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CURSO DE JORNALISMO
LGBT de periferia:
Resistência, luta e empoderamento
Produto Jornalístico
Mariana
2017
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LGBT de periferia:
Resistência, luta e empoderamento
Mariana
2017
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Dedico este trabalho, primeiramente, à minha mãe, Mariana, que nunca teve a
oportunidade de concluir o ciclo básico do ensino fundamental. Dedico, igualmente, a meu
pai, Sebastião, a quem aos sete anos idade lhe foi dada uma enxada para capinar em vez de
um lápis para se alfabetizar e, por isso, para o Estado, é apenas um número nas estatísticas
sobre analfabetismo no país. Eles não tiveram condições de concluir o ensino formal, mas,
apesar de todas adversidades, os sete, dos nove filhos que sobreviveram às doenças típicas de
um país sem saneamento básico e combate efetivo às doenças que acometem/acometiam
populações rurais, ingressaram na pré-escola no tempo ideal. Porém, a vida fez com que cada
um dos filhos - dos quais estendo meu agradecimento - tomasse rumos diversos. Nem todos
conseguiram, por vários motivos, concluir o ensino médio e, muito menos, ingressar numa
universidade. Sou privilegiado. Fui o primeiro da família, tanto por parte de pai, quanto de
mãe, a ingressar numa instituição de ensino superior.
Acredito que seja, também, o primeiro aluno do pequeno distrito de Cordeiro de
Minas, em Caratinga -MG, a ingressar numa universidade pública, gratuita e de qualidade. E,
por isso, devo reconhecer, neste espaço, minha posição privilegiada e, também, jamais
poderia negar o agradecimento a todos os professores que tive, da infância à juventude, na
Escola Estadual Manoel Cordeiro Lúcio, em Cordeiro de Minas; e Escola Estadual Manoel
Izídio, em Ipatinga.
Agradeço, especialmente, àquela que, vendo a potencialidade de um de aluno que
tinha gosto pelos livros, me explicou o que seria uma universidade federal. E mais: fez o
possível, na época, para que ingressasse em um colégio federal, o Coluni, em Viçosa. Essa
pessoa é Dona Milva, minha professora de português. Ela sempre fazia questão de motivar
seus alunos a seguirem os rumos do filho, que havia estudado em Viçosa e que, naquela
época, alçava novos vôos na USP, em São Paulo.
Agradeço, também, à tantos outros que fizeram parte deste processo - e que dura
longos anos -, como a Dona Maria e o Sr. Ambrósio, que, no último ano do ensino médio, ao
saberem que perderia uma bolsa de estudos numa escola técnica, em Ipatinga, por não ter
lugar para morar, abriram as portas de suas casas e me acolheram, com muito afeto, como
parte da família. Esta história se repetiu com minha tia Florinda e tio Geraldo, em Belo
Horizonte, quando, neste processo de se graduar, me receberam, igualmente com muito
carinho, quando consegui uma bolsa do PROUNI para estudar Ciência da Computação, na
PUCMINAS. Por isso, não poderia deixar de agradecê-los neste espaço.
Outras pessoas que fizeram parte deste processo são: Dona Célia e Sr. Ely. Este casal,
até então desconhecido, me acolheu numa kitnet num bairro de periferia, em Ouro Preto,
6
quando precisei do apoio da universidade ao ser expulso - por motivo que, hoje, entendo
como homofobia - da República Aquarius. A casa onde está localizada a república é um
prédio público, de propriedade da UFOP, que nada fez pelo assunto quando solicitei apoio.
Por isso, fica o meu agradecimento a esse casal e sua família, que tanto me apoiaram durante
todos esses anos em Ouro Preto, especialmente, num momento em que eu estava prestes a
desistir dos estudos.
Agradeço, também, aos amigos que sempre se fizeram presentes ao longo desses anos
de formação, incluindo os que fiz no curso de Ciência da Computação, em BH, como, Luiza,
Thiago e Nelson, quanto os amigos da época em que continuei neste mesmo curso na UFOP,
como, Marina, Leandro e Rafael.
Não poderia deixar de dedicar este trabalho, especialmente, aos amigos de infância,
Josiel e Laiane. Esses dois, junto à alguns membros da minha família, são os pilares dos quais
eu sempre busquei me apoiar em todo e qualquer momento, diante de toda e qualquer
adversidade da vida. São mais de vinte anos de amizade e confiança mútua onde o afeto e o
amor norteiam toda nossa relação.
Dedico, também, este trabalho aos amigos que fiz ao longo da graduação em
Jornalismo, incluindo os da época em que estagiei na Rádio UFOP Educativa; Programa de
extensão Sentidos Urbanos; Rádio Província FM; Projeto de extensão Identidades, afetos,
cotidiano e memória em Mariana: narrativas jornalísticas construídas com a comunidade; e
Portal Vertices.
Dedico este trabalho ao casal de amigos, Wallyson e Matheus, pelo companheirismo
estabelecido nesses anos e, principalmente, pelo apoio integral à todas as decisões tomadas
que nortearam esse processo de formação.
Dedico aos amigos Sheder, Marlucy, Tarlon, Wellington, Felipe, Paula, Wilcson,
Adalton, Marcelo, Wederson, Gustavo, Fernanda, César, Adilson, e à tantos outros que, em
algum momento, me apoiou neste longo período de graduação.
Dedico este trabalho ao mestrando em Educação pela Federal de Juiz de Fora, Neilton
dos Reis, que, apesar de termos nos conhecido na etapa final da produção do TCC, foi uma
das pessoas que me ajudou a experimentar e vivenciar de forma mais produtiva - e crítica -
tantos atravessamentos que ocorreram durante o VIII Congresso Internacional de Estudos
sobre a Diversidade Sexual e de Gênero, em novembro de 2016, na cidade de Juiz de Fora. E
que, posteriormente, foi uma das pessoas que me ajudou a refletir mais sobre várias questões
de gênero e LGBT, que venho a discutir neste trabalho. Sem contar, o apoio emocional que
recebi dele numa das horas mais difíceis, que foi a reta final da produção do documentário.
