NEFI
Coleção
Teses e Dissertações
Volume X
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitora: Mario Sergio Alves Carneiro
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luís Antônio Campinho Pereira da Mota
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenadora: Ana Chrystina Venancio Mignot
Vice-Coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
"A comissão para avaliação cega dos trabalhos da Teses e Dissertações em 2020 foi integrada por Maximiliano
Lionel Durán e Maria Reilta Dantas Cirino.”
Da d o s I n t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o ( C I P )
( C â ma r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , S P , B r a s i l )
Carolina Fonseca de Oliveira
ISBN: 978-85-93057-21-2
1. Escola. 2. Filosofia. 3. Caminhar. 4. Pesquisa. I. Título. II Série.
CDD 370.1
Coleção
Teses e Dissertações
Rio de Janeiro
NEFI, 2020
Coleção
Teses e Dissertações
Sarah Nery
#Ocupa: Uma experiência educativa
(2018. Volume VIII)
Simone Berle
Infância como caminho de pesquisa: o Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias
(NEFI/PROPEd/UERJ) e a educação filosófica de professoras e professores
(2018. Volume IX)
9
principalmente, por terem me ajudado em um momento muito difícil durante
o mestrado que pensei em interromper meu caminhar; não apenas na pesquisa,
mas também na vida. Obrigada por tudo!
Também não posso deixar de agradecer à Julinha (Julia Krüger) por ter
me ajudado nesta fase final da escrita me apresentando o livro “Caminhar, uma
revolução” e por caminhar comigo este caminho da amizade.
Agradeço, também, à Camilinha, à Pri, à Estherzinha, à Mayara
(bolsistas de graduação do NEFI dos cursos de pedagogia e filosofia) e à Ju
(que está para defender sua monografia do curso de pedagogia) por
caminharem esse caminho da educação e da vida comigo.
Às minhas amigas e irmãs Hada Nivyan e Andressa por tuuudo. Pela
amizade, companheirismo, força e cuidado. Também aos seus companheiros
Rafael e Pablo. Amo todos vocês!
À minha amiga Ju (Jusilene) por sempre me apoiar e cuidar de mim e a
todos e todas os/as amigos que me ajudaram de alguma maneira e que compõe
marcas na minha caminhada.
À minha amiga Carla Feitosa por ter me presenteado com a revisão
dessa escrita com tanto cuidado e carinho. Obrigada pela profissional e amiga
que você é.
Ao Juliano, amigo caiçara de Paraty que generosamente participou
dessa escrita através das nossas conversas.
À Simone pela gentileza e generosidade, pelo apoio e pelas trocas de e-
mails que nos ajudaram a compor nossas escritas. “O NEFI É NÓIX!”
Ao meu orientador, Walter Omar Kohan, pelo “caminhar junto” desde
2012, quando cursava o terceiro período do curso de graduação em Pedagogia.
Obrigada por tudo! Obrigada por sempre nos colocar a caminho e nos convidar
a uma atenção ao mundo! Obrigada por resistir e por nos ensinar a resistir, a
não deixar de caminhar, e a lutar pela educação pública, pela escola pública.
Às professoras, Maria Reilta D. Cirino e Ana Chrystina V. Mignot, pela
disponibilidade e generosidade em compor esta banca e por criarem maneiras
de resistir na Educação, principalmente, nas Universidades Estaduais, como é
o caso da UERJ e da UERN que sofrem com o descaso do governo. Muito
obrigada!
A todos os professores da UERJ, em especial, os da Faculdade de
Educação e do ProPEd por encontrarem maneiras de resistir e de não
deixarem de caminhar.
10
À UERJ por tudo que ela é e representa não apenas na minha formação
acadêmica, mas enquanto um coletivo que resiste como um espaço para o
ensino público.
Ao ProPed pela oportunidade e por toda a formação que me
proporcionou.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq pela concessão de bolsa que me permitiu permanecer na cidade do Rio
de Janeiro para realizar este trabalho.
À Vilma Guimarães, uma educadora popular, incrível, que a vida me
presenteou e colocou em meu caminho. Obrigada pela oportunidade de
caminhar por este Brasil com companheiros e companheiras dessa equipe
maravilhosa de Educação da FRM. Toda a minha gratidão a essa equipe!
Agradeço a todos os educadores que caminharam comigo de 2015 a
2018 por terras paraenses, mineiras, pernambucanas e cariocas... em especial,
a Leleu (Edileuza Moura), Berna (Bernadete Rufino), Marcia Capra, Ju
(Jussara), Ronaldo Andrade, Lu (Lucia Valois), Ingrid Bertoldo, Romero Silva,
Tércia Farias, Rosa Farias, Joana Ribeiro, Anna Zidanes que marcaram,
profundamente, minha vida nessas andanças de formação de professores e
acompanhamentos pedagógicos nas escolas públicas do nosso Brasil.
À NEFI Edições e à banca pelo parecer tão gratificante. À Marcelly por
todo carinho, cuidado e sensibilidade juntamente com Simone e Walter na
organização dessa coleção tão especial.
A todos os caminhantes que compõem essa escrita e que nos fazem
pensar outras maneiras de caminhar na educação.
11
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
12
SUMÁRIO
PRÓLOGO ............................................................................................................ 15
REFERÊNCIAS ....................................................................................................123
ANEXOS .............................................................................................................125
ANEXO A - CORRESPONDÊNCIA COM SIMONE BERLE......................................... 127
ANEXO B - CONVERSA COM JULIANO ARAUJO ..................................................... 133
13
PRÓLOGO
“A linguagem que desobedece e é desobedecida:
colocar-nos fora de nós mesmos, nessa existência desoladora,
nessa brecha – sonora e silenciosa – que abre a possibilidade
para a produção de um sentido.” (Skiliar, 2014, p. 17).
15
Maria Reilta Dantas Cirino
16
Prólogo
17
Maria Reilta Dantas Cirino
18
Prólogo
apodera de nós, que nos derruba e nos transforma. [...] ‘fazer’ significa aqui:
sofrer, padecer, agarrar o que nos alcança receptivamente, aceitar, na medida
em que nos submetemos a isso.” (Larrosa, 2014, p. 99. Grifos do autor). Assim,
ao chegar ao final da leitura do texto de Carol, me reporto ao pensamento de
Manoel de Barros quando em Retratos do artista quando coisa, ao dialogar com
seu amigo Rosa, sobre o sentido das palavras: “O que resta de grandeza para
nós são os desconheceres [...].
A autora desse livro se submeteu à força a à autoridade da experiência
do caminho ao caminhar! Convida-nos a fazer o mesmo no caminhar da leitura
de sua escrita. Deixemo-nos capturar por esse convite!!
Referências
BARROS, Manoel. Livro Sobre Nada. Editora Record: Rio De Janeiro,1997.
GROS, Frèderic. Andar. Una filosofia. Taurus, 2010.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução de Cristina Antunes,
João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
OLIVEIRA, Carolina Fonseca de. Caminhar como modo de vida: da pesquisa à skholé. Rio de
Janeiro: NEFI/UERJ, 2020.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: educar. Tradução de Giane Lessa. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014.
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PRIMEIROS PASSOS
1
No roteiro para apresentação das teses e dissertações da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
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Carolina Fonseca de Oliveira
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Caminhar como modo de vida
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Caminhar como modo de vida
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CAMINHAR E FAZER PESQUISA
1 CAMINHAR E FAZER PESQUISA
A epígrafe que abre este capítulo tem por objetivo não apenas nos
introduzir no tema, mas inscrever, traçar as linhas que andarão por esta
escrita.
O diálogo entre Alice, o Coelho e o Chapeleiro Maluco foi transcrito de
um vídeo do YouTube (conforme descrito na nota de rodapé 2), transmitido
pela professora Vanise à sua turma do segundo ano do ensino fundamental
(turma 201), numa experiência de filosofia na Escola Municipal Joaquim da
Silva Peçanha – Duque de Caxias/RJ no dia 07/04/2017.
O interessante é que, antes de participar dessa experiência na escola, eu
estava me sentindo travada nesse processo de escrita; as ideias não estavam
fluindo, mesmo com as leituras e estudos. Costumamos ouvir dos professores
2
Diálogo transcrito a partir do curta Alice no país das maravilhas que traz uma releitura desse
famoso clássico de Lewis Carroll, com Direção de Robson Lima e Everton Rodrigues e Roteiro
adaptado de Marcos Hirsh. É importante destacar que o diálogo do vídeo não consta no livro
dessa maneira, pois, trata-se de uma releitura do clássico. Publicado no YouTube em 4 de agosto
de 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Pphww8hXouw>. Acessado
em: 7 de abr de 2017.
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Caminhar como modo de vida
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3
Carroll, Lewis, op. cit., nota 2.
4
“Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais; caminhante, não há caminho, se faz
caminho ao andar”. Antonio Machado. Disponível em:
<http://blogs.utopia.org.br/poesialatina/cantares-antonio-machado/>. Acessado em: 08 de
abr de 2017.
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Caminhar como modo de vida
5
Na p. 118, no capítulo “Caminhos Outros” descreveremos mais detalhadamente essa
experiência.
6
Durante o segundo semestre de 2012 foi estudado no NEFI alguns artigos de Jan Masschelein
e Maarten Simons sobre a temática do caminhar, sendo um deles Ponhamo-nos a caminho, um
de nossos textos base para discutir o primeiro capítulo. As leituras foram feitas a fim de nos
preparar para um curso de extensão universitária, que aconteceu na UERJ, unindo participantes
do NEFI/UERJ, alguns professores e alunos da UFF – Universidade Federal Fluminense, três
professores europeus, sendo um deles o próprio Jan Masschelein, acompanhado de 30 alunos
belgas. O curso consistia em andarmos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro em duplas e,
através desse exercício, pensarmos um projeto de uma escola pública.
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Todos os nomes foram abreviados para preservar a identidade das pessoas.
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Caminhar como modo de vida
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Caminhar como modo de vida
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Professora de alfabetização na Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha – Caxias/RJ.
Doutora pelo ProPEd/UERJ e coordenadora do projeto “Em Caxias a Filosofia En-Caixa?”. As
citações que têm as referências “GOMES” referem-se à tese de doutorado da professora Vanise.
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O ESCRITOR COMO CAMINHANTE
2 O ESCRITOR COMO CAMINHANTE
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Merlin Coverley diz que “cada caminhar pode ser expresso como uma história narrada pelo
caminhante”. (2014, p. 16). São algumas histórias e vidas dos que caminharam que o autor tenta
examinar em seu livro. Sem querer ilustrar uma história do escritor como caminhante, pois o
próprio autor indica leituras a respeito do tema em sua bibliografia, Coverley dedica uma
atenção particular a alguns escritores da tradição literária ocidental para pensar a importância,
os impactos que essa atividade teve na vida desses escritores. Nesse sentido, para os que se
interessam em uma abordagem mais profunda sobre filósofos e literatos que caminharam,
sugiro a leitura dos livros A arte de caminhar: o escritor como caminhante de Merlin Coverley, 2014
e A História do Caminhar de Rebecca Solnit, 2016.
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10
O Abecedário de Gilles Deleuze é uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas
Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da
Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações]. A série de entrevistas foi feita
por Claire Parnet, filmada nos anos 1988-1989, mas que só acabou sendo apresentada entre
novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte, após o assentimento
de Deleuze.
11
O Abecedário de Gilles Deleuze, V de Viagem.
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ruptura barata. Deleuze diz que as pessoas que viajam muito têm orgulho disso
e dizem que vão em busca de um pai. Ao se utilizar das palavras de Fitzgerald,
Deleuze diz que “não basta uma viagem para haver uma ruptura”. Se o que se
deseja é uma ruptura, então, que se faça outra coisa que não seja viajar. A
segunda razão refere-se ao fato daqueles que viajam por prazer. Para Deleuze
não é nisso em que consiste uma viagem. E os que viajam por prazer, para ele,
não passam de idiotas. E a terceira razão refere-se a sua fascinação pelos
nômades, os quais viajam pouco. “Nada é mais imóvel e viaja menos do que um
nômade. Eles são nômades porque não querem partir”. (Deleuze em O
Abecedário de Gilles Deleuze).
