Tal seqüência com que se inicia o documentário Shoah de Claude Lanzmann mostra
quanto de experiência silenciada pode existir na apreensão da realidade. Entre o viver e o
lembrar, no limite do enfrentamento de situações traumáticas, muitas vezes compreendeu-
se o silêncio como aliado da vida. Todavia, no caso das vítimas do Holocausto, tal situação
se inverteu por conta do chamado dilema da segunda geração, um duplo movimento que
marcou a convergência de esforços tanto das velhas testemunhas oculares da catástrofe
que, na iminência da morte, queriam evitar o desaparecimento total de suas lembranças
(POLLAK, 1989, p. 4), quanto de seus descendentes, jovens intelectuais, que buscavam em
suas origens um mote de pesquisa (SPIEGELMAN, 2008). Uma das notadas contribuições
de tal virada para a contemporaneidade foi a de reafirmar a validade do testemunho como
modalidade crucial de aproximação compreensiva dos traumas que marcaram nossa história
recente (FELMAN, 2000).
Pode ocorrer, porém, desse novo sentido não interessar à memória da maioria.
Numa realidade inclusiva e plural, tanto as narrativas insurgentes quanto a tradicional
realizam, então, um trabalho argumentativo de enquadramento da memória que,
alimentando-se do material fornecido pela história, interpretando-o e combinando-o a
diversas referências associadas, tem como finalidade a criação do discurso mais coerente
sobre o passado (POLLAK, 1989, p. 7-8). Todavia, em realidade de desigualdades
simbólicas, a memória insurgente acaba sendo negada por meio de intimidação e medo,
levando a um “desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si
mesmos” (RICŒUR, 2007, p. 455) e à manipulação da memória e do esquecimento. Nesse
caso, o trabalho de enquadramento da memória realizado pelos grupos de poder (de
gênero, no presente caso) atende apenas ao imperativo de justificação da sua narrativa,
para que a mesma não seja percebida como arbitrária, injusta e violenta, mantendo, assim,
seu poder simbólico (BOURDIEU, 1998).
De qualquer modo, por mais que a memória opere uma contração do real, não é
possível a retenção de toda a experiência do presente. Assim, cada um dos sentidos
apreende tão somente aquilo que lhe parece ser útil, apreensões posteriormente conjugadas
na elaboração da representação correspondente. Todavia, a memória não está apenas
vinculada àquilo que se percebe, mas, também, vincula a própria percepção, na medida em
que fornece o critério de utilidade baseado no conhecimento acumulado pelas experiências
pretéritas. A experiência adquirida, então, enriquece a experiência presente conferindo-lhe
certa espessura de duração, tornando o momento da percepção da realidade uma ocasião
do lembrar (BERGSON, 1999). No caso de mulheres vítimas de violência doméstica, um
novo relacionamento é sempre um desafio, na medida em que a percepção dessa nova
relação é de algum modo revestida pela recordação da relação traumática anterior.
No entanto, a memória não remanesce como um contínuo no grupo social. O fio da
memória é cheio de nós, espaços, lacunas, intervalos. Um fato pretérito ao qual se reporta
não se relaciona de per si, imediata e ininterruptamente, com o que lhe seja anterior e
subseqüente na linha do tempo. Há entre eles a hesitação, a pausa, a espera. Tal
descontinuidade somente se resolve pela capacidade que os grupos possuem de narrarem
a si próprios, preenchendo, assim, o vazio dos tempos inativos, misturando, ao tempo
efetivamente vivido, um tempo posteriormente pensado que consiga dar um sentido pleno
ao ato de recordar (BACHELARD, 1994). Não sem motivo, o testemunho desenvolve um
papel essencial na possibilidade de superação do trauma, na medida em que estabelece a
noção de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua recordação
de si (POLLAK, 1992) ou a possibilidade de ressignificação dessa mesma recordação.
2. MEMÓRIAS DE SOMBRAS
1
A análise do curta observará a metodologia proposta por Elinaldo Teixeira (2005) e considerará materiais de
composição, modos de composição, narratividade documental e modulações estilísticas.
mão das mesmas mulheres, realizadas especificamente para o documentário, tanto na casa
de cada uma delas (mostrando-as nas suas atividades corriqueiras), quanto, na rua,
mostrando-as caminhando o que, além de sustentar a temporalidade do filme, sugeria a
potência do ato de mudança, de enfrentamento do futuro por que passam tais mulheres.