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
O trabalho trata-se de um documentário sobre gays e lésbicas que residem em um bairro de
periferia social de Mariana-MG. A não-representatividade de LGBTs de periferia no debate
político, restrito a acadêmicos e grupos privilegiados, alimenta o desejo de mostrar quais são
as similaridades e diferenças entre as pautas que eles reivindicam com as que são discutidas e
implementadas pela sociedade e movimentos sociais, em especial, nesse contexto específico
de Mariana, que é uma cidade marcada pelo discurso histórico e religioso. Com isso,
pretende-se empoderar o LGBT de periferia social a partir da problematização de suas pautas
numa experimentação audiovisual.
ABSTRACT
The work is a documentary about gays and lesbians whose lives in a suburban neighborhood
of Mariana-MG. The non-representativeness of peripheral LGBTs in the political debate,
restricted to academics and privileged groups, promotes the desire to show what are the
similarities and differences between the purpose that they claim, with those that are discussed
and implemented by society and social movements, in this specific context of Mariana, which
is a city marked by historical and religious discourse. With this, it intends to empower the
LGBT from the social periphery from the problematization of its guidelines in an audiovisual
experimentation.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE ANEXOS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 12
3 CINEMA DOCUMENTÁRIO…...................................................................................... 23
3.1 Sobre o documentário…..……………………………………………………………...... 23
3.2 Cinema queer…………………………………………………………………………..... 24
3.3 Proposta de trabalho…………………………………………………………………....... 25
4 DIÁRIO DE BORDO………………………………………………………………......... 27
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 40
APÊNDICES…………………………………………………………………………….......43
ANEXOS…………….... ........................................................................................................ 51
12
1 INTRODUÇÃO
avalia que, para o cineasta, as fontes seriam "atores sociais", com as quais não há uma relação
contratual, como ocorre na ficção.
A partir das considerações supracitadas, busquei identificar quatro atores sociais
escolhidos para representar a comunidade LGBT no documentário. A escolha se deu através
de visitas ao bairro Santo Antônio, tamb m conhecido como “Prainha”, onde fui apresentado
à moradores dessa localidade, considerada área de periferia social de Mariana.
Neste trabalho, suscito discussões que partiram do universo pessoal dos sujeitos a fim
de que elas possam reverberar nos diálogos de quem produz as pautas na militância LGBT e,
quem sabe, assim, fazer com as vozes dessas pessoas sejam ouvidas num espectro maior que o
pessoal.
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Na composição das identidades, a sexualidade não pode ser entendida como algo dado
pela natureza, ou seja, inerente ao ser humano. A sexualidade envolve processos culturais e
plurais, tais como: rituais, linguagens, fantasias, representações, convenções, símbolos, dentre
outros. Além disso, as inscrições de gênero - feminino ou masculino - é feita no contexto de
uma determinada cultura, sendo, as identidades gênero e sexuais compostas e definidas por
relações sociais moldadas por redes de poder de uma sociedade (LOURO, 2010, p.11).
Butler (2003) trabalha a ideia de que o gênero é uma performance produzida pelos
discursos normativos que regulam os corpos e o sexo. Para a autora, o gênero é
performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras.
Gêneros inteligíveis são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém relações
de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática e desejo. Em outras palavras,
os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em
relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente
proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou
expressivas de ligação entre sexo biológico, o gênero culturalmente construído e a
"expressão" ou "efeito" de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da
prática sexual (BUTLER, 2003, p.38).
constituídas” (BUTLER, 2003, p.20). A mesma também afirma que o gênero não deveria ser
concebido como uma inscrição cultural de significado num sexo previamente dado. Ele teria
de designar tamb m o aparato de produção onde os próprios sexos são estabelecidos: “o
gênero [...] também é o meio discursivo/cultural pelo qual "a natureza sexuada" ou "um sexo
natural" é produzido e estabelecido como "pré discursivo", anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura" (BUTLER, 2003, p.25).
1
Em PRINS (2002), Butler diz que o abjeto não se restringe a sexo e heteronormatividade. Para ela, o termo
relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e a materialidade é entendida como
''não importante'.
16
(LOURO, 2010, p.15). A autora também diz que esses corpos se referenciam no que ancora a
identidade.
Silva (2011) considera que a identidade está vinculada a condições sociais e materiais
e se um grupo é simbolicamente marcado como inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais
porque esse grupo se tornou socialmente excluído e passa a ter desvantagens materiais. No
caso dessa discussão, o grupo que é simbolicamente tido como inimigo é o LGBT, que não se
enquadra dentro de um modelo heteronormativo.
legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Antes disso, esses grupos eram
organizados, majoritariamente, por homossexuais masculinos, em reuniões de convivência
que buscavam afirmação. Nas reuniões, essas discussões centravam-se em “temáticas
consideradas como de primeira necessidade por integrantes dos grupos, momento de
aparecimento, de criação de espaços voltados para as pessoas que, estigmatizadas, recolhidas
ao máximo do espaço privado, não tinham ofertados espaços de sociabilidade, de encontro”
(UZIEL, 2006, p. 204-205).
2
De acordo com GUIMARÃES (2009) com No século XIX surgiu o termo "homossexualismo" para classificar
relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O termo acabou sendo vinculado a uma "doença" que deveria ser
tratada. Tal concepção vigorou até os anos 1980, quando, em 1985, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
retirou o "homossexualismo" da lista das fatalidades patológicas. A justificativa usada foi a de que a
Organização era contra qualquer tipo de discriminação e violência contra gays e lésbicas. Desde 1973, a
homossexualidade já tinha deixado de ser classificada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria e,
nesta mesma época, foi retirada do Código Internacional de Doenças (CID-10).
18
Na mesma ocasião, o GGB também fez encaminhou proposta e campanha para que
fosse criada uma lei que punisse a discriminação por (sic) “opção sexual”, termo que
era usado na época;
- Com o crescimento dos casos de Aids no fim dos anos 1980, associado à morosidade
do governo em produzir respostas à epidemia, o movimento homossexual cresceu e
surgiram novos grupos exigindo providências e tomando a frente em algumas ações.
