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A FORMAÇÃO DO LEITOR E O ENSINO

DA LITERATURA

Ricardo Magalhães Bulhões

Doutorando em Letras – UNESP – Assis-SP; Professor da FAI – Adamantina; UNIP-Assis

RESUMO
Trata-se de relato e pesquisa em andamento. Teoricamente o seu objetivo básico é sugerir certas
conexões entre literatura e ensino, verificando em que medida os meios tradicionais de expressão
são afetados pelo poder transformador da linguagem, observando também alternativas
metodológicas mecânicas que promovem o desinteresse pela leitura de textos literários.

Palavras-chave: Formação do leitor, ensino de literatura, papel do professor; literatura e ensino,


leitura e criatividade.

READER EDUCATION AND TEACHING OF LITERATURE

ABSTRACT
This is a report of an ongoing research. Theoretically its basic objective is to suggest certain
connections between literature and education, verifying to what extension the traditional ways of
expression are affected by the transforming power of language, also observing mechanical
methodological alternatives, wick promote the lack of interest for literature texts.

Key words: Reader education, teaching of literature, teacher role, literature and teaching, reading
and creativity.

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O ENSINO DA LITERATURA E A natural, portanto, que se fale de uma possível
FORMAÇÃO DO LEITOR
crise do ensino de uma determinada literatura
escolar, percalços existenciais em que o
O ensino da literatura, compreendendo
professor sofre várias pressões e se vê entre
literatura como disciplina escolar dos níveis
Deus e o Diabo.
fundamental e médio, pressupõe antigas e
Como já salientava Laura Mancinelli (1995),
novas inquietações, relacionadas às diversas
no artigo intitulado Literatura e pessoa histórica,
experiências vivenciadas na prática da sala
"a literatura, assim como a música e a arte
de aula.
figurativa, é considerada uma produção sem
Ligado a múltiplos fatores, sempre
aplicação prática. É contestada com mais
emergentes - condições econômicas,
intensidade apenas porque é mais amplamente
culturais, políticas, dentre outros - deve ser
ensinada e muitas vezes imposta". Segundo a
analisado como algo a ser continuamente
autora, "a música e a história da arte também
construído, sendo, ele mesmo, um
seriam contestadas se fossem ensinadas de
permanente "estado" de tensão.
maneira maciça nas escolas".
Estado de tensão na medida que o
Todas essas inquietações foram
professor de Língua e Literatura depara-se,
devidamente levantadas e discutidas por três
freqüentemente, com conflitos e indagações
pesquisadoras que entrecruzaram diferentes
fundamentais, sobretudo quando a tônica
abordagens e apontaram inadequações
principal é o aprofundamento do seu próprio
metodológicas relacionadas a não consideração
papel.
da esteticidade da Literatura. Falamos dos
De um modo geral, no diálogo com seus
trabalhos Literatura-Ensino - Uma problemática,
alunos, surgem questões de diferentes
de Maria Fraga Rocco; e Literatura: a formação
vertentes, lançadas informalmente, como por
do leitor, das autoras Maria da Glória Bordini e
exemplo: para que serve o ensino da
Vera Teixeira de Aguiar.
literatura? Ou qual seria a sua finalidade e
Nosso texto, aqui constituído, tem em vista
aplicação prática? E aparecem dúvidas
a preocupação de sublinhar apenas um
quanto à importância e a utilidade do livro
determinado assunto, no meio desse território
didático na sala de aula, dúvidas quanto à
livre e movediço. Optamos por abordar alguns
representatividade das velhas antologias
aspectos problemáticos referentes à aplicação
escolares, e um sem número de indagações
de métodos de estudo no ensino de uma
que acabam gerando uma certa sensação de
literatura escolar, que geralmente segue um
crise.
modelo preestabelecido pelo livro didático.
À medida que nos aproximamos das
Para começar, foi preciso resgatar alguns
polêmicas colocadas, fala-se mais e mais de
conceitos básicos sobre o papel e função da
crise. Crise dos valores morais, crise do
literatura, trazendo à superfície o texto do
cinema, crise da literatura. Nada mais
professor Antonio Cândido, A literatura e a

