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NATAL/RN
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Naira Neide Ciotti
Natal
2019
HIKEL BRAUWN RIBEIRO DE MORAIS
BANCA EXAMINADORA:
Natal
2019
AGRADECIMENTOS
Aos colegas da turma que partilham essa aventura comigo, empenhados em suas
pesquisas. Gratidão em especial para Rodrigo Cunha, Monique Maritan, Janine Leal,
Raiana Paludo e Rita Tatiana.
This research is an experimental study on the art of magicians. We analyze and discuss
some of the creative processes triggered by these artists as technical elements that
promote the illusion, ways of doing and acting and the subjective universe of the artist.
We established relationships with the performing arts, reference books and magician
lecture notes, diluting epistemic boundaries. Three elements punctuate this
investigation: the body of the performer, the performativity and the nature of its art.
Interviews and reports of experiences were analyzed in this research, also considering
the artist's own artistic process. The theoretical discussion proposes dialogues with
authors of the performing arts, theatrical and performative performance, addressing the
practical and theoretical aspects related to the formation of magicians.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1
SOBRE AS TRADUÇÕES ........................................................................................... 6
I
PRAESTIGIUM
II
SHOWMANSHIP
III
UMWELT
1
A Arte dos Mágicos: corpo, performatividade e enganação é uma pesquisa de
natureza qualitativa, descritiva, de caráter exploratório. As etapas de realização deste
estudo consistiram, inicialmente em pesquisa documental seguida de análise do
referencial bibliográfico. Depois entrevistas num formato semi-estruturado, com relatos
e descrição de experimentações artísticas por mágicos de reconhecido trabalho e
experiência na área, realizadas durante alguns congressos de mágica, visitas pessoais e
comunicação pela internet. Finalizando com uma síntese pelo olhar deste autor-
pesquisador, que a partir de sua familiaridade e experiência com o tema, aprofundou a
discussão nos pontos propostos neste estudo, realizando também experimentos práticos.
2
extensa pesquisa histórica, documental, sobre a Arte da Mágica, seguido de um estudo
de caso, em que apresenta suas composições, comentadas e analisadas na tentativa de
explicitar sua teoria, é uma obra que apresenta uma visão abrangente desta forma de
arte, fazendo aproximações com as artes visuais e o teatro, resultando numa riqueza de
referências e procedimentos de criação para as artes da cena.
Apontamos também algumas leituras que fazem correlações entre mágica e
outros temas como, estudos em teatro e artes cênicas, processos criativos, relatos
antropológicos, história, literatura, psicologia e neurociências; Dentre as quais citamos:
The Conjuring (James Randi, 1992), em que o autor aborda a cultura da mágica a partir
de ilusionistas1 amplamente reconhecidos na história, além de sua visão pessoal sobre o
desenvolvimento da mágica na modernidade e pós-modernidade. Strong Magic (Darwin
Ortiz, 1994), livro que aborda a apresentação de mágica, explicando teorias sobre o uso
apropriado de técnicas em diferentes situações. Le secrets de La prestidigitation et de
La magie (Robert-Houdin, 1868), trata-se de parte da obra de Robert-Houdin,
considerado o ―pai da mágica moderna‖, um manual autobiográfico com indicações
para uma boa execução de números de mágica. Hiding the elephant (Jim Steinmeyer,
2003), livro histórico ressaltando os efeitos e equipamentos utilizados pelos mágicos.
Los cinco puntos mágicos (Juan Tamariz, 2005), os cinco pontos mágicos para uma boa
apresentação. É uma das teorias desenvolvidas pelo prestigiado cartomago 2 espanhol
Juan Tamariz. The Show Doctor (Jeff McBride, L. Hass, 2012), também uma das obras
mais atuais na mágica, se utiliza da linguagem da medicina para ―diagnosticar‖ e
―tratar‖ dos problemas artísticos no fazer dos mágicos por meio de exemplos e
sugestões críticas, conta com a ampla experiência dos autores envolvidos. Miracle
Mongers (Harry Houdini, 1920), um dos livros de Harry Houdini 3 que busca
compreender o corpo numa perspectiva cultural e biológica a partir de técnicas seculares
da mágica indiana tais como, técnicas para caminhar sobre brasas, manipular fogo,
regurgitar objetos ou engolir espadas, relata também um pouco da história de
performers que se apresentavam em Vaudevilles4 e freakshows5. Magic: 1400s – 1950s
1
O termo, neste ponto, tem o mesmo significado de mágico. Embora que o termo ilusionista também
tenha uma vertente que se refere a um estilo de teatro.
2
Cartomago é a designação dada a um mágico especialista em números com cartas de baralho.
3
Harry Houdini (Erich Weiss) foi um mágico húngaro naturalizado norte americano que se tornou
famoso por realizar apresentações de escapismo com fugas impossíveis de algemas, camisa-de-força,
correntes, caixas, entre outros elementos. É considerado um dos mágicos mais importantes na história da
mágica.
4
Vaudeville (identificado também como varieté) refere-se a um formato de apresentação de show que
mistura música ao vivo, dança, canto e atrações artísticas das mais diversas, criando atos sem uma ligação
3
(Mike Caveney, J. Steinmeyer, Ricky Jay, 2009), enciclopédia ilustrada e detalhada da
história da mágica de 1400 a 1950. Sleights of mind (Stephen L. Macknik, Susana
Martinez-Conde, 2010), resultado de uma pesquisa acadêmica dos autores
neurocientistas que pesquisaram a percepção e os processos que ocorrem no cérebro de
um espectador de mágica. Mysterious Stranger (David Blaine, 2002), livro documental
e biográfico do mágico David Blaine apresentando parte de seus processos criativos,
referencial artístico e ideias pessoais.
Buscando com esta pesquisa expansões no campo epistêmico das artes cênicas a
partir de uma base inaugural de diálogos e experimentações, propomos apresentar ao
meio acadêmico elementos de uma linguagem artística pouco pesquisada em nível
nacional, realizando a tradução de seu referencial teórico para o nosso idioma e
estreitando as relações entre arte e pesquisa. Confere também para o Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da UFRN a dianteira de uma temática pouco abordada
como pesquisa no Brasil com a possibilidade de ampliação de uma teia de diálogos da
cena contemporânea com artistas e pesquisadores do corpo, da performance, mágica e
artes da cena no geral.
Meu encontro com esta forma de arte se deu durante a infância, em um passeio
escolar. Na ocasião, encontrei um mágico que vendia alguns números simples, dos quais
fui participante em um deles, mais adiante falarei sobre este número. Muito tempo
depois, ao assistir um especial de TV sobre um mágico de rua, revivi a experiência
ocorrida na infância e também senti estar compartilhando da reação das pessoas no
vídeo. A partir de então o que era um apreço tornou-se um interesse, levando-me a
estudar e praticar mágica e com o tempo transformar essa prática numa profissão, numa
pesquisa e num caminho.
Hoje, ao longo de dez anos de estudo e atuação, tendo buscado conhecimento
com mágicos de diversas partes do mundo em congressos no Brasil, minha curiosidade
sobre alguns fenômenos específicos desta forma de arte me levou aos questionamentos
desta pesquisa, que também se conecta com o estudo realizado durante a graduação no
curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, sob o título: A máscara da ilusão - uma
dramatúrgica, com o intuito de entreter. Esse formato ficou muito famoso na América do Norte durante
períodos de Guerra Civil.
5
Freak show ou ―Show de aberrações‖ foi um formato de ―show‖ popular no começo do século XX que
consistia na exibição de pessoas ou animais com anomalias/alterações físicas (provenientes de doenças ou
deficiência física), com a popularidade do formato a busca por novidades implicou que os ―performers‖
também realizassem façanhas.
4
proposta de aproximação pedagógica da arte do mágico com a arte do ator 6 (2014),
trabalho que aproxima mágica e teatro pelo viés do Jogo Teatral.
6
Trabalho de Conclusão de Curso realizado no ano de 2014 sob orientação do Prof. Me. Makarios Maia,
A escrita aborda o treinamento técnico do ator e do mágico sob o ponto de vista das ações físicas e do
jogo teatral, o misdirection como princípio fundamental na arte da ilusão e o conceito de Jogo aplicado às
artes cênicas como elemento compositivo, realizando uma aproximação pedagógica entre teatro e mágica.
7
Uma forma de performance em que o artista compõe sua obra ao vivo, assistido por espectadores,
muitas vezes acompanhado por música ao vivo.
5
interesse as entrevistas com o cartomago argentino Nicolás Pierri e o mago paraguaio
Diego Deckmann (Dante), colegas que atuam fora do país.
SOBRE AS TRADUÇÕES
8
A arte dos mágicos partilha de conhecimentos e métodos desenvolvidos para o teatro ilusionista do
século XIX, porém diverge do teatro enquanto finalidade. O teatro ilusionista surge com a utilização da
iluminação elétrica na cena, fato que revolucionou o modo de pensar a encenação e inaugurou o teatro
moderno. Objetivo do teatro ilusionista era que o espectador confundisse a ficção do espetáculo com a
realidade (ROUBINE, 1998).
9
Haroldo de Campos foi um importante poeta e tradutor brasileiro, cunhou o termo ―transcriar‖, e
traduziu para o português os clássicos da literatura tais como Homero, Dante, Goethe, Maiakosviki, entre
outros.
6
contextual, desligada da subjetividade da interlocução. Ele nos apresenta a tradução
como uma arte da transcriação, pois se vê diante do problema que é a ―fragilidade‖ da
informação estética: ―uma informação semântica ou documental admite diversas
codificações, mas uma informação estética não pode ser codificada senão pela forma em
que foi transmitida pelo artista‖ (CAMPOS, 2006). Propondo a tradução como uma
recriação ou co-criação e a ideia da tradução como arte, e servindo-se das teorias da
Escola de tradutores de Paulo Ronai que implicam a tradução com esse caráter:
O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o
inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é
surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível. (RONAI apud
CAMPOS, 2006, p. 34-35).
O problema da tradução criativa só se resolve, em casos ideais, a nosso ver, com o trabalho
de equipe, juntando para um alvo comum linguistas e poetas iniciados na língua a ser
traduzida [...] É necessário que o artista (poeta ou prosador) tenha da tradução uma ideia
correta, como labor altamente especializado, que requer uma dedicação amorosa e pertinaz,
e que, de sua parte, o professor de língua tenha aquilo que Eliot chamou de ―olho criativo‖,
isto é, não esteja bitolado por preconceitos acadêmicos, mas sim encontre na colaboração
para a recriação de uma obra de arte verbal aquele júbilo particular que vem de uma beleza
não para a contemplação, mas de uma beleza para a ação ou em ação. (CAMPOS, 2006, p.
46-47).
10
Dra. Christine Greiner é professora, jornalista e pesquisadora. Leciona na Pontífica Universidade
Católica de São Paulo PUC/USP. Coordena o curso de Graduação em Comunicação e Artes do Corpo,
curso que ajudou a criar. Desenvolve em parceria com Helena Katz o conceito de Teoria Corpomídia.
7
Um dos modos de dar visibilidade aos processos de tradução e significação está relacionado
ao que se costuma chamar de ‗presença do corpo‘. [...] A noção de presença do corpo seria
um dos momentos desta tradução-deslocamento, em que algo se presentifica (uma ação,
uma ideia, uma imagem) e ganha visibilidade, estabelecendo um novo processo de
comunicação com o seu entorno (plateia e contexto) [...] Neste caso, a presença do corpo
seria a carne do corpo, mas também as suas conexões não apenas com diferentes objetos,
mas com realidades plurais, ou seja, um fluxo de informações não apenas individuais, mas
eminentemente coletivas. (GREINER, 2010, p. 93-96).
11
Lentidigitación é um termo criado pelo ilusionista argentino René Lavand, que contrapõe a ideia de
rapidez na mágica.
8
dans le exercices de prestidigitation, plus les mouvements sont calmes, plus doit être facile
l‘illusion des espectateurs.12 (ROBERT-HOUDIN, 1868, p. 54).
Se há uma palavra que descreva a maior essência do Sleight of hand, essa palavra é
misdirection. As mãos não são mais rápidas que o olho, mas são (ou podem ser) mais
12
―Um conjurador não é um malabarista; ele é um ator que interpreta o papel de um mágico; ele é um
artista cujos dedos devem ser mais hábeis do que perfeitos. Inclusive acrescentarei que, no exercício da
conjuração, quanto mais os movimentos são calmos, mais fácil deve ser a ilusão dos espectadores.‖
Tradução nossa.
9
espertas [...] Sleight of hand depende, não de rapidez, mas de misdirection, que é o processo
de desviar a atenção do espectador daquilo que você não quer que ele veja, para aquilo que
você quer. [...] Conforme obtenha habilidade você irá perceber que estará desviando a
atenção de sua audiência fácil e naturalmente, mesmo sem querer.13 (TARR, 1976, p. 17,
tradução nossa).
13
―If there is one word which sums up the very essence of sleight of hand, that word is misdirection. The
hand isn‘t quicker than the eye, but it is – or can be – far more clever. [...] Sleight of hand depends, not on
quickness, but on misdirection, which is the process of diverting the spectator‘s attention from that which
you don‘t want them to see, to that which you do. [...] As you gain skill you will find yourself
misdirecting your audience easily and naturally, without even trying.‖
10
I
PRAESTIGIUM
11
1. Enquanto lê estas linhas respire profundamente e tente
esvaziar sua mente.
2. Perfeito, agora procure ao seu redor a maior quantidade de
objetos que brilham. Memorize-os.
3. Feito isso, respire profundamente, agora feche os olhos e
tente lembrar quantos objetos de cor preta (ou outra cor à
sua escolha) há ao seu redor.
4. Vai parecer difícil, porque a atenção estava focada em outra
instrução quando olhou ao redor, esse é um dos princípios
de como funciona o Misdirection.
12
1. A ARTE DOS MÁGICOS
14
―Performance magic is more than merely ancient. It is also astonishingly universal. It seems that every
known culture has had a place for magic: conjuring in ancient religious practices, shamanic rituals of
healing, street fakirs in Calcutta, poetic artists in China and Japan, ancient and contemporary oracles,
great stages and television screens across six continents, mammoth showrooms in Las Vegas, Uncle Bob
and his card tricks, and street corner entertainers the whole world over. Once we start noticing it (and then
studying it), we find magic all around—a pulse that runs throughout human cultures, near and far, past
and present.‖
13
parece ser inerente à humanidade e de forte valor formativo, pois estimula a consciência
por meio da admiração que proporciona aos seus espectadores, chamamos de mágica ou
magia. O fogo, por exemplo, foi por muito tempo considerado um elemento mágico,
incontrolável, uma qualidade dos deuses, um presente dado ou conquistado para a
humanidade. É, ao mesmo tempo, mistério e iluminação. Em seus simbolismos
representa o gênio criativo, a arte, a cultura, como o fogo roubado dos deuses e dado à
humanidade por Prometeu, mas também um elemento destrutivo, purificador,
finalizador. Diversos são os mitos que nos explicam o domínio e aquisição do fogo.
O artista-pesquisador Ricardo Harada, analisa com cuidado a origem da mágica
em sua tese A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena
teatral. Ele nos mostra a proximidade e influência que a arte da mágica, sob o nome de
magia atuou em determinados períodos da humanidade, se utilizando dos
conhecimentos das ciências naturais. Em sua reconstrução histórica, Harada relata um
dos mais importantes contos da história da mágica, a apresentação do mago Dedi para o
faraó Quéops, mencionado na introdução desta pesquisa, possivelmente o mais antigo
escrito sobre mágica, produzido há quatro mil anos:
14
A ideia de thaumaston, nos leva aos taumaturgos, também chamados de
―realizadores de milagres‖. Diferentemente dos mágicos na Idade Média e na
contemporaneidade, os taumaturgos não tinham o objetivo de ―entreter‖, seu assombro
possuía uma conotação mística, como se fosse um intermédio para mensagens divinas.