Na época, já havia programas financiados pelo governo para combater a doença. Com
o financiamento de projetos de prevenção à epidemia, coordenados pelos grupos,
alguns deles assumiram o estatuto legal de ONG;
- 1991: Com objetivo de prevenir a Aids junto ao público gay, associado à construção
da sua cidadania, então abalada pela epidemia, circulava no Brasil o jornal Nós Por
Exemplo.
Para conferir um resumo de outros acontecimentos e fatos considerados importantes
para o movimento LGBT brasileiro vide ANEXO A.
O movimento LGBT brasileiro também teve como destaque a criação do Lampião da
Esquina. Inicialmente, a publicação circulou entre abril de 1978 e junho de 1981. A
publicação teve tiragem de 10 mil exemplares, com periodicidade mensal, em formato
tablóide. O jornal é considerada a primeira publicação homossexual dentro do Brasil. O
Lampião teve produção profissional impulsionada por jornalistas, intelectuais e artistas
reconhecidos e foi distribuído no país inteiro. “A grande renovação empreendida pelo
Lampião pode ser resumida pela profissionalização do jornalismo voltado para a população
homossexual brasileira, pela politização da discussão sobre a homossexualidade e pela
veiculação de pontos de vista não estereotipados sobre a chamada população lgbt”
(BARROSO, 2011, p.114).
MELLO (2005) cita que somente ao longo do século XX, mais especificamente nos
últimos 25 anos, é que lésbicas e gays - e hoje em dia acrescentam-se travestis, bissexuais e
transexuais - emergem na cena política do país. Para o autor, é neste momento em que é
questionada a universalidade dos valores heterossexistas vigentes:
São homens e mulheres que, transcendendo os limites de classe, sexo, gênero, raça,
etnia, religião, geração, nacionalidade e orientação ideológica, enfim, transcendendo
3
O INAMPS foi criado pelo regime militar em 1974 pelo desmembramento do Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS), que hoje é o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS); era uma autarquia filiada ao
Ministério da Previdência e Assistência Social, atualmente Ministério da Previdência Social). O órgão tinha a
finalidade de prestar atendimento médico aos que contribuíam com aprevidência social, ou seja, aos empregados
de carteira assinada. Fonte: (http://sistemaunicodesaude.weebly.com/histoacuteria.html).
19
LGBTs. Cabe ressaltar que esses valores podem estar subestimados por causa de
subnotificações de dados sobre este tipo de violência. No relatório ainda consta que “muitas
vezes, ocorre a naturalização da violência como único tratamento possível, ou a auto-
culpabilização (DF, 2013, p.18)” e que as estatísticas referem‐se às violações reportadas, não
correspondendo à totalidade das violências ocorridas cotidianamente.
O relatório aponta a homofobia institucional, que seriam formas pelas quais
instituições discriminam pessoas em função de sua orientação sexual ou identidade de gênero
presumida; e os crimes de ódio de caráter homofóbico, ou seja, violências, tipificadas pelo
Código Penal, cometidas em função da orientação sexual ou identidade de gênero presumidas
da vítima. De acordo com a pesquisa, as travestis foram as mais vitimizadas. Elas representam
51,68% do total, seguidas por gays, 36,79% das vítimas, lésbicas, cerca de 9,78%,
heterossexuais e bissexuais com números entre 1,17% e 0,39% respectivamente. Para a
secretaria, “a invisibilização e desconhecimento das transsexuais espelha-se também na
subnoticiação nos meios midiáticos, onde não se encontraram notícias relacionadas a essa
parcela da população” (DF, 2013, p.42). No texto, a homofobia foi entendida como
preconceito ou discriminação contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou
identidade de gênero presumidas. A lesbofobia, a transfobia e a bifobia foram compreendidos
pela palavra homofobia.
O Grupo Gay da Bahia apontou no documento Assassinatos de LGBT no Brasil:
Relatório 2015, 318 mortes de LGBTs no Brasil. Estatisticamente isso representa cerca de
um crime de ódio a cada 27 horas. Dos 318 assassinados, 52% são gays, 37% travestis, 16%
lésbicas, 10% bissexuais. De acordo com o relatório, a homofobia matou, inclusive, pessoas
não LGBT: 7% de heterossexuais foram confundidos com gays e 1% foram mortos por terem
sido confundidos como amantes de travestis. O texto também aponta que, proporcionalmente,
as travestis e transexuais são as mais vitimizadas. “O risco de uma “trans” ser assassinada
14 vezes maior que um gay, e se compararmos com os Estados Unidos, as 119 travestis
brasileiras assassinadas em 2015 em comparação com as 21 trans americanas, têm 9 vezes
mais chance de morte violenta do que as trans norte-americanas” (GRUPO GAY DA BAHIA,
2016, p.1). Em termos absolutos, São Paulo foi o estado com maior número de vítimas: 55
assassinatos; seguido pela Bahia: 33. Se compararmos os dados com a população total, o
estado do Mato Grosso do Sul é o mais LGBTfóbico: 6,49 de homicídios para cada 1 milhão
de pessoas; e Amazonas, com 6,45.
A rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero, a
ONG Transgender Europe (TGEU), fez uma pesquisa na qual o Brasil liderou o ranking de
21
país mais transfóbico do mundo. Segundo a Organização, 604 travestis e transexuais foram
assassinados no país, entre janeiro de 2008 e março de 2014.
4
A perspectiva interseccional permite ampliar e tornar mais complexo o olhar sobre a produção de
desigualdades em contextos específicos e fazer uma análise mais condizente com a realidade, por exemplo,
permite captar as relações de poder na vida social e seus impactos nas experiências cotidianas dos sujeitos.
Algumas autoras dessa vertente foram referências importantes para a construção do sistema de indicadores
interseccionais do MISEAL, entre elas, destaca-se: Leslie McCall, Avtar Brah e Ann Phoenix. Fonte:
http://www.oie-miseal.ifch.unicamp.br/pt-br/interseccionalidade.
23
3. CINEMA DOCUMENTÁRIO
3.1 Sobre o documentário
Comolli (2008) acredita que a categoria batizada como “documentário” está no centro
da história do cinema. Para o autor, o cinema começou por ser documentário e o
documentário por ser cinematográfico.
