a mesma coisa.

PRIMEROSE - Não vejo que haja grande diferença; é de boa família, como é o Tiago, bonito
como o Tiago, muito bom e com uma fortuna superior à do Tiago, e gostando de ti como o
Tiago.
GENOVEVA (atalhando) - Pode bem ser tudo isso, mas eu não o amo e não o amarei nunca,
nem ele gosta de mim como o Tiago, bem o vejo, bem o sinto, bem o.. ?

PRIMEROSE - Recusas então?

GENOVEVA - Muito categoricamente; e se ele continuar a amar-me assim tanto, deixarei eu de


gostar dele.

PRIMEROSE - Lá estás tu zangada! Estás rubra!

Veva, proponho-te uma coisa que não faz mal. fala

nisso ao Tiago,consulta-o; resolverás conforme

ele disser.

GENOVEVA - Sim,se me aconselhar a recusa; não,

se me disser que aceite.

PRIMEROSE - Pois sim; mas se vais recusar dessa

forma todos os bons partidos,acabarás por ficar solteirona.

GENOVEVA - Não faz mal; irei tratar dos zuavos de

Roma,como irmã de caridade.

PRIMEROSE - Pois muito bem,minha querida:

é uma linda vocação,contra a qual, por certo,não lutarei.

Demais acaba agora mesmo de chegar o nosso conselheiro.

Bom dia,Tiago; almoças connosco?

TIAGO - Se me derem licença. .

PRIMEROSE - Com o maior prazer; está assente q almoças connosco. Vou falar à Pelágia, e não
tardo aqui.

Entendimento amigável entre Tiago e Genoveva

Mal Primerose saiu, Tiago aproximou-se vivamente de Genoveva.

TIAGO - Tu não falas, Veva ? Que ar triste que tens ! Que se passou, minha amiga? Nova
contrariedade, não?

VEVA - Se te parece ! Que havia de lembrar à prima ! Quer que eu me case!

TIACO (inquieto) - Que te cases? Aos dezoito anos ! É cedíssimo. . . Cedo de mais !
VEVA - Pois não achas, meu bom Tiago? Ainda bem! Ao menos tu és razoável.

TIAGO - Com quem pretende ela casar-te?

VEvA - Com o Luís Saint- Aimar! E sabes o que diz? Que ele é, como tu, meu amigo de infância,
bom como tu és e, finalmente, que gosta tanto de mim como tu.

Tiago aproximara a cadeira e sentara-se ao lado de Veva. Ao ouvir esta derradeira afirmação
de Primerose, pegou-lhe na mão e exclamou:

- Isso não é verdade ! É impossível !

GENOVEVA (afectuosamente) - Pois não é verdade que isso é impossível? Eu já lho disse,
porque bem vejo e bem sinto quanto gostas de mim e sei também que o Luís não pode gostar
de mim como tu, que és meu irmão meu amigo, a ventura da minha vida.

TIAGO - Ó Veva, que bem me fazem as tuas palavras! Como te quero, minha Veva,
minha irmã, minha amiga !

GENOVEVA - Não é verdade que me aconselhas a recusar esse casamento que me tornaria
infeliz, por me separar de ti ? Responde-me ! Dize-me que não posso nem devo consentir em
tal.

TIAGO - Querida Genoveva, em questões matrimoniais devemos seguir o impulso do coração,


de acordo com a razão. Se o Luís não é do teu agrado. . .

GENOVEVA - Desagrada-me horrivelmente desde que sei que pretende casar comigo; se
persistir, acabarei por o detestar.

TIAGO (sorridente) - Não, não o detestes, pois não seria justo. Estou convencido de que ele
não insistirá; conheço-o como demasiado honesto e muito teu amigo, para desistir do projecto
ao saber que não é do teu agrado.

GENOvEVA - Obrigada, Tiago; obrigada, meu amigo. Comunicarei à minha prima o teu
excelente conselho.

Estava de volta Primerose.

PRIMEROSE - Ah ! Então a Veva já retomou o seu todo calmo, do costume! À tua chegada ela
parecia fula. Já vejo que te pediu conselho.

GENOvEvA - E o Tiago é do meu parecer, querida prima; peço-lhe, pois, o favor de escrever o
mais breve possível à Sr.a Saint-Aimar a dizer-lhe que não tenciono casar-me, por enquanto. . .

PRIMEROSE - Porque desejas fazer-te irmã de cari? dade para tratar dos zuavos pontifícios, não
foi isso que me disseste?

GENOVEVA - Foi sim, prima; mas é inútil comunicá-lo à Sr.a Saint-Aimar.

PRIMEROSE - Pois que tal projecto não se realizará. Mas vamos para a mesa; retomaremos
depois o assunto.
Efectivamente, após a refeição, que decorreu muito alegre, voltou-se à conversa anterior,
divertindo-se Primerose a arreliá-los, propondo a ambos casamentos que achava
encantadores, soberbos. Decorrida uma hora neste exercício, ela disse à Veva:

- Ora vejam, cá estamos nós a perder com frioleiras tempo precioso. Anda, Genoveva, volta a
dedicar-te ao retrato; mas tu, Tiago, põe-te bem de frente, e não de lado; seria posar como o
Rame, que queria estar sempre a ver o que fazia a patroinha, em vez de se manter em posição
fixa. Antes, porém, de começar a sessão, tenho de te consultar sobre um assunto importante.
Como és formado em Direito, espero que me darás um bom conselho.