O objetivo maior do taumaturgo não estava ligado ao entretenimento ou a diversão, mas
à demonstração da existência de uma força divina, sobrenatural.
Para Harada esse detalhe diferencia o taumaturgo do mágico, ele aponta também
que as apresentações de Dedi tinham uma aproximação estrutural maior com a mágica
moderna e atual:
Dois aspectos são dignos de nota nestes relatos: em primeiro lugar, os feitos realizados
por Dedi não se diferem de muitos efeitos realizados por mágicos modernos e
contemporâneos, tanto em forma quanto em conteúdo; em segundo lugar, o modo como
Dedi procede ao lidar com seu espectador, o faraó. O mágico sempre controla as
condições de sua apresentação. Dedi recusa o pedido do faraó, de decapitar um de seus
prisioneiros e inicia sua demonstração com um ganso, aumentando gradualmente a
dificuldade da apresentação, culminando com a decapitação e ressurreição de um boi.
Por ser maior que um ser humano, o feito aparenta ser mais difícil de realizar. O
princípio ―de plus en plus fort‖ e o controle sobre o desejo da platéia, ludibriada ao bel
prazer do ilusionista, ligam Dedi diretamente aos prestidigitadores modernos.
(HARADA, 2012, p. 15-16)
15
O termo ―maravilhamento‖, apresentado anteriormente, corresponde na língua
inglesa à palavra Astonishment, um termo atualmente atrelado à essência da mágica,
muito utilizado pelo mágico Paul Harris. Significa admiração, espanto, deslumbramento
ou perplexidade. É a reação universal expressada e compartilhada por aqueles que
testemunham um ato de mágica, uma mistura da incompreensão do método com o
prazer da experiência de testemunhar algo impossível ou inacreditável, levando ao riso,
espanto, frustração e admiração, quase que tudo isso ao mesmo tempo.
Figura 1 - Deslumbramento de uma criança durante uma apresentação de mágica. Arquivo pessoal, 2016.
15
Ph.D. Richard Schechner é professor de Estudos da Performance na Tisch School of the Arts da
Universidade de Nova Iorque e editor da TDR: The drama review. Autor e diretor teatral, desenvolveu as
Rasaboxes (Caixas de Rasa) como proposta de treinamento nas artes cênicas.
16
A palavra Mágica é derivada da palavra "magi", e faz referência aos sacerdotes-estudiosos
da antiga Caldéia e Media (antiga região na Pérsia). A palavra é amplamente utilizada,
especialmente na América. Em um dicionário, ela é definida como "a tentativa de controlar
a natureza por meio de feitiços e encantamentos". Esse mesmo dicionário diz que um
"conjurador" é "alguém que [convoca] espíritos e finge realizar milagres por sua ajuda". A
definição quase aceita que os espíritos podem ser invocados, mas nega que o artista
realmente faça uso de sua assistência sobrenatural. Outra fonte define-a como a arte de
"produzir a aparência da magia genuína por meio de truques e enganos‖ 16. (RANDI, 1992,
p. xi, tradução nossa)
Tão impressionantes eram as proezas desses indivíduos que juggler (―malabarista‖) veio a
significar ―mágico‖, enquanto o termo conjurer (―conjurador‖), que originariamente
designava quem invocava os espíritos, no século XVIII passou a se referir a alguém que
fazia prestidigitações, comendo fogo ou puxando longas fitas coloridas de dentro da boca.
(BURKE, 2010, p. 133-134)
O xamã e o mágico têm muito em comum na função de contar o mistério dos grandes
dramas da vida, morte e renascimento, e ainda têm muito o que aprender um com o outro!
[...] Muitas diversões populares remontam a uma única fonte – os rituais do xamanismo,
rituais funcionais de padrão similar que operavam em uma variedade de sistemas
metafísicos. O ritual mágico autêntico muitas vezes precede a magia popular. Tipos muito
diferentes de performance, como atos mágicos, acrobacia, marionetes e pirofagia
16
―The Word ‗Magic‘ is derived from the word ‗magi‘, reffering to the priest-scholars of ancient Chaldea
and Media. The Word is largely misused, especially in America. In one dictionary it is defined as ―an
attempt to control nature by means of spells and incantations.‖ That same dictionary tells us that a
―conjuror‖ is ―one who [summons] spirits and pretends to perform miracles by their aid‖. This definition
almost accepts that spirits can be invoked, but denies that the performer really makes use of their
supernatural assistance. Another source defines conjuring as the art of ―producing the appearance of
genuine magic by means of trickery and deception.‖
17
comprovadamente derivaram de, ou pelo menos foram precedidos por, fenômenos desses
rituais [...] A magia e seus efeitos especiais foram usados para melhorar o teatro ritual
desde que o primeiro fogo foi aceso. O espanto e o terror gerados pelos primeiros xamãs
erguiam os participantes do ritual a um plano mais elevado de consciência. (MCBRIDE
apud ZELL-RAVENHEART, 2014, p. 466-467)
Por realizar atos que demonstram seu controle ou poder sobre eventos naturais
(acontecimentos, forças naturais, ou leis naturais), tal qual o folclore e as mitologias nos
contam sobre magos e bruxas, a temática mística e diabólica acompanha a figura do
mágico, utilizada amplamente na publicidade desses artistas desde a modernidade.
18
até ambientes menores, abertos e cotidianos, como reuniões sociais, festividades
populares ou no meio da rua para o público passante. Resgata um tipo de ritualidade,
presente em seus simbolismos, como a varinha e o coelho, mas também em sua
estrutura e transição temporal, à exemplo disso, a mágica foi compreendida pelo já
falecido Tenkai Ishida17, como um caminho, no sentido de um segmento filosófico e
vital, semelhante ao ‗caminho‘ nas artes marciais do oriente.
A mágica (ou ―magia‖) perpassa um esquema de nascimento – morte –
renascimento. O cartomago e performer britânico Daniel Madison promove um
pensamento sobre mágica chamado M.I.D. (Magic Is Dead), que compreende que a arte
da mágica está morta, que para a sociedade atual a mágica morreu, e hoje se trata de um
desafio intelectual ou algo que, embora o espectador não saiba explicar, sabe que exista
um método.
Para Madison a popularização dessa forma de arte e a revelação de segredos na
mídia são fatores que mataram muito da sua capacidade de ―assombrar‖ o espectador
hoje, além das mudanças culturais que rompem com os paradigmas do século anterior.
A partir desta perspectiva ele propõe que o mágico que busca uma qualidade artística
para o que faz, compreenda a ―morte‖ da mágica, e enquanto performer (no momento
de sua atuação) promova seu ―renascimento‖, empenhando-se em atuar da melhor
maneira, dedicando-se em sua prática diária e fazendo com que o espectador no instante
em que assiste, testemunhe mais do que mágica, experimente magia.
O mágico e contador de estórias Eric Chartiot nos explica, por meio de um de
seus contos, este renascimento da mágica e também a motivação de realizá-la:
Henning insistiu:
- Mas vocês gostaram da mágica?
O Inuit pareceu intrigado:
- Que mágica?
- A que eu estava fazendo para divertir vocês.
- Divertir é bom! Mas que mágica? Por que você faz essas coisas?
Doug Henning armou-se de paciência e pôs-se a explicar que fizera uma bola flutuar
no ar.
- Isso é mágica! – explicou.
Foi então que o esquimó disse absolutamente natural:
17
Teijiro Ishida, mais conhecido como Tenkai, foi um mágico japonês que viveu e trabalhou nos EUA
durante a Segunda Guerra Mundial. Ele criou conhecidas técnicas utilizadas em atos de mágica de
manipulação com objetos.
19
- Nós temos uma bola que flutua no ar todos os dias. E ela nos dá luz e vida. Esta
sim, é mágica. Agora... essa sua bolinha!...
[...]
O mágico tentou explicar o que era mágica, mas para sua decepção o Inuit
continuava sem entender.
De repente, o esquimó pediu-lhe calma. Disse:
- Deixa eu conversar com meu povo. Talvez, juntos, a gente entenda.
O homem levantou-se, indo juntar-se aos outros, e começaram a conversar. Depois
de um bom tempo, voltou. Vinha com um grande sorriso.
- já entendemos porque está fazendo todas essas coisas. É porque o seu povo
esqueceu o que é realmente mágico. Você está fazendo isso para eles se lembrarem.
Boa ideia! Grande ideia! (CHARTIOT, 2006, p. 5-6)
18
Para Constantin Stanislavski, o trabalho cênico deveria atingir um nível de verossimilhança muito
próximo da vida. Para isto ele articulou um sistema de atuação que ao longo de sua vida sofreu
atualizações e buscou proporcionar ao ator o pleno domínio sobre seu corpo e suas ações.
21
por certas tecnologias escondidas, para ganhar a atenção e a apreciação de uma audiência.
O conjurador é um ator de figura dramática, um malabarista dos sentidos e um mestre de
psicologia, e não faz nenhuma questão de ser um guru, santo, clarividente ou messias. O
objetivo é o entretenimento19. (RANDI, 1992, p. xiii, tradução nossa)
19
―Similarly, the honest conjuror is an actor, employing his or her deftness of characterization,
consummate dexterity, and general charm, often but not always assisted by certain concealed
technologies, to win the attention and the appreciation of an audience. The conjuror is a character actor, a
juggler of the senses and a máster of psychology, and makes no attempt to be a guru, saint, clairvoyant, or
messiah. Entertainment is the goal.‖
22
Alguns ilusionistas são conhecidos também como manipuladores, aqueles que
manipulam objetos, fazendo-os aparecer, desaparecer, mudar de forma, cor, tamanho,
entre outros. Os Mágicos em geral estudam as diferentes categorias de efeitos, pois
algumas técnicas ou elementos de determinada área são comuns também em outra, no
que confere ao estilo alguns mágicos se aprofundam em determinada categoria.
Jean Eugene Robert-Houdin, nascido em Blois, França, em 1805, começou a
praticar mágica ainda jovem e tornou-se relojoeiro por profissão, abriu um teatro de
mágica em Paris em 1845, com apresentações que uniam técnicas de prestidigitação à
mecânica de seus autômatos, Robert-Houdin era especialista em desenvolver pequenas
máquinas automotivas e por este motivo concebeu muitos números originais, como a
famosa ilusão da laranjeira 20. Ele foi um dos primeiros mágicos a adotar o visual que
conhecemos como ―clássico‖ na arte da mágica, composto por fraque, cartola, bastão e
luvas, a indumentária da aristocracia francesa do século XIX (STEINMEYER, 2003, p.
143-144).
Foi também um dos responsáveis por popularizar os termos ―prestidigitador‖ e
―escamoteador‖, como denominava a sua prática. E também por levar as apresentações
de mágica para os grandes teatros, influenciando em estrutura e estética as
apresentações dos mágicos que sobrevieram ao seu tempo como os irmãos Davenport,
Professor Anderson (The Great Wizard of the North), Alexander ―The Great‖
Herrmann, Harry Kellar, Howard Thurston, Danté, etc. Criando uma tradição neste
formato de apresentação que pode ser identificada no trabalho de importantes mágicos
da modernidade como Harry Blackstone, Blackstone Jr., Richiardi Jr e Lance Burton, e
na construção do visual do personagem dos quadrinhos Mandrake, de 1930.
Ainda buscando uma construção mais precisa da figura do mágico é importante
considerar a transição das diversas roupagens que essa figura utilizou desde o figurino
clássico do século XIX, ―eternizado‖ por Robert-Houdin, convertido aos poucos num
traje de gala ou num traje social, uma vestimenta que conferia autoridade para o
performer.
20
The Marvelous Orange Tree é um famoso número criado por Robert-Houdin e pode ser visto no filme
Eisenheim The illusionist (em português: O ilusionista).
23
Por todo o século XX a mágica vai se
expandir com diferentes estilos e narrativas.
Os Irmãos Davenport, por exemplo, propõem
um ato único que os faz viajar o mundo,
apresentando a spirit cabinet (cabine espiritual
ou cabine dos espíritos, como é mais
conhecida atualmente). Neste ato, Ira e
William Davenport eram aprisionados em um
grande armário com duas grandes portas, um
de frente ao outro tendo pulsos e pernas presos
por cordas e uma grande quantidade de objetos
ao redor (ver Figura 4).
Ao fechar esse armário, os objetos
misteriosamente se agitavam, produziam sons
e eram arremessados para fora do armário, que Figura 4 - Irmãos Davenport. Publicidade do séc.
XIX. Fonte: https://www.zazzle.com
ao ser aberto revelava os irmãos totalmente
presos e incapazes de manipular os objetos. Esse número tornou-se uma sensação,
sobretudo porque o enunciado do número remetia aos fenômenos espirituais, e os
artistas envolvidos não afirmavam nem negavam a possibilidade. Essa narrativa ilustrou
uma série de efeitos de magia, tornando-se um dos mais contraditórios estilos de
apresentação, desaguando em interessantes variações na atualidade.
24
mesma persona, inclusive
copiando uns aos outros nas
apresentações, mas destacamos um
dentre eles que possui uma história
singular e que retrata fielmente
uma vida de devoção à arte da
mágica, Chung Ling Soo: nascido
nos EUA, William Ellsworth
Robinson foi um mestre em
mágica e maquiagem. Por quase
duas décadas viveu sob a
identidade de um mágico chinês,
evitando falar em público, fazia
uso inclusive de um intérprete. Figura 6 - Chung Ling Soo. Ilustração do autor.
26
magic21. Blaine também inaugura um formato que flerta com a body art, se
denominando um endurance artist, um artista que põe o corpo a testar os limites físicos
de resistência. Seu primeiro trabalho nessa linha foi passar sete dias enterrado num
caixão de vidro. Esse ato foi inspirado num desafio que Houdini iria realizar, mas que
em decorrência de sua morte, nunca chegou a fazê-lo. Depois Blaine foi emparedado em
pé num bloco de gelo, permanecendo por quase sessenta e duas horas. E assim seus atos
se tornaram cada vez mais desafiadores, como passar quarenta e quatro dias vivendo em
jejum numa caixa de vidro suspensa em Londres, ou sete dias submerso utilizando um
tubo para respirar e se alimentar antes de tentar o recorde mundial de apnéia, em
entrevista ele menciona sua motivação aos desafios: ―eu gostaria de descobrir quanto
tempo eu poderia sobreviver sem nada‖.
Até este ponto podemos
perceber as diferentes formas que a
figura do mágico se apresentou no
decorrer de duzentos anos, apesar das
transições e diferentes estéticas de
acordo com o contexto e com as
transformações da sociedade,
podemos notar que alguns artistas
cultivam elementos que mantêm uma
fidelidade com a tradição, por vezes
como uma homenagem ao passado.
21
Destaca-se o trabalho do mágico americano Jeff Sheridan no Central Park (NYC), por volta de 1960,
como a vanguarda do estilo Street Magic na cultura ocidental moderna. Harada nos fala que a mágica
também floresceu nas ruas, praças e locais públicos, nas diversas culturas que praticaram esta forma de
arte (HARADA, 2012, p.22).
27
viesse a expor os segredos sob a justificativa de ―estar induzindo os mágicos a inovar‖,
a organização mundial de mágica FISM22 (Fédération Internationale des Sociétés
Magiques) possui em seus congressos uma categoria de competição para invenção de
números, métodos ou equipamentos em mágica. Enxergamos a mágica atual e os
mágicos atuais num processo de reconstrução da arte e dos paradigmas estabelecidos.
A mágica do século XXI vive um renascimento, dialoga com outras linguagens
artísticas e abrange de modo mais evidente as diferentes etnias, gêneros, grupos e
culturas. A relação política que o espectador atual estabelece com a apresentação de
mágica em sua apreciação, difere, por exemplo, da curiosidade apresentada no século
anterior, marcado por descobertas e novidades tecnológicas que atiçavam a imaginação
das pessoas. A união com os recursos de vídeo sofreu ampliações para além das
possibilidades realizadas por George Méliès23 com o cinema no final do século XIX.