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formação do homem, pertencente à revista segundo a qual o ensino da literatura só adquire
"Remate de Males" (1999). validade na medida que demonstra que tanto a
Escrito com docilidade e clareza, sua produção literária como as teorias sobre
análise apresentou-se - inicialmente - como literatura são parte integrante e indissolúvel de
uma espécie de instância condutora, que iria um processo histórico que contém em si todas
respaldar as demais. as formas do saber, desde o saber das classes
Para Antonio Cândido, o ensino da dominantes, consagrado como oficial, até o
literatura não pode partir de um ponto de saber das classes subalternas, em grande parte
vista estritamente pedagógico, seguindo os ignorado e sempre correndo o risco de
requisitos das normas vigentes. "A literatura sucumbir".
pode formar, mas não segundo a pedagogia Interessa a todos os professores que
oficial, que costuma vê-la ideologicamente procedimento se deve adotar para tirar o maior
como um veículo da tríade: o verdadeiro, o "rendimento" possível de uma leitura. Uma
bom, o belo, definidos conforme os leitura, que além do conhecimento lingüístico
interesses dos grupos dominantes". Na propriamente dito, promova um repertório de
verdade, "longe de ser um apêndice da informações exteriores ao texto.
instrução moral e cívica, ela age com o No terceiro capítulo do livro Literatura-
impacto indiscriminado da própria vida e Ensino: Uma Problemática - Maria Tereza Fraga
educa como ela, com altos e baixos, luzes e Rocco (1992) levantou, numa pesquisa piloto
sombras". realizada com professores em escolas da capital
e da grande São Paulo, problemas de várias
Não sendo, muitas vezes, apresentada ordens.
como obra de arte, possuidora de valor O primeiro problema com o qual se
estético, a literatura acaba se prestando a deparou, nas entrevistas realizadas com
exprimir valores ideológicos ou moralizantes, professores, dizia respeito ao próprio conceito de
tornando-se o que Antonio Cândido chamou ensino de literatura e seus objetivos. As
de "apêndice". afirmações feitas revelavam "ausência de
Vários autores literários consagrados critérios, concepções distorcidas, confusões
são abordados nos livros didáticos como conceituais" onde prevalecia "a idéia de que
vultos nacionais. Personalidades importantes literatura é uma coisa e texto outra, onde são
em momentos de afirmação dos chamados privilegiados os aspectos da biografia do autor,
"valores nacionais"; exaltação da aquisição de cultura, um tipo de história..."
personalidade do escritor e a preocupação Uma outra estratégia apontada pela autora,
em fixar para a posteridade a sua imagem muito utilizada até hoje, é a de entender o texto
como patrimônio, consagrando como oficial o seguindo uma orientação histórica, sociológica
saber das classes dominantes. ou psicológica, não havendo uma preocupação
Cumpre-nos destacar, novamente, com o objeto estético, no caso a obra literária.
Laura Mancinelli, no trabalho já aludido, Assim sendo, o livro didático acaba