Se O desprezo é um documentário sobre o corpo de Brigitte Bardot (Godard dixit),
todos os filmes que fazem passear os corpos nas imagens (inclusive na lua ou nos
tapetes voadores de Bagdá) se fundam sob essa potência documental do cinema. Das
ficções mais loucas [...] às fantasias mais delirantes [...], nada se fabricou de
diferente sob o selo da relação com o real de um tempo (aquele do registro), de um
lugar (a cena), de um corpo (o ator) e de uma máquina (que assegura o registro).
(COMOLLI, 2008, p. 143).
De acordo com Comolli (2008) tal é o espaço reservado ao documentário que, quando
se combina os elementos tempo, lugar, corpo e máquina, podemos encontrar de forma bem
mais evidente nas produções que são exibidas na televisão, onde reconhecemos as impressões
da cinematografia, ou seja, a estampilha documentária de origem. Porém, ele acredita que o
documentário, ao contrário da televisão, “ premido a se confrontar não tanto com as lógicas
estreitas dos responsáveis da televisão quanto com algo muito mais forte do que elas: as
realidades que nos determinam, consequentemente, aqui e agora” (COMOLLI, 2008, p. 148).
Comolli (2008) acredita também que cabe ao documentário fazer de nós espectadores
de representações mais que imperfeitas e, também, menos que enganadoras, ou seja, de
representações que não chegam a domesticar completamente o mundo.
O real como erro, aproximação, tateamento, transição. Tudo o que os processos de
escritura - inclusive a dos roteiros ou dos programas de jogo ou de criação de
imagem - confessam e fazem, e que os roteiros ou programas, uma vez feitos, negam
ou desmentem. A clientela espera de um programa de informática exatamente o
contrário do caminho que levou a que ele fosse escrito: versões sucessivas, ensaios e
erros, bugs etc (COMOLLI, 2008, p.150).”
Já Lins & Mesquita (2011) acreditam que o interesse por imagens “reais” pouco se
limita ao campo do documentário. Segundo as autoras, parte das ficções cinematográficas e
televisivas tem investido em uma estética de teor documental. E, além disso, são expressivas
as adaptações de relatos literários cujas matérias são situações reais.
Os telejornais e programas de variedade não se limitam mais às imagens estáveis e
bem enquadradas, utilizando em muitas coberturas planos-sequenciais tremidos e
imagens de baixa qualidade registradas por microcâmeras, câmeras de vigilância,
amadoras e de telefones celulares, buscando imprimir (...) um “efeito de realidade” à
assepsia estética que imperava no telejornalismo até o início dos anos 90 (LINS &
MESQUITA, 2011, p.8).
24
Imagem 1 - Localização do bairro Santo Antônio (cor vermelha indica ser zona de
reabilitação urbana)
5
Como área de reabilitação urbana designa-se a área territorialmente delimitada que, em virtude da
insuficiência, degradação ou obsolescência dos edifícios, das infraestruturas, dos equipamentos de utilização
coletiva e dos espaços urbanos e verdes de utilização coletiva, no que se refere às suas condições de uso, solidez,
segurança, estética ou salubridade, justifique uma intervenção integrada, através de uma operação de reabilitação
urbana. A operação de reabilitação urbana, por sua vez, corresponde ao conjunto articulado de intervenções
visando, de forma integrada, a reabilitação urbana de uma determinada área. Fonte: site da Câmara de Municipal
de Lisboa, em Portugal, disponível em:
<http://www.portaldahabitacao.pt/pt/portal/reabilitacao/aru_vermais.html>.
26
4 DIÁRIO DE BORDO
No dia 20 de julho alguns jovens de Mariana estiveram presentes a uma palestra sobre
feminismo negro no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Ufop. Alguns eram
moradores do bairro Santo Antônio, tamb m conhecido como “Prainha”. Ao notar que um
deles era designado como se fosse do gênero masculino, mas tinha uma expressão de gênero
feminino, me aproximei. A partir de então, estabeleci um contato direto com todo o grupo,
expliquei sobre a proposta do meu documentário e marquei um encontro com eles no
domingo, dia 24 de julho, na Capela de Santo Antônio, no bairro onde moram.
não havia problema. O pai estava para a igreja e a mãe disse que poderia fazer imagens, desde
que ela não fosse filmada. No início da conversa com uma das garotas, já liguei a câmera
para que ela fosse se acostumando com o equipamento. Conversamos na varanda da casa num
primeiro momento e, num segundo momento, subi as escadas e fui conversar com a mãe das
garotas. Pedi um café. Sorridente, ela me serviu o café e disse que as meninas sempre tiveram
“opinião própria”. Al m disso, falou que eu poderia ficar à vontade em sua casa e que ela só
não queria aparecer. Chamei Rayene, que estava na varanda, para me apresentar a casa e sua
família.
Moram dez pessoas numa casa e a grande maioria é formada por moças solteiras. O
ambiente da casa era escuro e a iluminação usada foi a do sol entrando nas janelas porque,
quando fui usar a luz artificial, as imagens ficaram ruins e prejudicava a estética das
filmagens. Quero que o expectador se sinta ao lado de Rayene e Rayele e que mergulhe em
suas histórias de vida e cotidiano. Fiz imagens das duas em momentos distintos. Rayene
estava estudando num cômodo da casa enquanto Rayele dava atenção à namorada que veio de
Belo Horizonte para visitá-la. O casal sentou-se na cozinha e ambas ficaram fazendo tarefa de
casa de Rayele.
Até a hora do almoço conversei em alguns momentos com a câmera ligada e, em
outros, desliguei o equipamento para que ficassem mais à vontade. Na maior parte das
conversas com as duas garotas, a câmera permaneceu ligada. Depois disso, uma delas me
passou o contato de Rafael, 15 anos, amigo da família.
