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V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade

17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA)

Grupo de Trabalho 7: Violência, Políticas de Segurança Pública e Direitos Humanos

Narrativa e superação do trauma:


a memória de mulheres vítimas de violência doméstica

Douglas Antônio Rocha Pinheiro (UFG/UnB)


Isivone Pereira Chaves (Uni-Anhanguera)
João Denes Ferraz (UFG)

Resumo: A partir de duas experiências, a realização de um curta-documentário chamado


"Memórias de sombras" e as entrevistas concedidas à pesquisa sobre violência contra a
mulher na Cidade de Goiás, discute-se a validade do testemunho como modalidade crucial
de aproximação compreensiva dos traumas, bem como sua superação. A exposição pública
do passado de violência, (re)construído pelo testemunho a partir da percepção e das
necessidades do presente, abre a possibilidade de generalização de um novo significado
sobre esse mesmo passado, possivelmente mais abrangente e inclusivo. Tal generalização
se aperfeiçoa quando tal exposição não é um ato isolado, mas corresponde a uma
multiplicidade de experiências específicas de um grupo, cuja repercussão na memória
coletiva seja inevitável, recriando nas demais pessoas um outro sentido do passado e a
necessidade de uma cultura de direitos humanos.
1. ENTRE TRAUMAS E SILÊNCIOS

Simon Srebnik, sobrevivente do Holocausto, caminha por entre veredas de um


bosque. De repente, ele se detém: “Sim, é este o lugar”. À sua frente, o que se vê são
árvores e, sob verdes prados, um discreto resquício dos fundamentos de uma construção. O
silêncio bucólico é interrompido apenas por cantos de pássaros. Simon, porém, reconhece
tanto os vestígios do campo de extermínio quanto a atmosfera silenciosa que caracterizava
os assassinatos: “Quando se queimavam duas mil pessoas por dia, ninguém gritava. Cada
qual fazia seu trabalho. Era silencioso, calmo como agora”. Aos olhos do sobrevivente, o
vazio daquele lugar estava impregnado da vivência do horror (MATE, 2003, p. 8).

Tal seqüência com que se inicia o documentário Shoah de Claude Lanzmann mostra
quanto de experiência silenciada pode existir na apreensão da realidade. Entre o viver e o
lembrar, no limite do enfrentamento de situações traumáticas, muitas vezes compreendeu-
se o silêncio como aliado da vida. Todavia, no caso das vítimas do Holocausto, tal situação
se inverteu por conta do chamado dilema da segunda geração, um duplo movimento que
marcou a convergência de esforços tanto das velhas testemunhas oculares da catástrofe
que, na iminência da morte, queriam evitar o desaparecimento total de suas lembranças
(POLLAK, 1989, p. 4), quanto de seus descendentes, jovens intelectuais, que buscavam em
suas origens um mote de pesquisa (SPIEGELMAN, 2008). Uma das notadas contribuições
de tal virada para a contemporaneidade foi a de reafirmar a validade do testemunho como
modalidade crucial de aproximação compreensiva dos traumas que marcaram nossa história
recente (FELMAN, 2000).

No caso de mulheres vítimas de violência doméstica – e, pelas pesquisas para a


realização do documentário “Memórias de sombras”, notadamente as que possuem filhas –
testemunhar o trauma é lembrar o que se queria esquecer, registrar um sofrimento que se
espera irrepetível nas mulheres por elas geradas. Não que o testemunho resolva por
completo o problema da incomunicabilidade da catástrofe. Afinal, da mesma forma que não
é possível se lembrar de tudo, igualmente é impossível narrar tudo. A narrativa, como
mediadora da memória, é seletiva (RICŒUR, 2007, p. 455) e, via de regra, não inclui
apenas a experiência do narrador, mas também, e em grande parte, a experiência alheia a
que ele teve acesso através de prévia narrativa (BENJAMIN, 1994, p. 201, 205 e 221).

Todavia, essa exposição pública do passado, (re)construído pelo testemunho a partir


da percepção e das necessidades do presente, abre a possibilidade de generalização de um
novo significado sobre esse mesmo passado. Tal generalização se aperfeiçoa quando tal
exposição não é um ato isolado, mas corresponde a uma multiplicidade de experiências
pessoais e específicas de um grupo, cuja repercussão na memória coletiva seja inevitável,
recriando nas demais pessoas um outro sentido do passado (THOMSON, 1997, p. 56-57).