TIAGO - Da melhor vontade, minha querida senhora: ao seu inteiro dispor.

PRIMEROSE - Veva, Tiago não se demora; enquanto não vem, vai adiantando o fundo do
quadro.

Ao ver-se no quarto com Tiago, Primerose disse-lhe:

- Pois é verdade, tenho a falar-te muito a sério; senta-te nessa cadeira e responde-me com
franqueza. És ca? paz de adivinhar a razão por que Veva recusa tão viva? mente casar-se?

O rapaz hesitou uns momentos.

TIAGO - Se ela não ma disse. .

PRIMEROSE - Pois então vou eu dizer-ta; ela recusa e recusará obstinadamente toda a
proposta de casamento, porque só há uma que ela aceitaria de boa mente; mas esta não lhe
foi ainda feita: é a tua.

TIAGO - Eu! Não a posso fazer, nem a farei.

PRIMEROSE - E porquê, seu pateta?

TIAGO - Porque ela é rica e eu não; não quero que a minha mulher ou a família dela possam
acusar- me de fazer um casamento de interesse.

PRIMEROSE - Estás-me a sair um bom papalvo, meu rapaz! Quem há que possa acusar-te de
tão baixo sentimento? À vista de Genoveva, ninguém há que não diga que foste subjugado por
aquele conjunto de encantos. Quem há aí que desconheça o vosso recíproco afecto desde a
infância, afecto que não fez senão crescer com o tempo, e que a Genoveva corresponde ao teu
amor com amor igual? Que tem lá o facto de não seres tão rico como ela? Não lhe levas tu, em
compensação, outras vantagens mais preciosas que uma fortuna de que, aliás, ela não saberia
que fazer? Acima de tudo, gozas de belíssima reputação desde a infância, e tens qualidades
pessoais hoje tão raras que garantem a felicidade de uma esposa.

TIAGO - Ó minha querida amiga! Como me tornam venturoso as suas palavras ! Julga, na
verdade, que posso esperar bom acolhimento por parte da minha querida e estremecida
Genoveva? Julga que me não repelirá, como já fez a tão belos pretendentes que a senhora lhe
deu a conhecer?
PRIMEROSE - Estou absolutamente certa disso, meu amigo. Há muito já que vejo desenvolver-
se em ambos este sentimento, que tenho favorecido o melhor que posso; queria esperar um
ou dois anos para vos abrir os olhos, mas o caso de Plaisance torna o casamento, isto é, a
emancipação de Veva mais urgente.

Ao chegar à sala, Tiago ostentava no rosto uma tal ventura, que Veva ficou impressionada.

GENOVEVA - Que foi que a minha prima te disse? Tens um aspecto tão satisfeito !. . .
Que se passou ?

TIAGO - É a felicidade da minha vida, o fim da minha ansiedade, minha querida Genoveva, e é
de joelhos que devo pedir-te que ratifiques as palavras dela.

E, de facto, ajoelhou, com grande espanto de Genoveva, acrescentando :

- Disse-me ela que eu era amado por ti..

GENOVEVA - O quê? Isso era novidade para ti?

TIAGO - Bem sei que gostas de mím; mas ela acrescentou que tu havias recusado o Luís e
outros porque...porque...

GENOVEVA - Fala, Tiago; atormenta-me o teu

silêncio.

? TIAGO - porque só a mim tinhas verdadeiro amor

que,se te fizesse o mesmo pedido que o Luís,tu não

recusarias a aceitá-lo.

? GENOVEVA - Está claro que não.

? Como pudeste duvidar disso ?

Tiago,delicado,estreitou-a contra o coração.

?? GENOVEVA (com malicia) - Então já me não achas

? nova de mais para casar? Todavia não envelheci muito desde o almoço..

? TIAGO - É que eu pretendia,sem dar por isso,adiar

o mais possível um acontecimento fatal que para mim, podiafurtar-te a à minha ternura; teria
tropeçado con

? tudo; cuidava sobretudo que ainda não tinhas vivido

bastante para mim só.

GENOVEVA - E não consentiria em viver para outro que não fosses tu,meu amigo; este afecto
devia permanecer no futuro o que foi até aqui,concentrar-se só em ti.
Não se tratou já do retrato, nessa tarde; tinham diante de si três ou quatro horas de liberdade
para falarem

mais intimamente ainda,do seu futuro.Combinaram

não anunciar o seu casamento antes de esclarecer a questão de Roma.

- Há-de haver - disse Tiago - duros momentos a passar; havemos de combater até que Deus
nos chame a todos para Si, ou até ao aniquilamento dos Seus inimigos, de que resultará a
libertação da Santa Sé e de Roma. Espero que ores por nós, minha Veva. . .