Ao voltar do almoço, à tarde, me encontrei com Rafael em sua casa. Ele estava
acompanhado de um amigo chamado Vanderson. Neste momento eu me lembrei do que as
duas transeuntes iniciais haviam comentado. Vanderson era Vanessa. Perguntei se Vanderson
preferia ser chamado de Vanderson ou se tinha outro nome ou apelido. Timidamente, o rapaz
de 15 anos disse que era Vanderson mesmo. Rafael, seu amigo, ligou para o pai, que estava
numa festa, para avisar que eu queria falar com ele. Em cinco minutos o pai chega. Me
apresento e falo da proposta do documentário. De cara fechada e poucas palavras, ele autoriza
e diz que a mãe também deve autorizar. Rafael diz que a mãe estava numa festa de família
perto de onde mora. Me convido a ir à festa com Rafael e Vanderson. Antes de partirmos em
direção à festa, que na verdade era um encontro de família regado à muita cerveja e churrasco,
passo na casa da mãe de Vanderson.
Ao conversar com a mãe de Vanderson e ter autorização para fazer as imagens, ela
diz: “Trabalho todos os dias e só chego em casa depois das quatro. Vanderson fica o dia todo
na casa de Rafael e ele fica trancado para a rua. Só venha depois desse horário ou fim de
29
semana para falar comigo”. Reafirmo que pretendo acompanhar o cotidiano do filho e que, se
ele passa a maior parte do tempo com Rafael, não haveria problema em filmá-lo na casa do
amigo, mas que, em alguns momentos, precisaria entrevistá-la. Retiro a câmera e faço
algumas perguntas para Vanderson e sua mãe. Ainda muito tímido, o garoto quase não fala.
Meu amigo insiste que eu deixe de filmar para poder conversar com o rapaz. Com a câmera
ligada eu digo: “É só uma conversa, Vanderson. Vou usar a câmera para você ir se
acostumando. Em breve, você não irá se intimidar”. Acho importante inserir a câmera num
primeiro contato.
Passado algum tempo, saímos em direção à festa na casa de uma tia de Rafael, na
Prainha. No trajeto, filmo ele e Vanderson caminhando pelo bairro. Ao chegar próximo de
uma esquina onde havia um grupo de jovens sou interpelado por Rafael, que diz: “Pode parar
de gravar aqui porque “os meninos6” que estão na esquina não gostam que gravem eles”.
Abaixo a câmera. Depois de passar pelos “meninos” aos quais Rafael fez referência volto a
filmá-lo junto a Vanderson.
Chegando no local da festa somos recebidos com muito carinho e empolgação pela
família de Rafael. A avó, tias, primos e primas, nos receberam e disseram que eu já poderia
filmar aquela algazarra toda e que só teria de editar depois pra não estragar “o filme”. Com a
câmera ligada, converso com a mãe de Rafael, que autoriza fazer o documentário com o filho.
A avó do rapaz, toda empolgada, diz: “Nós não temos nenhum tipo de preconceito. Aqui é
tudo gente simples e que vive assim: feliz”. Gravo vários momentos dessa confraternização e
a todo tempo me convidam a beber com eles.
Nas pausas que fiz para tomar o refrigerante, fui obrigado a largar o copo e pegar a
câmera para filmar. Nessas horas saíam as melhores conversas. Em algumas que tinha
perdido, retomo o assunto e digo: "como é mesmo o que a vocês tinham dito sobre tal
assunto?" Depois de horas com essa família, fico sabendo de um aniversário estilo festa
junina que haveria dia 30. Nessa ocasião, seria comemorado o aniversário de Patrícia, mãe de
Rafael, que mora na casa embaixo de onde mora a avó, Maria das Graças. Fomos convidados
a participar da comemoração e autorizados a filmar a festa. Ao chegarem alguns vizinhos, já
quase na hora de partir, Patrícia enfatizou: “Vocês vão no meu aniversário? Eles vão filmar
tudo para o documentário. Vocês vão, n ?”.
Observação: nas filmagens com Rayene e Rayele, tentei usar o shotgun da Ufop, mas o cabo
estava dando interferência. Optei por usar o microfone da câmera e vi que foi a melhor
6
Termo usado pelos moradores para se referir às pessoas que traficam no bairro.
30
escolha. As interferências não afetaram tanto as falas dos personagens e serviram para
intensificar o som dieg tico e enriquecer a narrativa próxima do “real”. A periferia tem muitos
sons, audíveis e inaudíveis. Nas entrevistas, as vozes saem audíveis. Vou optar por colocar -
futuramente - legenda em todo o documentário por duas razões: interferências que
comprometam a qualidade das falas dos personagens; ser inclusivo para que pessoas com
deficiência auditiva possam compreender a obra.
Ao chegar ao centro de Mariana, à noite, ligo para Rafael e digo que iria atrasar
porque precisava parar pra comer alguma coisa. Ele diz: “Tem muita comida na festa. Podem
vir direto!”. Quando ele diz o verbo no plural porque meu amigo, C sar Henrique, se propôs
a me ajudar durante as filmagens e, depois da primeira, ele, que é gay e está num processo de
autoconhecimento e aceitação, diz que foi uma terapia tudo que vivenciou naquele primeiro
dia. Sendo assim, ele surgirá em vários momentos desta narrativa me acompanhando não só
para ajudar a transportar e manusear equipamentos, mas também interagindo com as fontes no
processo anterior e posterior à câmera ligada.
Chegando à casa de Rafael, sua mãe, Patrícia, já estava vestida a caráter. Pintinhas no
rosto feitas à maquiagem, vestido colorido e digna de uma aniversariante de “Arraiá”.
Igualmente a caráter, eu e César estávamos vestidos de xadrez. Essa foi uma recomendação de
Rafael para que não ficássemos muito diferentes dos demais convidados. A mãe de Patrícia,
Maria das Graças, chega à casa da filha e nos recebe com abraços e muita alegria. Ela diz que
depois de uma “saidinha” - logo depois ficamos sabendo que se tratava de um encontro
amoroso - ela iria se vestir de homem e queria ser tratada como “macho”. No auge dos seus
quase sessenta anos, Maria das Graças, animada, sobe com a gente até sua casa, no segundo
andar.
Após mostrar a casa nos leva até a varanda - no terceiro andar - e faz questão de
mostrar o freezer cheio de cerveja e o bolo da aniversariante, que estava decorado com uma
estampa de uma cerveja muito vendida no país. Depois disso, mostra a decoração de
bandeirolas, bambus, luzes e tantos outros adereços que remetiam a uma festa junina. Em
seguida, Patrícia, a aniversariante, sobe e começa a preparar os últimos ajustes para a festa.