Pode ocorrer, porém, desse novo sentido não interessar à memória da maioria.
Numa realidade inclusiva e plural, tanto as narrativas insurgentes quanto a tradicional
realizam, então, um trabalho argumentativo de enquadramento da memória que,
alimentando-se do material fornecido pela história, interpretando-o e combinando-o a
diversas referências associadas, tem como finalidade a criação do discurso mais coerente
sobre o passado (POLLAK, 1989, p. 7-8). Todavia, em realidade de desigualdades
simbólicas, a memória insurgente acaba sendo negada por meio de intimidação e medo,
levando a um “desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si
mesmos” (RICŒUR, 2007, p. 455) e à manipulação da memória e do esquecimento. Nesse
caso, o trabalho de enquadramento da memória realizado pelos grupos de poder (de
gênero, no presente caso) atende apenas ao imperativo de justificação da sua narrativa,
para que a mesma não seja percebida como arbitrária, injusta e violenta, mantendo, assim,
seu poder simbólico (BOURDIEU, 1998).

Postas na clandestinidade, as memórias negadas coercitivamente pela sociedade


majoritária tornam-se inaudíveis na esfera pública – no entanto, não se extinguem.
Transmitem-se cuidadosamente nas redes capilares de comunicação, esperando a
redistribuição das cartas sociais para que possam regressar ao espaço público e passar do
não-dito à contestação e à reivindicação. Nesse caso, o longo silêncio das memórias
coletivas subterrâneas dos grupos dominados não indica, pois, um esquecimento, mas sim,
a resistência que os mesmos conseguem opor aos excessos de discursos de dominação
(POLLAK, 1989).

De qualquer modo, por mais que a memória opere uma contração do real, não é
possível a retenção de toda a experiência do presente. Assim, cada um dos sentidos
apreende tão somente aquilo que lhe parece ser útil, apreensões posteriormente conjugadas
na elaboração da representação correspondente. Todavia, a memória não está apenas
vinculada àquilo que se percebe, mas, também, vincula a própria percepção, na medida em
que fornece o critério de utilidade baseado no conhecimento acumulado pelas experiências
pretéritas. A experiência adquirida, então, enriquece a experiência presente conferindo-lhe
certa espessura de duração, tornando o momento da percepção da realidade uma ocasião
do lembrar (BERGSON, 1999). No caso de mulheres vítimas de violência doméstica, um
novo relacionamento é sempre um desafio, na medida em que a percepção dessa nova
relação é de algum modo revestida pela recordação da relação traumática anterior.
No entanto, a memória não remanesce como um contínuo no grupo social. O fio da
memória é cheio de nós, espaços, lacunas, intervalos. Um fato pretérito ao qual se reporta
não se relaciona de per si, imediata e ininterruptamente, com o que lhe seja anterior e
subseqüente na linha do tempo. Há entre eles a hesitação, a pausa, a espera. Tal
descontinuidade somente se resolve pela capacidade que os grupos possuem de narrarem
a si próprios, preenchendo, assim, o vazio dos tempos inativos, misturando, ao tempo
efetivamente vivido, um tempo posteriormente pensado que consiga dar um sentido pleno
ao ato de recordar (BACHELARD, 1994). Não sem motivo, o testemunho desenvolve um
papel essencial na possibilidade de superação do trauma, na medida em que estabelece a
noção de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua recordação
de si (POLLAK, 1992) ou a possibilidade de ressignificação dessa mesma recordação.

2. MEMÓRIAS DE SOMBRAS

O documentário em curta-metragem “Memórias de sombras” (13’, HD, 2008), dirigido


e roteirizado por Douglas Pinheiro, teve sua estréia no Festival Ibero-americano de Curtas
Metragens de Sergipe (Curta-SE 8), em Aracaju/SE, e após ser exibido em outros eventos
audiovisuais – tais como: 13ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico (Rio de Janeiro/RJ),
6º FestCine Amazônia (Porto Velho/RO), 4º FestCine Goiânia (Goiânia/GO), 3ª Mostra Curta
Audiovisual (Campinas/SP) – ganhou prêmio de melhor documentário no 16º Festival de
Vídeo de Teresina/PI e no 4º CurtaCom/Festival de Curtas da UFRN.

A proposta do curta surgiu de um projeto de pesquisa já desenvolvido pela produtora


executiva Márcia Santana no qual se buscava rastrear histórias de vida de mulheres vítimas
de violência doméstica. Todavia, a partir do momento em que o autor deste artigo
incorporou-se ao projeto com a intenção de fazer um registro audiovisual de tais narrativas,
tal abordagem ganhou uma certa dificuldade: como narrar, para outro homem, uma memória
de violência provocada pelo marido, pai ou companheiro? Assim, mesmo em face da
confiança estabelecida no decorrer das gravações, as depoentes sempre foram
acompanhadas por uma psicóloga.