GENOVEVA (tristemente) - Sobretudo por ti, para que Deus te preserve nos terríveis combates
que terás de travar pela Sua causa. . .

Tiago deixou Veva antes do regresso de Primerose; depois da saída dele, Veva chamou Pelágia
e o Rame, aos quais disse :

- Meus bons amigos, vou dar-vos uma grande novidade: vou casar-me.

Pelágia adivinhou logo, sem custo, que o noivo escoIhido era Tiago; deu-lhe pois, um grande
abraço de parabéns, beijando-a muitas vezes.

- Abençoada sejas, minha querida filha; não podias fazer melhor escolha; hás-de ser muito
feliz. Deus abençoará esta união.

O Rame, porém, não se mexia; olhava tristemente para a sua patroa, sem proferir palavra.

GENOVEVA - Então, não dizes nada, meu bom Rame? Não estás contente com a minha
felicidade?

RAME - Mim contente, se jovem siora contente; mas eu pensar nesse pobre siô Tiago. Ele amar
tanto patroinha! Ele infeliz, pobre siô Tiago.

GENOVEVA - O Tiago infeliz! Está mas é contente: é ele o meu futuro marido.

RAME - Siô Tiago ! Ó boa patroinha ! Rame feliz.

Rame sempre ficar com jovem siora como antes; Rame querer sempre muito a jovem siô.

Correspondência agridoce

Primerose voltou, no dia seguinte, muito antes do jantar, um pouco contrafeita.

- Meus filhos - disse ela à Veva e ao Tiago que estavam conversando enquanto esperavam a
sua chegada -, tenho de escrever ao tratante do vosso tio, para lhe arrancar o consentimento
do casamento de Veva; chego agora mesmo de casa do notário, que é o seu tutor substituto;
disse-me ele ter vindo a saber pelo Sr. Dormere que eu queria levar para Roma a Genoveva,
mas que o tio se opunha a isso e que estava na disposição de tornar a receber a sobrinha em
sua casa até à sua maioridade; que tinha esse direito e que ia lançar mão dele. Bem calculais
como eu recebi tal comunicação. Relatei então pormenorizadamente ao notário, que é uma
belíssima criatura, os tais processos paternais desse abominável homem, terminando pela
história do roubo cometido pelo filho e atribuído ao Rame; e, como ele não queria crer em tais
iniquidades, tive de sacar da carta escrita pelo punho desse malandrão do Jorge, e dei-lha a ler.
A sua indignação não foi inferior à nossa.

GENOVEVA - De que carta fala, minha prima? Como se encontra ela em seu poder?

PRIMEROSE - Aquela que esse monstro se atreveu a escrever-te para te pedir a tua
mão; deixaste-a no teu quarto. Eu vi-a e, reconhecendo a letra, li o que dizia e trouxe-a,
agradecendo a Deus o ter-me feito chegar às mãos uma prova (a única em nosso poder) da
malvadez desse infame. Tornei logo a sair, para que tu não pudesses crer que era eu que a
detinha. Contei ao tutor substituto a longa e cruel doença que te pôs às portas da morte. Ele
concordou em que, depois de tal procedimento, o Sr. Dormere devia ser destituído da tutela,
mas que para isso forçoso seria intentar um processo, que implicaria a desonra do filho, e,
para evitar tal desgraça, seria preferível escrever-lhe no sentido de obter dele a autorização
tanto para a viagem a Roma, como para o casamento com Tiago. Aconselhou-me a fazê-lo o
mais breve possí vel e nos termos mais comedidos, sem recriminações e inteiramente certa do
consentimento dele. Há-de vir cá amanhã para vos ver a ambos e travar mais amplo
conhecimento com a sua pupila e o noivo. Deixei-lhe ficar a carta desse patife do Jorge, para a
ter à mão como documento de prova. Vou já, já, escrever ao miserável do vosso tio, e veremos
se ousa recusar.

Primerose saiu.

GENOVEVA - Meu Deus ! Meu Deus ! Sempre desgostos, sempre incómodos!

TIAGO - Nada receies, querida Genoveva: o tio não pode recusar o consentimento; ao tomar
conhecimento da carta do infame Jorge, tratará logo de evitar um escândalo público com o
processo. Confesso que experimento uma satisfação enorme ao pensar na sua angústia, no seu
remorso ao ver como pagou o teu nobre e generoso silêncio. Nem posso exprimir-te a minha
indignação e revolta, ao pensar na conduta do tio e do filho para contigo. Tu tão meiga, tão
bondosa, tão verdadeira! É por isso que bem haja a excelente Primerose por te haver tomado
a seu cargo; quando vejo a sua dedicação e afecto, não me lembro senão de desculpar as suas
imperfeições e fazer crescer a minha ternura e gratidão para com ? ela.

GENOVEVA - Ó Tiago, como és bom! Como tenho motivo para te amar de todo o meu coração!

Primerose deu entrada, tendo na mão uma carta.