Parece evidente que as críticas que Deleuze faz às viagens e ao
“movimentar-se” têm a ver com determinadas concepções que foram
construídas sobre as viagens e rupturas. Percebemos que, quando Deleuze se
refere às viagens, está se referindo à mesma concepção de viagem que Claire
Parnet se referiu: as viagens convencionais, turísticas ou existencialistas; essas
viagens que consistem em se descobrir, encontrar-se consigo mesmo, superar
a si mesmo, se autoconhecer. Sempre num sentido voltado para o “eu” de uma
maneira narcisista. Para Deleuze, não é preciso viajar para viver uma
experiência de viagem. Então, se viajar não consiste em romper com certos
paradigmas, conhecer diferentes culturas, conhecer lugares “bonitos”,
“turísticos”, por puro prazer ou apenas pelo movimento de deslocar-se, então
para que viajar?
Deleuze vai mais a fundo e diz que há uma bela frase de Proust que
pergunta o que fazemos quando viajamos? A resposta vem logo em seguida:
“para verificar algo”. Deleuze diz que se há algum sentido em viajar, esse
sentido está na verificação de algo, e isso tem a ver com um bom e um mau
sonhador. Mais uma vez, Deleuze cita Proust e diz que “um mau sonhador é
aquele que não vai ver se a cor com a qual sonhou está lá. Mas um bom
sonhador vai verificar, ver se a cor está lá”. Para Deleuze, esta é uma boa
concepção de viagem. Poderíamos dizer que a verificação tem a ver com
perguntar? Pois, se há algo para ser verificado é porque existe uma dúvida,
uma pergunta. Toda dúvida é uma pergunta? E toda pergunta contém uma
dúvida? Seria o sentido da viagem um perguntar-se sobre as coisas? Duvidar
delas e ir verificá-las? E para ressignificar ou reconsiderar as dúvidas de modo
que viajemos sempre duvidando em vez de seguir com certezas absolutas sobre
as coisas?
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Caminhar como modo de vida
12
Ver Contage, Daniel Gaivota. Poética do Deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na
escola-viagem. Rio de Janeiro: NEFI, 2017. Coleção: Teses e Dissertações; 5.
Daniel é um amigo, integrante do NEFI, que defendeu sua dissertação de mestrado em 2017
pelo ProPEd/UERJ, tendo sua dissertação publicada como livro na Coleção Teses e
Dissertações pela Editora NEFI no mesmo ano.
13
Viagem realizada à cidade Euclides da Cunha Paulista, interior do Estado de São Paulo em
dezembro de 2017 para visitar minha mãe. A conversa com o pastor Vanderley aconteceu no
dia 02 de janeiro de 2018 em uma visita que ele nos fez e foi registrada no Diário de pesquisa
com a autorização dele.
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14
Abordaremos o princípio da igualdade do caminhar no capítulo 5 (cinco) Xanháratiicha a
partir de uma leitura de Adriano Labbucci e do movimento indigenista zapatista.
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Caminhar como modo de vida
aparentemente óbvia a algo bem mais do que uma simples locomoção. Seria,
pois, esse “algo” uma possível marca que se pode deixar à medida que se
caminha?
Nas palavras do poeta Antonio Machado, em seu poema Cantares15, não
há caminho, pois o caminho se faz ao andar. O que há são as marcas16 no mar.
Caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar...
Caminhante não há caminho, senão há marcas no mar... (Antônio
Machado)
Nesse sentido perguntamos: O que são as marcas no mar? É possível
deixá-las? É possível segui-las? E por que as seguir? Se as marcas que
deixamos na areia (no caminho) muitas vezes são vistas apenas por nós
mesmos, pois as ondas do mar as apagam, por que as deixamos? Para quem?
Em quem deixamos nossas marcas? Elas são nossas, ou seja, causada por nós
ou em nós? Há marcas que são invisíveis ou visíveis apenas para quem as
consiga ver? Quem vê ou quem segue as marcas? Ao deixar pegadas, marcas
dos pés na areia, também se leva grãos dessa areia nos pés e para outras
marcas. Assim, poderíamos dizer que deixar uma marca também implica em
ser marcado de alguma maneira? Se algumas marcas foram apagadas da areia
pelo mar, poderíamos dizer que elas estão no mar, ou que elas ainda estão na
areia mesmo não sendo visíveis? E se pensarmos de acordo com Antonio
Machado, de que o caminho são as pegadas e nada mais, poderíamos dizer que
nossos caminhos são frutos das pegadas e das marcas de outras tantas pessoas,
visto que caminhamos e, deixamos marcas por cima das marcas dos outros?
Pensar sobre as marcas que deixamos e que recebemos ao longo do
caminho me remete a uma música popular brasileira Caminhos do Coração, do
cantor e compositor Gonzaguinha (1945-1991). A música Caminhos do coração
me faz pensar que a vida é como um caminho a ser percorrido e, nesse caminho,
não estamos sozinhos mesmo quando pensamos estar, não só por
encontrarmos tantas pessoas nesse caminho, mas, também, porque não somos
apenas uma só pessoa, mas somos “tanta gente” por causa das marcas das lições
diárias de “tanta, muita, diferente gente” deixadas em nós.
Há muito tempo que eu saí de casa
Há muito tempo que eu caí na estrada
Há muito tempo que eu estou na vida
15
Machado, Antonio. Cantares. Tradução de Maria Teresa Almeida Pina. Disponível em:
<http://blogs.utopia.org.br/poesialatina/cantares-antonio-machado/>. Acessado em: 05 de
jan de 2018.
16
A palavra original no poema traduzida como marca é estelas, que também pode ser traduzida
como rastro.
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17
Disponível em: < https://www.dicio.com.br/marca/>. Acessado em: 05 de jan de 2018.
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18
A referência Cunha, 2014 refere-se à Edna Olímpia, amiga querida integrante do NEFI que
defendeu sua dissertação de mestrado em 2014 pelo ProPEd. É professora de Português na
Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha e atua no projeto de filosofia com infâncias "Em
Caxias a Filosofia En-caixa?" há muitos anos.
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Julia Ramires Krüger defendeu em 2016 sua dissertação de mestrado intitulada O saber da
amizade: entre filosofia e educação pelo ProPEd/UERJ.
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20
Simone Berle, amiga integrante do NEFI e doutora em Educação pelo ProPEd/UERJ.
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21
Camacho, Suzana Brunet. Cadernos de segredos: marcas da educação católica na escrita íntima.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação.
2005. 172f.
22
Cf. Viñao Frago, Antonio. Por una historia de la cultura escrita: observaciones y reflexiones.
SIGNO. Revista de Historia de la Cultura Escrita, 3 (1996). Universidad de Alcalá de Henares,
pp. 41-68.
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escrever teria a ver e não teria a ver com sua biografia. Nesse sentido, fizemos
um exercício onde cada um de nós escreveria duas frases. A primeira começaria
com “escrever uma pesquisa educacional tem a ver com”; a segunda, “escrever
uma pesquisa educacional não tem a ver com”. E cada um de nós completava a
frase. Praticaremos aqui esse mesmo exercício para pensar: poderíamos
elencar muitos motivos, no entanto, ainda que essa escrita não tenha por
objetivo responder todas as questões aqui presentes, senão, a partir delas
pensar outras para não pararmos de caminhar, ela (essa escrita) também se faz
a partir de alguns princípios relacionados à atividade de caminhar que nos
ajudam a pensar a escrita de uma pesquisa educacional.
Assim, a partir de Masschelein e Simons, podemos dizer que a atividade
de escrever uma pesquisa educacional tem a ver com a atenção e não tem a ver
com a intenção, isto é, ela pede deixar que o caminhar seja conduzido pelo
caminho e não conduzir o caminhar a partir do nosso olhar cheio de intenções
pessoais. Mas, pensando com Coverley e Ingold, podemos dizer, também, que
escrever tem a ver com viajar; uma viagem no sentido de “verificar algo”, como
aponta Deleuze no Abecedário, ou seja, escrever é viajar sempre com um olhar
atento em um movimento de perguntar-se, de colocar algo em questão, em vez
de determinar certezas: atentar mais do que intencionar. Contudo, ainda
podemos dizer que escrever tem a ver com deixar marcas no chão da página
enquanto se caminha e de deixar-se marcar pelas palavras (marcas) do outro a
partir dos encontros que o caminhar nos proporciona. Por fim, podemos dizer
que a atividade de escrever tem a ver com a vida e morte (de si e da escrita),
pois mesmo que o caminhar nos faça querer viver de outra maneira, ainda
assim, estamos sujeitos aos riscos e perigos de caminhar. A filosofia23 é um
caminho sem volta, pois a partir do momento em que o olhar é educado a
estranhar o mundo de um modo atento, não há outra alternativa que não seja
a transformação de si. Mas essa transformação, muitas vezes, não se dá por
uma busca, ela acontece independente da busca, pois quando você se dá conta,
percebe que já não é mais a mesma e, ainda que queira voltar a ser, não
consegue. No entanto, diria ainda que a filosofia é um caminho sem volta não
porque não se possa repetir um caminho mais de uma vez, mas porque ao
repeti-lo já não se é mais o mesmo de antes – ainda que se refaça um caminho,
nem o caminho e nem o caminhante são mais os mesmos. Há uma vida que se
23
A filosofia como um “exercício de pensamento”. “Isso significa que o ‘exercício de pensamento’
(ou seja, a filosofia nesse sentido) é um exercício que não é orientado para (ou baseado em, ou
sobre) o conhecimento em primeiro lugar, mas diz respeito à questão de como agir e se
relacionar com o presente...” (Masschelein; Simons, 2014, p. 13).
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Caminhar como modo de vida
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Cf. Cunha, Edna Olímpia da. Suspensões e desvios da escrita: travessias da filosofia na escola
pública. 2014. 161 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. p 33-39. Cunha (2014), a partir
de uma experiência de filosofia com as crianças, apresenta um capítulo sobre a relação da escrita
com a vida e a morte.
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UMA FILOSOFIA DE CAMINHAR
3 UMA FILOSOFIA DE CAMINHAR
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purificação espiritual, outros, por motivos de saúde ou para fazer passeios, para
pensar, para reencontrar, para sentir, para ser... Muitos motivos e razões que
os levaram a caminhar. No entanto, Gros (2010, p. 15), sonha com o “caminhar
como uma expressão da recusa de uma civilização podre, poluída, alienante,
desprezível”. Para o autor, essa recusa tem a ver com três etapas da liberdade
que o caminhante experimenta.
A primeira é a liberdade suspensiva, a qual refere-se a um processo de
desligamento feito num passeio ou numa simples caminhada. A liberdade
suspensiva supõe suspender as preocupações, principalmente, as referentes ao
trabalho, para pensar em outra coisa. É se desvencilhar da ilusão de carregar
consigo o indispensável, como se costuma fazer nas longas viagens em que se
carrega não apenas o peso das mochilas com “tudo que é necessário” além das
preocupações com hospedagens, com o clima, com os horários das conduções...
Para o autor, “só a caminhada é capaz de nos livrar das ilusões do
indispensável”. (Gros, 2010, p. 11). A caminhada consiste numa desconexão
provisória de tudo que nos aliena à pressa e às facilidades de comunicação, de
compras, deslocamentos, o que Gros também chama de “escapulida”, mas, que
ao retornar para a rotina, percebe-se que nada mudou, a não ser que “o ar puro
lhe fez bem”. (Gros, 2010, p. 13). Segundo Gros, a liberdade suspensiva
“permite apenas, em nossa existência, uma ‘desconexão’ provisória: escapo da
rede por alguns dias, vivencio em trilhas desertas a experiência do fora-do-
sistema”. (Gros, 2010, p. 13).