O material de composição1 do curta foi constituído, inicialmente, por depoimentos


gravados em estúdio. Selecionadas três mulheres, dentre as atendidas pela Assessoria da
Mulher da Prefeitura de Goiânia/GO, cada uma delas foi convidada a narrar sua própria
vida, ressaltando aquilo que entendesse ser importante de ser testemunhado. Após tais
registros, que somaram cinco horas de gravação, foram feitas imagens/tomadas em primeira

1
A análise do curta observará a metodologia proposta por Elinaldo Teixeira (2005) e considerará materiais de
composição, modos de composição, narratividade documental e modulações estilísticas.
mão das mesmas mulheres, realizadas especificamente para o documentário, tanto na casa
de cada uma delas (mostrando-as nas suas atividades corriqueiras), quanto, na rua,
mostrando-as caminhando o que, além de sustentar a temporalidade do filme, sugeria a
potência do ato de mudança, de enfrentamento do futuro por que passam tais mulheres.
Importante ressaltar o cuidado na captação de tais imagens que, atendendo a um acerto
prévio feito com as depoentes, não lhes identificava o rosto em nenhuma cena.

A maneira como tais materiais foram conjugados por meio da montagem indicam os
chamados modos de composição. Obviamente que, na montagem, se realiza uma dupla
seletividade da narrativa, na medida em que o esquecimento operado no testemunho das
mulheres acaba sofrendo um reforço das escolhas feitas pelo diretor e pelo editor do curta.
Afinal, em seu resultado final, o vídeo possui somente treze minutos, dos quais apenas oito
possuem áudio. Na medida em que não houve registro imagético do momento em que as
mulheres gravaram seus depoimentos, a colagem de materiais visuais e sonoros observou
uma intencional não-sincronicidade.

Por vezes, fatos inteiros são narrados em off. Em outras situações, ouvem-se apenas
frases isoladas – que não necessariamente dialogam com as imagens, já que estas não
espelham cenas de violências, mas sim, o cotidiano invariável verificado nos gestos comuns
de fazer café, pentear o cabelo, bordar um pano. Em um dos debates promovidos pelo filme,
colheu-se uma importante observação: o registro de cenas cotidianas na própria residência
das mulheres sugeriu a alguns espectadores quão próximo deles é o cenário das agressões.

As memórias de tais mulheres foram montadas de modo altercado no vídeo, de


modo que as vozes se revezam. Permite-se, assim, que cada depoimento ilumine o que se
segue, encadeando-os todos em um único fio condutor maior – o que remete a uma
experiência de violência que, apesar das nuances individuais, é coletivamente
compartilhada.

Quanto à narratividade, o documentário é realizado com câmera em tripé, com pouca


movimentação. O enquadramentos estilizam uma certa beleza de ambientes comuns e que
servem de contraponto para os testemunhos rudes que se ouvem no áudio. Alguns planos
admitem um ar claramente contemplativo, como o da árvore seca, sem frutos, cujos galhos
secos se agitam pela brisa suave ou o da cena final em que as três mulheres caminham por
um local chamado “Parque Liberdade”. As imagens da guia de uma rua ou da faixa amarela
de uma autoestrada, feitas de um carro em movimento, são as únicas captadas com câmera
na mão e intercalam as três narrativas, remetendo ao caminhar que não segue uma
temporalidade ordenada e tranquila.
Por fim, o documentário estilisticamente se constrói dentro da perspectiva dialógica
bakhtiniana (BAKHTIN, 1993), ou seja, a partir da convicção de não-álibi no mundo. Afinal,
se ninguém pode ocupar o mesmo lugar no tempo e no espaço, só cabe a cada sujeito dar
uma resposta responsável ao contexto histórico e único. Além disso, o autor-criador não tem
clareza prévia das pessoas que tem à sua frente (sequer tem clareza prévia de si mesmo
como autor-criador). Assim, sendo eu-para-o-outro e deixando que o outro-seja-para-mim é
que se constrói gradativamente a relação documentado/documentarista. As mulheres não
apenas admitem um registro de suas histórias, mas sugerem o próprio registro numa
resposta à proposta audiovisual do diretor que, por sua vez, só à medida em que capta as
imagens, desvela o universo das suas personagens reais – como se vários véus fossem
retirados um a um, à medida em que se aperfeiçoa a interlocução criativa mediada pela
câmera.