PRIMEROSE - Ouçam, meus filhos: eis o que lhe escrevo; como estais interessados no caso,
desejo ter a vossa aprovação :

Meu primo

(Custa-me a dar-lhe este nome.)

Escrevo-lhe na sua qualidade de tutor da minha querida Genoveva; a saúde muito abalada dela
exige mudança de ares, de clima e muita distracção. Pensei em fazer uma viagem a Roma,
onde demorarei algum tempo, e desejo ter o seu consentimento (sempre na sua qualidade de
tutor) para realizar esta viagem. Faço-lhe outro pedido, e este bem mais importante. Veva ama
desde criança o seu sobrinho Tiago de Belmont; o amor deles é recíproco, considerando eu,
como eles, que esta união deve fazer a felicidade de ambos. Não duvido do seu consentimento
mas desejo tê-lo por escrito, para agir com segurança. Tenha a bondade de me responder na
volta do correio, pois é urgente levar Genoveva para um clima favorável ao seu estado de
saúde. ?Esta carta, talvez importuna, é ditada por uma necessidade imperiosa. Aceite os
cumprimentos de

Cunegundes Primerose

TIAGO - Está muito bem, querida senhora; é delicada, embora fria, como não pode deixar de
ser. Não há razão para uma recusa: a resposta vai ser favorável.

Eis a carta que Primerose recebeu do Sr. Dormere ao outro dia da visita do notário:

Minha prima

Acabo de receber a sua carta e apresso-me a responder com uma absoluta recusa aos dois
pedidos na mesma formulados. A viagem a Roma é inteiramente inútil para a saúde de minha
sobrinha; a mudança de ares que a senhora julga necessária, leva-me a mandá-la vir para
Plaisance; queira, pois, comunicar-lhe que dentro de oito dias a mandarei buscar; meu filho
Jorge acompanhá-la-á até minha casa.

Queira também dar-lhe a saber que não preciso cá do preto nem da criada dela, que se
permitem ter a respeito de meu filho um conceito que não devo tolerar. Tomo a meu cargo
arranjar-lhe uma criada de quarto que saiba manter o respeito que um servo deve ao seu
patrão. No que respeita ao casamento de que me fala, é, por parte de ambos, uma criancice
que está mesmo a pedir um não muito firme e irrevogável. Conhece, tão bem como a minha
sobrinha, as minhas intenções a respeito do seu casamento; elas cumprir-se-ão mais tarde; a
não ser que ela me force a interná-la num convento até à sua maioridade. Receba, prima, os
meus cumprimentos.

O semblante de Primerose exprimiu uma irritação tal, que ambos se apressaram a perguntar-
lhe que havia nela de extraordinário para ficar tão vivamente impressionada.

PRIMEROSE - É a resposta do Sr. Dormere; é tal qual eu a previra, se bem que mais perversa e
insensata do que eu supunha. Não o julgava tão ignóbil. Vou já levá-la ao nosso bom notário e
pedir-lhe-ei que vá pessoalmente a Plaisance, amanhã mesmo, para acabar com esses
miseráveis. Ele é que será o portador da resposta, que vou imediatamente escrever.

Enquanto Tiago procurava acalmar os temores da pobre Genoveva, Primerose escrevia ao seu
odioso primo a carta que segue:

Senhor:

Há muito que o conheço desprovido de espírito, de delicadeza e de coração para não ter
previsto uma recusa; a sua resposta ultrapassou, porém, as minhas previsões. O pensamento
infernal, que concebeu, de entregar sua sobrinha a um infame celerado, ou de encerrá-la num
convento, não se há-de executar. O protutor de Genoveva leva-lhe a prova da sua própria
infâmia, quando o primo ousou acusar o servidor da sua inocente e por demais generosa
sobrinha de lhe haver subtraído os dez mil francos, que ela sabia terem-lhe sido roubados pelo
seu miserável filho. Se não assinar imediatamente a desistência da sua odienta tutela e não
apresentar as contas para serem examinadas, entregarei depois de amanhã um requerimento
documentado ao Procurador; com razão será o seu nome desonrado, bem como a sua pessoa
e a do seu filho, coisa que a minha nobilíssima Genoveva quis impedir ao ocultar-lhe o nome
do ladrão e ao suplicar-lhe, prostrada a seus pés, que salvasse a honra da sua casa.

Não quero tornar a tratar directamente consigo e proíbo-lhe que me escreva.

Cunegundes Primerose

O castigo

O Sr. Dormere, sozinho, passeava agitadamente pela biblioteca.

O Jorge está-se a tornar insuportável: gasta à doida. Não está bem senão em Paris, onde faz
trinta por uma linha: sei-o pelos amigos dele. Para mais sai- me um mentiroso. . . que já não
posso crer em nada do que diz. Estou sempre só, para aqui abandonado. Já nem os vizinhos
me vêm visitar; todos me lançam em cara essa Genoveva, que não põem dúvida em lamentar,
e esse infeliz Jorge, de quem não sabem já que dizer de pior ! Ai ! Que triste velhice não vai ser
a minha! Assim que agarrar essa doida da Genoveva, saberei obrigá-la a casar com o Jorge. Se
der cabo da minha fortuna, terá, ao menos, a dessa serigaita. Abriu-se a porta. O Julião
anunciou:

- Está ali o notário do patrão.