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adquirindo um caráter aleatório e superficial, descompromissada, a falta de estímulo da
distanciando-se dos valores estéticos, deixa criatividade e do senso crítico, recorrência de
de ser um conjunto de métodos de fórmulas prontas e o uso dominante do livro
abordagem e produção textual. Podemos dar didático com textos fragmentados e com
um bom exemplo desse tipo de leitura preocupações meramente gramaticais.
promovida pelo livro didático Língua, Ressaltam que o texto literário é pretexto para o
Literatura e Redação volume 3, do estudo da gramática e não é vinculado à
consagrado José de Nicola. experiência de vida do aluno.
No capítulo quatro, do referido livro, Ainda dentro dessa linha de pensamento,
temos um fragmento de Os Sertões, de Laura Mancinelli demonstra-nos "que muitas
Euclides da Cunha. O parágrafo escolhido vezes os alunos gostam da literatura, ou mantém
mostra um Euclides imaginoso, perfeito com ela uma relação de amor e ódio.
contador de histórias na caracterização do Instintivamente a amam, mas por uma espécie
personagem Antônio Conselheiro. Eis um de lógica pragmática a rejeitam". Em nome de
pequeno trecho: uma prática mais emancipatória, ela assinala
"E surgia na Bahia o anacoreta com propriedade: "... não acredito que seja
sombrio, cabelos crescidos até aos
suficiente dizer que o estudo crítico da literatura,
ombros, barba inculta e longa; face
escaveirada; olhar fulgurante; feito através da aplicação de um método
monstruoso, dentro de um hábito
científico, acostuma a mente à análise dos fatos
azul de brim americano; abordoado
ao clássico bastão em que se apoia da existência, conferindo-lhe um habitus crítico
o passo tardo dos peregrinos..."
útil em qualquer circunstância". E acrescenta
mais adiante "o nosso papel de professores se
Depois do fragmento, o autor Nicola
frustraria gravemente se não acreditássemos na
chama a atenção para o perfil carismático de
sua real validade e, portanto, na necessidade
Antônio Conselheiro, dizendo que esse seria
existencial de conhecê-la".
um representante natural do meio em que
Essas considerações só vieram enfatizar
nasceu. Na seqüência, prossegue com
mais ainda um aspecto sedutor. Antes de se
perguntas eminentemente ligadas à história e
tornar disciplina escolar a literatura insinua-se,
à sociologia, fazendo perguntas sobre o
sem as elaborações ou critérios pedagógicos
momento histórico, conceito de positivismo,
que buscam um determinado fim. Ela substitui a
determinismo etc.
onipotência do saber pragmático pela visão do
Segundo Maria Glória Bordini e Vera
enigmático, propõe uma transgressão das
Teixeira de Aguiar (1988), no indispensável
convenções sociais e dos limites morais.
texto A formação do leitor - alternativa
O professor Alfredo Bosi declara no livro A
metodológica - o esvaziamento do ensino da
Formação do Leitor das autoras mencionadas
literatura se acentua por diversos motivos.
acima: "não sei se é possível constituir uma
Dentre eles as autoras apontam: a
metodologia muito precisa, como já se fez em
inexistência de uma leitura
matemática ou nas ciências biológicas em que o