A mágica ―para a câmera de vídeo‖ ganhou vertentes positivas como o uso em
conjunto com um telão no palco, um importante recurso para a mágica close-up que
possibilita apreciar esse tipo de apresentação num teatro de grande porte. Como também
na interação do artista com o vídeo em cena, como podemos notar no trabalho de Marco
Tempest24 e Adam Trent 25. Mas também é explorado comercialmente de modo
exagerado em especiais televisivos de ―mágica‖, onde o artista é mais um ―ator de TV‖
do que um mágico, e utiliza recursos especiais como cortes de vídeo e edições, às vezes
até efeitos especiais ou atores fazendo o papel de espectadores, esta abordagem se
distancia estruturalmente do que a mágica propõe.
22
Site oficial: https://fism.org/
23
Georges Méliès foi um pioneiro do cinema, e também um mágico, conhecido por produzir filmes
baseados em ilusões utilizadas pelos mágicos em sua época.
24
Marco Tempest, conhecido como o ―ilusionista cibernético‖ é um mágico suíço que vive nos EUA.
Suas ilusões combinam tecnologia, ciência, vídeo e arte performática. Sendo uma grande referência neste
estilo de apresentação. Ver: http://marcotempest.com/en/
25
Adam Trent é um mágico norte-americano que ficou conhecido após participar de um programa de
mágicos chamado Wizard wars. Com seu trabalho que combina mágica e interação em vídeo integrou o
espetáculo em turnê mundial The illusionists. Ver: https://www.adamtrent.com/
28
mentalistas, utilizam recursos semelhantes. Mentalismo é uma categoria da arte da
mágica em que o contexto dos efeitos remete à capacidades mentais, apresentadas
também como paranormais ou ―extra-sensoriais‖ (além dos sentidos conhecidos), o
artista não se denomina um mágico, mas um mentalista, alguém que conhece ou
aprendeu a utilizar mais que as capacidades ditas normais da mente, podemos citar
como exemplo os mentalistas brasileiros Gustavo Vierini, Ricardo Thibau e a dupla Os
Charlatães (Juan e Alejandro), como também o britânico Derren Brown.
A maioria dos efeitos de mentalismo consiste em adivinhações e previsões de
escolhas futuras. Mas por muito tempo foi explorada a ideia de manifestações
sobrenaturais ou espirituais, falamos anteriormente dos irmãos Davenport com seu ato
intitulado ―Cabine espiritual‖, contudo, as sessões espirituais (conhecidas como
séances) foram uma grande atração nas casas da Europa, principalmente após um
incidente que ocorrera nos EUA em 1848:
[...] Na pequena cidade de Hydesville, Nova York, na fazenda de John D. Fox e sua esposa.
Os Foxes foram atormentados por uma série de ruídos estranhos na casa. Os ruídos
perturbaram a família, particularmente a Sra. Fox, que era crédula e supersticiosa; ela, por
sua vez, disse aos vizinhos, que visitaram a casa nas noites seguintes para ouvir. Duas das
filhas de Fox, Margaret, 8 anos e Kate, 6, pareciam estar no centro do fenômeno, embora
ninguém sugerisse a artimanha dessas meninas pequenas. Os ruídos pareciam aleatórios e
misteriosos até que alguém sugeriu um código simples, que permitia que os ruídos
respondessem a perguntas. Lentamente, a família e os visitantes da casa acreditaram que
um espírito desencarnado estava gerando o som26. (STEINMEYER, 2003, p. 54, tradução
nossa)
26
―[...] in the small town of Hydesville, New York, at the farmhouse of John D. Fox and his wife. The
Foxes were plagued by a series of strange rapping noises inside the house. The raps excited the family,
particularly Mrs. Fox, Who was gullible and excitable; she in turn told neighbors, who visited the house
on following evenings to hear for themselves. Two of the Fox daughters, Margaret, age 8, and Kate, 6,
seemed to be at the Center of the phenomenon, although no one suggested the duplicity of these little
girls. The noises seemed random and mysterious until someone suggested a simple code, which allowed
the raps to answer questions. Slowly the family and visitors to the house were made to understand that a
disembodied spirit was generating the sound.‖
29
pular e produzir o som, depois desenvolveu outras maneiras de realizar o feito
(STEINMEYER, 2003). Parece um artifício simples de se desmascarar, mas veremos
porque somos seduzidos por tal artimanha.
Conforme mencionado pelo mágico Eric Chartiot: ―o artista, mais que qualquer
outro, enxerga a verdade em sua arte, e nos mostra a realidade de um ponto de vista que
não estamos acostumados a perceber‖. Se sua obra é capaz de fazer outros enxergarem
esta verdade, sua arte obteve êxito. A noção de verdade que abordamos aqui se trata de
como percebemos a realidade e os fenômenos que acontecem ao nosso redor, e como
nossa percepção pode ser (e vem sendo) manipulada.
Nossa percepção do que consideramos realidade, para Merleau-Ponty, é uma
construção que fazemos da interpretação das informações captadas por nossos sentidos
com as associações e juízos atribuídos a estas interpretações.
Os homens que vejo de uma janela estão escondidos por seus chapéus e por
seus casacos, e sua imagem não pode fixar-se em minha retina. Portanto, eu
não os vejo, eu julgo que eles estão ali. Definida a visão à maneira empirista
como a posse de uma qualidade inscrita no corpo por um estímulo, a menor
ilusão, já que dá ao objeto propriedades que ele não tem em minha retina,
basta para estabelecer que a percepção é um juízo. (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 61)
30
Nosso campo perceptivo é feito de ―coisas‖ e de ―vazios entre as coisas‖. Se
nós nos puséssemos a ver como coisas os intervalos entre as coisas, o aspecto
do mundo seria mudado de maneira tão sensível quanto o da adivinhação no
momento em que descubro ‗o coelho‘ ou ‗o caçador‘. (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 38-39)
É um processo natural que nos faz até ―prever a próxima palavra‖ como neste
exemplo 27:
27
O jogo apresentado consta em pesquisas em neurociências, podendo ser encontradas outras versões em
livros da área. A configuração e formatação acima é de autoria deste autor.
31
representação não busque o realismo. Ou ainda quando nos emocionamos com o drama
de um personagem no cinema, porém ciente que o ator está interpretando. Um pacto
entre artista e espectador, um pacto em prol do acontecimento mágico da cena.
Assim nós temos a realidade, como a chamamos, que diz respeito ao nosso
cotidiano e que percebemos com nossos sentidos, e temos a realidade ―dramatúrgica‖ ou
diegética, termo empregado nos estudos literários referente a um nível narrativo do
discurso (GENETTE, 1972), aplicado aqui à realidade da cena, uma realidade ficcional,
uma construção poética.
Por que deixar claro tal separação entre realidade e diegese? Pois iremos estudar
mais adiante um conceito que se relaciona diretamente com a criação de uma atmosfera
mágica para a cena, em outras palavras de uma realidade diegética convincente. Além
de alertar que a arte dos mágicos enquanto uma arte da manipulação da percepção de
realidade foi utilizada como forma de manipular a crença das pessoas e impor interesses
particulares, um destes exemplos ocorreu por volta de 1856 quando o governo francês
enviou à Argélia seu mais prestigiado mágico da época, o renomado Robert-Houdin,
numa missão de ―pacificação‖. A missão envolvia uma turnê do mágico naquela região,
mas implicitamente o objetivo era demonstrar a superioridade da magia francesa ante a
―magia clerical‖ dos Argélios. Dentre os efeitos de diversão, Robert-Houdin apresentou
um contexto místico em alguns números, clamando poderes sobrenaturais e vencendo
os desafios dos líderes das tribos locais à plena vista de uma grande audiência.
(STEINMEYER, 2003, p. 145-146).
O Dr. Richard Schechner, aborda os termos ―maya‖ e ―lila‖ para estudar o jogo
como elemento cultural, que assim como o ritual perpassa o conceito de performance.
28
―Maya and lila are Sanskrit words meaning ―illusion‖ and ―play.‖The concepts embedded in these two
words are hard to pin down because – as with the Greek mimesis,praxis,and katharsis – key terms in
Aristotle‘s theory of tragedy – there is an enormous library of commentary, contradictory interpretations,
and changing emphasis over historical time.‖
32
Para a filosofia do hinduísmo como descrita em seu livro sagrado, o Bhagavad
Gita, todas as criaturas vivas estão cobertas por um véu, de certo modo cegas, e,
portanto incapazes de perceber que o ―mundo material‖ é uma ilusão dos sentidos, uma
grande ilusão. Maya, sob determinada perspectiva, é uma deusa que cobre a
humanidade com seu véu, logo os seres humanos estão imersos numa ilusão, pois não
enxergam a verdade. Uma alusão a ideia de que as pessoas enxergam conforme suas
idiossincrasias, uma realidade construída, subjetiva e, portanto, ilusória.
Para o hinduísmo, o caminho da meditação e da privação dos desejos e dos
julgamentos leva a consciência a um estado de iluminação, fazendo-a perpassar o véu de
Maya e enxergar de fato a realidade. Interessa-nos abordar nesta breve concepção, a
discrepância perceptiva entre o que é realizado e o que o espectador pensa/percebe que
aconteceu durante uma apresentação de mágica. Diferentemente do espectador num
teatro que assiste a uma peça, mas desconhece os eventos ocorridos nos bastidores,
neste recorte, o véu de Maya representa uma sutil imersão na diegese da cena, a imersão
provocada pelo desenvolvimento e ápice do número de mágica.
Maya não é a própria ilusão, mas a criadora da ilusão. Para além da ideia de
construção de uma realidade ilusória, Maya também se refere à ocultação da realidade
(e um desvelar dela em determinado sentido). Passaremos agora aos dois elementos que
compreendemos como constituintes da base estrutural de todo número de mágica, um
deles associado à construção de uma realidade diegética convincente, e o outro à
ocultação da realidade.
33
De todo modo, faremos as duas perguntas, qual a diferença entre ―convencer‖ e
―enganar‖? Qual a diferença entre Conviction e Deception? Sobre isso Nelms escreveu:
29
―Conviction differs fundamentally from Deception. A successful Deception results in unquestioning
belief. Conviction requires only what is called 'suspension of disbelief'. [...] Conviction can occur without
Deception. When someone is shot in a play, the spectators are convinced that the character is killed but
they are not deceived into believing that the actor is dead. A ventriloquist‘s audience is never deceived; it
does not think the dummy is alive. Neverthless, the conviction of life is irresistible. [...] Unlike these
illusionists, the conjurer must employ some Deception. He needs to disguise his device. […] Even when
an illusions requires no trickery, we must deceive the audience in order to disguise the fact that no device
exists.‖
34
Quanto ao que se refere à Deception ou ―Engano‖, podemos compreender de
modo geral como um elemento amplo, como um conceito, necessário para que um
truque de mágica ocorra. Compreendemos Deception como o dispositivo (equipamento,
conhecimento, técnica, acessório e/ou recurso) necessário para dissimular o segredo de
um efeito de mágica. Então se um mágico apresenta uma rotina de cartomagia e usa
técnicas manuais para realizar tal efeito, estas técnicas manuais são o Deception. Se a
mesa em que as cartas estão colocadas tiver um formato especial, ou cor específica que
aja como recurso para melhorar esse efeito, ou dissimular a mecânica do número, a
mesa também é Deception. O controle de atenção (misdirection) utilizado também pode
ser compreendido como Deception. Fica claro que, nessa perspectiva, mágicos
trabalham essencialmente com esse conceito. Tudo o que ajuda a melhorar a execução
de um ―milagre‖ e que dissimula a sua causa. Obviamente, a plateia deve ter total
desconhecimento de tais recursos, inclusive desconhecer esse termo.
Quando um número de mágica faz o espectador se questionar se o que
testemunhou foi real ou uma ilusão, deixando-o num estado de ―maravilhamento‖, o
efeito alcançou o ponto desejado, o thaumaston marca esse ponto limítrofe, entre
realidade e ilusão, o objetivo da apresentação de um efeito de mágica.
Há uma história que ilustra bem a aplicação dos conceitos Conviction e
Deception, o mais interessante é que não foi realizado por um mágico, ilusionista, por
assim dizer, mas um trovador medieval, um performer, que compôs uma apresentação
digna de um ato de mágica. Era um viajante que se apresentava nas praças das cidades
segurando um velho livro e contando estórias para o público, entretanto havia uma
grande quantidade de estórias naquele livro, tantas que alguns agentes da Inquisição
ficaram intrigados em como caberia toda essa quantidade escrita (CIOTTI, 2014, p.35-
36). Ao olharem por outra perspectiva, notaram que o livro estava em branco, e levaram
o viajante para interrogá-lo:
Quanto aos contadores de estórias, raramente sobreviveu alguma evidência sobre os seus
métodos, mas um certo Román Ramírez, que recitava romances de cavalaria em público,
explicou à Inquisição que ele não sabia os textos de cor, mas apenas ‗o conteúdo‘, e que
aumentava ou encurtava as estórias conforme julgasse conveniente durante a apresentação.
[...] Román Ramírez disse à Inquisição que ele ‗lia‘ as estórias numa folha de papel em
branco ou num ‗livro que não era o mesmo que o que lia, e mantinha seus olhos nele sem
virar as páginas, e isso ele fazia para não distrair sua memória e prestar mais atenção ao que
estava lendo‘. (BURKE, 2010, p. 198-199)
35
Se analisarmos a cena que Ramírez criara, iremos notar que se trata de uma
perfeita ilusão. Para o público havia um homem narrando o que estava escrito no livro.
Para os inquisidores havia um livro mágico com tinta invisível, o qual continha infinitas
estórias. A convicção com que Ramírez narrava para a platéia convencia que a estória
estava ali escrita, e o livro era o próprio recurso de enganação que compunha o
―personagem‖ dissimulando perfeitamente o método de narrar a partir da memória.
Outro exemplo mais próximo é o famoso jogo das três conchinhas (Shell Game
ou Three Shell and a Pea), muito comum nas feiras populares 30. O jogo propõe um
desafio de percepção, uma bolinha é colocada embaixo de uma pequena concha ou um
copinho, dentre três, e estes são movidos de modo a embaralharem-se. Ao final o
espectador deve apontar para o copinho que esconde a bolinha, se acertar, ganha a
aposta. Entretanto, o jogo não funciona assim para quem o conduz, este enganador usa
de uma técnica de prestidigitação para esconder a bolinha e colocá-la no copo que
quiser. Além disso, o fator mais interessante é o uso de assistentes, que se colocam ao
redor do espaço do jogo, como se também jogassem, constituindo uma forte influência
psicológica para quem assiste e quem joga.
Alguns com papéis bem definidos, como um casal que passa
despretensiosamente e acaba apostando, e vence. Ou um rico fazendeiro viciado em
apostas, que vence em algumas, mas perde de modo tão ingênuo que você assistindo
acredita que pode jogar e vencer. Estes assistentes reforçam a cena, bloqueiam a
visibilidade de curiosos, induzem o jogador a acreditar que pode vencer e alertam os
parceiros da chegada da fiscalização, como também garantem a ―integridade‖ da
artimanha, desacreditando o apostador que suspeite, acuse ou conteste o jogo.
Esse é um jogo de pura enganação, o fator Deception está presente em todos os
elementos (na mecânica do jogo, no apostador, nos assistentes, no ambiente).
Conviction é um elemento que, neste exemplo, consiste em criar no participante a
crença de que ele pode vencer o jogo, e reforçar esta crença até que as apostas subam, e
conseqüentemente o participante perca.
Conforme a explicação apresentada por Nelms e as pesquisas até aqui realizadas,
constatamos que os elementos Conviction e Deception se mostram presentes na
estrutura das apresentações de mágica. Um número ou um ato mágico que não contiver
Conviction, dificilmente parecerá um ―milagre‖ aos olhos dos espectadores. Faltará a
30
Este jogo é uma forma de uma trapaça e no Brasil é considerado crime por jogo de azar.