SR. DORMERE - Seja bem aparecido, meu caro. Porque vem assim tão tarde? Vem jantar
comigo?

NOTÁRIO - Não, não venho; mas, sim, trazer-lhe uns papéis de certa importância. Antes de
mais nada, devo entregar-lhe uma carta da D. Primerose.

SR. DORMERE - Que me deseja essa linguareira?

NOTÁRIO - Queira ler, senhor, e verá.

O Sr. Dormere resolveu-se a abrir a carta.

SR. DORMERE - Bonito estilo! Está fula, pois tanto melhor. Hei-de ler mais tarde estas doidices.
Vejamos os seus papéis. NOTÁRIO - Peço desculpa, senhor, mas acabe primeiro de ler a carta.

SR. DORMERE - Que insistência!

E continuou a leitura. À medida que ia lendo, descompunha-se-lhe o semblante e tornava-se


ora cor de púrpura, ora mortalmente pálido.

Contudo, leu-a até ao fim, encostando-se depois à


poltrona, sem por instantes poder proferir palavra. Por fim, disse com voz rouca:

- A prova, senhor. . . a prova. . .

NOTÁRIO - Ei-la aqui, senhor. Devo preveni-lo de que, receando o seu primeiro impulso,
guardei o original assinado pelo seu filho, só lhe trazendo uma cópia.

O notário apresentou- lhe a carta, que recebeu sem a poder ler de imediato, tal era a
perturbação que a cólera e a comoção lhe causavam. Conseguiu, todavia, recompor-se e ler
toda a carta.

NOTÁRIO - Está, agora, convencido da infâmia do seu filho, e da grandeza de alma e heroísmo
da sua sobrinha?

SR. DORMERE - Ah ! Por piedade, não me atormen te. . O meu filho. . . o meu Jorge, que eu
tanto amava ! E não ter dito nada. . . nem uma palavra, enquanto essa menina se comprometia
por causa dele!

NOTÁRIO - Por causa dele não, senhor, mas só por sua causa.

SR. DORMERE - Por minha causa!. . . Se eu a tivesse sabido estimar. . . ela saberia dedicar-se. . .
E a estas horas já seria a esposa do Jorge.

NOTÁRIO - Do Jorge? Nunca; ela sentia por ele extraordinário desprezo e profunda antipatia.

SR. DORMERE - Que fazer agora, meu Deus? Um golpe destes !. . Mas não, não posso crer em
tal. . ? O Jorge que venha cá; está no quarto.

O notário saiu, voltando pouco depois com Jorge.

JORGE (com ar desembaraçado) - Chamou, meu pai ?

SR. DORMERE - Sim, senhor. Leia esta carta de sua prima Primerose.

E deu-lha para a mão.

JORGE (após a leitura) - O pai não acredita, penso eu, nas tolices que lhe conta a Primerose.

SR. DORMERE - Então nega as acusações dela?

JORGE - Em absoluto; essa carta é absurda.

SR. DORMERE - Nega também a sua? (E apresentou-lhe a cópia da carta.).

Jorge pegou nela, visivelmente agitado; mas ganhou ânimo ao lê-la e restituiu-a com calma.

JORGE (sorridente) - Essa carta é forjada, meu pai; nem é a minha letra nem a minha
assinatura.

NOTÁRIO - Mas tenho em meu poder o original, senhor; fui eu quem mandei tirar essa cópia.

JORGE - Para quê tamanha precaução, senhor?


NOTÁRIO - Porque receava que o senhor ou seu pai a destruíssem, para tirar à infeliz menina a
única prova que ela pode apresentar da culpabilidade do Sr. Jorge.

JORGE - Que admirável previdência numa menina que estava a morrer!

NOTÁRIO - Essa honra não lhe cabe a ela, mas sim a D. Primerose, que o conhece a fundo.

Jorge inclinou-se com ar escarninho.

NOTÁRIO - Permita-me agora, senhor, que continue a tratar com seu pai do assunto que aqui
me trouxe, pois tenho umas perguntas a fazer-lhe. Consente o Sr. Dormere em renunciar à
tutela da menina Genoveva Dormere ?

SR. DORMERE - Sim senhor, consinto.

E, assim, assinou, sem qualquer objecção, o que lhe foi apresentado e caiu num estado de
torpor e de completo aniquilamento.

Resolução imprevista

As notícias de Plaisance eram, compreensivelmente, aguardadas com impaciência: o notário


foi pontual à hora marcada.

PRIMEROSE - Então, caro senhor, que novas nos traz ?

NOTÁRIO - Vitória completa, mas não sem combate. Para não os mortificar, aqui está a
declaração da rescisão da tutela e o consentimento para o matrimónio, por ele assinado sem
saber o que fazia. Aí estão também as contas, perfeitamente em ordem; passei-lhes uma vista
de olhos no comboio.