Ela e suas irmãs esquentaram caldos, canjica, acenderam a churrasqueira, dentre outras
preparações. Filmei boa parte dessa preparação inicial.
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Ao começar a festa, Vanderson chega com short, camisa xadrez e tranças longas,
divididas. Ele se veste com roupas e acessórios tidos como femininos. Rafael veste uma
jardineira e camisa xadrez. Ambos começam a dançar e faço os registros dos dois. A pedido
da anfitriã e dona da festa, registrei também quem estava na festa. Em alguns momentos, as
imagens feitas da quadrilha, por exemplo, serviram para compor a narrativa. Há imagens
também de Vandeson, Rafael e sua irmã, Fernanda, que é bissexual, dançando juntos.
Imagens das crianças dançando ao som de funk até o chão não foram feitas.
Nesta noite, fui documentarista, registrando cenas fundamentais para revelar aquele
espaço em que os garotos estavam, e também fui quem filmou o aniversário de Patrícia, mãe
de Rafael, que tanto queria um registro daquele momento especial. Nessa negociação, saí
ganhando. Acompanhei os garotos pelas ruas do bairro em dois momentos: num primeiro,
quando foram à entrada da Prainha para buscar a irmã de Vanderson, que mora no bairro
Cabanas; num outro momento, quando foram buscar um amigo, de 14 anos, gay e que mora
com a mãe. No primeiro momento, ao passarmos pelas ruas, um grupo de homens que estava
em frente a uma casa gritou em tom de deboche: “Oi, meninas!”. Apenas Vanderson
respondeu. Infelizmente, a câmera não estava ligada. Pergunto se esse tipo de abordagem é
comum e Vanderson e Rafael dizem que sim. Ao chegar à porta da casa de Rafael, ligo a
câmera e pergunto se comum serem chamados de “meninas” ao caminhar pelo bairro.
Ambos dizem que sim mas que não se importam com isso e dão uma resposta empoderada a
respeito e que está no documentário.
Subimos para a festa, fiz novas imagens. Inclusive, num dado momento de
semiembriaguez, Vanderson quer ser declarar para irmã. Ele diz que a ama e que ela sempre
deu muito apoio para ele. Reafirma que sempre foi muito amigo da irmã e de Rafael e diz:
“Tudo que pegou pra mim, pegou pra ela tamb m”. Depois disso, desliguei a câmera e
participo da festa com eles. Já era quase três da manhã.
Nesta visita, a intenção era levar os termos de uso de imagem, além de conversar sobre
a produção do documentário. No dia não levei equipamento e, como Rafael e Vanderson
estudam de manhã, decidi ir à tarde. Ao chegar ao bairro, fui direto à casa de Rafael, onde
encontrei sua mãe, Patrícia, a avó Maria das Graças, sua irmã Fernanda e a prima Flávia. Lá,
encontrei também com Vanderson, que passa a maior parte do dia com seu amigo Rafael.
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para aceitá-lo. Desde pequeno eu dizia: nossos meninos não são homens, não. É tudo viado!
Mas eles não acreditavam”.
Depois disso, Patrícia citou o exemplo de uma transexual que mora no bairro, dizendo
não entender porque tem “homem” que gay e tem necessidade de fazer cirurgia para retirar
os genitais ou “vestir de mulher”. Rafael, sua prima Flávia e sua irmã Fernanda disseram
acreditar que as pessoas nascem assim e que tem de respeitar. Vanderson retorna de onde
tinha ido e mudam de assunto.
Neste dia, pré-agendado com Rafael, chego à Prainha com Matheus Loreto, outro
amigo que se dispôs a colaborar nas filmagens. Matheus tem uma câmera e microfone de
lapela. Quando chegamos na casa de Rafael, ele havia esquecido de avisar a família de que
iríamos lá para entrevistá-lo. Somos recepcionados pela sua mãe, Patrícia, que estava irritada
pelo filho não ter avisado e, acredito que, seu incômodo era pelo fato de termos encontrado a
casa desarrumada e com todos os familiares despojados usando roupas do cotidiano.
Passado o incômodo, Rafael, que estava dormindo, lava o rosto e, no tempo todo que
antecede as filmagens desse dia, sua mãe diz que ele devia ter, pelo menos, varrido a casa
para nos receber. Depois de algum tempo, pergunto a Rafael se podemos gravar no seu quarto
e que ele teria o tempo que quisesse para se arrumar antes das filmagens. Ele decide ajeitar o
cabelo enquanto montamos os equipamentos em seu quarto.
O quarto, pequeno, dispunha de uma cama de casal, guarda-roupas, mesa para bonecas
monster-high e uma outra para outros brinquedos, como carrinhos, dinossauros. Questiono
Rafael sobre o porquê de a mesa onde fica as bonecas estava limpa e organizada enquanto a
outra estava totalmente empoeirada e desorganizada. Ele ri e diz que há tempos não usa os
brinquedos da mesa onde tem carrinhos e dinossauros e completa comentando que tem muito
brinquedo que era de um irmão caçula, já falecido.
Após organizarmos os equipamentos e testá-los, iniciamos a conversa. Peço que
Rafael se sinta à vontade para a entrevista, inclusive, se ele quisesse, poderíamos mudar a
disposição da cama e objetos de filmagem. Num primeiro momento, havíamos colocado ele
na cabeceira da cama, porém, ao percebermos que ficaria distante das bonecas decido mudar a
organização da cama apoiando a parte inferior numa das paredes próximas das bonecas.
Depois disso, peço para que ele se sente, apoiado num travesseiro junto à parede, ao lado de
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suas bonecas. Questiono se está numa posição confortável e ele diz que sim. Iniciamos a
conversa.
Após as primeiras perguntas, já familiarizado comigo e com a câmera, Rafael não se
intimida e responde a todas perguntas sem hesitação ou constrangimentos. As interrupções
durante as filmagens só ocorreram devido a picos de luz na casa. Alguns sons diegéticos,
como alguém tocando violão do lado de fora e carros passando, serviram para compor a
narrativa dentro desse ambiente de periferia, uma vez que não comprometeram as respostas
dadas por Rafael.