36
―atmosfera mágica‖, responsável por abrandar a vigília da plateia. De outro modo, o
conceito de Deception é indispensável ao se tratar de mágica, lhe é fundamental. O que
nos suscita a seguinte questão: é possível mágica sem Deception?
Em se tratando tradicionalmente do que entendemos por mágica – uma arte
cênica que demonstra o impossível ou improvável, por meio de métodos secretos,
alheios à percepção do espectador e completamente naturais – de início pressupomos
não ser possível, entretanto...
David Blaine é um mágico norte-americano conhecido por realizar
apresentações de mágica num formato de desafios que testam os limites de seu corpo,
tais atos são cuidadosamente preparados para evitar que sofra acidentes graves, contudo
acreditamos que não haja um método secreto para algumas de suas apresentações, nem a
dissimulação de algum método. O próprio Blaine em suas produções apresenta partes do
processo criativo e do treinamento pessoal que o levou a chegar ao resultado. Talvez seu
trabalho em se tratando dos desafios físicos seja esta exceção, um ato de mágica que
questiona a Deception, mesmo se considerarmos que o treinamento que o levou a
realizar o ato valha como ―técnica‖ (pois técnica também é Deception), no caso dele,
esta técnica não dissimula o método, ela é o próprio método (sendo então um
treinamento).
Contudo, analisando do ponto de vista da plateia, alheia aos procedimentos de
preparação, podemos considerar que o trabalho do David Blaine não se encaixa nesta
exceção, uma vez que por ele ser um mágico realizando a performance, a plateia já
assume que possa haver um truque, e ele não faz questão de esclarecer se há ou não.
Isso por si já é, conforme Nelms, Deception, comprovando que se trata de um conceito
inseparável à mágica.
Surgiu nesta análise a seguinte questão: podemos classificar também como
Deception todo treinamento que visa condicionar o corpo a realizar proezas impossíveis
ou improváveis? Se sim, o treinamento de faquires, acrobatas, artistas de sideshow
(engolidores de fogo, espadas, regurgitadores, etc), bailarinos e atores pode ser abarcado
por este conceito?
Considerando a compreensão atual da preparação de atores, performers e
bailarinos, e buscando ampliar as pesquisas nesse campo de atuação, podemos
relacionar tal preparação com uma parte do conceito de Deception. Voltemos ao
significado original dos conceitos para entendermos melhor: Conviction refere-se à
―suspensão da descrença‖ ou a aceitação da diegese da cena, e trata-se de um conceito
37
partilhado entre a mágica, a mímica, o teatro, o cinema, a performance, o ritual, etc.
Mas Deception, que pode ser traduzido como Enganação, não num sentido pejorativo,
mas enquanto ―todo e qualquer dispositivo de dissimulação do truque (técnica ou
método)‖, tem como intenção esconder uma técnica, ou esconder o fato de não haver
uma.
Sendo assim, o processo de preparação de artistas cênicos, como acrobatas, por
exemplo, trata-se de um treinamento (para a realização plena da ação em cena).
Deception se encarado na perspectiva de um treinamento cênico, acontece quando o
objetivo final é realizar uma proeza impossível ou improvável, o que implica um
treinamento para desenvolver o domínio técnico para realização da ação, e para além,
desenvolver a consciência (e a técnica) de ocultar do espectador, dentro e fora da cena,
o segredo, de tal habilidade. É um conceito utilizado em enganos e trapaças no geral, em
tudo que busque criar um ―não questionamento de um fato 31‖ (NELMS, 2000, tradução
nossa), ou seja, o objetivo não se limita somente a esconder um segredo, mas em fazer
com que nem se suspeite que haja um segredo.
Compreendemos Deception e Conviction como elementos básicos, estruturais
numa composição em mágica. A criação de uma atmosfera mágica e ao mesmo tempo
verossímil depende da capacidade de emissão/construção de um enunciado e da
articulação dos elementos referenciais que o mágico realiza com seu corpo (pela
voz/texto, gestos, silêncios, objetos). O aspecto ―deceptivo‖ permeia o corpo do mágico
nas ferramentas que este utiliza para realizar suas façanhas, seus procedimentos e
conhecimentos de ocultação de ações, sua técnica, acessórios, aparência, os objetos que
manipula, assim como nos gestos e ações manipuladas que realiza.
Contudo, mantendo a tradição ética da arte em cuidar para a não revelação de
segredos o aspecto ―deceptivo‖, ainda que se mencione seu contexto referencial em
alguns casos, será mantido em segredo durante a explicação dos processos criativos.
38
físicas, expressividade e jogo
teatral), especialmente em se
tratando de treinamento pré-
expressivo e treinamento da
manipulação na mágica. Como
observado na pesquisa anterior,
mágica só acontece quando se
estabelece um jogo com o
espectador, e para mais além,
descobrimos, como um jogo
Jogamos desde a infância, quando usamos nossa imaginação para criar estórias
ou brincadeiras que nada interessam aos outros, com regras que inventamos na hora, ou
que não definimos. E isso nos diverte e nos absorve como se nos transportasse para
outra realidade. Como explica Huizinga, a palavra latina ludus, abrange a ideia de jogo.
39
Ludus deriva de ludere que pode ser usado para designar a ‗simulação‘ a ‗não
seriedade‘, a ilusão. Ela forma os compostos alludo, colludo e illudo, todos referentes
ao irreal, ilusório. Um detalhe curioso que vale observar nos ilusionistas advindos de
países de língua espanhola, é que estes se referem à apresentação de um número de
mágica como juego, enquanto é comum ouvirmos ou nos referirmos, aqui no Brasil,
como truque32.
Portanto, propomos que se encare a atuação na mágica como um jogo da ilusão,
pois assim como o fenômeno cultural, descrito por Huizinga, também acontece dentro
de um limite espacial e temporal, alheio ao fluxo cotidiano, com regras e objetivos
delimitados, sensível à quebra a qualquer momento, seja numa interrupção, um
equívoco ou o desinteresse de alguma das partes. Nesse jogo o acordo é firmado no
momento em que os participantes (mágico e espectador) consentem que ele aconteça. O
objetivo do mágico é iludir o espectador, já este tem o objetivo de prestar atenção para
não ser iludido. A lúdica oposição entre mágico e espectador não pressupõe a quebra do
jogo, pelo contrário, se revela como aspecto espontâneo de sua realização.
Dois países que se destacam no estilo de mágica por sua potencialidade afetiva,
objetividade e limpeza cênica, sobretudo na interação com o espectador, são Argentina e
Espanha, suas escolas de mágica33 estão entre as mais recomendadas na atualidade,
formando artistas poeticamente destacáveis e com alta precisão técnica. Constatamos
que essa consciência de jogo, que antecede o efeito da mágica, é um forte diferencial
formativo, ela ensina mais que a apresentação do efeito, desenvolve inter-relação,
comunicação, domínio de cena, espontaneidade, foco, atitude, presença, entre outros
aspectos inerentes à formação de um ator.
32
Existem discussões sobre o uso dessa palavra na comunidade mágica, principalmente aqui no Brasil.
Não se recomenda aos mágicos que anunciem sua apresentação como um truque, pois a palavra remete a
ideia de trapaça ou enganação, é preferível que se diga apresentar uma mágica ou efeito.
33
Dentre as escolas de mágica citamos La Gran Escuela de Magia Ana Tamariz, na Espanha
(http://www.magiatamariz.com/) e Escuela de Magia El círculo Mágico, na Argentina
(https://www.aprendermagia.com.ar/).
40
Nas pesquisas da McBride Magic & Mystery School34 desenvolve-se uma
filosofia de formação artística a partir de quatro arquétipos do mágico, inspirado nos
quatro elementos naturais, o primeiro a ser desenvolvido compreende habilidades de
interação com o outro, ou em outras palavras, desenvolve a habilidade de jogar.
1.6.1 TRICKSTER
Diversas mitologias nos contam de deuses e seres fantásticos que dominam com
maestria a arte de iludir, tais figuras mitológicas estão associadas ao arquétipo do
Trickster35 e perpassam o trabalho do mágico no que concerne à ilusão, à trapaça e à
curiosidade:
34
É uma famosa escola de mágica situada em Nevada, EUA. Fundada pelo mágico, autor e professor-
pesquisador Jeff McBride e sua equipe. Possui uma ampla teia de relações com a comunidade mágica
mundial e vem desenvolvendo estudos transdisciplinares com a comunidade acadêmica.
35
Em O homem e seus símbolos C. G. Jung nos explica da seguinte maneira: O ciclo Trickster
corresponde ao primeiro período de vida, o mais primitivo. Trickster é um personagem dominado por
seus desejos; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito senão o de satisfazer suas
necessidades mais elementares é cruel, cínico e insensível [...] Esse personagem, que inicialmente aparece
sob a forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao mesmo tempo começa a se
transformar e no final da sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um homem adulto.
(JUNG, 2008, p. 144-145)
41
inconfundíveis, ora vagas, na mitologia de todos os tempos e lugares, obviamente um
"psicologema", isto é, uma estrutura psíquica arquetípica antiqüíssima. Esta, em sua
manifestação mais visível, é um reflexo fiel de uma consciência humana indiferenciada em
todos os aspectos, correspondente a uma psique que, por assim dizer, ainda não deixou o
nível animal. (JUNG, 2000, p. 256)
42
também presentear. Em seus estudos o mágico Jeff McBride concebe o que chama de
―jornada do mágico‖, organizando em quatro etapas identificadas com os quatro
elementos alquímicos e representadas pelos respectivos arquétipos: Trickster, Sorcerer,
Oracle, Sage. Em seu diagrama sobre os quatro arquétipos do mágico 36, o Trickster
aparece como a primeira etapa e está associado ao elemento ar, identificando-se com o
período da primavera e com o naipe de espadas no baralho. Trickster representa a
mágica close-up, e nos ensina o desenvolvimento de habilidades de comunicação e
relacionamento interpessoal, o primeiro passo nesta forma de arte.
A mágica do Trickster é cheia de surpresas (gags37), tende a ir para a
comicidade, e funciona muitas vezes como um quebra-cabeça ou um desafio lógico, a
atuação segue a mesma linha, tendo raras exceções que flertam com outros estilos e
outros arquétipos, complementando essa ―performatividade‖. Mágicos que trabalham
em festas e animação de eventos geralmente atuam sob este arquétipo; citamos como
exemplo os seguintes mágicos que desenvolveram este estilo: Apollo Robins, Jeff
Hobson, Juan Tamariz, David Stone e Charlie Frye.
36
O diagrama sobre os arquétipos do mágico faz parte do programa de estudos da McBride‟s Magic &
Mystery School, sendo sua imagem um conteúdo reservado à escola. Cada etapa corresponde ao
desenvolvimento de habilidades específicas do mágico em sua formação, a título de curiosidade os
demais arquétipos fazem as seguintes associações: Sorcerer - fogo, mágica de palco, desenvolvimento de
habilidades profissionais e cênicas; Oracle - água, mentalismo, auto-reflexão, meditação, mitologia
pessoal; Sage - terra, filosofia da mágica, ensino.
37
Piada ou efeito cômico que utiliza o elemento surpresa.
43
Em termos teatrais, maya-lila é um entrelaçamento do artista e do seu papel.
O papel é "real"? E se pudermos seguramente dizer que na performance
estética - de Hamlet ou Shakuntala ou o Cisne Negro – que o papel não é
real, o que acontece com performances rituais como a aparição de um papa
em total regalia para abençoar os fiéis ou a manifestação de um orixá afro-
brasileiro que "monta" o corpo de um dançarino em transe profundo? Nos
rituais, não há "suspensão da descrença". Em vez disso, há "jogo profundo",
como é entendido por Geertz.38 (SCHECHNER, 2013, p. 118, tradução
nossa)
Sobre o jogo profundo, Schechner nos fala de um tipo de jogo que envolve alto
risco, como risco de vida, por exemplo. Um tipo de jogo que absorve seus participantes
exatamente pela emoção de ―apostar tudo‖, ele ―se aplica a escalar montanhas, corridas
de automóveis e muitas outras atividades onda há um alto risco físico, fiscal ou
psicológico. O jogo profundo envolve tanto risco que se pergunta por que as pessoas se
envolvem com isso39‖ (SCHECHNER, 2013, tradução nossa). Ele nos fala que esse
jogo exprime não apenas um compromisso individual como também aborda valores
culturais, a partir dessa perspectiva ele desenvolve a ideia de jogo obscuro:
―Jogar na escuridão‖ significa que alguns jogadores não sabem que estão
jogando – como em um jogo fraudulento ou quando ratos correm num
labirinto (sem saber que estão em um) ou quando deuses do destino e da sorte
plantam armadilhas para capturar as pessoas. Jogo obscuro está ligado a ideia
de Maya-lila (ilusão e jogo). Envolve fantasia, risco, sorte, ousadia, invenção
e deception. O jogo obscuro pode ser inteiramente privado, conhecido apenas
por um jogador. Ou pode ou pode eclodir de repente [...] O jogo obscuro
subverte a ordem, dissolve sistemas e quebra suas próprias regras – Tanto
assim que o jogo em si corre o risco de ser destruído, como em espionagens,
agentes-duplos ou jogos con 40. Ao contrário dos ritos de carnaval ou
palhaçarias, em que as inversões de ordem estabelecidas estão sancionadas
38
―In theatrical terms, maya–lila is an interweaving of the performer and the role.Is the role ―real‖? And
if we can safely say of aesthetic performance – of Hamlet or Shakuntala or the Black Swan – that the role
is not real, what of ritual performances such as the appearance of a pope in full regalia to bless the
believers or the manifestation of an Afro-Brazilian orixa who ―mounts‖ the body of a dancer in deep
trance? In rituals there is no ―suspension of disbelief.‖Rather there is ―deep play‖as understood by
Geertz.‖
39
―Deep play applies to mountain-climbing,highspeed auto-racing,and many other activities where there
is very high risk physically, fiscally, and/or psychologically. Deep play involves such high stakes that one
wonders why people engage in it at all.‖
40
Con‘fidence games ou jogos con – São jogos que envolvem ganhar a confiança da vítima, fazendo-a
crer que pode ganhar para logo em seguida roubá-la por truque, fraude ou trapaça. Um exemplo clássico é
o jogo da bolinha e das três conchinhas.
44
pelas autoridades, o jogo obscuro é verdadeiramente subversivo, suas
agendas são sempre ocultas. O jogo obscuro recompensa seus jogadores por
meio de enganos, ruptura e excesso. Nos meus cursos em jogo, convido os
alunos a escrever exemplos de jogos escuros a partir de suas próprias vidas. 41
(SCHECHNER, 2013, p. 119, tradução nossa, grifo nosso)
41
―‗Playing in the dark‘means that some of the players don‘t know they are playing – like in a con game
or when rats run a maze or when the gods or fate or chance lay traps to catch people in. Dark play is
connected to maya–lila. Dark play involves fantasy, risk, luck, daring, invention, and deception. Dark
play may be entirely private, known to the player alone. Or it can erupt suddenly [...] Dark play subverts
order, dissolves frames, and breaks its own rules – so much so that the playing itself is in danger of being
destroyed,as in spying, double-agentry, con games, and stings. Unlike carnivals or ritual clowns whose
inversions of established order are sanctioned by the authorities, dark play is truly subversive, its agendas
always hidden. Dark play rewards its players by means of deceit, disruption, and excess. In my courses on
play, I invite students to write examples of dark play from their own lives.‖
45
um corpo) com os elementos e técnicas da mágica
(conviction, deception, sleight of hand,
showmanship) para entreter uma audiência ou
superar um desafio.