A segunda liberdade é mais agressiva e rebelde do que a suspensiva, é a
liberdade de romper. É a liberdade que rompe com o sistema e com tudo que
ele oferece. Andarilhos que rompem com a ideia de caminhar para encontrar-
se consigo mesmo, porque o “eu” já não importa mais. A liberdade recusa a
noção de identidade. Não precisa ser alguém para viver na e da natureza. A
exemplo disso, tomamos o filme Into the wild, dirigido por Sean Penn, um filme
sobre a biografia do jovem americano Christopher McCandless que na década
de 1990, ao terminar a faculdade, doa todo o seu dinheiro a uma instituição de
caridade e, sem que sua família saiba, sai de casa para viver como um andarilho.
Antes de iniciar sua caminhada, ele coloca fogo em seu carro, em sua carteira
de identidade e no restante do dinheiro que tinha na carteira. McCandless
renuncia uma vida de conforto oferecida por seus pais e rompe não apenas com
a família – a qual estava seduzida pelas exigências do sistema além de viver
sob a esfera de mentiras – mas com o materialismo da sociedade; rompe com o
passado e com o futuro. O jovem, quando na natureza, sobrevive do que ela lhe
oferece e, quando na cidade, trabalha para comer e dormir, porém, não se fixa
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ou seja, para a Skholé; para os autores, o tempo livre – Skholé – não é para o lazer
ou para “se desconectar” da vida social por um tempo, como aborda Gros,
senão, para estar aberto ao mundo e dedicar-lhe atenção. “Tempo livre não é
nem tempo de lazer nem o tempo de aprendizagem, desenvolvimento ou
crescimento, mas o tempo do pensamento, estudo, exercício”. (Masschelein;
Simons, 2014, p. 160). Para Masschelein e Simons, não é preciso se colocar
fora do sistema para profaná-lo, mas é estando nele que podemos, através da
atenção, suspender o tempo e profanar o mundo. Isso também não é algo que
se faz sozinho, senão numa comunidade entre amigos que se preocupam com
as coisas do mundo: “talvez o ‘tempo livre’ faça amigos”. (Masschelein; Simons,
2014, p. 169).
No entanto, mesmo que os autores concebam o caminhar de modo
diferente, ambos nos ajudam a pensar o caminhar como uma prática
transformadora a partir da recusa da identidade e de nos colocarmos em
questão.
Masschelein e Simons (2014, p. 162) afirmam a liberdade no sentido de
que o mundo só pode ser aberto para nós a partir do momento em que
libertamos as práticas, as palavras de seu uso comum. Logo, Gros escreve
sobre a liberdade do caminhante de suspender, romper e renunciar com o sistema
capitalista. Ainda que a liberdade para ambos tenha sentidos diferentes, os dois
nos ajudam a pensar a educação no sentido em que: se queremos caminhar,
então, precisamos saber renunciar a determinados deveres sociais. Num tempo
em que a educação também se torna mercadoria para a obtenção de lucro,
aprender a renunciar, ou a suspender a lógica do consumo pode consistir em
um ato de rebeldia e de resistência.
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Caminhar como modo de vida
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que não oferece benefícios. “Não há nada a ganhar, nenhuma lição a aprender”.
(Masschelein; Simons, 2014, p. 50). No entanto, ao mesmo tempo em que essa
pedagogia é pobre, é também, generosa, pois, “dá tempo e espaço, o tempo e o
espaço da experiência”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 50).
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CAMINHAR COMO UMA PRÁTICA ESTÉTICA
4 CAMINHAR COMO UMA PRÁTICA ESTÉTICA
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se aventurar, houve uma briga entre eles, em que, após Caim ter acusado seu
irmão de invadir suas terras, mata-o.
O livro de Gênesis relata que a briga entre os irmãos resultou de uma
revolta de Caim contra Deus por Ele ter recusado a sua oferta e aceitado a de
seu irmão25. Por causa do fratricídio, Deus amaldiçoa Caim dizendo que se ele
voltasse a arar a terra, essa seria infértil. Portanto, o que antes era apegado à
terra (Caim), haveria de ser fugitivo e errante pelo resto de sua vida. Caim
entra em pânico e diz que esse castigo era insuportável, porque andar em terras
estranhas, como um fugitivo, seria sua sentença de morte, pois qualquer que
com ele se encontrasse, o mataria. Sendo assim, Deus coloca em Caim um sinal
para que não fosse ferido de morte26. Segundo Careri, “o erro fratricida é punido
com a errância sem pátria, um eterno perder-se no país de Nod, o deserto
infinito onde antes dele Abel andara sem rumo”. (Careri, 2013, p. 36-38).
Segundo a interpretação de Careri, o sinal colocado por Deus em Caim
refere-se ao símbolo antigo do Ka: “símbolo da eterna errância, uma espécie de
espírito divino que simbolizava o movimento, a vida, a energia, e que trazia
consigo a memória das perigosas migrações paleolíticas”. (Careri, 2013, p. 60).
O Ka é um dos símbolos mais antigos da humanidade e, por ter sido
representado por diversas culturas muito distantes entre si, principalmente
porque foram encontradas figuras esculpidas muito semelhantes ao Ka nos
menires colocados ao longo das rotas da transumância da Sardenha, há uma
suposta afirmação de que se tratava de um símbolo que se deslocava junto com
as multidões errantes do paleolítico. Na cultura egípcia, o hieróglifo do Ka é
representado pela letra U, formada por dois braços levantados para cima, num
ato de receber energia divina, como também de saudação; de mostrar estar
desarmado e indo em direção ao outro de uma forma pacífica, quase que, com
uma espécie de abraço.
Retomando a narrativa de Caim, para Careri, o problema de Caim era
não saber se relacionar com outro e a resolver seus conflitos de forma pacífica.
Sendo assim, o agricultor que recebeu a punição por seu fratricídio de andar
pelas terras que seu irmão caminhara, teve que sair da sua zona de conforto
para viver a vida como um eterno errante, indo em direção ao outro
desconhecido. Teve que aprender a se encontrar com o outro; a se relacionar
com outro; a saudar o outro com as mãos levantadas, num sinal de reverência,
mas, também, de se desarmar e de abraçar. Caim teve que aprender a arte de
25
Gênesis 4: 3-5.
26
Gênesis 4: 11-15.
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Caminhar como modo de vida
se encontrar com o outro através da errância. E isso lhe lhe causava medo,
pois, para ele, se encontrar com o desconhecido o colocaria numa zona de
perigo o que poderia ser a sua sentença de morte. “O percurso desenvolve-se
entre insídias e perigos, provocando em quem caminha um forte estado de
apreensão, nos dois significados, de sentir medo e de apreender”. (Careri, 2013,
p. 80).
Segundo Leed (apud Careri, 2013), a raiz indo-europeia da palavra
perigo (per), que muito foi interpretada como “tentar”, “pôr à prova”, “arriscar”,
também pode ser encontrada nas palavras experiência e percurso, pois, per
também pode significar “atravessar um espaço”, “ir para fora”, bem como a
palavra experiência em alemão, tem origem da palavra irfaran do alemão
antigo que significa “viajar”, “sair”, “atravessar” ou “vagar”.
Uma das palavras alemães que significam ‘experiência’, Erfahrung,
vem do alemão antigo irfaran: ‘viajar’, ‘sair’, ‘atravessar’ ou ‘vagar’.
A ideia profundamente arraigada de que a viagem é uma experiência
que põe à prova e aperfeiçoa o caráter do viajante. (Leed, 1991 apud
Careri, 2013, p. 46).
Assim, Caim ao passar do agricultor sedentário a fugitivo nômade, teve
que caminhar, de certo modo, com a “presença” de seu irmão nos caminhos que
ele passara. Careri destaca que as primeiras cidades foram construídas pelos
descendentes de Caim, tornando a relação entre sedentarismo e nomadismo
uma relação de osmose.
E é preciso sublinhar que, após a morte de Abel, será a estirpe de
Caim que construirá as primeiras cidades: Caim, agricultor forçado
à errância, dará início à vida sedentária, e portanto a outro pecado;
traz consigo tanto as origens sedentárias do agricultor como as
nômades de Abel, ambas vividas como punição e erro. (Careri, 2013,
p. 38). [...]
O nomadismo, na realidade, viveu sempre em osmose com a
sedentariedade, e a cidade atual contém no seu interior espaços
nômades (vazios) e espaços (cheios), que vivem uns ao lado dos outros
num delicado equilíbrio de recíprocos intercâmbios. Hoje a cidade
nômade vive dentro da cidade sedentária, nutre-se dos seus
resíduos, oferecendo em troca a sua própria presença, como uma
nova natureza que pode ser percorrida somente se for habitada.
(Careri, 2013, p. 30-31).
Para Careri, é imprescindível romper com o dualismo entre
sedentarismo e nomadismo como se eles estivessem totalmente separados. Ao
contrário de muitos arquitetos, Careri defende o nascimento da arquitetura a
partir dos nômades com o menir, e não a partir do sedentarismo. O menir
consiste em uma construção e transformação da paisagem. Para o autor, “o ato
de travessar o espaço nasce da necessidade natural de mover-se para encontrar
alimento e as informações necessárias para a própria sobrevivência”, bem como
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Carolina Fonseca de Oliveira
“o caminhar é uma arte que traz em seu seio o menir, a escultura, a arquitetura
e a paisagem”. (Careri, 2013, p. 27-28).
Careri (2013) também menciona outro aspecto do caminhar como uma
prática estética baseada no movimento dadaísta da década de 1920, no qual
consistia em fazer excursões por lugares banais da cidade, como um modo de
antiarte, ou, de superação da arte, entendendo a ação de percorrer o espaço
como um ato estético, uma substituição da representação do espaço. “O dadá
elevou a tradição da flânerie a operação estética”. (Careri, 2013, p. 74). Desse
modo, tentavam alcançar a união entre vida e arte ao frequentarem os lugares
mais insossos a fim de dessacralizar a concepção de arte das pesquisas sobre a
cidade futurística que se baseava na representação. Essa pesquisa era pensada
em locais fechados, como teatros, galerias de arte, ambientes literários e quase
nunca nas ruas da cidade.
É através do dadá que se realiza a passagem do representar a cidade
do futuro ao habitar a cidade do banal. A cidade futurista era
atravessada por fluxos de energia e por voragens de massas
humanas, uma cidade que perdeu toda possibilidade de visão estática
e que é posta em ação pelas máquinas em velocidade, pelas luzes,
pelos ruídos, pelo multiplicar-se dos pontos de vista perspectivos e
pela metamorfose contínua do espaço. (Careri, 2013, p. 74)
Para o dadá, a cidade futurista em vez de aproximar as pessoas da cidade,
as afastavam. O movimento dadá transforma as cidades futuristas, que servia
de palco para a velocidade da cidade burguesa, num lugar para avistar o banal
e o ridículo. Uma forma de protesto. Deambulações urbanas em lugares
insossos que convidava artistas a não mais intervir no espaço com
representações artísticas, senão, a explorar lugares a serem descobertos sem
deixar rastos físicos. “Com a exploração do banal, o dadá dá início à aplicação
das pesquisas freudianas do inconsciente da cidade, tema que será
desenvolvido a seguir pelos surrealistas, pelos letristas e pelos situacionistas”.
(Careri, 2013, p. 77).
O conceito de inconsciente da cidade é frequentemente citado por
Careri. Os surrealistas superam o conceito de cidade banal e das excursões
urbanas para o conceito de inconsciente da cidade. Diferente da excursão
dadaísta, que tinha como palco a cidade, a deambulação surrealista tem como
palco um território “vazio”. Os surrealistas entendem que o espaço urbano
pode ser atravessado como a nossa mente. Do mesmo modo que nossa mente
pode ser revelada através do inconsciente, na cidade também pode se revelar
uma realidade não visível. (Careri, 2013, p. 82-83).