Observação: As gêmeas Rayene e Rayele desistiram de continuar as filmagens no
meio do processo. A justifica delas era, inicialmente, de que não ficavam muito tempo em
casa e que, por isso, seria difícil continuar. Na ocasião, disse a elas que poderia acompanhá-
las nas rotinas cotidianas fora de casa e que isso não seria problema. Porém, após algumas
insistências e mostrar o teaser que foi produzido, elas aceitaram continuar, desde que fosse
após as eleições. Num segundo momento, descobri através de Patrícia, mãe de Rafael, que o
pai das gêmeas havia se candidatado a vereador em Mariana. Sendo assim, decidi fazer as
últimas entrevistas com as gêmeas antes que elas desistissem novamente.
23 de outubro de 2016
Para esta visita, havia planejado fazer as últimas entrevistas com as gêmeas Rayene e
Rayele em frente à Capela de Santo Antônio. Esteticamente essas imagens seriam valiosas
pela sua composição, principalmente por ser uma região de relevo, onde é possível ver todo o
bairro e capturar todos os ruídos desse ambiente periférico. Também havia planejado
entrevistar Rafael e Vanderson no campinho de futebol do bairro. Porém, nenhum dos
planejamentos foi possível. No dia das filmagens, Ouro Preto e Mariana amanheceram sob
forte chuva. Com isso, tivemos de gravar as últimas imagens do documentário nas casas dos
sujeitos.
O ambiente escolhido para a primeira entrevista, com Rayele, foi a uma das varandas
de sua casa. No ambiente, havia diversos elementos que compõem o cenário de uma casa de
zona rural, com porcos, cães, carroças, galinhas, patos e muitos objetos usados em lavouras e
agropecuária. Neste dia, sua irmã Rayene não teve condições de participar, pois havia
adoecido e precisou ir ao hospital. No entanto, fizemos, eu e minha amiga Raquel Salazar que
se dispôs a me ajudar, uma entrevista com Rayele e sua namorada.
Durante a entrevista, houve muitas interferências externas, como a presença de
trabalhadores na casa, que ficavam o tempo todo atravessando o caminho para pegar algum
35
objeto. Além disso, tivemos dificuldades em encontrar um local com boa luminosidade e que
fosse protegido da chuva.
A entrevista se iniciou apenas com Rayele, sem a presença, ainda, de sua namorada.
Conversamos sobre como ela lida com o fato de ser lésbica num ambiente de periferia,
relação com família, militância no Instituto Federal de Educação de Minas Gerais - campus
Ouro Preto. Na conversa, ela suscitou a questão de ser, além de lésbica, negra. Neste
momento, ela deixou claro que se percebeu negra aos cinco anos de idade, quando notou que
a maioria das meninas da sala eram brancas e se encaixavam num padrão estético de beleza.
Nesta conversa e última filmagem, Rayele comentou sobre a comparação, na infância,
com as artistas Pepê e Neném. Ao final da entrevista com Rayele, sua namorada chegou e
participou de alguns diálogos.
Depois de entrevistar Rayele, partimos em direção à casa de Rafael, onde faria a
última filmagem. Neste dia, também havia agendado com Vanderson de encontrá-lo na casa
de sua mãe. Quando chegamos à casa de Rafael, estava tudo trancado. Isso já era por volta de
onze da manhã. Após insistência em continuar gritando do lado de fora, a irmã de Rafael,
Fernanda, abre a janela e diz que estavam dormindo e, por isso, ninguém estava ouvindo.
Digo que havia agendado entrevista com Rafael e ela nos recebe na porta e vai em direção ao
quarto do irmão para acordá-lo. Neste dia, a mãe de Rafael também participaria da conversa.
Quando todos acordam, incluindo Patrícia, mãe de Rafael, percebo que a noite anterior
havia sido bem agitada para todos. Patrícia estava de ressaca. Ela surgiu na cozinha vestida
com o lado do vestido, que deveria ser o frontal, virado para trás. Senta no sofá e começa a
contar sobre a noite anterior. Patrícia diz que “bebeu demais”. Em seguida, Rafael acorda e
diz que tinha perdido a hora da catequese e que o pai iria lhe matar por isso. Inclusive, a
sugestão de marcar a entrevista para onze da manhã partiu do rapaz, já que teria catequese
logo cedo.
Após alguns minutos de conversa, Patrícia pede um tempo para tomar banho e se
arrumar. Digo para ficar tranquila e afirmo que poderia levar o tempo que fosse necessário e
que o mesmo valeria para Rafael. Alguns minutos depois, inicio a conversa com os dois. O
tempo todo da entrevista, Patrícia reclama que está com ressaca. Digo a ela que poderia fazer
pausas ao longo da gravação. E, por isso, em alguns momentos, há pausas entre uma pergunta
e outra ou retomadas de assuntos porque ela perdia o raciocínio das coisas. Os assuntos
abordados foram relação familiar, aceitação da sexualidade de Rafael, namoro, dentre outros.
Neste mesmo dia havia combinado uma entrevista com Vanderson. Como ele não
apareceu, fomos atrás de sua mãe que estava na casa de uma amiga. Segundo ela, Vanderson
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havia se envolvido em alguma confusão na noite anterior e foi preciso pagar um táxi para
levá-lo à casa da irmã, no bairro Cabanas. Ainda segundo a mãe, ele saiu de madrugada, antes
do dia amanhecer, porque senão ela não saberia o que poderia ter acontecido se ele tivesse
esperado amanhecer o dia. Por isso, não foi possível realizar outra entrevista com Vanderson.
7
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm.
8
De acordo com a ANDI – Comunicação e Direitos, organização que trabalha na promoção dos direitos da
infância e da juventude, é interessante identificar a criança ou adolescente entrevistado quando: ela entra em
contato com o repórter para exercer sua liberdade de expressão e seu direito de ter sua opinião ouvida; quando a
criança é protagonista de programas de ativismo ou de mobilização social (e deseja identificar-se); quando
participa de programas psicossociais e a menção de seu nome é parte de seu desenvolvimento saudável. Fonte:
http://www.andi.org.br/dicas-para-cobertura.