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próprio objeto é mais preciso. Aqui, estamos precisar um momento ideal como instrumento de
diante de um ponto de convergência de motivação. À primeira vista, acreditamos numa
conhecimentos históricos, filológicos, de apresentação diversificada das obras, na
exigências, de gosto. Enfim, uma didática da capacidade de convivências possíveis entre
literatura teria que lidar com um número textos distanciados diacronicamente. Não
muito alto de variáveis". consideramos que esta retomada de obras
Assim, como nos apontou Bosi, o gosto passadas venha a provocar o desinteresse e o
pelo texto escapa freqüentemente de um afastamento do aluno.
modelo teórico preestabelecido. Geralmente, Mostra disso é o crescente interesse, por
o gosto pela leitura surge livremente; às parte dos alunos, por poetas de séculos
vezes em casa, ou folheando revistas numa passados, como Gregório de Matos, Álvares de
banca de jornal, num papo informal com Azevedo e mesmo Jorge Amado. O professor
amigos etc. João Alexandre Barbosa (1999) enxerga com
Conforme avaliou Fraga Rocco, muita clareza essa questão: "na verdade, a luta
entrevistando alunos do ensino médio, contra métodos tradicionais de ensino da
grande parte dos estudantes não gosta de ler literatura, com resultados positivos
na escola. Só o fazem quando se trata de inquestionáveis, muitas vezes descamba para a
exigência, obrigatoriedade da área de Língua recusa da própria tradição, sem a qual não é
Portuguesa. Na verdade, gostam de ler fora possível o estudo, ou mesmo a compreensão,
do ambiente escolar. Admitem total não apenas da literatura, mas das humanidades
desinteresse pela leitura promovida na em geral. Não, é claro, de uma tradição que veja
escola. Ainda segundo Fraga Rocco, há uma o passado como objeto apenas arqueológico ou
galeria interminável de obras, por eles arquivístico, mas de uma consciência de que as
citadas, como sendo "horrível", que vem obras do presente estão sempre informadas pelo
desde de Gil Vicente, passando por Alencar, conhecimento das tensões que articulam tempos
até chegar a Machado de Assis ou mesmo diversos e que, por isso, a rasura do passado
Graciliano Ramos. significa sempre o empobrecimento do objeto a
A partir desses resultados ser estudado".
insatisfatórios, a autora estabelece um Existe, enfim, um esvaziamento do ensino
parecer, dizendo: "em termo de ensino para da literatura, o destinatário a quem se dirige este
adolescentes e pré-adolescentes, acreditam ensino convive permanentemente com fontes
não ser a obra literária distante no tempo a diversas de estimulação da fantasia, outros
mais aconselhável". Sugere que o professor veículos e linguagens, como cinema, televisão e
deva iniciar seu trabalho por meio de textos a própria Internet. Maria Glória Bordini e Vera
contemporâneos, mais próximos da realidade Teixeira de Aguiar enfatizam que o primeiro
do aluno. passo para a formação do leitor se dá através de
Contrariando o modo estabelecido por uma real aproximação desse universo
Fraga Rocco, achamos que se torna difícil massificado. O livro didático, além da cultura

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oficial, deveria contemplar a junção destas à medida que cresce a população
linguagens. estudantil, atravessando os graus de
Fraga Rocco observa, como dado ensino e, hoje, confortavelmente
preocupante, o fato de que são adotados instalado, com toda a propriedade, na
livros cujos títulos tragam palavras mágicas, universidade, só foi possível porque
do tipo Comunicação & Expressão. Segundo vigora ainda a dificuldade de acesso a
a autora, isso ocorre tanto em livros didáticos outro tipo de livro."
de 1º quanto de 2º grau. Outro aspecto No passado, na primeira metade do século
negativo sublinhado são os roteiros dados, XX, o aluno era convidado a se sensibilizar para
que já trazem pré-determinados os critérios o mundo das letras, percorrendo a biografia
das análises, inclusive com respostas trágica ou heróica dos autores, vista sobre
prontas no tão famoso livro do professor. prisma idealista. O autor dialogava com seus
leitores, valendo-se, de julgamentos sábios,
Não há menor dúvida de que a difusão transmitidos pelos clássicos numa espécie de
do livro e da leitura no Brasil ficou a cargo da celebração litúrgica.
escola, principalmente após a revolução de Hoje, um novo tratamento é dado à
1.930, a partir da ampliação da rede pública biografia heróica dos cânones. A didatização
e da organização dos diferentes graus de desta biografia, heróica- trágica, não condiz com
ensino. Faz-se necessário transcrever aqui a expectativa dos alunos, não possibilita a
uma longa apreciação de Regina Zilberman intertextualidade anterior , que produzia um
(1988) que consideramos fundamental: efeito de catarse, um dialogismo entre as figuras
"Num primeiro momento, confinou míticas dos autores.
leitura à alfabetização, isto é, No presente, o olho de "pirata" de Camões,
aprendizagem e emprego do código destacado nos relatos biográficos e gravuras
escrito segundo a norma urbana exageradas, vira, facilmente, através da
culta. (...). A seguir, associou leitura mediação do professor, motivo de "chacota", já
com o conhecimento da tradição que tornou-se anacrônica a perspectiva trágica.
literária, valorizando o passado da No seu lugar, nos deparamos com o efeito
literatura nacional e os escritores cômico, inserido- acidentalmente- a partir de um
que então pontificaram. novo dialogismo. A elevação dos autores, nas
Estes, por seu turno, raramente são antologias e florilégios, mostrava-se associada a
consumidos por via direta, e sim um objetivo didático, mesmo que de forma vaga.
através da mediação do principal Na verdade, acreditava-se que, lendo ou
meio de leitura da escola brasileira: celebrando cânones, os alunos, assimilariam o
o livro didático, descendente das domínio de uma escrita exemplar.
apostilas e seletas de décadas Na avaliação de tal prática, Samir Mesenari
passadas. Porém, o êxito do livro (2002) lembra que a literatura estava presente
didático, cuja a produção aumenta nestas compilações, havia sim um vasto