A deambulação – termo que traz consigo a própria essência de
desorientação e do abandono no inconsciente – desenvolve-se entre
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mapa? Juliano me disse que as navegações pela região costeira de Paraty são
feitas através da navegação por referência; o que ele chama de “navegação por
visibilidade”. Segundo Juliano, apesar da Marinha do Brasil oferecer o curso
de navegação por carta náutica, esse método não é utilizado pelos marinheiros
caiçaras de Paraty, pois a navegação pela região costeira é feita pelo re-
conhecimento do lugar, das ilhas, é pelo que veem. Ou seja, Juliano, assim
como os outros marinheiros, navegam pela costeira porque a conhecem não
apenas por meio de mapas, mas, principalmente, por andar por aquelas águas.
Mas, Juliano também me relata um acontecimento inusitado nesse verão de
2018, em que o tempo fechou impedindo a visibilidade dos marinheiros. Com
muita chuva, vento e nebulosidade, alguns marinheiros saíram da rota e só
puderam retornar a ela depois que a chuva passou.
Juliano: - Esses dias aconteceu uma situação inusitada que fechou o
tempo, começou a chover muito e não dava pra ver nada na frente. A
visibilidade estava no máximo cinco metros e não dava pra ver ilha
nenhuma. Aí, um monte de gente se perdeu. Se tivesse uma bússola aqui,
não ia acontecer isso. Não aconteceu nada com o pessoal porque a chuva
parou em 15 minutos, mas aí, cada barco viu que estava fora do rumo, só
que eu não errei o rumo nesse dia porque eu vi que tava um ventinho e eu
fui acompanhando o vento. Sempre que o vento tivesse do meu lado – no
caso, tava no meu lado esquerdo do barco, que a gente não chama de lado
esquerdo, mas de bombordo – enquanto o vento estivesse no meu bombordo
ali, essa era a minha referência, eu sabia que estava no rumo certo. Se o
vento começasse a cair muito de frente ou muito pra trás ali, eu saberia que
tinha mudado de rumo.28
Nesse sentido, podemos dizer que mesmo quando se conhece o caminho
é possível se perder nele. E, para navegar – pelo menos pela região costeira de
Paraty – não basta conhecer a região apenas por mapas (teoricamente), é
preciso navegar em suas águas, andar por elas, aprender a ser guiado pelo que
se vê, correr os riscos e estar exposto aos imprevistos que fazem parte do
navegar, como relatou Juliano. Navegar, também, é o que permite ir ao
encontro do Outro, o que para Careri, é o aspecto mais atual da errância.
Em outro momento, perguntei ao Juliano como que os marinheiros
sabiam a direção que deveriam seguir quando viessem outras embarcações em
sua direção? Juliano me respondeu que há um código de ultrapassagem
marítima que os marinheiros precisam saber para navegar, apresentados no
Ripeam29, um regulamento disponibilizado pela Marinha do Brasil que diz que
a preferência é sempre de quem é avistado pelo boreste.
Juliano: - Você tá navegando, aí vem uma embarcação do seu lado direito,
aí é mais ou menos igual ao carro, tá vindo uma navegação do seu lado
28
ANEXO B, p. 133.
29
Regulamento Internacional para evitar abalroamento no mar.
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Carolina Fonseca de Oliveira
direito e você tá avistando ela pelo seu boreste, então, a preferência é dela.
Você tem que passar por trás dela, nunca pela frente. Você nunca pode
cruzar na frente dela que se bater você vai estar errado. Só que mesmo
quem no mar tem preferência, sempre tem que ficar atento. Nunca pode
assim, achar que as preferências é sempre dele, porque aí existem as
exceções, pois a embarcação pode estar desgovernada, pode ter acontecido a
mesma coisa com o marinheiro, então sempre predomina o bom senso.30
Juliano ressalta que se a preferência é de quem está vindo pelo boreste,
a embarcação que está avistando-a nunca deve passar na sua frente ou cruzar
sua rota, mas passar por trás. Contudo, mesmo quando se tem a preferência é
preciso estar atento e não se achar o “dono do direito” de passagem, mas, estar
preparado para os imprevistos para se for preciso, abrir “mão da
ultrapassagem”. Para Juliano, o que prevalece é o “bom senso”; o que
poderíamos dizer, que diz respeito há uma ética de quem navega. Não basta
estar atento apenas ao caminho da sua embarcação, mas estar atento ao outro
também.
A partir do que nos traz Careri, sobre a arte de caminhar, que também
é uma arte de saber ir ao encontro do outro de uma forma não beligerante, de
encontrar-se com o outro, de seguir em frente, mas também, de parar, e a partir
do que o marinheiro Juliano relata – que não basta conhecer as regras de
navegação, é preciso estar sempre atento ao que está ao nosso redor e não se
achar o dono da vez – podemos pensar que fazer uma pesquisa educacional
consiste muito mais nos encontros que pode acontecer ao longo do caminho
do que chegar em um destino final; significa se perder, parar, e, quem sabe, até
abrir caminho como fazem os marinheiros em Paraty; deixar o outro passar,
mesmo que para isso você precise “ficar para trás”, ou seja, “doar a vez” em vez
de monopolizá-la.
30
ANEXO B, p. 133-134.
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CAMINHAR É REVOLUCIONÁRIO
5 CAMINHAR É REVOLUCIONÁRIO
5.1 Xanháratiicha
É possível caminhar e, necessariamente, não sair do lugar? É possível
caminhar mesmo estando parado fisicamente? O que é um caminhante? O que
é preciso para ser caminhante? O que é preciso para caminhar junto? É possível
um caminhar sozinho na pesquisa educacional e na prática educativa? É
possível caminhar junto um mesmo caminho, mesmo quando se pensa
diferente? Por que caminhar junto?
O povo Purépecha, uma das etnias indígenas de Chiapas/México, conta
que há muitas histórias sobre os primeiros deuses, os que criaram o mundo.
Uma delas é sobre os deuses que criaram o mundo caminhando e, conforme
andavam, faziam perguntas que dessem conta de descobrir os mistérios do
mundo. Por isso, os homens e mulheres verdadeiros para caminhar, precisam
caminhar perguntando.
O documentário Caminantes31 (2001) mostra os preparativos da
comunidade indígena zapatista, da etnia Purépecha, para a recepção do
Subcomandante Insurgente Marcos e do EZLN32, que realizavam uma
caminhada organizada em fevereiro de 2001, até a capital do México, para
exigir o cumprimento de um projeto de lei que reconhecesse os direitos e a
cultura dos povos indígenas mexicanos.
Ao longo do documentário, representantes da comunidade são
entrevistados, inclusive o Subcomandante Insurgente Marcos, contando o que
significa fazer parte do movimento zapatista e sobre o descaso que sofrem por
parte do governo Mexicano. Por falta de direitos à educação, à saúde e ao
trabalho para os indígenas, os povos sofrem com a pobreza e com todas as
consequências que ela acarreta, como, por exemplo, a saída de muitos pais que
deixam suas famílias para atravessar a fronteira com os Estados Unidos de
forma ilegal e conseguirem melhores condições de vida.
Nesse sentido, o movimento zapatista, mais do que se dizer um
movimento anticapitalista e de esquerda, se constitui num movimento de luta
31
Caminantes. Documental del Subcomandante Insurgente Marcos, 2001. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=j-BcpRIOJXM&t=55s>. Acessado em: 30 de jan de
2018.
32
Exército Zapatista de Libertação Nacional – México/Chiapas.
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Carolina Fonseca de Oliveira
33
Disponível em: <http://www.purepecha.mx/threads/3821-Caminantes-(EZLN)-
Cr%C3%B3nica-de-la-lucha-P-urh%C3%A9pecha-desde-Nurio-Michoacan>. Acessado em: 23
de jan de 2018.
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Caminhar como modo de vida
Pregunté cómo mero era eso, y el Viejo Antonio me contó que los
dioses primeros, los que nacieron el mundo, hicieron a los hombres
y mujeres de maíz de modo que siempre se caminaran en colectivo.
Y me contó que caminar en colectivo quiere decir pensar también
en el otro, en el compañero.
-Por eso los indígenas caminan encorvados- dijo el Viejo Antonio-,
porque cargan sobre los hombros su corazón y el corazón de todos.
Yo pensé entonces que para ese peso no bastaban dos hombros.
Pasó el tiempo y, con él, pasó lo que pasó. Nos preparamos para
combatir y nuestra primera derrota fue frente a estos indígenas.
Ellos y nosotros caminábamos encorvados, pero nosotros por el
peso de la soberbia, y ellos porque también nos cargaban a nosotros
(aunque nosotros ni en cuenta). Entonces nos hicimos ellos, y ellos
se hicieron nosotros.
Empezamos a caminar juntos, encorvados pero sabiendo todos que
no bastaban dos hombros para ese peso. Así que nos alzamos en
armas un día primero de enero del año de 1994... para buscar otro
hombro que nos ayudara a caminar, es decir, a ser. (El tercer
Hombro. Los otros cuentos – Relatos del Subcomandante
Insurgente Marcos volumen 2).34
Na história El tercer hombro, o velho Antônio conta que os primeiros
deuses, os que criaram o mundo, fizeram os homens e as mulheres de maíz35
de modo que sempre caminhassem em coletivo. Caminhar em coletivo quer
dizer pensar também no outro, no companheiro. Por essa razão, os indígenas
caminham encurvados porque carregam sobre os ombros o seu coração e o
coração de todos.
A história segue contando que para carregar esse peso da luta pela
aprovação do projeto de lei que assegura os direitos e a cultura dos povos
indígenas não bastavam dois ombros, pois mesmo com os zapatistas e os
indígenas mexicanos caminhando juntos, encurvados, um carregando o outro,
não foi suficiente para a autonomia desses povos e para uma sociedade mais
justa, democrática e livre. Assim, o movimento indigenista zapatista busca um
terceiro ombro (ou, se podemos dizer, terceiros ombros) para ajudá-los a
caminhar, a dizer, a ser.
O dicionário online de Português aponta que um dos significados da
palavra “encurvar” em seu sentido figurado é “humilhar”. Se virmos alguém
andar encurvado, que não seja por alguma má formação na coluna, julgamos
no senso comum que aquela pessoa tem uma autoestima baixa. Como se ela
estivesse se humilhando ou se sentindo humilhada para andar dessa maneira.
Sempre com um sentido negativo do termo. Se encurvar para o outro, às vezes,
adquire o sentido de estar se humilhando. Então, pensar num povo, como os
zapatistas, que caminham em coletivo e encurvados, carregando-se uns aos
34
Disponível em: <www.redchiapas.org>. Acessado em: 24 de jan de 2018.
35
Os homens e mulheres de maíz são os indígenas cultivadores de milho (maíz).
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Caminhar como modo de vida
Adriano Labbucci (2013) diz que para caminhar é preciso ser humilde.
“A humildade é a alma do caminhar”. (Labbucci, 2013, p. 61). Para o autor,
“quem é humilde caminha, com Deus ou sem Deus; quem é soberbo não
caminha, rasteja”. (Labbucci, 2013, p. 60). Labbucci afirma que o caminhar tem
a ver com humildade e igualdade. A palavra humilitas tem uma relação direta
com a palavra húmus (terra). Para Labbucci, é através dos pés que percorrem a
húmus que adquirimos a humilitas. “É através dos pés que nos fazemos
humildes”. (Labbucci, 2013, p. 58).
Para Labbucci, ser humilde tem a ver com renunciar. Renunciar o que é
supérfluo para seguir caminhando levemente. O contrário do que o mercado
nos impõe: em vez de renunciar o supérfluo, devemos adquirir, consumir cada
vez mais.
A lógica competitiva do mercado tem alcançado inclusive espaços
públicos, como as Universidades Federais e Estaduais, as quais deveriam
valorizar os princípios de igualdade e humildade, mas não é o que geralmente
acontece, pois acaba muitas vezes, seguindo a lógica produtivista,
individualista e competitiva do mercado. A lógica do mercado é a lógica da
desigualdade.
Labbucci (2013) diz que no sistema capitalista o importante é “ter” cada
vez mais coisas. É consumir cada vez mais com a falsa promessa de que a
felicidade está intrinsecamente relacionada ao consumo. Nessa lógica,
perpetua a desigualdade. Mas o autor pergunta: “O que resta de uma
democracia baseada no consumo e na desigualdade?”. (Labbucci, 2013, p. 61).
