forma extraordinária! Clarice Lispector (1920 – 1977), escritora nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira, possui em seus livros um caráter intimista, se importando muito mais com o subjetivo de cada ser do que com sua estética externa. Amor e felicidade são só alguns dos variados temas abordado pela autora. Conhecendo a Autora Os textos de Clarice Lispector são permeados de uma coisa fundamental e essencial no mundo: humanidade. “Ora, humanidade, qualquer um consegue escrever sobre isso”. Muito pelo contrário, os humanos não são fáceis de serem compreendidos, a menos que você os reduza à questões estéticas, à estereótipos e à padrões anteriormente estabelecidos. Neste sentido, tudo se torna fácil, dado que tal pessoa a qual pratica atos desse gênero nega a realidade, os humanos e, sobretudo, a subjetividade primordial de cada ser. É uma autora que consegue descrever por meio de palavras, ação racional, os sentimentos humanos, que são irracionais. Portanto, ela caracteriza em seus livros questões como: “O que é a felicidade?”; “O que é o amor?”; “O que é a angústia?”; ou “O que nós nos tornamos?”. Entretanto, diferente de outros escritores, pensadores e filósofos, Clarice caracteriza um sentimento geral de forma subjetiva. Ora, à primeira vista, pode parecer contraditório algo geral e ao mesmo tempo subjetivo. Porém, é isso que torna as escrituras lispectorianas divertidas e fantásticas. A contradição é o cerne da humanidade e, por isso, deve ser exposta. Laços de Família Mas o que seria esse sentimento geral, porém subjetivo? Colocarei como parâmetro para corroborar nos meus argumentos acerca de tal conceito o livro: “Laços de Família”, um livro de 13 contos acerca, é claro, da família. Assim sendo, com esse livro é visível o que disse anteriormente, que a escrita lispectoriana é permeada de humanidade, e, tenho que confessar, o que é mais humano do que a própria família? Pois é. Tratarei de dois contos em que o amor, a felicidade e esse sentimento geral subjetivo são claramente visíveis. O primeiro conto: “Devaneio e embriaguez duma rapariga”, conta a história de uma típica senhora portuguesa de família que vive no cotidiano incessante. Certo dia, ao ficar defronte ao espelho, começou a repensar sua vida. Os momentos mais interessantes são quando ela está sob sua cama apenas pensando na existência. Ela pensa o cotidiano que tem, na sua beleza, na angústia que possui dentro de si, etc. Quando o marido chega a casa, exclama que terá um encontro com seu chefe e que a sua esposa poderia vir. A senhora acaba conversando bastante com o chefe, quando percebe a beleza de outra mulher no recinto, então sente-se extenuada de tudo, pois isto lhe fere sua vaidade. Após o ocorrido, repensa sua vida novamente, repensa o padrão de beleza, sobretudo. Nesse conto vemos, também, o sentimento de angústia sendo despertado por um conceito da sociedade anteriormente estabelecido: o padrão de beleza. Todos temos os mesmos sentimentos, mas com porquês diferentes. Primeiramente, essa angústia, que, aliás, se parece bastante com o conceito existencialista da angústia, dá a impressão de ser algo ruim, doloroso e torturante. Amor e Felicidade Entretanto, em alguns contos, como o conto: “Amor”, ela acaba sendo de grande importância para atingirmos a felicidade e, claro, o amor. Ana, uma mulher de família do cotidiano incessante, acaba saindo para comprar o jantar. Enquanto se transporta pelo bonde, começa a fazer algumas reflexões, porém logo são barradas por pensamentos do cotidiano. Apesar disso, para a felicidade do leitor que deseja conhecer mais as reflexões de Ana, ela se depara com um cego, no ponto, mascando chiclete; logo ocorre uma freada brusca do bonde, e os ovos que comprara quebram-se. Nesse momento, com a metáfora dos ovos, o cotidiano incessante se quebra, a sua vida se quebra. Dessa forma, nasce a angústia. Depois do ocorrido, sendo forte, Ana tenta lutar contra essa quebra lembrando-se de algo cotidiano, mas não consegue. Ela via o cego mascando o chiclete e sorrindo, aquilo era magnífico, era gratificante. Porém, os ovos se quebraram, isso não era ruim? Ana percebe isso, mas a angústia já havia nascido. Como diz Lispector: “Mas o mal estava feito”. Agora, Ana percebeu que tudo aquilo que fazia com tanto carinho e “amor” para sua família não era, efetivamente, por amor. Era apenas o cotidiano. Quando a angústia é despertada: “O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. (…) E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia um senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa. Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite — tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.” Nesse trecho podemos perceber o que a angústia nos torna. Às vezes, porém, como no caso do primeiro conto, ela não é tão boa, pois é subjetiva. No primeiro conto, ocorre a angústia quebrando o cotidiano e levando a senhora a questionar-se sobre sua beleza, o que a torna deprimente, mas, de uma certa forma, boa, porque quebrou seu cotidiano. No caso do conto “amor”, há a angústia, e logo se percebe uma felicidade. Angústia e Culpa Além da angústia, deve-se ressaltar que Clarice utiliza o sentimento de culpa (também usado por escritores como Kafka e Dostoiévski) em diversos trechos. Por exemplo, quando Ana vê o cego se sente culpada pelo cego ser o que é e, mesmo assim, estar feliz. Também sente-se culpada por ela ser o que é e, mesmo assim, não estar feliz. Desse modo, podemos colocar os sentimentos que Lispector exprimiu nos seus contos da seguinte forma: a angústia, quebra do cotidiano e aceitação da realidade; a culpa por ser o que é ou o outro ser o que é; epifania, momento do desmoronamento de tudo; e, logo, depois de tantos conceitos exaustivos, a felicidade e o amor. É necessário que tratemos esses últimos conceitos à parte. Quando atingimos a felicidade encontramos o amor, e vice-versa. Mas não um amor romântico ou um amor platônico, e sim um amor tolerante e observador com a vida. “A felicidade é composta de pequenos prazeres”
Tolerância é sinônimo de amor para Clarice. A felicidade, e/ou o
amor, para Clarice Lispector pode ser resumida em uma frase do poeta simbolista francês Charles Baudelaire: “Le bonheur est fait de petits plaisirs”, ou seja, “A felicidade é composta de pequenos prazeres”. Clarice nos mostra que, após a culpa, a angústia e a epifania percebemos a realidade observando-a. Nessa observação minuciosa, sem nos prender do cotidiano, aprendemos que a vida é uma obra de arte. Uma obra de arte pela qual cada detalhe, cada cor, cada traço é de grandíssima importância. E por essa importância com os pequenos traços da vida, é que alcançamos a tolerância, logo o amor. Portanto, mesmo passando por coisas aparentemente ruins, como a culpa e a angústia, acabamos com a felicidade, uma realidade como obra de arte, e o amor, ou seja, a tolerância.