PRIMEROSE - Preparou uma linda velhice o meu caro primo, não há dúvida! Agora, caro
senhor, também eu tenho uns assuntos a regularizar. Quer ter a bondade de vir ao meu
quarto, para conversarmos à nossa vontade?

NOTÁRIO - Estou às suas ordens, minha senhora. Saíram os dois, deixando Tiago e Genoveva a
conversar sobre coisas de interesse a ambos.

- Genoveva - disse timidamente Tiago -, tenho uma coisa a pedir-te.

GENOVEVA (a rir) - E parece que estás com receio.

TIAGO - Na verdade, receio. que ma recuses.

GENOVEVA - Eu recusar um pedido teu!

TIAGO - Sabes que parto amanhã à noite para me despedir de meus pais?

GENOVEVA - Sim, sei; e depois? Fala à vontade. bem sabes como te quero, nada podendo
recusar-te.
TIAGO - pois bem: se meus pais consentissem no nosso casamento antes de partirmos para
Roma, estarias de acordo?

Veva saltou da cadeira.

- Antes de quinze dias? - disse, alvoraçada.

TIAGO (em voz triste) - Já vês que me desanimas às primeiras palavras que profiro.

Ela retomou imediatamente o seu lugar.

GENOVEVA - Não te desanimo, isso não; mas estou admirada. . . não contava com tal proposta.

TIAGO - E recusas o primeiro pedido que te faço, minha Veva ?

GENOVEVA - Posso lá recusar-te o que desejas, neu adorado Tiago? Far-se-á segundo a tua
vontade, pois essa será sempre a minha.

Dois dias volvidos, Genoveva recebeu uma carta de Tiago, comunicando-lhe que obtivera logo
o consentimento dos pais, que há muito desejavam que aquela amizade de infância fosse
selada por um consórcio venturoso. ?? Oito dias depois, chegavam com os filhos os senhores
de Belmont. O facto constituiu uma alegria enorme para ambas as famílias. Apesar do pouco
tempo que faltava para o casamento, a Sr.á Belmont pôde ainda oferecer à noiva uma prenda
riquíssima, constituída por belas jóias, rendas, xailes e por tudo o que, em geral, se costuma
oferecer às noivas. O consórcio realizou-se às dez horas da manhã, sem cerimónia, sem
convites e, portanto, sem as maçadas que esses dias costumam dar. O almoço e o jantar foram
em família. Dias volvidos, voltaram para a aldeia os senhores de Belmont; os ditosos noivos
passaram ainda uns dez dias em Paris, seguindo, depois, para Roma com Primerose, Pelágia, o
fiel Rame e Azema.

O Inverno passou, todavia, sem combates sérios; alguns feitos de armas, sempre gloriosos para
as valentes tropas romanas, foram apenas o prelúdio obrigatório das duas grandes batalhas de
Mentana e Monte Rotondo, donde os moços soldados, heróicos e fiéis, sempre na proporção
de um contra dez, se cobriram de imortal glória.

Mais de uma vez tivera Tiago de deixar Roma para tomar parte em escaramuças, nas quais
sempre sobressaiu por uma valentia e um entusiasmo inteiramente franceses.

Esta separação e inquietações consequentes suportava-as Veva com a coragem de uma


mulher cristã. Ao anunciarem-lhe, porém, no Outono seguinte, uma campanha e batalhas em
forma, e a necessidade de uma se paração imediata, a sua dor foi superior à sua vontade, e
não pôde deixar de dar livre curso às lágrimas.

- Genoveva, meu amor - disse-lhe o marido no momento da partida -, não queiras debilitar-me
a coragem com o pensamento da tua dor. Não percamos a confiança no Todo-Poderoso, que
tantas vezes me poupou já às balas inimigas; lembra-te da bênção especialíssima que ambos
recebemos de Sua Santidade, que prometeu orar por nós. Esta lembrança há-de manter-te
firme, minha querida mulher !
GENOVEVA - Ó Tiago, meu amor, minha vida, tu vais estar sozinho nesses combates terríveis,
sem ninguém para velar por ti, para te recolher, se caíres vítima da tua coragem.

? RAME - Perdão, patroinha; Rame zuavo, Rame velar jovem amo. Rame não deixa
matar jovem amo. Mim não abandonar, mim morrer por jovem patrão.

Ao ouvir aquelas palavras, Genoveva deitou um olhar a Rame, que já estava vestido de zuavo,
pois fora alistar-se, pedindo por favor que nunca o separassem do seu novo amo. Este favor
foi- lhe facilmente concedido. Já era conhecido no corpo dos zuavos, bem como a história da
sua dedicação por Genoveva, e todos lhe dedicavam o maior interesse.

Genoveva deixou, pois, Tiago, para se lançar nos braços do Rame:

- Meu caro e fiel Rame, obrigada, mil vezes obrigada! Quero-te muito, meu Rame; agora mais
que nunca me consola e tranquiliza a tua dedicação; Deus te abençoe e me conceda a graça de
te ver voltar com o meu muito amado marido.