Para o autor, o primeiro ídolo a ser combatido quando se caminha é a
autossuficiência orgulhosa, a soberba, pois elas são incompatíveis com a
igualdade.
Por isso, o caminhar e a igualdade andam juntos: no excesso e na
soberba não há igualdade, com excesso e soberba não se caminha. E
é sempre por isso que quem caminha adquire humildade, seja por
necessidade, seja por virtude própria, aprende a não se considerar
autossuficiente, a ver os outros como semelhantes, dos quais, na
imprevisibilidade do caminho, se pode precisar. (Labbucci, 2013, p.
58).
Para Labbucci, quem caminha aprende a não se considerar superior aos
outros, pois nunca se sabe o que e de quem se pode precisar. Mas isso não
significa se tratar de uma relação utilitarista, que é justamente a sua crítica.
Labbucci (2013) afirma que o pensamento ocidental se caracteriza por ser
calculista, utilitarista e instrumental, isto é, busca medir e calcular tudo,
tentando obter sempre resultados a fim de tornar as coisas mais eficientes. Por
isso, caminhar se faz necessário, pois o “caminhar supera essa relação
103
Carolina Fonseca de Oliveira
instrumental, essa cisão entre meios e fins, porque não se mede pela eficiência
e pela eficácia.”. (Labbucci, 2013, p. 28).
Segundo Labbucci, um dos maiores problemas da política é que em vez
de perguntar sobre os princípios que se deseja representar, ou seja, o que seria
mais justo, acaba perguntando o que convém e o que não convém, ou, como
deve se comportar para obter determinada vantagem. Relação que flutua entre
o individual e coletivo por um viés utilitarista.
Para o autor, quem caminha deve sempre se perguntar “o porquê” e “o
como” das coisas que nos circundam e ter como sua maior ambição “respeitar
e valorizar os lugares que atravessa para que outros possam fazê-lo com o
mesmo prazer”. (Labbucci, 2013, p. 34). Nisto se baseia a igualdade. Pensar
nos outros. Ser humilde.
A concepção de Labbucci sobre os caminhantes parece se aproximar da
concepção dos zapatistas. Para Labbucci, o caminhante precisa ser humilde, se
perguntar sempre “o porquê” e “o como” das coisas, resistir ao sistema
capitalista, deixar o supérfluo e lutar pela igualdade e liberdade. Logo, para os
zapatistas, o caminhante não deve nunca parar. Precisa caminhar sempre
perguntando. Precisa aprender a escutar e a andar junto, encurvado,
carregando o seu coração e o coração dos outros. Para ambos, caminhar é uma
maneira de resistir. E resistir é existir. Na língua do povo Purépecha, os
caminhantes são chamados de xanháratiicha36; vem da raiz xanhára. Xanhára é
caminhar e xanháratiicha caminhantes. Ponhamo-nos a caminho, xanháratiicha!
36
Caminantes. Documental del Subcomandante Insurgente Marcos, 2001. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=j-BcpRIOJXM&t=55s>. Acessado em: 30 de jan de
2018.
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não fazer nada. Quantas pessoas se orgulham de sair de uma reunião atrás da
outra e de dizer que mal tem tempo para comer ou dormir por causa de tantos
afazeres? Enquanto almoçam, resolvem pendências e problemas pelo
smartphone. Durante uma reunião, uma aula, uma palestra, resolvem ao
mesmo tempo outras questões pela facilidade da internet. Parece que não
somos mais capazes de dedicar atenção a uma coisa de cada vez. Labbucci
aponta que essa guerra de velocidade tem se tornado um tumor, uma doença
do nosso tempo. E não é por acaso que na “Itália, por ano, morre-se oito vezes
mais por acidentes de carro, causados quase sempre pela alta velocidade, do
que por homicídios”. (Labbucci, 2013, p. 51). Essa é uma face da rapidez que
Labbucci diz não querer saber.
Percebemos claramente a velocidade do khrónos nos calendários
escolares. Existe um tempo demarcado para “ensinar” (pelo menos pelo que se
entende por ensinar que é informar, apresentar, explicar o assunto) e outro,
para que os alunos possam “aprender” dentro de um ano (como se a
manifestação da inteligência se desse igualmente a todos e no mesmo tempo).
Há cobrança, exigência, “apressamento” em cima dos professores que mal os
permitem “parar”, caminhar mais lentamente. Se os professores são
pressionados a correr contra o tempo, quem dirá os alunos. Por isso, caminhar
é um ato de rebeldia, como aponta Labbucci. Pois, mesmo quando o sistema
nos induz à pressa, à guerra da velocidade, precisamos ter atenção para saber
lidar com as diferentes dimensões do tempo. Caminhar significa estar atento e
olhar para o que precisa de atenção. “Cada coisa a seu tempo, a semeadura e a
colheita não acontecem nem antes nem depois, só no tempo oportuno,
propício”. (Labbucci, 2013, p 51). Caminhar não significa apenas estar no
khrónos, mas, também, estar atento ao kairós, ao tempo oportuno, propício,
mesmo que ele seja para parar ou divagar.
Caminhar é divagar: a partir de um caminho sinalizado, de uma via
principal, para seguir outros caminhos, outras vias mais afastadas,
mais marginais, secundárias ou que foram vistas de passagem.
Caminhar é parar: porque temos vontade, porque as pernas, porque
o lugar ou a luz, porque...
Divagar e parar: atividades humanas, demasiado humanas,
incompatíveis com as máquinas e com o mito da velocidade. Somos
feitos para perder tempo, divagar, estacionar, contemplar. Não é um
defeito a ser corrigido, um dano a ser reparado, uma doença a ser
curada. Muito pelo contrário; é isso que nos torna únicos e
irredutíveis a máquinas e à cultura mecanicista. (Labbucci, 2013, p.
51-52).
Labbucci diz também que caminhar tem relação com a humildade e a
igualdade, como já abordado no início do capítulo, pois, para o autor, a
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37
Êxodo, 14:12.
38
Êxodo, 16:3.
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haja desvios, porque o desvio também pressupõe uma meta. Para Labbucci, o
caminhante não é, necessariamente, aquele que segue sempre em frente, em
busca do nunca visto, da novidade, do exotismo forjado, mas, sobretudo, é
aquele que retorna a Ítaca. Que faz o caminho de volta, porque os lugares já
não são mais como os deixamos. O caminhante está numa dupla dimensão: da
partida, mas também, do retorno. “É necessário voltar pelo caminho que já se
fez, para repeti-lo, e para traçar ao lado dele novos caminhos. É necessário
recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”. (Saramago, 1999, apud
Labbucci, 2013, p. 123-124).
No capítulo três mencionamos que, para Gros, o caminhante sabe por
que caminha. Ele precisa saber. Diz ainda que caminhar não é um esporte,
muito menos uma experiência que busca uma identidade. Para Gros, caminhar
é estar do lado de fora; é subverter a ordem do sistema; é uma experiência
revolucionária que se aproxima da concepção de Labbucci. Para Labbucci, o
caminhar não consiste em andar a esmo porque caminhar é um ato
revolucionário. A meta que deve ter o caminhante é a de desobedecer ao
sistema que tenta nos alienar à pressa, ao consumo, ao individualismo, à
soberba, à desigualdade. Para Labbucci, é através do caminhar que nos
tornamos mais humildes, nos desvencilhamos do supérfluo e aprendemos a nos
relacionar com o outro em uma relação de igualdade. E isso implica uma
escolha: a de permanecermos acomodados ou de nos colocarmos a caminho; de
querer voltar para o Egito como escravos ou de experimentar a liberdade,
mesmo que para isso, precisemos atravessar o deserto. Por isso, Labbucci diz
que caminhar é autonomia e essa autonomia é arriscada. E essa autonomia não
tem a ver com assumir uma postura de certezas perante o caminho, senão de
caminhar sempre perguntando, como fazem os zapatistas.
Labbucci (2014) também diz que caminhar é arriscado porque nos expõe
ao imprevisível. Contudo, nossa relação com o imprevisível tem mudado no
curso dos milênios. Não queremos lidar com imprevistos ou com incertezas.
Não é por acaso que os sites de meteorologia são os mais procurados no
Google. Claro, que se deve, também, aos deslocamentos dos finais de semana,
no entanto, para Labbucci, o problema vai mais a fundo: está no desejo de
conhecer previamente para poder controlar os acontecimentos e, assim,
proteger-se e eliminar os imprevistos. A ânsia por proteção e segurança da
própria vida nos distancia cada vez mais dela. Acabamos vivendo sem ter
vivido. Ao parafrasear Buda, Labbucci diz que se vivemos no medo, acabamos
não vivendo. Quanto mais se busca por segurança, mais a liberdade é corroída.
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Carolina Fonseca de Oliveira
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Caminhar como modo de vida
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CAMINHOS INTERMINADOS E INDETERMINADOS
CAMINHOS INTERMINADOS E INDETERMINADOS
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Carolina Fonseca de Oliveira
coloca em riscos, nos expõe aos imprevistos que nos fazem abandonar coisas
que muitas vezes não queremos deixar pelo caminho, caminhar na pesquisa
também nos traz encontros inesperados que passam a fazer parte do nosso
percurso como, por exemplo, autores que inicialmente não estavam em nossa
bibliografia e que passaram a compô-la nos fazendo pensar questões ainda não
pensadas. Dentre esses autores destacamos Careri, que aborda a arte de ir ao
encontro do Outro através do caminhar; Labbucci, que concebe o caminhar
como uma revolução; Coverley, que pensa o escritor como caminhante e
Ingold, que escreve sobre caminhar pelo labirinto como uma forma de atenção
e de fazer skholé.
Na introdução deste livro, comparamos a atividade de escrever com o
ato de se despir. Desse modo, a partir do primeiro capítulo podemos dizer que
não apenas para escrever, mas, também, para caminhar é preciso se despir: das
intenções e das expectativas que impedem nosso olhar de ver o óbvio e de nos
relacionarmos com o caminho da pesquisa educacional como quem anda um
caminho e não como quem o sobrevoa. Segundo Masschelein e Simons (2014),
a atenção não é o que nos permite ver as coisas a partir de uma nova
perspectiva, ou seja, não significa ter um novo olhar sobre algo, mas é o que
permite estarmos presente no presente. “É, eu diria, o que acontece quando
ficamos atentos ou nos expomos”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 45). Nesse
sentido, a pesquisa educacional trata de uma pedagogia pobre, pois não
promete benefícios, somente o tempo e o espaço da experiência.
Também nos referimos a uma outra dimensão do caminhar a partir de
Merlin Coverley (2014): o caminhar como viajar tanto na mente quanto na
página e o escritor enquanto caminhante. Nesse sentido, o escritor não escreve
sob um caminho de certezas, senão sob um caminho de perguntas, de
curiosidade. A relação com a escrita está ligada a uma vida-caminhante e, assim
como caminhar deixa marcas na estrada, escrever consiste em deixar marcas
na página. No entanto, ao mesmo tempo em que o escritor-caminhante deixa
marcas através de sua escrita, também está sujeito a ser marcado por ela.
A partir de Frédéric Gros (2010), pensamos uma dimensão filosófica do
caminhar que não se refere à ideia de que o movimento do corpo está associado
ao pensamento e a escrita, mas se refere ao caminhar como um ato de ir na
contramão do sistema capitalista. É uma atividade que nos permite suspender
os papéis e obrigações sociais para viver uma experiência de liberdade. Para
Gros (2010), caminhar tem a ver com simplicidade e com um olhar de criança.