Em outras palavras, é a prática de se libertar
de amarras ou armadilhas, como cordas, correntes,
cadeados, camisa-de-força, algemas, ou ainda de
ambientes de contenção, como jaulas, prisões,
tanques de água, etc. Esse tipo de apresentação foi
popularizada pelo mágico Harry Houdini na transição
do século XIX para o século XX, geralmente o
objetivo do escapista é se libertar o mais rápido
Figura 11 - Houdini. Fonte:
possível, muitas vezes correndo risco de vida. Para https://healthyhero.net/incredible-
harry-houdini/
tornar a apresentação mais atrativa, muitos artistas
mesclam elementos ao escape como um número de desaparição ou transformação, ou
ainda adicionam fogo e algum drama antes do desfecho.
Quanto aos números de ―roleta-russa‖, estes funcionam como uma simulação de
um jogo de sorte ou de morte em que geralmente são dispostos quatro objetos iguais
contendo dentro de um deles algo perigoso (um prego, lâmina, animal peçonhento, etc),
é solicitado a um espectador que misture os objetos e em seguida o mágico arrisca-se
testando um por um, até que reste apenas o recipiente perigoso, isso envolve bater a
mão esmagando copos, correndo o risco de ter a mão atravessada por um prego, ou pôr
a mão em jarros, no qual um deles possui
uma cobra ou escorpiões, entre outras
maneiras à livre criação dos artistas.
Por se perceber envolvido nessa depreciação da vida, uma ―vida nua‖ (bare life),
―reduzida aos instintos e totalmente exposta à morte e a um poder não necessariamente
definido, como o poder do Estado sobre a vida do ponto de vista biológico, definindo
padrões sociais, alimentares ou comportamentais, ou a regulação da nossa saúde‖
(GREINER, 2010), o ser humano busca no jogo a possibilidade de performar (se
colocar como) um ―homo sacer‖ – um ser humano condenado, mas que não fora ainda
sacrificado, e que no entanto pode ser morto sem que quem o mata cometa legalmente
um homicídio (GREINER, 2010). Nesse caso, em seu jogo ele performa um ser humano
condenado à justiça dos deuses e que pode sair impune (libertar-se ou renascer) se este
for o desejo divino.
47
II
SHOWMANSHIP
48
2. TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE NA ARTE DOS MÁGICOS
Minha primeira experiência com mágica ocorreu quando eu era criança, por
volta dos oito ou nove anos de idade num passeio da escola. Fomos ao Centro de
Turismo de Natal e na ocasião estava um mágico vendendo pequenos números para os
visitantes. Nossa turma se aproximou e ele prontamente pegou um longo pedaço de
barbante, entregou-me uma tesoura sem ponta e me pediu para cortar o fio em
pedacinhos. Então segurou os pedaços cortados e os enrolou com os dedos formando
uma bolinha, me pediu para soprar e puxar as pontas que se sobressaíam, ao fazer isso o
barbante estava inteiro novamente, reconstituído.
Mágica ampara-se no mundo real, empírico, tendo como referência as leis da
física e da lógica. Seu efeito cria a aparência da superação destas leis. Uma apresentação
de mágica ocorre também num plano diegético (artifício da narrativa), que estabelece
um pacto com a plateia para que o impossível seja mais bem aceito, e por se configurar
como uma cena assume, muitas vezes, uma característica teatral. Deste modo,
afirmamos que a mágica se apóia em (e combina) dois planos, o da realidade e o da
cena. Por essa característica, constatamos também que a atuação em mágica pode seguir
por um viés teatral ou um viés performativo, ou ainda híbrido (combinar os dois).
Conforme o Dr. Ricardo Harada, uma escolha estética, uma vez que a irrupção da
realidade sobre a cena e a transição do espectador de um plano a outro não seja um
problema, e sim uma possibilidade poética (HARADA 2012), e a mágica em sua
natureza admite essa amálgama.
Teatralidade é um fenômeno muito evidente nas apresentações de mágica. O
século XIX, como verificado no capítulo anterior, foi um período em que a arte da
mágica adentrou o edifício teatral, ocorrência atribuída ao mágico Robert-Houdin,
portanto, chegando a incorporar e compartilhar mutuamente seus elementos técnicos,
seu maquinário, e sua estética. ―A noção de ‗teatralidade‘ pode ser definida como uma
qualidade que evidencia a presença do teatro, ou seja, que assume e revela o caráter de
representação do espetáculo teatral.‖ (STEIN, 2009, p. 26). Conforme PAVIS (2008)
traduz em suas palavras a noção de teatralidade:
49
espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias,
substâncias, luzes, que submerge o texto [...] Coloca-se então a questão da
origem e da natureza dessa teatralidade: [...] No primeiro caso, teatral quer
dizer, muito simplesmente: espacial, visual, expressivo, no sentido de que se
fala de uma cena muito espetacular e impressionante. [...] No segundo caso,
teatral quer dizer a maneira específica da enunciação teatral, a circulação da
fala, o desdobramento visual da enunciação (personagem/ator) e de seus
enunciados, a artificialidade da representação. (PAVIS, 2008, p. 372)
42
Ver: http://www.magusutopia.com
50
comportamento restaurado, o performer e sua práxis e um estudo sobre a
performatividade.
43
Renato Cohen foi um artista brasileiro que transitou por experiências cênicas de fronteira fazendo uso
de multimídia, dança, teatro, artes plásticas, entre outros operadores em sua poética. Estruturou os
primeiros escritos em performance no Brasil e desenvolveu a ideia de work in process apresentada em seu
livro Work in Progress na cena contemporânea, foi professor da PUC e Unicamp.
51
Cohen define Performance como uma função do tempo e do espaço, nesse
sentido, três premissas agenciam esta definição: atuante, texto e presença. No que se
refere ao atuante não há uma proposta fechada, este pode ser um ser humano, um
boneco, um animal ou objeto(s). Texto, nessa perspectiva corresponde ao conjunto de
signos, como o código escrito, imagético, verbal ou códigos indiciais (ruídos, fumaça,
iluminação, etc). E presença remete a participação do espectador, que pode ser estética –
os espectadores assistem; Ou ritual – os espectadores tornam-se participantes da
performance (COHEN, 2002).
Diferente do teatro tradicional do ocidente, a performance não se estrutura a
partir de uma linearidade, ela se ampara num tipo de colagem, em que os elementos que
a constituem se conectam no processo e compõem uma seqüência maior (ver work in
process), sem que pareça, idealmente, que se trate de uma colagem. Para Cohen, essa
compreensão advém do cinema, uma série de pedaços fotográficos unidos para construir
uma película cinematográfica.
A performance pode acontecer nos mais inusitados lugares, não há um espaço
específico para que aconteça, contudo o espaço em que acontece dialoga diretamente
com a proposta do ato performativo, e por isso compõe também a própria performance.
O historiador e lingüista medievalista Paul Zumthor, em sua obra Introdução à
poesia oral relaciona elementos axiomáticos da oralidade poética aprofundando os
saberes sobre voz, texto e atuação. No que se refere à performance Zumthor diz:
Como podemos notar, corpo é o fator central na performance, é por meio dele
que estipulamos uma referência de tempo e espaço, e muitas vezes outras bases
referenciais: contexto, objetivos, comportamentos, etc. E a partir dele o nosso receptor
52
(o público) estabelece suas bases referenciais de temporalidade e espacialidade na
fruição e diálogo com a obra.
Duas realidades temporais operam na duração de uma performance, o tempo da
própria performance, que seria o tempo da obra (ou tempo ritual, tempo do performer
em ação). E o tempo em virtude da duração social em que ela se insere, ou seja, o
momento em que ela acontece (que pode ser cronológico, político e/ou histórico).
53
Figura 14 - Joseph Beuys - I like America and America likes me. Fonte:
https://www.kidsofdada.com/blogs/magazine/35963521-joseph-beuys-i-like-america-and-america-likes-me
54
Na performance há uma acentuação muito maior do instante presente, do
momento da ação (o que acontece no tempo ‗real‘). Isso cria a característica de
rito, com o público não sendo mais só espectador, e sim, estando numa espécie
de comunhão [...] A performance tem também uma característica de
espetáculo, de show. E isso a difere do teatro. Esse movimento de ‗vaivém‘ faz
com que o performer tenha que conduzir o ritual-espetáculo e ‗segurar‘ o
público, sem estar ao mesmo tempo ‗suportado‘ pelas convenções do teatro
ilusionista. (COHEN, 2002, p. 97-98)
55
patinação artística e a ginástica existem em ambos os domínios. Decidir o que é
arte depende do contexto, circunstância histórica, uso e convenções locais.44
(SCHECHNER, 2013, p. 32, grifo nosso, tradução nossa)
Quanto ao performer, há muito que dizer sobre este atuante. Podemos associar o
performer à figura do xamã, aquele que leva a cura à civilização através do rito e do
conhecimento, assim como ao professor, que para além da importante função na
formação e capacitação de sua comunidade é também agente da transformação social
por meio da ampliação da rede de conhecimentos e horizontes de percepção dos alunos,
deste modo também um curador da sociedade: ―Quando um professor está diante de
seus alunos, ele tem condições de usar vários elementos como a voz, o corpo e o lugar
onde está para comunicar aquilo que pensa aos corpos que estão diante dele.‖ (CIOTTI,
2014, p. 59).
próprio corpo, muitas vezes se Figura 15 - Encontro com um xamã. México. Foto: Cléo
Araújo, 2018.
colocando em risco por uma necessidade
de ampliação da autoconsciência, desse modo, ao vivenciar a experiência, compreende
no e pelo seu corpo questões fundamentais, suas ou da comunidade. Deixamos aqui um
relato de experiência pessoal deste autor/performer em uma prática ritual chamada
―Temazcal‖ realizada no México, durante a escrita deste capítulo:
44
―The ritual objects of one culture or one historical period become the artworks of other cultures or
periods.Museums of art are full of paintings and objects that once were regarded as sacred (and still may
be by pillaged peoples eager to regain their ritual objects and sacred remains). Furthermore, even if a
performance has a strong aesthetic dimension,it is not necessarily ―art.‖ The moves of basketball players
are as beautiful as those of ballet dancers,but one is termed sport, the other art. Figure skating and
gymnastics exist in both realms. Deciding what is art depends on context, historical circumstance, use,
and local conventions.‖
56
A prática do Temazcal advém da cultura indígena dos maias e astecas, é um tipo
de banho de vapor e ervas utilizado com fins religiosos e curativos. No Temazcal que
participei havia uma cabana coberta com panos grossos e uma pequena entrada por
onde se adentra agachado. Do lado de fora rochas vulcânicas são aquecidas numa
fogueira junto de uma panela de água com ervas. Saudamos os espíritos guardiões do
norte, sul, leste e oeste, assim como o céu, a terra e o fogo. Entramos na cabana e nos
sentamos em círculo. Ao centro colocam as rochas aquecidas e fecha-se a cabana. É
servido um chá de cactus conhecido popularmente como Peyote para iniciar o
processo. Depois trazem água com ervas e a derramam nas rochas fazendo o vapor
tomar conta de tudo. É um calor insuportável, que nos dá a sensação de ter entrado
numa fogueira. Seu corpo todo arde e fica completamente suado, as roupas
completamente molhadas. Caso não desmaie, seu corpo começa a se adaptar aos
poucos à temperatura, no entanto é repetido essa rotina quatro vezes, uma para cada
"porta" ou portal sagrado, atribuídos às quatro direções, aos espíritos, ao amor, aos
familiares, às mulheres e à busca pessoal. Tais momentos intercalados por cânticos e
orações ao som de um tambor e chocalhos tornam o rito um exercício de paciência,
autoconsciência e entrega. Até todos caírem ao chão e repousar em Pachamama (o
espírito da terra). O ambiente é altamente desafiador (e claustrofóbico), muito difícil de
respirar e quase impossível quando no ápice do vapor aromatizado. Apesar de estar em
grupo, o rito é um processo pessoal, muito individual. Suas companhias são o fogo (o
grande xamã) e a água (a vida).
57
deliberado "fazer" autoconsciente de ações altamente simbólicas em público - é
a chave para o que torna ritual, teatro e espetáculo o que eles são. Enquanto
uma dimensão performativa coexiste freqüentemente com outras características
de comportamento ritualístico, especialmente em competições esportivas
regidas por regras ou respostas a símbolos sacrais, em muitos casos, a
performance é claramente o elemento mais dominante ou essencial [...] A
natureza ritualística das atividades performativas parece estar na experiência
sensorial multifacetada, no enquadramento que cria uma sensação de totalidade
condensada e na capacidade de moldar a experiência das pessoas e a ordem
cognitiva do mundo. Em resumo, as performances parecem rituais porque
modelam explicitamente o mundo.45 (BELL apud SCHECHNER, 2013, p. 58.
Tradução nossa.)
45
―[What has ritual] in common with theatrical performances, dramatic spectacles, and public events [?. .
.] the performative dimension per se – that is, the deliberate, selfconscious ―doing‖ of highly symbolic
actions in public – is key to what makes ritual, theater, and spectacle what they are. While a performative
dimension often coexists with other characteristics of ritual-like behavior, especially in rule-governed
sports contests or responses to sacral symbols, in many instances performance is clearly the more
dominant or essential element [. . .] [T]he ritual-like nature of performative activities appears to lie in the
multifaceted sensory experience, in the framing that creates a sense of condensed totality, and in the
ability to shape people‘s experience and cognitive ordering of the world. In brief, performances seem
ritual-like because they explicitly model the world.‖
58
o uso de mídias, aparelhos eletrônicos e as tecnologias disponíveis (COHEN, 2002,
p.104-105).
Em cena o performer está trabalhando como se vestisse uma ―máscara ritual‖
que é diferente de sua pessoa no dia-a-dia (COHEN 2002), não se trata de uma
representação, muito menos interpretação, mas de um tipo de auto-representação ou
(re)apresentação de si dentro de uma estrutura cênica composta por colagens de
elementos, que diferencia-se essencialmente do teatro por não propor necessariamente
uma dramaturgia, personagens ou conflito. O trabalho de ―atuação‖ do performer é um
―palco de experiência‖, um exercício de ampliação da consciência mais que um
desempenho cênico, um estado quase de devoção religiosa, de rito, mas ao mesmo
tempo de prontidão para atuar. Assim, o performer é também um encenador (articulador
da concepção cênica) que se coloca em cena.
Sobre a mágica enquanto uma performance, podemos notar principalmente no
trabalho atual dos mágicos esse modo de atuação, e até mesmo um hibridismo entre
teatralidade e performatividade.
Para compreendermos melhor o que é performatividade recorremos ao que o
filósofo J. L. Austin46 assinalou como ―performativo‖. Austin usou para descrever
enunciados que vinham acompanhados por ações, e que para além de enunciar a ação,
eram em si a própria ação:
46
Filósofo britânico que desenvolveu parte da atual teoria dos discursos.
47
―Austin coined the word ‗performative‘ to describe utterances such as, ‗I take this woman to be my
lawful wedded wife‘ or ‗I name this ship the Queen Elizabeth‘ or ‗I apologize,‘ or ‗I bet you ten dollars it
will rain tomorrow‘. In these cases, as Austin notes, ‗To say something is to do something.‘ In uttering
certain sentences people perform acts. Promises, bets, curses, contracts, and judgments do not describe or
represent actions: they are actions.‖
59
proferido no casamento ocidental, por exemplo, vem acompanhado da troca de alianças
como um símbolo que firma o acordo.
―[...] ‗performativo‘ é derivado, é claro, de ‗executar‘ [...] indica que a emissão
do enunciado é a realização de uma ação. [...] O pronunciamento das palavras é, de fato,
geralmente um, ou mesmo o principal incidente na realização do ato.‖ (AUSTIN apud
SCHECHNER, 2013, p. 124, grifo nosso, tradução nossa).
J. L. Austin e John R. Searle48 separam a conversa normal do mundo real das
formas parasitárias do discurso (atuação e ficção), que chamam de performativos
infelizes. Para Austin um performativo proferido sob uma circunstância fingida, como
quando alguém se passa por outro (desempenha um papel) é um ―performativo infeliz‖.