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programa de literatura, ou melhor, de história perduram até hoje nas apostilas dos cursos pré-
da literatura, mas nunca se apurou se essas vestibulares, de Castro Alves sempre se repete
leituras realmente interferiam nas redações aquele incansável pedaço hiperbólico do Navio
escolares. Por exemplo, "o estudo da escola Negreiro, existe uma fácil tendência à
romântica e a leitura de românticos não simplificação das obras.
garantiam um estilo romântico na redação Vale lembrar que a prática da leitura foi
escolar." ostensivamente valorizada no século XVIII,
Dentre os organizadores de antologias e objetivando a propagação dos ideais iluministas
florilégios, o professor João Rodrigues da que a burguesia ascendente pretendia impor à
Fonseca Brandão foi um dos pioneiros com a sociedade da época. Nesse sentido, acrescenta
compilação do florilégio brasileiro da infância, Regina Zilberman:
obra que reunia sonetos líricos de Gregório "Valorizando o livro enquanto
de Matos, poemas bucólicos de Tomás instrumento de cultura e usando-o
Antônio Gonzaga, hinos de Gonçalves de como arma contra a nobreza feudal
Magalhães, canções de Gonçalves Dias e que justificava seus privilégios
vários outros autores. evocando a tradição que os
Percorrendo algumas antologias consagrara, os pensadores iluministas
predominantes no início do século XX, nossa procuraram solapar uma ordem de
questão fundamental era saber qual o critério conceitos a até então dita como
estabelecido por estes organizadores de inquestionável e reivindicaram um
antologias. Nossa especulação evidenciou modo de pensar apoiado tão somente
algumas contradições. O valor dos trechos no exercício do raciocínio e na
escolhidos dependia inteiramente do verificação para assegurar suas
julgamento do compilador, no qual reunia certezas, abolindo o prestígio da magia
num só volume fragmentos considerados e da religião."
representativos sem se quer justificar o
critério desta representatividade. Para Em seguida, constata outro ponto
complicar, estes textos ficavam relegados a fundamental:
prática de exercícios incansáveis, "Os iluministas inauguram, de um lado
averiguações lingüísticas, etimológicas, o racionalismo contemporâneo que
semânticas, referências históricas e tantas confere à ciência uma importância até
outras apreciações. aí desconhecida por ela, de outro, uma
Além de desviarem os leitores da ideologia da leitura, baseada na crença
consulta direta dos autores, prevalecia, de que a educação, a que se tem
ainda, o critério da notabilia, a escolha dos acesso pela aquisição do saber
textos consagrados, passagens fora de seu acumulado em livros, é a condição
contexto original. Encontramo-nos aqui primeira de uma bem sucedida
diante de um dos maiores problemas que escalada social."