Nesse sentido, nos perguntamos: fazer uma pesquisa educacional nos
116
Caminhar como modo de vida
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Carolina Fonseca de Oliveira
Caminhos outros
A ideia inicial dessa escrita-caminhante era pensar o tema do caminhar
como um modo de vida e, como uma forma de fazer pesquisa educacional e
skholé. Por isso o título “da pesquisa à skholé”. No entanto, devido “a como” eu
cheguei a esse tema, talvez a ordem do título devesse ser invertida para “da
skholé à pesquisa educacional”. Mas por quê? Porque foi através da skholé que
eu cheguei ao tema do caminhar como pesquisa educacional, não o contrário.
E seu início não foi no mestrado, senão no curso de graduação em Pedagogia
na UERJ quando estive bolsista de iniciação científica no NEFI.
Skholé é uma palavra grega que significa tempo livre. Para Masschelein e
Simons (2013) é o sentido original da “escola”, ou seja, na escola se suspende
o tempo produtivo, do trabalho, para oferecer um tempo livre para o estudo.
Tempo livre não significa não fazer nada, ou, “tirar” um tempo para o lazer,
mas, significa dedicar atenção a alguma coisa do mundo para que se possa
estudar sobre ela. Segundo os autores, a atenção é um dos princípios da skholé,
do tempo livre.
A atenção também é o contrário da intenção. Segundo Masschelein e
Simons (2014), o objetivo da educação não deve ser a intenção, mas a atenção.
Não é papel da educação ter como objetivo a intenção de: formar cidadãos
críticos, de construir o conhecimento, de ajudar no desenvolvimento dos
alunos, mas, o único objetivo da educação é a “atenção”. Estar atento é estar
aberto ao mundo. A educação deve convidar o outro a ter atenção. Educar o
olhar não para ver o que se deseja ver, mas, para ver o evidente. “E o evidente
não é o que simplesmente existe, mas o que ‘aparece’ quando o olhar presta
atenção no presente em vez de julgá-lo”. (Masschelein; Simons, 2014, p. 53).
Foi assim que eu pude chegar ao tema do caminhar. A partir de uma
experiência em que fui convidada a caminhar, diga-se “à contra-gosto”, e a
dedicar um olhar atento àquela experiência.
Em 2012, enquanto cursava o 4º período de graduação em Pedagogia na
UERJ e participava do NEFI – Núcleo de Pesquisas de Filosofias e Infâncias
como bolsista de iniciação científica, fui convidada a participar de um curso de
extensão universitária, Sobre a Escola Pública e o Ato Educativo, realizado pelo
NEFI da UERJ em conjunto com a UFF, em que 60 alunos do curso, mais os
professores convidados, deveriam caminhar pelas ruas da cidade do Rio de
Janeiro para pensar um projeto de escola pública a partir dessa experiência.
Desses alunos 30 alunos eram belgas e 30 brasileiros. Para cada dupla ou trio
composto geralmente por um brasileiro e um belga, foi entregue um mapa dos
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Caminhar como modo de vida
bairros que a dupla ou trio deveriam andar durante a semana do curso, mas,
antes da caminhada, estudamos alguns artigos escritos por Jan Masschelein e
Maarten Simons sobre os temas da skholé e do caminhar. Inspirados em Walter
Benjamin, os artigos de Masschelein e Simons traziam uma reflexão sobre
caminhar como uma forma de estar atento e presente no caminho, que é o
contrário de sobrevoar um caminho que significa estar ausente. Porém, eu não
havia lido os textos e nem participado de todas as palestras antes de iniciar a
caminhada, e só a fiz por me sentir na obrigação de participar do curso como
bolsista. Não tendo entendido a proposta do curso, odiei fazer o exercício que
me deixou com bolhas nos pés depois de ter andado por três dias consecutivos
em 4 bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Além disso, aquela discussão sobre
caminhar nas ruas do Rio para pensar uma escola pública não fazia o menor
sentido para mim.
Mas o que eu não compreendia ainda era que o curso consistia em
“viver” o próprio conceito de skholé: que é dedicar atenção a algo do mundo
para então estudar sobre isso. Para Masschelein e Simons (2013) o professor
“coloca sobre a mesa” algo para ser estudado. E isso não tem a ver com “partir
do interesse do aluno”, ou, “falar a língua do aluno”, ou “ensinar algo que tenha
relação com o mundo desse aluno”, porque isso seria compreender a educação
em termos econômicos, onde o aluno tem necessidades a ser atendidas e o
professor é aquele que vai satisfazer a essas necessidades. Preciso abrir aspas
aqui: vemos isso diariamente nas propagandas das instituições privadas de
ensino básico e superior que dizem: “Aqui o seu esforço ganha força!” “Aqui o
professor valoriza o seu esforço!”. “Flexibilidade para a sua vida, qualidade
para a sua carreira!”.
O exercício de caminhar sobre as ruas da cidade do Rio não partiu do
interesse dos alunos. Foi algo que os professores “colocaram sobre a mesa” e
nos convidaram a dedicar a atenção. Não tinha uma aprendizagem específica a
ser alcançada. Tínhamos apenas que participar daquela experiência e, depois,
a partir dela, escrever sobre algo relacionado a educação, mas esse algo, não
foram os professores que decidiram por nós. Eles apenas abriram o mundo, me
convidaram a dedicar atenção àquilo e pronto. Nada aconteceu. Aquele assunto
de caminhar e skholé não fazia nenhum sentido para mim e eu só queria que o
curso acabasse logo.
Uns meses depois, meu orientador, o professor Walter Kohan, propôs
novamente o exercício de caminhar, só que agora numa disciplina de PPP –
Pesquisa e Prática Pedagógica, na qual eu era aluna e bolsista dele. Quis
“matar” o Walter naquele momento. Quase chorei por ter que repetir um
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Carolina Fonseca de Oliveira
exercício que eu havia odiado fazer. Mas, como não havia outro jeito, decidi
que em vez de ficar revoltada, tentaria fazer o curso novamente de uma
maneira diferente: mais aberta a experiência.
No final do semestre tivemos de entregar um trabalho final da disciplina
sobre a experiência de caminhar, dialogando com os textos lidos. O resultado
foi um trabalho que amei escrever e foi a partir desse texto que nasceu minha
monografia “Experiência de caminhar: encontros entre a filosofia, a infância e a
educação?”. Ou seja, mais uma vez o professor “colocou um assunto sobre a
mesa”, nos convidou “a dedicar a atenção” aquilo, e, dessa vez, algo inesperado
aconteceu: o tema que antes me causava aversão, se tornou meu tema de
pesquisa, ou, se posso dizer, de vida. O professor abre o mundo, traz os alunos
“para o seu mundo”, convida-o a uma atenção, a uma experiência. Ele não tem
por objetivo ensinar algo, mas oferecer tempo e espaço para a experiência. E é
nessa experiência que algo mágico pode acontecer. Que algo pode nos afetar,
nos atravessar.
Por isso, talvez o título desse livro pudesse ser invertido ora ou outra,
pois não é apenas a pesquisa sobre o caminhar que me leva a pensar sobre a
skholé, mas, sobretudo, foi o exercício da skholé que me fez me apaixonar pelo
tema do caminhar na pesquisa educacional. Essa é uma das questões que mais
me inquieta nessa escrita: somos nós que escolhemos ou encontramos um tema
(um caminho para a pesquisa) a partir do nosso interesse, ou, é um tema que
nos escolhe, ou nos encontra?
O tema do caminhar me inquietou primeiramente porque eu não sou
uma pessoa que gosta de fazer caminhadas. Sou uma pessoa que gosta de estar
no controle, de ter as situações sob (meu) controle. Sou uma pessoa que cria
expectativas demais nas pessoas e nas situações, que se preocupa muito com o
futuro, que tem medo do incerto e das mudanças, que gosta de segurança... e o
caminhar me convida a “ir para fora”, sair da comodidade, do lugar confortável,
do lugar de certezas para caminhar por caminhos incertos, caminhos não
determinados, mas que vai se construindo ao caminhar... o caminhar me
convida a olhar para o mundo, para as pessoas, não com um olhar de
expectativa e cheio de intenções, mas, com um olhar atento, para ver não aquilo
que eu quero ver, mas, para o que se mostra para que o meu olhar possa ver.
O caminhar me convida a “ir para fora”, a me livrar do supérfluo, a me colocar
em questão, a me preocupar não com o futuro, mas com o presente.
Na nossa LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e no PNE (Plano
Nacional de Educação) temos como princípios a qualificação e formação para
o trabalho e exercício da cidadania, ou seja, nossa educação se preocupa com
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Caminhar como modo de vida
“formar e qualificar” para o “mercado de trabalho”, para o futuro, mas, será que
também tem se preocupado com uma educação que eduque o olhar para estar
atento? Como uma educação que em vez de apenas querer “formar e qualificar”
também se preocupa em oferecer um tempo e espaço para a experiência? Será
que a nossa educação tem se preocupado, em vez de determinar um caminho
para ser caminhado, em oferecer um tempo e espaço para que cada um possa
fazer o seu próprio caminho ao caminhar?
121
122
REFERÊNCIAS
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Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: LeYa, 2013a. 18 volumes.
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Coleção: Teses e Dissertações; 2.
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5.
COVERLEY, Merlin. A arte de caminhar: o escritor como caminhante. São Paulo:
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.
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tradução. Pinturas em encáustica de Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Lamparina,
2013. 1ª Ed.
123
Carolina Fonseca de Oliveira
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ANEXOS
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Caminhar como modo de vida
Querida Carol!
Acabo de receber seu texto de qualificação. Iniciei a leitura e, rapidamente, percebi
que suas questões tem muito das minhas e, possivelmente, muito das questões dos nosso
colegas. Pesquisar a partir de uma pergunta. Escrita acadêmica. Basicamente esses dois
temas tem me afetado profundamente. E me fizeste encontrar com um diálogo que estou
tendo com a Paula Ramos: sobre o sentimento de pertencimento, sobre estar junto, sobre
como estando com o outro conseguimos estar conosco... Essa imagem de grupo, como
interlocutor... [tampoco sei se encontrei com essa interlocução no grupo, tampouco sei se
me encontro...]
Tenho sentido uma solidão profunda, e acho que esse silêncio, essa falta de vozes
ecoando, é um jeito de não sair de mim - não sei se por resistência ou por falta de percepção
- nesse caso, portanto, na ideia dos nosso queridos filósofos belgas, trata-se de uma
"negação" do fazer pesquisa.
Acho que por isso a correspondência é tão cara para mim: estar com o outro, me
encontrar nas palavras, nos escritos, nas ideias do outro me faz saltar de mim mesma, me
faz querer pensar com o outro...ou o que de mim está com o outro... Encontrar com tuas
palavras, me fez sair, saltar de mim! Me encontrei em ti.
Não sei se posso te ajudar com teu trabalho. Mas senti vontade de poder conversar,
sinto uma necessidade profunda de encontrar com algo... o estranho é que não sei com o
quê... talvez comigo.
Não sei como essas palavras te chegam, e peço desculpas se te soa estranho que te
diga isso, assim... foi impossível não te escrever e acho bonito esse movimento da escrita
que é provocada por outra escrita.
Ano passado fiz uma tentativa de pesquisa que iniciei com uma correspondência,
abandonei. Tenho uma carta com teu nome. Tua carta está aqui, comigo, no envelope
endereçado. Nunca a enviei. Sua carta, por algum motivo, ficou no meio de um caderno com
endereços... Viajou para Portugal comigo. Nunca tirei ela de lá. Sabia que poderíamos ter
uma interlocução interessante. Mas nunca fiz o movimento. Achava que o momento de te
escrever chegaria.
O abandono da tentativa de pesquisa aconteceu gradativamente. Agora percebo que
porque, ao enviar as cartas, buscava algo particular numa carta tipo "mala direta"...uma
carta genérica. Isso, como tentativa de pesquisa pode ser uma opção? Sim, pode. Assim
como um questionário ou uma entrevista que pode ser replicada, uma carta para muitos,
também funciona. Mas eu não sei se era aquilo que me interessava. Acho que o abandono
da proposta - a partir do suposto fracasso dela (das 30 cartas enviadas recebi 4 ou 5
respostas) - me dizia que não era aquilo que me interessava. Mas o que me interessa?