Searle e Austin assumem esta posição considerando a arte como uma simulação ou
ilusão da vida, ao invés de um retrato dela. Tais distinções entre realidade e ficção vão
interessar artistas e teóricos, as produções vão passar a explorar cada vez mais a
dissolução entre realidade e ficção, chegando a questionar muitas vezes o controle dos
discursos reais e os ficcionais.
48
Filósofo norte-americano que continuou os estudos de Austin sobre os ―atos de fala‖, expandindo seus
estudos para os campos da percepção e filosofia da mente.
49
―many of today‘s performance artists, this interplay of realities has increasingly become a central
theme in performance art, film and TV, the internet, experimental theatre, the visual arts, and popular
entertainment. To what degree is ―reality television‖real, to what degree packaged? But the same question
can be asked of a presidential press conference, a classified intelligence report,or even a medical
diagnosis sent forward to a health maintenance organization for approval and reimbursement.‖
60
reorganiza em sua atuação, enunciados verdadeiros e falsos, estes proferidos muitas
vezes como recurso para a criação da atmosfera mágica e da deception, entretanto, o
resultado final da apresentação condiz com o seu principal enunciado (realizar algo
impossível ou improvável).
Atualmente concebemos a performatividade inserida em todos os lugares da
sociedade, principalmente na mídia, no comportamento diário, nas artes e na linguagem
(SCHECHNER, 2013). Tal concepção nos aponta ao fenômeno de comportamento
restaurado, um processo chave pelo qual alguém pode experimentar ―ser outro‖, ou
―desempenhar como se fosse outro‖, tal qual é realizado em peças teatrais, danças e
rituais (SCHECHNER, 2013, grifo nosso, tradução nossa). Schechner nos diz que o
comportamento restaurado se encontra nos hábitos, rituais e rotinas que
desempenhamos diariamente. Tais hábitos advêm de uma origem, muitas vezes
desconhecida ou esquecida, são ações ou rotinas elaboradas, impostas, distorcidas pelo
mito e pela tradição.
Ele exemplifica no comportamento de uma noiva, que durante o casamento pode
ficar tímida e até corar o rosto durante o momento ao lado de seu noivo, mesmo quando
já tenha vivido durante anos com ele – é um tipo especial de comportamento esperado;
como também inclui um vasto espectro de ações: pode ser o ―eu‖ em outro estado
psicológico ou outro tempo; ou ―eu‖ comportando-me ―como se fosse alguém mais
além de mim‖, como se houvessem ―múltiplos eu‖. (TAYLOR, 2011, tradução nossa).
Como o estado de ―fora de si‖ ou de transe, comum em algumas práticas religiosas.
Nesta concepção a Performance é uma segunda realização de um comportamento, ―por
segunda vez y hasta „n‟ número de veces‖ (TAYLOR, 2011).
Falamos brevemente, no capítulo anterior, do mágico Chung Ling Soo, um
americano que atuou sob a identidade de um mágico chinês. Seu verdadeiro nome era
William E. Robinson, que durante grande parte de sua carreira trabalhou como
assistente e produtor de renomados mágicos de sua época, como Harry Kellar e a
família Herrmann, ocasião em que adquiriu grande prática em disfarces e maquiagens.
Por um curto período de tempo se apresentou com sua identidade americana, mas em
1900, inspirado pelo sucesso de seu rival Ching Ling Foo, Robinson (Soo) replica
alguns números de mágica do repertório chinês e por fim muda sua identidade e
aparência completamente para Chung Ling Soo. Com o tempo ele aperfeiçoou seus
números, tanto que superavam em efeito os do autêntico mágico chinês. Ele também
melhorou sua ―performatividade‖, agindo e vivendo como um chinês, de modo que
61
sempre quando estava em público só se comunicava por meio de seu intérprete. Soo
vivia sua performance, ainda que sua atuação em cena dispunha de muita teatralidade.
Não é diferente, por exemplo, da performatividade de uma ialorixá (mãe de santo) em
serviço, ou um xamã, um líder religioso, ou mesmo, conforme a Dra. Judith Butler 50, do
gênero que performamos. Não se objetiva uma composição estética, mas um objetivo
vital, semelhante a uma profissão quando a desempenhamos.
Sete funções ou propósitos estão relacionados à performance, elencados da
seguinte maneira: para entreter, para criar beleza, para marcar ou mudar identidade, para
criar ou promover comunidade, para curar, para ensinar ou persuadir, para lidar com o
divino e o demoníaco. Identificamos tais funções nos diferentes atos performativos, e na
maioria das vezes carregados por mais de uma função, combinadas entre si:
... uma apresentação de rua ou peça de propaganda pode ensinar, persuadir e/ou
convencer, mas tal programa também tem de entreter e promover a
comunidade. Os xamãs curam, mas também entretêm, promovem a
comunidade e lidam com o sagrado e/ou demoníaco. [...] Uma obra de caridade
da igreja cristã cura, entretém, mantém a solidariedade comunitária, invoca
tanto o sagrado como o demoníaco e, se o sermão for eficaz, ensina. Se alguém
se converte à determinada religião, a identidade dessa pessoa é marcada e
mudada. [...] Rituais tendem a ter o maior número de funções, com menos
produções comerciais.51 (SCHECHNER, 2013, p. 46, grifo nosso, tradução
nossa)
50
Filósofa pós-estruturalista estadunidense, uma das principais teóricas da teoria queer, feminismo,
filosofia política e ética. Para Judith Butler a realidade de gênero é performativa, ela só acontece durante a
realização desta performatividade, desse modo, em seu recorte, ela questiona a originalidade na realidade
de gênero, tornando a identidade preexistente, como uma identidade ficcional reguladora, nessa
perspectiva não haveria um compromisso do ato de gênero performativo com a originalidade, não
existiria o ato falso ou verdadeiro, real ou distorcido, a realidade de gênero seria performativa, existindo
apenas enquanto é realizada. (BUTLER apud SCHECHNER, 2013)
51
―a street demonstration or propaganda play may be mostly about teaching, persuading, and convincing
– but such a show also has to entertain and may foster community. Shamans heal, but they entertain also,
foster community, and deal with the sacred and/or demonic. [...] A charismatic Christian church service
heals, entertains, maintains community solidarity,invokes both the sacred and the demonic,and,if the
sermon is effective, teaches. If someone at the service declares for Jesus and is reborn, that person‘s
identity is marked and changed. [...] Rituals tend to have the greatest number of functions, commercial
productions the fewest.‖
62
entretenimento, da cura, da criação de algo belo, da ligação com o sagrado, do ensino,
entre outros, donde vão se destacar alguns desses propósitos no que se refere a
performatividade na arte da mágica. Portanto, compreendemos nesse recorte, ―a
performance enquanto um comportamento ritualizado permeado pelo ato de jogar
(illudere) 52‖. Em outras palavras, um comportamento com bases na seriedade, mas
atravessado por uma qualidade de jogo.
Essa concepção é importante para compreendermos o mágico enquanto um
performer, deste modo, quando a apresentação de mágica é pautada na performatividade
a atuação segue em direção a uma live art53, as fronteiras entre realidade e cena borram-
se e a organização da apresentação ou façanha se concentra na realização do ato, mais
do que na construção ―teatralizada‖ de uma cena, há espontaneidade na realização das
ações, o roteiro se mostra semi-estruturado e pode contar com a intervenção dos
espectadores, possibilitando o improviso no desenvolver da apresentação, incluindo
uma relação quase cotidiana de interação com a plateia. O performer demonstra uma
habilidade incomum, na maioria das vezes saindo do contexto de ―truque de mágica‖,
flertando com outras artes ou narrativas, nesses casos são demonstrações de super
habilidades, sessões espirituais (séance), atos de escapismo, hipnose, faquirismo ou
mesmo se apresentados enquanto números de mágica afastam-se de uma atitude teatral,
mesmo se apresentadas dentro de um edifício teatral.
Como exemplo, citamos a apresentação de Robert-Houdin em 1856 na Argélia,
em que apresentou o bullet catch (o número de pegar a bala). Robert-Houdin não o
apresentou como um ―número de mágica‖, mas foi desafiado para um duelo e
manipulou a situação para demonstrar, no dia seguinte, sua ―capacidade especial de
transferir os ferimentos que lhe fossem causados‖. Ele preparou as armas à plena vista
da plateia e posicionou-se em frente ao seu desafiante, recebeu o primeiro disparo
capturando o projétil com os dentes, ameaçou atirar contra seu oponente, mas encerrou
sua performance atirando contra um muro próximo, fazendo os tijolos sangrarem.
(BLAINE, 2002, p. 4-6. Tradução nossa).
Por sair do contexto de ―apresentação de mágica‖ esse tipo de performance pode
causar grande confusão na plateia, geralmente sem saber diferenciar se o que
52
Illudere é uma palavra latina que deriva das raízes: in + ludere e origina o termo illusio que se associa e
por sua vez também dá origem à palavra inglesa illusion, relativo à ilusão, simulação, engano.
53
Live art como Cohen define, é uma arte ao vivo e também uma arte viva. Uma forma de se ver arte em
que se busca uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em
detrimento do elaborado, do ensaiado.
63
testemunhou foi algo real ou uma ilusão. Mas também é detentora de uma grande
potencialidade poética, efeito reforçado pela ancoragem da cena com a realidade.
Podemos sugerir alguns mágicos que desenvolvem e/ou desenvolveram trabalhos
pautados em performatividade, entretanto, sem afirmar que se tratou de uma escolha
proposital nessa linha de atuação, destacamos: David Blaine, Derek DelGaudio, Steve
Shaw (Banachek), James Randi, Kuda Bux, Uri Geller, S. W. Erdnase, Harry Houdini
(e todos os que reperformam seus escapes), Chung Ling Soo, entre outros.
Teatralidade Performatividade
Organização da cena buscando uma Organização da cena para a realização do
qualidade estética teatral; faz uso de ato, relação quase cotidiana de interação
iluminação, sonoplastia, ambientação e com espectadores, pode conter ações ou
efeitos especiais para reforçar essa mídias acontecendo simultaneamente.
estética.
Texto estruturado como numa Texto ou roteiro como um script semi-
dramaturgia. Gestualidade codificada. estruturado. Gestualidade cotidiana.
O mágico é como um personagem. O O mágico é ele mesmo, um performer.
artista o interpreta.
64
mágico, constrói uma gestualidade específica (extracotidiana) em sua pose, ações, modo
de falar. Sua mágica geralmente é apresentada num espaço teatral (um palco, auditório,
um local contendo uma plateia assistindo de um determinado ponto de vista), a cena
conta ainda com efeitos e ambientação teatral para reforçar a estética pretendida ou a
dramaturgia abordada. Diferentemente de um viés performativo como podemos
observar, a construção da cena objetiva a realização do ato performativo. O atuante não
interpreta um mágico, mas é ele mesmo num ―estado de performance‖, seu texto não é
dramatúrgico, mas um script, muitas vezes denotativo (literal), ou coloquial. Sua
gestualidade cotidiana e a liberdade da plateia assistir de pontos de vista diferente
tornam a composição do ato mais próxima de uma ação habitual.
Bonfitto (2013) discute essa dialética do teatral e do performativo explicitando
que os contrastes e relações existentes entre a noção de teatral e performativo são
intrincados, estão em trânsito e apontam quase que um para o outro. Partindo do termo
teatralidade, aponta inicialmente para o embate entre ―teatralização‖ e ―re-
teatralização‖ do teatro no início do século XX, especificamente entre Stanislávski e
Meierhold:
Ele evoca a perspectiva do teórico russo Nicolai Evreinov que diz que a noção
de teatralidade ultrapassa a cena, reconhecendo-a como instinto humano, e que tal noção
está associada à necessidade de transformar a aparência das coisas, da natureza e de si
mesmo. A questão do teatral e da teatralidade pode envolver a produção de ―convenções
conscientes‖, ou seja, a teatralidade é conscientemente posta nos processos de
construção cênica.
Bonfitto também nos fala de uma associação do termo com a ausência de
sinceridade, ou seja, o teatral identificado como algo falso, artificial. Essa perspectiva
enfatiza uma conexão entre teatralidade, simulação e falsidade, nos apontando a crítica
de Stanislávski ao modelo teatral de sua época e posterior embate com a noção de ―re-
teatralização‖ do teatro, de Meierhold (BONFITTO, 2013).
65
Na perspectiva da pesquisadora Josette Féral, ela assinala que a teatralidade está
ligada à representação (enquanto processos de organização simbólica) e narratividade. E
parece ser um processo que está relacionado com o olhar ativo de um observador que
realiza uma operação cognitiva sobre o observado, criando um espaço outro, que faz
emergir a ficção. Esse olhar, para Féral, envolve duas dimensões em jogo, a do
espectador e a do ator/performer que assume essa função de modo voluntário ou
involuntário. Ela reconhece ainda a existência de dois modos ou categorias: teatralidade
pré-estética e teatralidade cênica. E sobre esta última, enfatiza a importância da função
exercida pelo ator, simultaneamente produtor de teatralidade e canal através do qual ela
se manifesta, e através do qual se produz uma potente alteridade (BONFITTO, 2013).
Quanto ao performativo, Bonfitto faz um percurso semelhante ao que realizamos nesta
pesquisa, conforme a abordagem de Schechner que vai tratar do performativo de Austin
com os ―atos de fala‖, e os acréscimos de Searle, Bonfitto acrescenta e sintetiza a
perspectiva do pesquisador Marvin Carlson, com a abordagem de Féral na qual o
performer abre mão de um protagonismo não buscando a representação (como de uma
personagem), agindo como uma fonte de produção e de deslocamentos sígnicos. Deste
modo, o performativo surgiria através de ações executadas pelo performer:
66
realidade concreta do evento. Trata-se do ―aqui e agora‖ e de acontecimentos
reais, envolvendo o risco e a integridade dos participantes da performance. A
performatividade é a irrupção da realidade da vida sobre a cena teatral,
destruindo o enquadramento estético que a separa da vida. (HARADA, 2012,
p. 185)
Eu tento que tudo tenha um roteiro, tudo tenha um caminho a seguir, se eu não
quero que ninguém seja parte do meu show, que ninguém me interrompa eu crio um
67
roteiro para que ninguém me interrompa, se eu quero que alguém me interrompa eu
crio uma pausa ou algo assim para que as pessoas façam uma pergunta no meio. Mas
eu acho que um mágico profissional não deixa lugar para “coisas espontâneas”, acho
que somente com o tempo e experiência você vai ter momentos que vai ter... que seja
um momento espontâneo, mas a ideia é que isso não aconteça mais, que ninguém te
pegue de surpresa, que você tenha uma resposta na ponta da língua ou uma ação
prestes a acontecer quando uma coisa supostamente espontânea acontece, então o
espontâneo já é ensaiado. Tem pessoas que fazem... vai e “se kamikaze né!”, apresenta
uma mágica (testa na hora) e segue..., eu não acredito nesse tipo de..., eu faço isso com
crianças, quando pego uma mágica com crianças eu levo um roteiro, mas reparo
quando o roteiro não ta funcionando e da próxima vez que eu mudar o roteiro, mudo as
palavras, mudo os gestos, mudo as ações, vejo o que ta funcionando melhor. Mas ao
mesmo tempo não é espontânea, já ta programada, eu penso: vou experimentar isso, ou
agora vou experimentar aquilo, não tem a ver com: “ah surgiu agora, deu vontade de
mudar isso aqui e vou fazer!”, às vezes acontece, mas eu trabalho mais com
teatralidade, com que tudo esteja previsto. (Dante Deckmann)
Trata-se de uma atuação que segue ou trabalha com um roteiro linear, com ações
estritamente definidas, apresentando uma narrativa em alguns números e participação
ativa dos espectadores. O improviso quando acontece é proposital e faz parte da
―atuação‖. O mágico em questão se apresenta por vezes como um personagem e outras
como uma projeção dele mesmo. Uma atuação pautada em teatralidade, porém
destacam-se pontos de contato com a performatividade. Seu repertório é composto por
números clássicos e alguns modernos trabalhados de maneira pessoal, ou seja, os
números, mesmo que realizados da maneira original, passam por uma construção
personalizada, às vezes contando uma história. Alterações nos números são feitas ou
após poucas apresentações experimentais, ou em anos de apresentação, dependendo de
como o número funciona com a plateia.