Importante ressaltar o cuidado na captação de tais imagens que, atendendo a um acerto
prévio feito com as depoentes, não lhes identificava o rosto em nenhuma cena.
A maneira como tais materiais foram conjugados por meio da montagem indicam os
chamados modos de composição. Obviamente que, na montagem, se realiza uma dupla
seletividade da narrativa, na medida em que o esquecimento operado no testemunho das
mulheres acaba sofrendo um reforço das escolhas feitas pelo diretor e pelo editor do curta.
Afinal, em seu resultado final, o vídeo possui somente treze minutos, dos quais apenas oito
possuem áudio. Na medida em que não houve registro imagético do momento em que as
mulheres gravaram seus depoimentos, a colagem de materiais visuais e sonoros observou
uma intencional não-sincronicidade.
Por vezes, fatos inteiros são narrados em off. Em outras situações, ouvem-se apenas
frases isoladas – que não necessariamente dialogam com as imagens, já que estas não
espelham cenas de violências, mas sim, o cotidiano invariável verificado nos gestos comuns
de fazer café, pentear o cabelo, bordar um pano. Em um dos debates promovidos pelo filme,
colheu-se uma importante observação: o registro de cenas cotidianas na própria residência
das mulheres sugeriu a alguns espectadores quão próximo deles é o cenário das agressões.
3. DE MEMÓRIAS EM MEMÓRIAS
A oficina teve uma audiência eclética, composta por mulheres, uma jornalista, um
capoerista que ministra aulas na associação, crianças, adolescentes e acadêmicos de
Direito, Serviço Social e História. Após a exibição, dois professores motivaram o debate.
Aberta a palavra para a comunidade, uma senhora de idade se levantou, assumiu o
microfone e narrou uma série de experiências de violência que havia presenciado em casa,
principalmente pelo fato de o pai ser alcoólatra. Apontou que as brigas eram muito comuns
e, às vezes, por motivos simples – como quando o pai discutiu com a mãe pelo fato de ela
servir o almoço para o filho mais novo antes de servi-lo.
Alertou, ainda, que diante das agressões, nem sempre os filhos conseguem ficar
impassíveis. Certa vez, um de seus irmãos ao ver pai e mãe brigando, temendo que aquele
a matasse, pegou uma arma branca e deferiu um golpe contra o próprio pai. Tendo a faca
se soltado do cabo, seu pai só se feriu. Todavia, após o fato, o irmão fugiu de casa, nunca
mais conversou com o pai e, ainda hoje, afirma pretender matá-lo.
Dentro desta visão de violência familiar vivi muito isso com minha família, não vou
falar detalhadamente mas a única coisa que eu fiz foi isso... ajudei minha mãe
muitas vezes a erguer a cabeça e enfrentar de frente a situação (...) eu não vou
esquecer o passado... vou lembrar e fazer diferente, é isso que eu tento.
As falas, no final, não foram muitas. Houve algumas outras intervenções de caráter
mais genérico, alertando sobre a violência que acontece nos espaços familiares e que
permanece oculta. A presidente da Associação, posteriormente, comentou com os
pesquisadores:
Para além disso, é fundamental que as próprias vítimas percebam a sua posição de
não-álibi no mundo. Não há como anular sua própria história, renunciando a um ato
consciente e eticamente responsável. Somente tais mulheres, cada uma delas em particular,
unicidade no tempo e espaço históricos, podem dar a exata percepção do que é tal
agressão. Trazer à tona tantas violências físicas e simbólicas é, ao mesmo tempo,
desnaturalizá-las. Para isso, é preciso perceber-se, também, como uma pessoa capaz de se
emancipar. Ou, no dizer de uma das depoentes do curta “Memórias de sombras”: “Se a
mulher soubesse a força que ela tem. O homem não é a força da mulher... a mulher é a
força dela própria”.
5. REFERÊNCIAS
BAKHTIN, MIKHAIL. Para uma filosofia do ato. Tradução para uso didático de Carlos
Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. 1993. Mimeo.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral
e as memórias. Projeto História. São Paulo, n. 15, abr/1997 (Ética e História Oral).