Afinal de que adianta tudo isso que se tem na mesa se
não se pode cheirar e o bom mesmo é cheirar tudo que
se tem no corpo desnudo e mudo de um defunto inerte que me olha sem olhos abertos, mas encara através das pálpebras insólitas e diz que nada mais resta a ser feito. Eu digo que não adianta ter células túrgidas e sem cacifo se simplesmente o sangue arroxea a pele e permanece apenas o tom amarelado de pequenas hemorragias nos capilares recheados de heparina. Onde acharei um vérmix mais brilhante que este que vejo agora, ou mesmo uma cerebral posterior mais tortuosa e tão sinuosa que se confunde com vascularizações de um amontoado de glia tumoral? E essas placas ateromatosas que teimam em obstruir o mais grosso calibre de uma carótida interna e causam vertigens tão despropositais. E a substância negra que de tão negra não se o menor vislumbre de um bom funcionamento. Odor de óleo noneal invade narinas delicadas, mas também acostumadas ao cheiro da cadaverina e da putrefina, tão qual um frasco quebrado da mais concentrada citronela. Rompe-se o esterno e lá está o órgão murcho e inerte que um dia pulsou tão bem, tão rápido no gozo supremo de uma vitória. Mãos inertes, tão silentes, quanto um dia apontaram o dedo médio para um desafeto, mesmo que os dedos sejam pequenos e bem feito, ainda assim representam a ameaça de um agarrar de pescoços na calada da noite, para quem teme os fantasmas. Um cérebro cavado até onde se pode cavar, ventrículos lacerados e rotos tão qual uma parede de papelão após dias e dias de chuva, soltando retalhos brancos e sangue, misturado ao cefalorraquidiano líquido, tão pleno de células, tão difusamente espalhado pelas profundezas astrocitais com seus redutos protoplásmicos cheios de microcistos onde ínfimas lagoas apodrecem neurônios. E uma haste de captação prende, na safena da perda, trombos soltos como balão em chamas. O abdômen globoso e certamente inflado por gazes que não se expulsam por inércia. Um órgão vesical que se irrita e não cansa de expelir o restolho dos rins. Declaração de ó.: escreva lá o que quiser, mas nós sabemos que muito antes de chegar à mesa, estava lá tão cadáver, quanto se pode ser, quando já nada mais resta de esperança, quando lhe roubam o braço, os olhos, a perna, e devagar a vida que se ofereceu a outros, volta-se contra si em um pote amargo de tristeza, pois o tempo passou e nada de bom ofereceu exceto medo, mágoa e ressentimento. Traga-lhe lá um traje simples de roupa de baixo, calça e camisa, deixa que se coloque um sorriso, ainda que murcho, na boca, deixa que lhe feche os olhos e cruze os braços e desça o corpo ao abrigo de madeira, rodeado por flores tão brancas, tão inocentes como quem neste exato momento chega à vida. Riamos meu amigo, das próprias cantigas de amigo, que outrora cantavam lá nossos ancestrais, quando estavam a se cortejar entre um baile e outro e deixa lá tios, primos distantes, seguirem com suas violas e o que mais for, para alegrar d’alma um tantinho assim que já estará justo.