A partir dessa breve análise do curta, importante ressaltar o efeito do testemunho


assumido e internalizado. A primeira exibição do curta, mesmo sem uma edição definitiva,
ocorreu no dia 25 de novembro de 2007, Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher,
em uma sessão restrita para mulheres, tanto as que militavam em organizações
governamentais e não-governamentais, quanto para as próprias depoentes do documentário
– que, aliás, chegaram para a exibição sem que fossem publicamente apontadas como tais
pela organização do evento.

Após a exibição, seguiram-se algumas falas da platéia que ressaltavam o sofrimento


e a capacidade de superação daquelas mulheres. Nesse momento, ocorreu o
empoderamento da própria memória, a consciência do valor do próprio testemunho: as
mulheres, que até então não tinham sido identificadas, espontaneamente se levantaram,
uma a uma, e começaram a se apresentar como sendo as depoentes retratadas no filme.
Mais que isso, retomaram algumas das falas do curta, pronunciando-as novamente com um
tom volitivo-emotivo bem mais convicto. Aceitaram dar entrevistas para a emissora de rádio
que se fazia presente. Uma semana depois, a psicóloga que as acompanhara nas
gravações do documentário voltou a se reunir com elas. A conclusão de todo o processo foi
resumida na seguinte constatação: lembrar o passado para dizê-lo é assumir a dor como
processo de superação da própria dor e alertar para que outras mulheres não tenham que
enfrentá-la.

3. DE MEMÓRIAS EM MEMÓRIAS

Diante do resultado da exibição do filme para as próprias mulheres depoentes, surgiu


o questionamento sobre a possibilidade de que sua exibição em outros espaços de
opressão pudesse estimular nova reflexão e prática emancipatórias. Desse modo, dentro de
um projeto da Rede Goiana de Pesquisa em Direitos Humanos e Violência/Estudos sobre
Violência Doméstica e Familiar financiado pela FAPEG (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Goiás) e entitulado “Omissão social e violação dos direitos humanos nas
relações domésticas e familiares na Cidade de Goiás: 1997/2007 e 2007/2009” optou-se por
sua exibição.

Uma das pesquisadoras da Rede contactou a Associação de Moradores do Setor


Rio Vermelho, que se situa em um bairro periférico e apresenta um histórico de luta e
organização. Com o local definido, passou-se a convidar moradores, bem como entidades
defensoras dos Direitos Humanos. A proposta da oficina era, tendo como motivação o
documentário “Memórias de sombras”, despertar a comunidade para o debate, a partir de
uma experiência de libertação e de empatia com as depoentes do curta, promovendo,
assim, um mover do eu-para-outro como forma de desvelamento do eu-pra-mim.

A oficina teve uma audiência eclética, composta por mulheres, uma jornalista, um
capoerista que ministra aulas na associação, crianças, adolescentes e acadêmicos de
Direito, Serviço Social e História. Após a exibição, dois professores motivaram o debate.
Aberta a palavra para a comunidade, uma senhora de idade se levantou, assumiu o
microfone e narrou uma série de experiências de violência que havia presenciado em casa,
principalmente pelo fato de o pai ser alcoólatra. Apontou que as brigas eram muito comuns
e, às vezes, por motivos simples – como quando o pai discutiu com a mãe pelo fato de ela
servir o almoço para o filho mais novo antes de servi-lo.

Alertou, ainda, que diante das agressões, nem sempre os filhos conseguem ficar
impassíveis. Certa vez, um de seus irmãos ao ver pai e mãe brigando, temendo que aquele
a matasse, pegou uma arma branca e deferiu um golpe contra o próprio pai. Tendo a faca
se soltado do cabo, seu pai só se feriu. Todavia, após o fato, o irmão fugiu de casa, nunca
mais conversou com o pai e, ainda hoje, afirma pretender matá-lo.

Na sequência do debate, o capoeirista, um dos poucos homens presentes, também


testemunhou situação de violência doméstica:

Dentro desta visão de violência familiar vivi muito isso com minha família, não vou
falar detalhadamente mas a única coisa que eu fiz foi isso... ajudei minha mãe
muitas vezes a erguer a cabeça e enfrentar de frente a situação (...) eu não vou
esquecer o passado... vou lembrar e fazer diferente, é isso que eu tento.