Cuando hago magia me gusta el termino de JUGAR que no tiene nada que ver
con “play” de actuar ... siento que todo lo que soy se potencia tanto las virtudes como
las falências, pero no actuo soy mi verdadero yo ... y talvez ese sea uno de los grandes
motivos por los cuales hago magia, autoconocerme. (Nicolás Pierri)
68
Tradução: Quando faço mágica, eu gosto do termo JOGO que não tem nada a
ver com o “play” de atuar... sinto que tudo o que sou melhora tanto as virtudes quanto
as fraquezas, mas eu não atuo, sou o meu verdadeiro eu ... e talvez essa seja uma das
grandes razões pelas quais eu faço mágica, autoconhecer-me.
Trabalho nas linguagens do close up, dos shows infantis e também espetáculos
cênicos, como na apresentação “Entre Vassouradas e Espanadores”. A abordagem dos
números varia de acordo com a apresentação, ou seja, no espetáculo infantil “Entre o
Coelho e a Cartola” uma atuação mais voltada à Performatividade; e “Entre
Vassouradas e Espanadores”, uma linha de Teatralidade. (Jeffy)
69
codificações cênicas amparadas no teatro ilusionista, flerta também com o show
business nas coreografias, prólogos, descrições, etc.
De modo completamente oposto temos no trabalho de David Blaine uma atuação
menos ―teatral‖, ou seja, mais casual, mais próxima da ―vida cotidiana‖, principalmente
em seu trabalho audiovisual. Uma persona 54, uma ―máscara ritual‖ ao invés de um
personagem. Números com participação ativa e intervenção dos espectadores. Embora
que todo o trabalho em mágica exija uma preparação, Blaine arranja seus efeitos para
que aparentem casualidade, e apesar da linearidade que seguem suas ações, notamos um
modelo semi-estruturado, aberto a pausas ou intervenções.
Seu trabalho se divide em duas vertentes, a abordagem advinda do street Magic,
como um closeup ou mentalismo apresentado de um modo mais intimista. E o trabalho
com os desafios de resistência, ou seja, suas ―performances‖. A casualidade aparente
marca seu estilo pessoal, e apesar de sua mágica ser permeada por um leve
exibicionismo55, segue por um viés performativo de apresentação.
Uma das melhores lentes para observar a diferença entre esses dois modos de
atuação está nos aplausos da plateia, uma atuação teatralizada parece ter os aplausos
todos pontuados, esse aplauso costuma acontecer sempre no mesmo ponto da
apresentação, como algo preciso ou induzido. Enquanto uma apresentação como uma
performance, suscita um aplauso espontâneo e por vezes um não aplauso, somente a
apreciação e/ou reação de perplexidade.
Destacamos David Stone como exemplo que une bem os dois modos de atuação,
pensando ainda que a atuação ―híbrida‖ está cada dia mais presente no fazer artístico
dos mágicos. Stone é um mágico closapista (que trabalha com magia de proximidade
mais conhecida como close up), com formação artística na linha tradicional da arte da
mágica, mas com atuação inovadora, pois acrescenta sua corporeidade 56 sendo esse
fator o grande diferencial em seu trabalho.
54
Segundo Cohen, na performance geralmente se trabalha com persona e não personagens. A persona
estaria relacionada a uma forma mais universal, arquetípica como o velho, o jovem, o urso, o diabo, a
morte etc. Enquanto a personagem é mais referencial. O trabalho do performer é de "elevar" sua persona,
ou seja, fazê-la vir à tona. Nas palavras de Cohen, isso geralmente se dá pela forma, de fora para dentro (a
partir da postura, da energia, da roupagem desta persona (COHEN, 2002).
55
Atitude de ostentar um poder ou exibir-se por realizar uma proeza, característica do estilo de alguns
mágicos. Tal atitude passou a fazer parte enquanto elemento constituinte do ato mágico, tanto como um
modo de atuação quanto como um recurso que sustenta a ilusão.
56
O universo interno subjetivo do indivíduo expresso no (e pelo) seu corpo, e também ao modo como este
corpo se relaciona com o mundo.
70
Stone desenvolveu a maioria de seus números, como também os aparelhos
especiais para a realização destes, tendo seus efeitos no repertório de mágicos do mundo
todo. Podemos perceber a codificação clássica da arte da mágica em seu modo de
atuação principalmente nas técnicas empregadas e no modo como se posiciona e
interage com a plateia. Podemos ver nas ações, no texto, nos objetos, na ambientação,
trilha musical, iluminação e no enquadramento cênico que cria em seu ato uma atuação
pautada na teatralidade, mas o mesmo rompe com a representação por meio de uma
colagem de elementos que tornam cada apresentação única, permeada por improvisos e
gags, este roteiro semi-estruturado possibilita também uma maior liberdade cênica de
seu espectador; Ele não interpreta um personagem, mas realiza uma performance de si.
Destacamos também, dentre muitos outros artistas atuais que cruzam esses
modos de atuação, o mentalista britânico Derren Brown, que une teatralidade e
performatividade, principalmente em seus mais recentes especiais televisivos, gravados
durante seus espetáculos ao vivo. Percebemos que este modo de atuação ―híbrido‖
propõe um marco na mágica do século XXI. No Brasil, durante os anos de 2000 a 2013
o stand up comedy com mágica (ou o inverso, já que se mesclaram bem) tornou-se um
formato ideal, posteriormente a hipnose combinada com apresentações de mágica
tornou-se a ―nova vertente‖.
Quanto à experiência deste autor, posso afirmar interações e mudanças nos
vieses de atuação. Ao iniciar meus estudos em mágica segui um caminho que apontava
para um modo de atuação teatral, e apesar de desenvolver o estilo close up, estava
permeado por esta necessidade de ―teatralização‖ do/no meu fazer. Após dez anos
atuando com mágica meu trabalho se acresceu de outras referências (idéias, modos de
atuar, teoria e técnicas atualizadas) e da necessidade de apresentar algo mais
significativo (afetivo), do que estético. Ao iniciar o estudo de números e técnicas de
escapismo (escapology) percebi outra configuração de cena que se estabelece, e que não
é exclusivamente teatral, mas que apesar de muitas vezes ser ―emoldurada‖ desta forma
pelo olhar do espectador, se aproxima conceitualmente e essencialmente da atuação
performativa. Portanto, o modo de atuação que geralmente trabalho combina, em
determinados momentos, os dois vieses de atuação. Sendo bem delimitados numa
apresentação tradicional (um show, um comodity, um entreato), havendo variações nos
modos de atuação. De outro modo, em ocasiões mais incomuns (por vezes num
congresso, numa mostra artística, numa intervenção urbana, etc.) apresento trabalhos
71
essencialmente num viés performativo de atuação, como é o caso da performance
Travessia ou do Escape Invertido.
Vamos abordar os processos criativos que orientam esta pesquisa tendo como
objetivo encontrar disparadores criativos para o corpo do mágico, baseado nos modos
de atuação estudados. Existe muito material referencial circulando em feiras e
congressos de ilusionismo, desde os livros técnicos e manuais básicos, até leituras mais
avançadas e títulos em DVD (como as coleções ―clássicas‖ de aulas de mágica 57), além
de material em videoconferências e consultoria online. Em outra via de atuação, que se
aproxima mais da performance e da body art, tal como tratamos nessa pesquisa, o
material didático é mais teórico e de difícil acesso, voltando-se para leituras históricas e
descritivas sobre mágicos e artistas ―performáticos‖, como Hadji Ali, Harry Houdini,
James Randi58, entre outros, assim como poucos títulos sobre escapismo e faquirismo;
Ou ainda o que mais se aproxima desse modo de atuação deságua especificamente no
mentalismo com Tony Corinda, Kuda Bux, Banachek, Richard Osterlind e Ted
Annemann. Há ainda alguns materiais que repensam as práticas na Arte dos Mágicos e
fazem correlações entre teoria e prática e entre mágica e outras epistemes, alguns destes
compõem o processo formativo deste autor, destacamos: The Real Secrets of Magic
(David Stone), as obras de Juan Tamariz - Los Cinco Puntos Mágicos, La via Mágica,
El Arco-íris mágico, Show Doctor (Jeff McBride) e Os treze passos para o mentalismo
(Tony Corinda).
Em entrevista realizada com alguns mágicos, obtivemos distintas ferramentas
utilizadas como catalisadores criativos. Alguns partem da proposta de realizar um efeito
(produzir um elemento natural como fogo ou água) e outros partem do que querem que
a plateia aprecie ou experimente, mas sempre buscando a materialização de uma ideia
57
A coleção World‘s Greatest Magic by the World‘s Greatest Magicians, por exemplo.
58
Numa odisséia pessoal para desmascarar charlatanismos e fraudes religiosas, o mágico e autor James
Randi implantou um mentalista numa pesquisa acadêmica que buscava provar a existência de poderes
paranormais, esse performer, instruído por Randi levou os cientistas a crerem que possuía dons
sobrenaturais. Uma parte deste feito pode ser assistida no documentário An Honest Liar.
72
ou vontade, construindo caminhos muito pessoais na consolidação de seus objetivos.
Segue a transcrição de algumas respostas:
“Meu processo criativo normalmente parte de uma ideia inicial, que pode ser
algo bem definido como: o que acontece quando alguém tem acesso ao material de um
mágico? Ou uma ideia genérica como: pensar em um número que utilize água, ou
ainda um número que ocasione determinada emoção. A partir da delimitação desse
problema inicial, começam as pesquisas, num primeiro momento busco outros artistas
com alguma performance na mesma linha de raciocínio, ou que utilizam o mesmo
princípio/equipamento, depois se segue um período de experimentação, onde testo
elementos como timing, misdirection, speech, etc.
Por fim, vem o teste com o público, e a partir do feedback obtido, são feitas
correções ou mesmo o arquivamento do número (guardando-o por algum período de
tempo antes de ser estudado novamente)”(Jeffy)
“Depende muito, porque eu crio a partir de efeito, sonho, técnica ou teoria. Mas
a partir disso esse efeito passa por diversas peneiras e pensamento profundo sobre
apresentação, métodos, sutilezas e psicologia.” (B. Sedlacek)
73
2.3.2 TREINAMENTO E PREPARAÇÃO
59
Num estudo anterior e Trabalho de Conclusão de Curso deste pesquisador, intitulado A máscara da
ilusão – uma aproximação pedagógica da arte do mágico com a arte do ator foram abordados alguns
aspectos técnicos da Mágica, dentre eles o Sleight of hand, traduzido no respectivo estudo como
―habilidade de manipular‖. A investigação do conceito de ―técnica‖ na Mágica, a partir da possibilidade
de gerar os efeitos (aparição, desaparição, transformação, etc.) levou a investigação do movimento, os
efeitos em Mágica não se tratam de algo sobrenatural ou que ultrapassam as leis naturais como aparentam
fazer, o movimento é a base para a sua realização, mas tais movimentos devem estar invisíveis aos
espectadores, disfarçados em movimentos visíveis, para que seja percebido apenas o fenômeno aparente e
não o procedimento para tais aparências. A essa organização técnica de disfarçar movimentos específicos
(ou especiais) em movimentos naturais chamamos de Manipulação, ou Habilidade de Manipular ou ainda
pela sua correspondente em inglês Sleight of hand.
74
Ao aprender uma técnica nova, tente executá-la para si mesmo. Quando já
tiver dominado a parte mecânica do movimento, comece a executá-la na
frente do espelho. O intuito agora é observar os ângulos nos quais o
movimento é [...] correto. [...] É preciso ter em mente que um número de
mágica depende igualmente das técnicas mecânicas e não mecânicas.
(ÁVILA, 2016, p. 157-158, grifo nosso)
75
movimentos para aperfeiçoar a técnica (sleigh of hand) ou algum de seus princípios60:
misdirection, empalme, simulação, etc.
No que se refere ao treinamento enquanto preparação, citamos um trecho da
pesquisa O treinamento como processo de investigação do ator-criador61, a qual evoca
a perspectiva do renomado pesquisador da antropologia teatral, Eugênio Barba, que vai
observar em diversas culturas, as técnicas teatrais codificadas e princípios semelhantes
que guiavam o ator na construção de uma atitude ou estado cênico. A esses princípios
recorrentes em diversas culturas e tradições ele vai chamar de pré-expressividade
(DONOSO, 2010, p. 25).
Conforme Donoso, o pesquisador Renato Ferracini desenvolve, a partir do
conceito de pré-expressividade, uma sistematização de treinamentos para atores62. Sua
ideia de treinamento amplia-se ao explicar que ―treinamento‖ perpassa o tempo-espaço
delimitado pela sala de trabalho:
Conforme nos apresenta Ferracini63, o ato de treinar pode ser compreendido por
três vias, uma de ordem etimológica, outra de ordem ontológica e a última de ordem
epistemológica. Em sua análise, a concepção etimológica de treinar se mostra
insuficiente em relação ao conjunto de problematizações suscitadas por essa palavra no
campo das artes cênicas. Deste modo Ferracini desloca treinamento para um sentido
ontológico observando que o termo advém do latim traginare relacionado com o
substantivo treina, nome dado ao animal que era oferecido ao falcão em seu treinamento
de caça, entretanto, traginare o falcão não seria ensinar essa ave a caçar, pois ela já é
uma ave caçadora, mas significa ampliar sua habilidade de caça, em outras palavras,
realizar uma intensificação de si (FERRACINI, POSSANI, 2014, p. 22-48).
60
Conforme listado e apresentado pela dupla de mágicos Penn & Teller, existem sete princípios básicos
pelos quais é possível realizar todos os efeitos conhecidos em mágica (PENN, 2015).
61
De autoria de Marília Gabriela Donoso.
62
Explicado em seu livro A arte de não-interpretar como poesia corpórea do ator.
63
Treinamentos e modos de existência: deslocamentos e intersecções. In: Zonas de Contato - usos e
abusos de uma poética do corpo. 2014, p. 22-48.
76
Porém, num deslocamento de ordem ontológica essa intensificação de si diz
respeito a uma potência de afetividade. Não num sentido superficial que dicotomiza
afetividade/racionalidade, mas na perspectiva do atletismo afetivo, o qual nos apresenta
Artaud, um afeto enquanto potência presente no corpo na cena e no espetáculo.
Afeto tem ainda, conforme Quilici (2004) uma conotação que remete para além
da eficácia, este poder de afetar e ser afetado é como uma força que atua no e por meio
do ator e depois em relação ao espectador (QUILICI, 2004). A partir dessa compreensão
a noção de treinamento amplia-se. Num deslocamento ontológico o treinamento seria
uma intensificação afetiva do corpo, da cena e do espetáculo, como também se
existirem dispositivos técnicos, mecânicos, musculares e/ou de habilitação física
(FERRACINI, POSSANI, 2014, p. 22-48).
Por último, para os autores, no deslocamento epistemológico, o treinamento
proporciona o conhecimento da prática enquanto ―cuidado de si‖ e potencializa a
capacidade de escuta, ou seja, de deixar-se afetar pelo mundo, de ser sensível ao meio e
por meio deste afeto, afetar o mundo. Propondo que num deslocamento epistemológico
o treinamento deve focar na capacidade de compor com as ―forças‖ e ―linhas‖ que
atravessam o corpo do atuante, ou seja, com os fenômenos e/ou elementos externos que
perpassam (afetam) o fazer do artista, ao invés de somente na qualidade técnica. No
capítulo seguinte falaremos sobre os elementos externos, que fazem parte do universo
pessoal do artista, e como entram no processo de composição.