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com o declínio da lavoura, o crescimento
Sob esse ponto de vista, será portanto gradativo dos centros urbanos, sobretudo com a
sensato considerarmos a leitura como uma vida da corte portuguesa em 1.808, tivemos uma
espécie de propriedade que se manifesta,de compreensível mudança de cenário.
forma pragmática e utilitarista.O acesso ao Com a expansão, mesmo que lenta, desse
livro era fundamentalmente voltado para a novo mundo, outras convenções adquirem
alfabetização,o que promoveria, legitimidade. Percebe-se, de forma mais
naturalmente, ascensão social. ostensiva, uma preocupação com a formação
O surgimento efetivo de um público educacional dos filhos dessa oligarquia agrícola.
leitor, deve ser visto só a partir do final do Alguns livros registram essa preocupação. João
século XVIII, com o nascimento do mundo Antônio A. Antonil, jesuíta e cronista, faz, em
burguês, encorajado pelas transformações 1.711 uma comparação entre o civilizado e
políticas, econômicas e culturais. "tabaréu". Tal fragmento, garimpado do
Encontramo-nos aqui diante de vários indispensável estudo A Leitura Rarefeita, das
fatores. É necessário reconhecê-los por autoras Regina Zilberman e Marisa Lajolo
intermédio de uma colocação de Marisa (1991), vale a pena ser destacado: "Criá-los
Lajolo (2001): tabaréus, que nas conversações não saberão
"Com a vitória política da burguesia, na falar de outra cousa mais que do cão, do cavalo
França de 1789, começa um ciclo cultural e do boi."
novo. Do outro lado do Canal da Mancha, na Sérgio Buarque de Holanda atesta que, no
Inglaterra, a industrialização criava um modo âmbito da vida privada, na primeira metade do
novo de produção. Desaparecia o artesão e século XIX, os lavradores e donos de engenho
em seu lugar aparecia o operário. Entre o passam a incentivar seus filhos a terem certas
operário e a mercadoria que ele produzia, virtudes intelectuais. O historiador salienta a
estavam as máquinas, cada vez mais importância dada aos títulos honoríficos como
aperfeiçoadas. por exemplo anel de grau e a carta de bacharel.
Para fazer a máquina funcionar, o Jovens alunos que ocupariam funções citadinas,
operário precisava saber ler. Abriram-se na política, no judiciário, ou mesmo em algum
escolas. A alfabetização espalhou-se, a cargo burocrático no império e posteriormente na
difusão da leitura ampliou muito o mercado república.
disponível para livros." Pode-se mesmo dizer que o interesse pelo
Rompido o isolamento, paralelamente, a ensino médio, só ficou mais evidente, sobretudo,
literatura romântica passa a conquistar de a partir de 1.850 quando começa a aumentar o
vez, através dos folhetins, uma prática mais número de cursos superiores no Brasil. Porém, o
democrática de leitura, uma maior liberdade acesso ao ensino superior não dependia de
centrada no sentimentalismo e na fantasia. exames de seleção que exigiriam freqüência no
No Brasil, a história da leitura mergulha ensino secundário, tornando-o supérfluo e
no interior de vários territórios. Inicialmente, dispensável.