As falas, no final, não foram muitas. Houve algumas outras intervenções de caráter
mais genérico, alertando sobre a violência que acontece nos espaços familiares e que
permanece oculta. A presidente da Associação, posteriormente, comentou com os
pesquisadores:

A comunidade gostou muito (...), muitas me perguntaram na rua se não vai


acontecer de novo (...), algumas falaram que tinham sofrido violência mas não
tiveram coragem de falar na oficina (...) tem que pensar em outros momentos, né?
Porque o local lá está à disposição e, com certeza, se acontecer outros momentos
assim a comunidade vai lá novamente para assistir.

Tal afirmação nos leva a alguns questionamentos: o testemunho público sempre


pode conduzir a uma ruptura individual com a situação de opressão? O silêncio pode ser,
também nas redes capilares de poder familiar, uma forma de lapidar a emancipação
enquanto ela não se oportuniza (principalmente economicamente)? O ato de assistir o filme
gera apenas a empatia de se identificar no outro, levando à percepção do eu-para-o-outro
que anula uma outra percepção do eu-para-mim? Ou permite que, a partir do cuidado para
com o outro, o indivíduo se descubra no mesmo processo, capaz de efetivar a mesma
ruptura?

A Cidade de Goiás ainda é fortemente marcada por um imaginário tradicional


patriarcal repressor. Construir um outro imaginário, em que as mulheres se sintam livres
para verbalizarem suas vidas, assumindo-as a direção, e narrar o trauma como forma de
superá-lo é um processo que a exibição do curta “Memórias de sombras” apenas deflagrou,
para que outras ações do projeto o aprofundem.

4. DE TUDO FICA UM POUCO

Thomas Bernhard alerta para o risco de o registro se converter em meio de


apagamento da memória, ao invés de sua perene recordação (WEINRICH, 2001, p. 273-
279). O testemunho do trauma não pode ser um fim nele mesmo. Afinal, além do
reconhecimento das violações aos direitos humanos, três outros elementos integram uma
superação possível do passado: a reparação material às vítimas, a responsabilidade, ou
seja, a identificação dos culpados e a decisão pública sobre o tratamento a que os mesmos
fazem jus (DAVIDOVITCH, 2008, p. 50). Não há perdão se não houver a possibilidade da
efetiva punição.

Todavia, sem perder a dimensão da justiça, o ato de se empossar na narrativa


pessoal, de enfrentar o trauma daquilo que é incomunicável, ainda que dizível, é instrumento
essencial para reconstruir o passado, ressignificando-o a partir das demandas postas pelo
presente, demandas que, por conseqüência, se prezam à reorientação de um novo futuro. A
escuta duradoura por parte dos familiares, da comunidade, dos pesquisadores é um
primeiro passo nesse caminho de superação.

Para além disso, é fundamental que as próprias vítimas percebam a sua posição de
não-álibi no mundo. Não há como anular sua própria história, renunciando a um ato
consciente e eticamente responsável. Somente tais mulheres, cada uma delas em particular,
unicidade no tempo e espaço históricos, podem dar a exata percepção do que é tal
agressão. Trazer à tona tantas violências físicas e simbólicas é, ao mesmo tempo,
desnaturalizá-las. Para isso, é preciso perceber-se, também, como uma pessoa capaz de se
emancipar. Ou, no dizer de uma das depoentes do curta “Memórias de sombras”: “Se a
mulher soubesse a força que ela tem. O homem não é a força da mulher... a mulher é a
força dela própria”.

5. REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1994.

BAKHTIN, MIKHAIL. Para uma filosofia do ato. Tradução para uso didático de Carlos
Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. 1993. Mimeo.

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
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BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

DAVIDOVITCH, Nadav; ALBERSTEIN, Michal. Trauma y memoria: entre la experiencia


individual y coletiva. In: DOMÉNECH, Rosa Mª Medina et al. (Org.). Memoria y
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FELMAN, Shoshana. Educação e crise ou as vicisitudes do ensinar. In: NETROVSKI, Arthur;


SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta,
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MATE, Reyes. La causa de las víctimas. Por un planteamiento anamnético de la justicia (o


sobre la justicia de las víctimas). In: 2ª Conferência do III Seminário de Filosofía da
Fundação Juan March, 8 de abril de 2003.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista de Estudos Históricos. Rio


de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.
_______. Memória e identidade social. Revista de Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.
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RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,


2007.
SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.

TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. A propósito da análise de narrativas documentais. In:


CATANI, Afrânio Mendes; GARCIA, Wilton e FABRIS, Mariarosaria (orgs.). Estudos Socine
de cinema: ano VI. São Paulo: Nojosa Edições, 2005.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral
e as memórias. Projeto História. São Paulo, n. 15, abr/1997 (Ética e História Oral).

WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2001.

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