Rame chorava e beijava as mãos da sua jovem patroa, com um reconhecimento só igual à sua
dedicação.

- Adeus, minha querida esposa - disse Tiago, estreitando-a contra o coração -, ora por mim, por
nós; continua a amar-me. Adeus!

E arrancou-se dos braços de Veva, que soltou um grito doloroso:

- Tiago, meu amor !

E caiu sobre o tapete sem sentidos. Tiago voltou atrás: tomou-a nos braços, depô-la num
canapé, beijou- a ainda uma porção de vezes, chamou por Pelágia e afastou-se seguido do
Rame, a quem agradeceu com um aperto de mão.

É bem conhecida a história gloriosa dessa curta campanha, rematada pelos dois magníficos e
sangrentos combates de Mentana e Monte Rotondo.

Quatro mil homens, que compunham o exército pontifício, lutaram sem descanso contra
quinze a vinte mil revolucionários bem armados, bem alimentados e sob as ordens de oficiais
italianos.

Foi completa a vitória do exército pontifício graças à corajosa intervenção dos valentes
soldados franceses que, felizmente, chegaram e desembarcaram a tempo de completar a
vergonhosa derrota dos adversários.

Terminara o combate; as santas irmãzinhas, sacerdotes e prelados continuavam a percorrer o


campo de batalha para recolher os feridos, socorrê-los e transportá-los às ambulâncias.
Monsenhor B. . ., chefe dos capelães dos zuavos pontifícios, não abandonara o lugar do
combate; desde o começo que andava numa roda-viva acudindo aos que tombavam,
abençoando-os, dando-lhes a absolvição final e indicando às irmãs de caridade os feridos que
ainda podiam aproveitar o seu auxílio. Em vão lhe faziam ver que também podia ser vítima das
balas que choviam à sua volta.
- As minhas valentes tropas cumprem o seu dever

- respondia ele -; deixai-me cumprir também o meu. Eles morrem por Deus; eu faço-os viver
para a felicidade eterna.

Horas sombrias

No fim da batalha, Monsenhor. B. . . acercou-se de um montão de destroços humanos, entre


os quais havia feridos com sinais de vida, embora débeis.

Depois de ter confessado e dado a absolvição a muitos, reconheceu o corpo de Rame que
encobria um zuavo. Estremeceu, pois conhecia e estimava deveras Tiago e Genoveva.
Apressou-se a desviar o pobre negro, que dava poucos sinais de vida; tinha o corpo
atravessado por uma bala no peito; debaixo dele estava Tiago coberto de sangue, mas
respirando ainda.

- Tiago ! - exclamou - ó Tiago !

Chamou dois soldados franceses que, como ele, andavam em busca de feridos para os salvar.

- Meus bons amigos - disse -, levem com cuidado ?? este pobre mancebo ferido; é um francês,
um valente

como vós; conduzam-no à ambulância das irmãzinhas; levem também este preto, que ainda
respira. Esperem; está a sangrar, com uma ferida no peito; vou tratar de vedar- lhe o sangue
amarrando um lenço na ferida.

As ordens de Monsenhor B. . . foram cumpridas. Tiago foi transportado à ambulância, onde


recebeu os primeiros cuidados. Abriu os olhos e tornou logo a fechá-los, murmurando o nome
de Genoveva.

Depois de cumprida a sua missão, Monsenhor B. . . pediu um carro; grande número de damas
e de senhores romanos haviam cedido as suas equipagens para o transporte dos feridos.
Mandou deitar Tiago numa delas, subiu com ele e disse ao cocheiro que seguisse para a praça
Colona, palácio Brancadoro. Ordenou que levassem o preto para o hospital, a fim de ali ser
tratado. Chegado ao pátio, subiu imediatamente e preveniu Primerose de que Tiago vinha
ferido, que era preciso ir preparando a esposa para este doloroso acontecimento, enquanto se
encarregava de fazer subir o doente, num colchão.

Primerose disse à Pelágia que arranjasse uma cama para deitar Tiago, e entrou no quarto de
Genoveva, com quem foi dar ajoelhada aos pés do crucifixo.

- Genoveva - disse ela -, Deus ouviu as tuas orações, preservando da morte Tiago.

GENOVEVA - Preservou ! Obrigada, meu Deus ! Obrigada, minha boa Santíssima Virgem! -
exclamou ela prostrando-se até ao chão. - Está ganha a batalha?
PRIMEROSE - Inteiramente; completamente aniquilados os inimigos de Deus; mas há muitos
mortos e feridos do nosso lado. O próprio Tiago não deixou de ser ferido também. Vais já vê-
lo, mas é preciso calma, pois a tua agitação poderia incomodá-lo.

GENoVEvA - Tiago ferido ! Meu querido ! E a ferida é grave ?

PRIMEROSE - Naturalmente não, visto que o puderam transportar para aqui. Deves, contudo,
manter-te serena quando o vires, minha filha, pois da tua coragem irá depender a rapidez da
sua cura.

GENOVEVA - Pois hei-de manter-me calma, corajosa ! Quero vê-lo ; onde é que ele está ?