9
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veda expressamente apenas a publicação de nome e imagem de
crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional (art. 247), mas o jornalista deve estar atento ao
"espírito da lei", que estabelece: "É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a
salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (art.18). Fonte:
www.andi.org.br/dicas-para-cobertura.
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Para além das discussões legais e éticas envolvidas nessas escolhas, acredito que não
trazer no documentário algumas problemáticas vivenciadas no convívio familiar, é repetir
uma visão romantizada do que é ser cidadão, jovem, LGBT, e de periferia. Faz-se necessário
revelar que, para além das questões que envolvem o ato de se assumir e se empoderar num
ambiente onde os preconceitos são verbalizados em alto e bom som e, muitas vezes,
manifestados com agressões físicas, o sujeito LGBT não está livre do contato com drogas
lícitas, como bebidas alcoólicas, e de tão fácil acesso. Ele está imerso nesse meio e, assim
como muitos outros jovens que não são de periferia, nem são LGBTs, eles também têm
contato com bebida alcoólica (ver “APÊNDICE A”) ainda na fase da adolescência. Ressalto
que fui orientado a ler o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e reafirmo que não
acredito que, na montagem, os sujeitos foram expostos a situações degradantes como o
Estatuto condena. Durante todas as filmagens eles estavam sendo acompanhados pelos pais,
responsáveis legais dos adolescentes, sendo o consumo de bebida autorizado por eles.
É preciso, também, ressaltar que, para as filmagens, foi preciso contar com a
colaboração de amigos (ver “APÊNDICE C”), tanto para ajudar a carregar equipamentos,
quanto para ajudar na edição, e fazer eventuais imagens. Sem contar que, por ter usado
diferentes tipos de microfones, na montagem, a oscilação de áudio entre uma cena e outra,
além das limitações de ajustes possíveis pelo programa de edição, alguns diálogos ficaram
comprometidos. Dentro das possibilidades, consegui regular os áudios cena a cena, porém,
ainda assim, é possível notar algumas pequenas oscilações. Muitas vezes, na hora de captar as
imagens, os cabos com mal contato também interferiram em diversas entrevistas, fazendo sair
ruídos que sobrepunham a fala dos entrevistados.
Montagem: no processo de montagem, fiz uma decupagem de todo material que havia
filmado. Após analisar tudo que tinha, tirei uma tarde de domingo para escolher cada cena que
iria compor a versão final. Usei algumas folhas de caderno para mapear quais se encaixavam
e optei por colocar em sequência as entrevistas que abordavam temas semelhantes: família, se
assumir, amores, medos. As entrevistas foram intercaladas por ambientações que diziam sobre
aquele lugar periférico do qual os meninos e meninas estavam inseridos. Desde o cachorro no
quintal das gêmeas às ruas e calçadas por onde Vanderson e Rafael circulavam. Numa
primeira montagem, apenas juntei as cenas. Depois, afinei o áudio, cena a cena, e apurei os
pequenos ruídos entre uma e outra. Além disso, escolhi duas canções (abertura e
encerramento) que dialogassem com a temática.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
longo do processo, a potência do que é estar num filme. Com o cuidado e orientação da
família, abriram o baú de suas histórias para o documentarista e, se mostraram, dentro de um
recorte possível - e que não anula os tantos outros que o audiovisual foi incapaz de capturar -
que viver em periferia é uma luta constante. Mas, que, apesar disso, o que estavam fazendo
era importante não só para eles, afinal, era um registro de suas vidas, mas que, a partir dessa
montagem possível, tantos outros LGBTs de periferia poderiam se ver no vídeo e se sentirem
representados. E, além disso, se sentirem mais empoderados.
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REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações
homoafetivas no Brasil. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC. São Paulo,
n. 17, p. 105-138, jan-jun. 2011. ISSN 1983-2303. Justificativa: Sendo a aprovação do
casamento igualitário no país uma das maiores conquistas do movimento LGBT, é importante
pesquisar os aspectos jurídicos e o embasamento legal que fundamentaram sua aprovação. Por
isso, o artigo do então ministro do STF é tão relevante.
CORREIA, João Carlos. A construção social da realidade: por um modelo integrado. In:
CORREIA, João Carlos. Teoria e crítica do discurso noticioso: notas sobre jornalismo e
representações sociais. Covilhã: LabCom Books, 2009, p. 169-184.
LEAL, Bruno Souza; CARVALHO, Carlos Alberto. Sobre Jornalismo e homofobia ou: pensa
que é fácil falar? . Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós Graduação em
Comunicação | E-Compós. Brasília, v.12, n.02, p. 1-15, maio-ago. 2009. ISSN 1808-2599.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário?. 2ª ed. São Paulo:
Editora Senac, 2008.
42
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais.
Org. Tomaz Tadeu da Silva. Stuart Hall, Kathryn Woodward. 10ª Edição. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2011.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 5ª Edição. Campinas, SP: Papirus, 2003.
APÊNDICE A - Roteiro
Cena 16 04:27 - 04:47 Avó de Rafael fala sobre a família não ter
preconceito
Cena 40 17:36 - 17:53 Mãe de Rafael diz que “no Carnaval todo
mundo se revela” e Rafael fala que nessa
ocasião o salto machucou o pé
Cena 53 22:57 - 23:05 Vanderson fala que quando era pequeno era
“o gay” e, agora que cresceu, resolveu virar
“homem”
Cena 61 27:25 - 27:40 Rayele fala sobre o que a faz feliz junto à
namorada e, ao final da fala, dizer que ela a
faz feliz, escuta um “eu te amo”
Participantes:
Rayene Sacramento
Rayele Sacramento
Rafael Júnior
Vanderson Fonseca
28:18 - 28:21
Texto 2:
Agradecimentos:
César Henrique
Raquel Salazar
Matheus Loreto
28:27 - 28:42 Monique Torquetti
Texto 4:
48
Participante Idade
Rayene Sacramento 16
Rayele Sacramento 16
Rafael Júnior 16
Vanderson Fonseca 16
50
Cor/PB Cor
Origem Brasil
Gênero Documentário
Duração 28min50s
Classificação livre