Acho que por isso, finalmente, estou aqui, te escrevendo! Porque é isso que me
interessa. É essa correspondência que me interessa. Essa que me afeta, que me provoca, que
me instiga a falar com a Carol. Não com dados informados pela Carol, mas o que eu e Carol
trocamos de afetos. Entendes?
Querida, realmente não sei como essas palavras vão te chegar... tem uma beleza na
escrita, num email que é pelo puro prazer de se juntar ao outro... mas as palavras também
podem ser fechadas de sentido (sem o tom, a expressão, o olhar...).
A carta que não te enviei não foi por não achar que não deveria, ao contrário, estava
endereçada, por acaso se perdeu e, talvez, com ela tive a chance de pensar se era aquela
correspondência que me interessava.
127
Carolina Fonseca de Oliveira
Enfim, um aprendizado sobre a pesquisa também é escutar o que faz sentido, que
tipo de "questões" levantamos...que tipo de "dados" podemos e queremos gerar... para o que
mesmo estamos olhando?
A ideia do fazer pesquisa como prática autoeducativa às vezes é uma pancada nos
modos como aprendemos a pesquisar, a estudar, a pensar....
Tu estás no NEFI já tem alguns anos e tem tido a oportunidade de experimentar
essa relação de pesquisa, talvez, em outra dimensão... digo, tua formação "acadêmica inicial"
tem passado por ai... por um lugar na academia que parece pouco convencional, que parece
contrastar com a ideia de academia como produção de conhecimento ou acúmulo...
O NEFI mexeu muito com a minha perspectiva de pesquisa, mas também me
colocou, em alguns momentos, em um lugar perigoso... parece que enfrento um
limite...sensação que não vou conseguir encontrar aquilo que nem sei o que é que procuro...
soa até engraçado, mas é assim que sinto... a sensação que tenho que ler, ler, ler para ter
algo a dizer...
Não sei como te sentes em relação a isso... se quiseres falar ou não... mas a sensação
que tive, iniciando a leitura do teu trabalho foi que passou por algo parecido...
Outra coisa que me passou, que pensei - ou repensei, já não lembro - , lendo teu
texto, foi quando retomas a ideia do sobrevoo e do caminhar como pesquisa, a partir do
Benjamin (em Masschelein e Simons). Fiquei pensando sobre o sobrevoo e o andar, quando
diz: "a força da estrada do campo é uma se alguém a sobrevoa e, outra, se alguém a percorre
andando." (p. 13). Fiquei pensando no sobrevoo... que é um olhar que compõe um todo.
Quando olhamos algo de cima temos uma perspectiva, que não é do detalhe, mas que ajuda
a perceber outras coisas... Ao mesmo tempo que minha nota faz uma certa oposição à
oposição dos autores, acho interessante considerarmos também o sobrevoo como forma de
complexificar o pesquisar... Claro que fazemos escolhas, e percebo que a tua é o caminhar...
mas me provocou a pensar como será ter olhares diversos sobre uma mesma coisa?
Foi uma olhadela no teu projeto...fui até a metade... e me derramei a te escrever.
Obrigada pela oportunidade de ler (ainda que não tenha lido tudo) e de me pensar a
partir dos teus escritos!
Um abraço carinhoso
Simo
P.s.: "Masschelein e Simons entendem o método como um conjunto de certas regras
que limitam e direcionam o olhar, bem como um meio para julgar e interpretar, que é o
contrário de estar presente no presente." Aqui não seria ausente?
Carolina Fonseca <carolinafonseoli@gmail.com>
Para: simone berle <simone_berle@yahoo.com.br>
11 de setembro de 2017 21:45
Simo, querida...
Me alegrou muito teu e-mail. Li e reli algumas vezes porque tuas palavras mexeram
comigo. Nem sei por onde começar. Talvez eu não siga a ordem das suas palavras, mas vou
escrever à medida que for sentindo o que preciso dizer.
Acredito que consegui sim compreender o que me disseste. E não me soou de
maneira estranha não...rsrs... acho lindo esse movimento de escrita, de trocas, de
correspondências que, para mim, se parece muito com o caminhar.
Por incrível que possa parecer, eu não gosto de caminhar. Tenho preguiça e
principalmente medo de andar por ruas e lugares que não conheço, principalmente se for à
noite, além de sentir muitas dores por causa das hérnias de disco que tenho na região lombar
(que por sinal, o ortopedista disse que a melhor coisa para mim, seria caminhar todos os
dias pelo menos 30 min, pois assim, eu fortaleceria minha musculatura. rsrsr). Mas teu e-
mail me fez lembrar de como cheguei a esse tema. Como esse tema passou a ser motivo de
fazer meus olhos brilharem e sair comprando livros sobre isso adoidada. Hahaha
Acho que aconteceu comigo o que o Jan e o Maarten falam tanto naqueles dois
livros, o laranja e o azul, rsrsr... foi a atenção que abriu meus olhos, que me fez ver o
evidente. Quando eu procurava um tema para minha monografia, pensava em escrever sobre
algo que me interessava. Algo do meu gosto. Que me desse prazer, tesão, sabe?! rsrs...
pensei, então, em escrever sobre o projeto de Caxias, que era algo que eu estava apaixonada
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Caminhar como modo de vida
na época (ainda sou). Foi aí que eu recebi um “convite à caminhar”, daquele “famoso” curso
com os belgas, rsrs. Eu fui caminhar porque me senti obrigada como bolsista, mas odiei o
exercício e principalmente esse assunto todo. Achei maior viagem. Até aí tudo bem. Os
professores abriram o mundo, me convidaram a dedicar atenção àquilo e pronto. Nada
aconteceu.
Uns meses depois, o Walter, nosso querido professor, propôs novamente o exercício
de caminhar, só que agora numa disciplina de PPP, na qual eu era aluna e bolsista dele. Quis
matar o Walter naquele momento. Quase chorei. Hahahah... Mas antes de caminhar,
tivemos de ler o texto do Jan e do Maarten “Ponhamo-nos a caminho”, que por sinal, eu não
tinha lido no curso. Quando li esse texto algo aconteceu! Fiquei encantada e fiz o exercício
de caminhar “aberta àquela experiência”. O Jan vai dizer que estar atento nada mais é do
que estar aberto ao mundo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 48). O resultado dessa
experiência foi um trabalho que amei escrever. E o resto da história você já sabe. Aqui estou
eu, com esse tema no mestrado e que levarei para a vida.
Talvez o caminhar já estivesse em mim, não sei... eu só sei que as coisas que eu mais
resisto e me nego a fazer, ou pensar, ou olhar são as que mais me transformam, são as que
mais me afetam. Eu tenho encontrado livros e livros sobre esse tema e percebo que não há
nada que eu possa dizer além do que já foi dito. Nada de novo. Nada de relevante para a
“sociedade”. As ideias que eu achava que eram inéditas outras pessoas já escreveram...rsrs...
[...] mas que contribuição melhor eu poderia dar do que a minha própria transformação
enquanto ser humano, enquanto educadora?
Acho que às vezes nossa angústia é por querer fazer algo grandioso, ou, por querer
fazer algo totalmente diferente; ou, até mesmo, por fazer algo que a gente gosta. Mas,
talvez, o que a gente gosta não nos afete tanto quanto algo que a gente nem gosta tanto
assim, mas que nos provoca, nos faz sair do lugar seguro, do lugar cômodo. E o caminhar é
assim para mim. Eu não gosto de caminhar, mas me ponho a caminho. Eu não gosto de
mudanças, mas a vida (o caminho) me coloca situações em que eu preciso mudar
(literalmente de lugar, de casa quanto minha alma). E essas mudanças são motivos de
minhas transformações. Mudança de olhar. Mudança de alma. Esse tema me confronta
comigo mesma o tempo todo, inclusive nessa questão de resistência a caminhar e de medo
do incerto, do aparentemente perigoso, que tenho tentado vencer. Talvez, esse tema não
veio para me dar um novo olhar ou uma perspectiva diferente (que é o que o caminho
sobrevoado nos proporciona), mas, apenas, uma mudança para um olhar atento, aberto, que
não julga, que não cria expectativas. E isso é difícil para caralho para mim, porque eu sou
uma pessoa que projeta muito o futuro e olha muito para o passado. Que cria expectativas
demais nas coisas e nas pessoas. Essa “pesquisa” é questão de vida para mim. Como você
mesma disse, de sair de si. O que eu acredito dessa escrita é o que “luto” a cada dia para
tentar viver: o sair de mim mesma, sair do comodismo, do lugar confortável e seguro para
ter um olhar atento e aberto (ao outro, ao mundo), deixar que o caminho me conduza a uma
transformação...
Pra terminar (rsrs), eu acho importante essa coisa de pensar junto, de estar com o
outro, se encontrar no outro... acredito que meu processo de escrita flui mais quando estou
pensando junto com um grupo. O Subcomandante Marcos vai dizer no conto “la historia de
las miradas” que é olhando nos olhos do outro que podemos nos conhecer mais. Mas eu
também te entendo... passei por momentos em que eu precisei me recolher, me isolar, me
afastar... foi preciso. Mas quando entendi que precisava voltar a me abrir ao grupo
novamente, tentei fazê-lo. E é o que tem feito diferença na escrita.
Sobre pensar olhares diversos sobre a mesma coisa, referente ao caminho
sobrevoado e percorrido a pé, não tem tanto a ver com pensar diferentes modos de “ver” o
caminho, nem de mensurar e dizer que um é melhor e mais potente que o outro, senão de
mostrar duas maneiras diferentes de se relacionar com o caminho e a força que cada uma
exerce ao fazê-lo. No caso de percorrer a pé, a força é de estar presente no presente. De ver
como o caminho se apresenta. No caso do caminho sobrevoado, o caminho não tem como
se apresentar; o olhar só pode ver um recorte do horizonte. E isso para o Masschelein e
Simons é o mesmo que estar “ausente”. Estar ausente não é necessariamente “ruim”. “Estar
ausente significa “não-estar”; significa estar preso ao horizonte de expectativas, projeções,
perspectivas, visões, opiniões, imagens e sonhos que nos pertencem, que compõem a nossa
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Carolina Fonseca de Oliveira
intenção, e que nos constituem sujeitos perante nossos objetos (objetivos)”. (Masschelein;
Simons, 2014, p. 48).
O que eu entendo com isso? Que pesquisar a partir de um lugar que sobrevoa o
caminho significa pesquisar em busca de uma verdade, segundo os critérios de uma
comunidade científica, visando os resultados e aplicações daquele procedimento que possa
ser convertido em conhecimento a ser compartilhado. Não há nada de ruim nisso. Acredito
até que precisamos de pesquisas assim. Mas, há também a pesquisa educativa que visa nada
mais nada menos do que a transformação de si através de um olhar atento no presente,
percorrendo esse caminho a pé, sem expectativas, intenções e projeções. O importante aqui
não é “ler e estudar muito” para poder falar com propriedade e autoridade sobre um tema
(uma de minhas grandes aflições e confrontações). Não é ter um objeto a ser analisado e um
objetivo com um fim específico a se chegar. Não é apresentar resultados ou comprovar
qualquer coisa. É apenas a transformação de si. Por isso eles a chamam de uma pesquisa
com uma pedagogia pobre. Uma pedagogia cega, surda e muda.
Simo, peço desculpas pelo tamanho do e-mail. Saí escrevendo e saiu tudo isso...rsrs.
Estou em Pádua e volto para o Rio somente no dia 19. Espero te encontrar para
continuarmos essa conversa. E obrigada por compartilhar tuas palavras comigo. Costumo
dizer que as palavras têm muito poder. Ou como o grupo diria, tem muita potência. Rsrsr
Um beijo e um abraço bem forte. Que bom que estás de volta!
carol.
beijos
simo
________________
Simo, querida...
Me alegrou muito teu e-mail. Li e reli algumas vezes porque tuas palavras mexeram
comigo. Nem sei por onde começar. Talvez eu não siga a ordem das suas palavras, mas vou
escrever à medida que for sentindo o que preciso dizer.