PRIMEROSE - Foi Monsenhor B. . . que o mandou

para casa. A Pelágia está a arranjar-lhe a cama.

Ao cabo de dois meses, o Rame estava quase bom e tinha voltado para casa dos seus jovens
amos. encontrava-se restabelecido e dispunha-se a voltar a Paris, em convalescença. Antes de
partir, foi com veva receber a derradeira bênção do Santo Padre, de que tinha uma
condecoração.

Genoveva recebeu do Papa o seu retrato num camafeu, por haver, com os seus ternos
cuidados, ajudado a salvar um dos seus zuavos.

Fim do Sr. Dormer e, de Jorge. . .

e do livro

A viagem foi demorada, em vista dos cuidados exigidos ainda pela saúde de Tiago e de Rame;
chegaram, porém, todos sem percalço de maior e fixaram-se na sua casa de Auteuil, que
Primerose havia comprado para Tiago e para Veva, por intermédio do protutor. Fora arranjada
de novo. No primeiro andar ficou o jovem casal com Pelágia. O rés-do-chão reservara-o
Primerose para si.

Souberam, à chegada, que o Sr. Dormere fora acometido de paralisia na mesma noite da
partida do Jorge.

Os três foram-no visitar a Plaisance; em lugar do homem bem conservado, de cabelo preto, de
porte elegante, deram com um velho de cabelos brancos, paralítico das pernas, não podendo
mexer-se sem o auxílio de dois criados.

Ao vê-los, debulhou-se em lágrimas, pediu várias vezes perdão à Veva e à Primerose do


procedimento indigno que tivera para com elas, e rogou- lhes que o não abandonassem.

Genoveva chorava e Tiago estava comovidíssimo; ambos ajoelharam junto dele e as lágrimas
correram dos olhos dos três.

- Tio - disse Tiago -, permita-nos que vivamos junto de si; a Veva não me contrariará, pois
continua a ser o anjo que em tempos conheceu.
PRIMEROSE - pobre primo, faço minhas as palavras do Tiago. E eu, ajudá-lo-ei na sua
tarefa de velar pelo seu lar; serei a sua secretária, a sua moça de recados, o que o primo
quiser.

SR. DORMERE - Excelente prima, queridos filhinhos! abençoados sejais vós pela vossa generosa
oferta. ? Venham, sim, venham todos para minha casa; não me abandonem. Deus há-de
compensar a vossa dedicação.

Ao cabo de duas horas de estada ali, foram-se os três embora, Tiago, Genoveva e Primerose,
depois de lhe prometerem que voltavam na tarde do dia imediato. O Sr. Dormere agradecia,
lacrimoso, o perdão que hou veram por bem conceder-lhe, e que ele afirmava não merecer.

? Os três voltaram, de facto, no dia seguinte e transformavam-lhe, com a sua presença, a vida
horrível que levava, noutra mais agradável, ou, pelo menos, calma e sofrível.

Os dias escoavam-se desta forma tranquilos e quase felizes, sombreados apenas pela
recordação amarga do filho, que desde a partida, nunca mais dera sinais de vida.

Volvidos seis meses recebeu uma carta tarjada de preto. Abriu-a: era do Cônsul de França em
Vera-Cruz a participar-lhe que seu filho Jorge morrera de febre amarela, tendo-o encarregado
de transmitir ao pai a expressão do seu arrependimento pelo modo indigno como procedera

para com ele, que pedira e recebera os últimos sacramentos, e que morrera em boa paz,
pedindo perdão no seu delírio, a todos os que tão gravemente ofendera, particularmente a
uma tal menina ou Dona Genoveva, etc.

Uma hora depois, era o Sr. Dormere acometido de novo ataque apopléctico, que lhe pôs termo
à vida e aos sofrimentos ao cabo de dois dias de luta.

O notário, que fora logo prevenido, deslocou-se imediatamente a Plaisance, em cujo gabinete
de trabalho encontrou um testamento, pelo qual o Sr. Dormere legava ao Tiago toda a sua
fortuna, incluindo o solar de Plaisance, com a condição de estabelecer a Primerose uma renda
vitalícia.

Se lego a minha fortuná ao Tiago - escrevia ele -, em vez de a deixar à minha querida sobrinha
Genoveva, é com o intuito de equilibrar as duas fortunas. A minha prima Primerose dignar-se-á
ver, no rendimento que lhe deixo, uma expiação da minha injustiça e ingratidão para consigo
nos longos anos por ela consagrados à educação e à felicidade de minha sobrinha.

A dor de Tiago e de Veva foi muito intensa. Primerose via, no fim prematuro de ambos, uma
terrível expiação da fraqueza do pai que, assim, contribuíra para a depravação do filho.

Continua a viver na companhia dos seus jovens primos, a quem se compraz em chamar filhos.

Todos sem excepção - incluindo, pois, Rame e Pelágia - são tão felizes quanto se pode ser na
terra reconhecendo todos eles a verdade do provérbio:

DEPOIS DA TEMPESTADE VEM A BONANÇA

Fim

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