Quanto à ―preparação‖, essa palavra no campo das artes cênicas relaciona-se
com os processos compositivos da cena e do treinamento técnico de atuantes (atores,
bailarinos, brincantes, mágicos, etc.). Preparação64 diz respeito a todos os
procedimentos de organização para que seja possível a realização de algo. No âmbito
das artes cênicas envolve todos os procedimentos que antecedem a realização da cena.
Nessa perspectiva, o treinamento, o ensaio, o desenvolvimento e montagem cênica
(iluminação, cenografia, etc.), a concepção dos elementos de caracterização dos
atuantes; todos estes e demais procedimentos podem ser considerados preparação.
Contudo, a preparação pode ser a própria produção da obra? Sobre esta questão
podemos apontar a proposta vanguardista do professor Dr. Renato Cohen65 chamada de
work in process, ou o ‗trabalho em processo‘. Proposta que põe o processo enquanto
64
Conforme em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa.
65
Renato Cohen foi um artista e professor brasileiro que transitou por experiências cênicas de fronteira
fazendo uso de multimídia, dança, teatro, artes plásticas, entre outros operadores em sua poética.
77
―produto final‖, em outras palavras, o processo de organização dos elementos que
compõem (ou irão compor) a cena borra-se com a concepção de conclusão do produto
estético, gerando uma obra que está ao mesmo tempo acabada e em preparação. Uma
alternativa para a composição em mágica que rompe com o modelo de composição ―por
etapas‖.
O conceito de work in process apresentado por Renato Cohen surge com os
termos: performance, parateatro, instalação, dança-teatro, entre outros; instituída no
final do século XX e início do século XXI. Seu livro Work in Progress na Cena
Contemporânea trata de elucidar o novo paradigma para as construções cênicas na
contemporaneidade, nascido do pensamento prós-estruturalista em que compreende a
cena e sua teatralização antes amparadas à lógica aristotélica (composição por etapas ou
seqüencial), mas agora seguindo um modelo de justaposição, ou seja, cenas simultâneas,
fragmentadas, marcadas pela não seqüencialidade e simultaneidade de ações, sem uma
obrigação com a narrativa linear.
66
Advindo do conceito de roteiro cinematográfico, trata-se de uma junção de texto, imagem e sentido.
67
Alteração sígnica do espaço da cena, propondo uma reterritorialização amplificadora dos sentidos,
como o deslocamento da cena para espaços incomuns por exemplo.
78
No processo de hibridização/ressignificação, trabalha-se alteração,
deslocamento, fusão de textualidades, numa operação que envolve dois
momentos: um dionisíaco, de fluxo, corrente, caminho do inconsciente; e
outro, apolíneo, criterioso, cartesiano (sic), de lapidação, escolha. (COHEN,
1998, p. 28)
Apesar desta pesquisa não se pautar numa análise quantitativa, ao longo de dez
anos de experiência e diálogo nos congressos de mágica, constato que grande parte dos
mágicos (e me incluo nesta constatação) segue o modelo que chamaremos de ―processo
por etapas‖ na criação de seus números. Nessa forma de composição o objetivo, que é a
realização do efeito (construção, exercício técnico, correção de detalhes, etc.), está
predefinido e trabalha-se para chegar até ele, em outras palavras, a abordagem de
treinamento enquanto práxis, conforme Bonfitto (2013). As etapas variam dependendo
dos estímulos que melhor orientam cada artista, como trilha musical, imagens, texto,
objetos cênicos, mas geralmente, na mágica se inicia pelo domínio da técnica. Como
exemplo vamos analisar a composição da performance Travessia, inicialmente pelo ato
de mentalismo que a originou, criado a partir de um processo por etapas. (ver figura 18).
79
pisar para evitar sofrer danos. A primeira etapa consistiu no domínio da técnica, o que
levou à pesquisa de referências, ou seja, mágicos que já apresentaram o ato e seus
respectivos métodos. Em seguida as imagens referenciais e a elaboração da concepção
estética do ato, pessoas caminhando em vidros, a visualização da caminhada no palco e
a maneira de abordar o enunciado. Todo esse processo levou à experimentação que
demandou a elaboração de um texto e desencadeou no modo de atuação ou apresentação
do número. Resolvida a problemática da composição, a obra estava ―pronta‖.
Após dois anos apresentando o ato em espetáculos e congressos de mágica,
foram sugeridas algumas ideias e críticas para incrementar a apresentação. Em 2016,
depois de um workshop de ―magia extrema 68‖, o qual ensinava técnicas para pisar e
caminhar sobre vidros, o ato de mentalismo passou a conter também a caminhada sobre
vidros, mas o processo criativo ainda se identificava com o processo por etapas,
resultando numa experimentação intitulada ―o eremita‖ (em referência à carta do Tarô),
apresentada na VIII Jornada de Pesquisa em Artes Cênicas, na UFPB (figura 19).
Atualmente o ato se encontra num work in process, renomeado para Travessia.
68
Magia extrema é como o mágico argentino Diego Minevitz intitulou seu workshop que trabalha com
números de extremo risco, números de escapismo e a técnica de caminhar em vidros, utilizada pelos
faquires (artistas/sábios) indianos.
80
se em duas partes: na primeira, de olhos vendados, o performer desafia os limites da
percepção humana atravessando um caminho com grandes pedaços de vidro, sem pisar
neles. A segunda parte é inspirada nas demonstrações dos faquires indianos, uma
quantidade de vidros quebrados é adicionada para que desta vez o performer atravesse
caminhando sobre estes pedaços, em contato direto com os vidros, novamente sem se
ferir. No capítulo seguinte falaremos de um modo pessoal sobre esta experiência.
Ao transpor o modo de composição para o work in process, o efeito deixa de ser
o objetivo final e passa a ser um dos elementos de composição. Ao fazer desta
descentralização do efeito mágico, para um meio de realização de um ato cênico e
mágico, outros aspectos da apresentação ganham evidência, como a semântica do
número, ou o nível de afeto que proporciona.
Com os elementos compositivos espalhados ao invés de seqüenciados, o
processo criativo se dá por uma conexão de elementos que pode iniciar e finalizar em
pontos distintos, como uma rede de conexões que alimenta as possibilidades de
composição da obra em processo, não se tratando mais de desconstruir ou voltar etapas
numa composição para testar uma nova referência (ou uma nova imagem), mas
trabalhar com a inserção imediata de uma nova conexão ―colando-a‖ no processo.
O procedimento work in process trabalha com a colagem de elementos e uso de
símbolos, o excesso de significações pode gerar alguns problemas de excesso de
informação (confusão) que atrapalham a realização e leitura de um número ou rotina de
mágica, por outro lado, com o devido cuidado nos excessos podemos encontrar
caminhos que podem potencializar a apresentação. A imagem a seguir mostra um
exemplo de como estes elementos se espalham no diagrama de composição, podendo
iniciar conexões a partir de qualquer um deles:
81
Pensar em composição na mágica a partir da confluência de elementos remete-
nos ao processo por ―ligação de elementos‖, utilizado por alguns mágicos. Nele são
organizadas duas listas, a primeira contendo números, categorias ou objetos da mágica:
baralho, moedas, varinha, cartomagia, mentalismo; e na outra lista elementos de gosto
pessoal, do universo subjetivo ou dos mais variados tipos: música, comida, a temática
de algum lugar, um filme, um objeto, etc., em seguida são feitas as ligações entre as
duas colunas, como numa ―escrita automática‖, ao final o resultado propõe sugestões
para experimentações práticas envolvendo as combinações realizadas (ver imagem a
seguir).
83
III
UMWELT
84
Propomos um pequeno exercício: selecione quatro objetos de seu
universo subjetivo, alguns podem ser objetos muito pessoais, que
estejam em seu cotidiano, ou que você colecione, e que de algum
modo simbolize sua presença.
85
3. EXPERIMENTOS PRÁTICOS
87
Figura 20 - Escape Invertido na ponte Newton Navarro, preparação. Foto: wk-adventure, 2019.
88
rompendo durante o ato. Diferentemente, a escapista Kristen Johnson, mais conhecida
como Lady Houdini, realiza o escape de um modo performativo, um desafio contra o
tempo em que a espetacularidade apresenta-se na própria dificuldade em realizar o ato.
Nas apresentações de palco existe uma adaptação para este escape, uma versão
atualmente conhecida como Jaws of death (mandíbula da morte), podemos ver uma
apresentação deste número pelo mágico canadense Darcy Oake. Na pesquisa por
imagens referenciais destaco os artistas acima citados, além de: Jonathan Goodwin,
Andrew Basso, Criss Angel, Dean Gunnarson, Diego Minevitz e James Randi.
Após uma experiência na prática de rapel em agosto de 2017, despertou-me a
ideia de realizar um escape pendurado numa grande altura. O plano foi guardado para
um momento mais oportuno, que se consolidou recentemente, dois anos depois.
Um mês antes da performance pesquisei os equipamentos utilizados em números
aéreos de circo (tecido, trapézio, lira, etc), na busca por uma maneira de prender os pés
nesta performance, já conheça alguns desses equipamentos, mas tive a necessidade de
revê-los. O instrutor de rapel sugeriu realizá-la utilizando o baudrier (o cinto também
chamado de cadeirinha de escalada). Fizemos um estudo uma semana antes da
performance e descobrimos que para me colocar na posição suspenso de cabeça para
baixo, teria que finalizar a instalação da camisa-de-força já pendurado do lado de fora
da ponte, para isso teria que deixar meus
braços livres ao pôr a camisa-de-força, para
eu passar para o outro lado da grade de
segurança da ponte, e só então prender os
braços.
A escolha da ponte como local do
escape se deu por ocasião, entretanto,
acrescentou referências significativas. A
ponte Newton Navarro foi inaugurada em
2007 (ano em que comecei a estudar
mágica). Ela interliga a zona norte com a
zona leste e litoral sul de Natal,
negativamente é cenário de uma série de
suicídios, contendo diversas placas de
conscientização e ajuda em seu trajeto. O
90
público de modo muito potente. Lembro que naquele dia ao iniciar a caminhada pelos
vidros começou uma chuva, as pessoas da plateia, mesmo molhando-se, continuaram a
assistir. É interessante pensar que o público geralmente não quer que ocorra um
acidente, mas não resiste à curiosidade de que aconteça um. Com os olhos vendados sei
que a plateia me assiste, mas não vejo realmente o que acontece em cena, não vejo a
reação das pessoas, apenas sinto sua respiração e sua perda de fôlego quando quase
piso em algum vidro. Tento me conectar o tempo inteiro com as pessoas a partir da
ação que estou realizando, e sinto essa conexão no respirar e no silêncio do público,
bem como nos pequenos sons (suspiros, exclamações, espantos), ao mesmo tempo em
que me concentro na técnica para realizar a travessia. É uma performance que aborda
outras maneiras de enxergar, é sobre perceber, ao invés de ver; uma vez que vendo,
temos a possibilidade de nos enganarmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
91
arte dos mágicos, a atitude ou presença do atuante, e por seu corpo-treinamento-
processo. Representados respectivamente pelas palavras contidas no início de cada
capítulo: Praestigium, termo em latim que significa artifício ou ilusão; Showmanship –
a capacidade de realizar espetáculos, o modo de atuação (a teatralidade ou
performatividade), e Umwelt, termo utilizado pelo biólogo Jakob Von Uexküll em sua
obra Teoria da significação, apontado como uma propriedade que diz respeito ao modo
como uma espécie constrói o seu mundo na relação com o ambiente (GREINER, 2005,
p. 38), em outras palavras, o ―universo subjetivo‖ e o modo como esse universo pessoal
se relaciona com o meio.
Também apresentamos o work in process como proposta para criação cênica em
mágica, um processo que ocorre pela confluência de elementos, como uma colagem. A
performance em detrimento da cena teatral, possui uma vantagem no que se refere ao
fazer o espectador acreditar na verossimilhança da ação mágica. Quando se propõe ao
espectador a ―suspensão da descrença‖, inversamente se está expondo a artificialidade
da ação que se segue, é como se disséssemos: ―agora vou fazer um truque que vai
parecer mágica de verdade‖. Por mais forte e convincente que o efeito possa ser, o
espectador não acredita de verdade que o mágico possui poderes. Artificialidade que é
reforçada, por exemplo, pelo figurino do mágico, a ambientação, o formato espetacular
dos objetos utilizados, a estética teatral presente emoldurando aquele instante.
Diferentemente de uma ação mágica construída por um viés performativo, em que
normalmente a ação envolve um risco real, é encarada como algo sério, em oposição a
não-seriedade do jogo cênico. Esse tipo de apresentação pode levar os espectadores a
uma crença inabalável na verdade do acontecimento.
Observamos ainda, conforme alguns autores, que podemos aproveitar os
momentos de exposição da realidade da cena, nas lacunas de uma apresentação
permeada por artificialidade, para inserir ações que mascaram tais artifícios e sugerem,
para o espectador, a inexistência de tais mecanismos. Sendo esta uma maneira de
potencializar o efeito ilusionista.
Elencando os conteúdos abordados nessa pesquisa como uma rede de conexões,
podemos perceber a sistematicidade que cada componente fornece no processo
compositivo em mágica, abordamos procedimentos de base, presentes no fazer desses
artistas, que não são atores teatrais, mas atuam com teatralidade; proporcionam atos
rituais de experiência que entretém, ensinam, emocionam, divertem, curam, lidam com
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o divino e com o profano, afetam; sem necessariamente saberem que estão no campo da
performance, como tentamos demonstrar nesta pesquisa.
Entendemos alguns disparadores criativos presentes no processo de composição
dos mágicos entrevistados, revelando-nos os diversos pontos de partida em cada
processo. Essa investigação nos levou a estudar, como etapa final para esta pesquisa, o
work in process como metodologia de criação em mágica, donde surgiu um workshop
que trabalha Os cinco domínios para a criação em mágica, o título foi inspirado na obra
Los Cinco Puntos Mágicos (Juan Tamariz).
Destacamos um resultado bem satisfatório na compreensão dos vieses teatral e
performativo no modo de atuação dos mágicos, entendendo-os como ferramentas na
composição poética, na ampliação da potência afetiva da cena mágica e como
instrumentos de análise e crítica para estudo e apreciação nessa linguagem expressiva.
Aprofundamos o olhar sobre os termos Conviction e Deception por meio de uma
análise dialógica, apresentando exemplos dentro da comunidade de mágicos. Nessa
investigação encontramos aproximações com a teatralidade e a performatividade que
envolvem a prática da mágica. Observamos também particularidades entre o ato de
mágica e a façanha que apontam para os modos de atuação abordados. Realizamos
experimentos práticos, com oficina em sala de aula, performance apresentada em
congresso, entrevistas presenciais e virtuais e uma ação performativa fora do espaço
físico da academia.
Os rumos desta pesquisa compreendem o desenvolvimento e aprimoramento dos
jogos aqui esboçados e o desenvolvimento de novas ações mágicas/performativas nos
eixos de prática, formação e estudo. Também na pesquisa pessoal deste autor em ações
práticas envolvendo performance e mágica. Agradeço ao leitor pelo transcurso deste
processo destacando a disponibilidade para acréscimos, em parceria, e por meio de
experimentos, críticas e contribuições neste trabalho, que só se completa pelo olhar de
um espectador.
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após a morte, do fim da corrupção, da dignidade de um líder, de que terminaram
esta leitura.
A arte é uma das pouca coisas, talvez a única, que nos mostra a verdade
dura e crua, sem filtros, numa canção, num quadro, numa performance...
Pareço estar aprisionado assim, mas minha mente está tão LIVRE que
pode me libertar a qualquer momento. Como diria Houdini “my brain is the key
that sets me free!”
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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