Querida, me passou o mesmo com teu email: li e reli algumas vezes... acho que
esse reconhecimento da pesquisa como uma imagem também é um reconhecimento
de como vamos nos formando, nesse caso, como vamos nos tornando professore.
Veja: eu encontro na correspondência, tu, no caminhar, Vanise, no diálogo, Neila, na
escuta, Dani, na viagem, Marcelly, nas cores, Julia, na amizade, Fabi O., no gesto,
Alê, no habitar, Edna, na escrita, Cori, escolar (?)... Será que podemos dizer que
buscamos uma figura para atravessar esse pesquisar?
Acredito que consegui sim compreender o que me disseste. E não me soou de
maneira estranha não...rsrs... acho lindo esse movimento de escrita, de trocas, de
correspondências que, para mim, se parece muito com o caminhar.
Por incrível que possa parecer, eu não gosto de caminhar. Tenho preguiça e
principalmente medo de andar por ruas e lugares que não conheço, principalmente se for à
noite, além de sentir muitas dores por causa das hérnias de disco que tenho na região lombar
(que por sinal, o ortopedista disse que a melhor coisa para mim, seria caminhar todos os
dias pelo menos 30 min, pois assim, eu fortaleceria minha musculatura. rsrsr). Mas teu e-
mail me fez lembrar de como cheguei a esse tema. Como esse tema passou a ser motivo de
fazer meus olhos brilharem e sair comprando livros sobre isso adoidada. Hahaha
Acho que aconteceu comigo o que o Jan e o Maarten falam tanto naqueles dois
livros, o laranja e o azul, rsrsr... foi a atenção que abriu meus olhos, que me fez ver o
evidente. Quando eu procurava um tema para minha monografia, pensava em escrever sobre
algo que me interessava. Algo do meu gosto. Que me desse prazer, tesão, sabe?! rsrs...
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Caminhar como modo de vida
pensei, então, em escrever sobre o projeto de Caxias, que era algo que eu estava apaixonada
na época (ainda sou). Foi aí que eu recebi um “convite à caminhar”, daquele “famoso” curso
com os belgas, rsrs. Eu fui caminhar porque me senti obrigada como bolsista, mas odiei o
exercício e principalmente esse assunto todo. Achei maior viagem. Até aí tudo bem. Os
professores abriram o mundo, me convidaram a dedicar atenção àquilo e pronto. Nada
aconteceu.
Uns meses depois, o Walter, nosso querido professor, propôs novamente o exercício
de caminhar, só que agora numa disciplina de PPP, na qual eu era aluna e bolsista dele. Quis
matar o Walter naquele momento. Quase chorei. Hahahah... Mas antes de caminhar,
tivemos de ler o texto do Jan e do Maarten “Ponhamo-nos a caminho”, que por sinal, eu não
tinha lido no curso. Quando li esse texto algo aconteceu! Fiquei encantada e fiz o exercício
de caminhar “aberta àquela experiência”. O Jan vai dizer que estar atento nada mais é do
que estar aberto ao mundo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 48). O resultado dessa
experiência foi um trabalho que amei escrever. E o resto da história você já sabe. Aqui estou
eu, com esse tema no mestrado e que levarei para a vida.
Colocar atenção
Talvez o caminhar já estivesse em mim, não sei... eu só sei que as coisas que eu mais
resisto e me nego a fazer, ou pensar, ou olhar são as que mais me transformam, são as que
mais me afetam. Eu tenho encontrado livros e livros sobre esse tema e percebo que não há
nada que eu possa dizer além do que já foi dito. Nada de novo. Nada de relevante para a
“sociedade”. As ideias que eu achava que eram inéditas outras pessoas já escreveram...rsrs...
[...] mas que contribuição melhor eu poderia dar do que a minha própria transformação
enquanto ser humano, enquanto educadora?
Estranha essa sensação de que "tudo já está dito". Eu tenho escutado muitas
pessoas falando sobre isso... e tenho sentido isso também... Então qual é a nossa
"função" enquanto pesquisadores na área da educação? De certa forma tu respondes
uma pergunta que tenho me feito (e pergunta ela também no teu projeto): nossa
função é nos formarmos? Será a Pós-graduação em educação, também, um espaço de
produção de "autoconhecimento"? O que se tem produzido em termos de
conhecimento em educação, diante da hibridez do campo (não somos um ciência, mas
bebemos de outras ciências: filosofia, sociologia, psicologia, antropologia,
história...), é quase impossível de "catalogar"... mas paralelo ao que se produz, será
que podemos dizer que nos "produzimos" também... ou seja, nos formamos a medida
que formamos... não ha formação para algo, se não, para um mesmo? Se assim for,
então o que compartilhamos, enaquanto produção de conhecimento, é uma trajetória
de formação? Será por isso é difícil reconhecer-nos como pesquisadores? Será que a
Pós é formação de professore...?
É bonito isso de encarar o afeto como uma coisa complexa, esse exercício de
encarar o que é difícil, de perceber no que supostamente não gostamos, um gosto,
daquilo que não percebemos... como a vida nos chama a atenção, "torce" nosso
pescoço e faz olhar o que negligenciamos... é um super esforço que, no fim, pode não
ser percebido, pode ser negado... ou seja, apesar das repetições com que o tema do
caminhar se apresentou para ti, tu poderias ter seguido negando ele... entendes?
Talvez a angústia seja querer fazer algo para "fora", para os outros, para uma
"academia", para um ciência... e que no fim, percebemos que só podemos fazer algo
no sentido coletivo, se podemos movimentar a nós mesmo... se aprendemos a
aprender... será? Será por isso tudo se torna tão vital?
Acho que às vezes nossa angústia é por querer fazer algo grandioso, ou, por querer
fazer algo totalmente diferente; ou, até mesmo, por fazer algo que a gente gosta. Mas,
talvez, o que a gente gosta não nos afete tanto quanto algo que a gente nem gosta tanto
assim, mas que nos provoca, nos faz sair do lugar seguro, do lugar cômodo. E o caminhar é
assim para mim. Eu não gosto de caminhar, mas me ponho a caminho. Eu não gosto de
mudanças, mas a vida (o caminho) me coloca situações em que eu preciso mudar
(literalmente de lugar, de casa quanto minha alma). E essas mudanças são motivos de
minhas transformações. Mudança de olhar. Mudança de alma. Esse tema me confronta
comigo mesma o tempo todo, inclusive nessa questão de resistência a caminhar e de medo
do incerto, do aparentemente perigoso, que tenho tentado vencer. Talvez, esse tema não
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Carolina Fonseca de Oliveira
veio para me dar um novo olhar ou uma perspectiva diferente (que é o que o caminho
sobrevoado nos proporciona), mas, apenas, uma mudança para um olhar atento, aberto, que
não julga, que não cria expectativas. E isso é difícil para caralho para mim, porque eu sou
uma pessoa que projeta muito o futuro e olha muito para o passado. Que cria expectativas
demais nas coisas e nas pessoas. Essa “pesquisa” é questão de vida para mim. Como você
mesma disse, de sair de si. O que eu acredito dessa escrita é o que “luto” a cada dia para
tentar viver: o sair de mim mesma, sair do comodismo, do lugar confortável e seguro para
ter um olhar atento e aberto (ao outro, ao mundo), deixar que o caminho me conduza a uma
transformação...
Pra terminar (rsrs), eu acho importante essa coisa de pensar junto, de estar com o
outro, se encontrar no outro... acredito que meu processo de escrita flui mais quando estou
pensando junto com um grupo. O Subcomandante Marcos vai dizer no conto “la historia de
las miradas” que é olhando nos olhos do outro que podemos nos conhecer mais. Mas eu
também te entendo... passei por momentos em que eu precisei me recolher, me isolar, me
afastar... foi preciso. Mas quando entendi que precisava voltar a me abrir ao grupo
novamente, tentei fazê-lo. E é o que tem feito diferença na escrita.
Sobre pensar olhares diversos sobre a mesma coisa, referente ao caminho
sobrevoado e percorrido a pé, não tem tanto a ver com pensar diferentes modos de “ver” o
caminho, nem de mensurar e dizer que um é melhor e mais potente que o outro, senão de
mostrar duas maneiras diferentes de se relacionar com o caminho e a força que cada uma
exerce ao fazê-lo. No caso de percorrer a pé, a força é de estar presente no presente. De ver
como o caminho se apresenta. No caso do caminho sobrevoado, o caminho não tem como
se apresentar; o olhar só pode ver um recorte do horizonte. E isso para o Masschelein e
Simons é o mesmo que estar “ausente”. Estar ausente não é necessariamente “ruim”. “Estar
ausente significa “não-estar”; significa estar preso ao horizonte de expectativas, projeções,
perspectivas, visões, opiniões, imagens e sonhos que nos pertencem, que compõem a nossa
intenção, e que nos constituem sujeitos perante nossos objetos (objetivos)”.
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 48).
Agora que fazes essa analogia com o horizonte, lembro do que Derrida diz
sobre a experiência: a experiência nunca está no horizonte, porque ela não é
previsível. A experiência vem de qualquer lado, menos de frente, porque ela nos
assalta, como um assombro do inesperado. Pode ser uma boa combinação de reflexão
com o olhar de sobrevoo que nos permite ver o horizonte, enquanto o caminho, nos
coloca atentos ao experienciar, que pode nos transformar....
O que eu entendo com isso? Que pesquisar a partir de um lugar que sobrevoa o
caminho significa pesquisar em busca de uma verdade, segundo os critérios de uma
comunidade científica, visando os resultados e aplicações daquele procedimento que possa
ser convertido em conhecimento a ser compartilhado. Não há nada de ruim nisso. Acredito
até que precisamos de pesquisas assim. Mas, há também a pesquisa educativa que visa nada
mais nada menos do que a transformação de si através de um olhar atento no presente,
percorrendo esse caminho a pé, sem expectativas, intenções e projeções. O importante aqui
não é “ler e estudar muito” para poder falar com propriedade e autoridade sobre um tema
(uma de minhas grandes aflições e confrontações). Não é ter um objeto a ser analisado e um
objetivo com um fim específico a se chegar. Não é apresentar resultados ou comprovar
qualquer coisa. É apenas a transformação de si. Por isso eles a chamam de uma pesquisa
com uma pedagogia pobre. Uma pedagogia cega, surda e muda.
Eu sinto algo muito próximo do que descreves sobre o pesquisar... talvez
compactuo da tua angústia, pois a pesquisa, parece envolver uma devolutiva para a
sociedade... e parece que estamos dizendo que "vamos nos devolver melhores"
rsrsrsr é o exercício esperitual dos estóicos que se anuncia como formação? E
podemos assumir isso? Nos educamos para sermos educadores que, não ensinam
como educar, mas como se autoeducar? Carol, acho que essa é uma boa conversa!
Acho que essa troca é um verdadeiro pensar junto!
espero que te instigar com minhas questões tanto quanto me instigastes!
beijo
simo
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Caminhar como modo de vida
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Carolina Fonseca de Oliveira
consiga alguma coisa. Aí tem lá as preferências, né. Aí, geralmente assim, o que eu posso te
adiantar caso você não consiga achar, mas acho que você consegue sim na pesquisa lá, é que
quem é avistado pelo boreste tem a preferência, no caso, né. Você tá navegando, aí vem uma
embarcação do seu lado direito, aí é mais ou menos igual ao carro, tá vindo uma navegação
do seu lado direito e você tá avistando ela pelo seu boreste, então a preferência é dela. Você
tem que passar por trás dela, nunca pela frente. Você nunca pode cruzar na frente dela que
se bater você vai estar errado. Só que mesmo quem no mar tem preferência, sempre tem
que ficar atento. Nunca pode assim, achar que as preferências é sempre dele, porque aí
existem as exceções, pois a embarcação pode estar desgovernada, pode ter acontecido a
mesma coisa com o marinheiro, então sempre predomina o bom senso. Mas o livrinho de
regra aí se chama Ripeam.
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