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É interessante notar, que, a motivação iniciada em câmera-lenta por Dom João VI- com
pelo saber, acessível a poucos, parece ter-se a criação da Biblioteca Nacional e Pública da
fundado numa concepção que transcende a Corte, organizada precariamente com livros
racionalidade. A leitura teria um caráter trazidos pelo próprio imperador- ganhava agora
ornamental, uma virtude a ser degustada um efeito maior.
pouco a pouco por homens nobres e livres. Assumindo um papel de monarca ilustrado,
Com muita precisão, o autor de Raízes Dom Pedro apoiou oficialmente a criação do
do Brasil, revive este momento: "O trabalho IHGB, que funcionaria no Paço Imperial, órgão
mental, que não suja as mãos e não fatiga o responsável por uma escrita sobre a história do
corpo, pode constituir, com efeito, ocupação Brasil, escrita por seus próprios compatriotas.
em todos os sentidos digna de antigos Por essa ocasião, tivemos também, no dia
senhores de escravos e dos seus herdeiros. oito de Abril de 1.880, a inauguração da Escola
Não significa, forçosamente, neste caso, Normal da Corte, na augusta presença da sua
amor ao pensamento especulativo-a verdade majestade imperial, sob a presidência do diretor
é que, embora presumindo o contrário, interino Benjamin Constant Botelho de
dedicamos, de modo geral, pouca estima às Magalhães, escola responsável pela formação
especulações intelectuais- mas amor à frase de professores do nível de instrução primária.
sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à Sérgio Buarque de Holanda (1986), localiza
erudição ostentosa, à expressão rara. É que a grandeza deste nosso imperador ilustre:
para bem corresponder ao papel que, mesmo "Dom Pedro, que foi, ao seu tempo, um
sem o saber, lhe conferimos, inteligência há protótipo da nossa intelectualidade oficial, levou
de ser ornamento e prenda, não instrumento a devoção aos livros a ponto de se dizer dele,
de conhecimento e de ação." com alguma injustiça, que a praticou mais
O apreço exagerado ao livro, visto como assiduamente do que serviu aos negócios do
artefato luxurioso, livro como página Estado."
impressa, pode também ser notado a partir No entanto, posteriormente, mesmo com a
da figura notável do nosso imperador Dom pressão de fatores externos, preocupação dos
Pedro II. partidários da República com um analfabetismo
Sendo uma figura representativa dessa que atingia mais de 70% da população, o ensino
tentativa de formação de uma permaneceu restrito a um pequeno grupo
intelectualidade nacional, nosso monarca foi oriundo das oligarquias rurais, que mandava
uma espécie de mecenas, freqüentador seus filhos para a Europa ou algumas capitais do
assíduo de exposições de quadros e um próprio país.
profundo admirador da página impressa. A leitura regular de obras literárias
Tempo houve em que o livro, em si, permanece como "ornamento" de poucos e
sinalizaria a busca por uma vida mais esbarra na falta de um público leitor expressivo.
refinada, civilizada, citadina. O processo de Outra dificuldade seria a própria escassez de
formação de uma intelectualidade nacional, publicações. O público leitor limitava-se a

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anônimos leitores de folhetins, jornalistas, BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera
estudantes, algumas moças, e os homens Teixeira de (1988). Literatura: a formação do
das letras em geral. leitor, alternativas metodológicas. Porto Alegre:
Não há menor dúvida de que a difusão Mercado Aberto. p.27
do livro e da leitura no Brasil ficou a cargo da
CÂNDIDO, Antonio (1999). Remate de males.
escola, principalmente após a revolução de
Campinas: Unicamp - Revista do Departamento
1.930, a partir da ampliação da rede pública
de Teoria Literária. p.05
e da organização dos diferentes graus de
ensino.
HOLANDA, Sérgio Buarque (1986). Raízes do
Os manuais ou antologias escolares
Brasil- Campanhia das Letras. p.147
atuantes nos arredores de 1.930, oferecem
alguns protocolos de uma sociedade em LAJOLO, Marisa (2001). Literatura: Leitores e
constante formação. De modo geral, Leitura. São Paulo- Moderna. p. 31
enxerga-se um certo encantamento pela
busca de uma verdade apoiada na LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina (1991).

cientificidade positivista, na qual defende a A Leitura Rarefeita- Brasiliense p.93

especulação do conhecimento por meio das


MANCINELLI, Laura (1995). Literatura e "pessoa
pressuposições teóricas de um especialista.
histórica". in: Papéis Avulsos. Assis: Unesp. p.27
Cria-se, então, o mito do especialista.
Um representante institucionalmente MESERANI, Samir (2002). O Intertexto Escolar.
reconhecido e autorizado conforme critérios Cortez 4° Edição.p.35
da classe dominante; uma figura ilustre,
diferenciada por saber configurar um modelo ROCCO, Maria Thereza Fraga (1992). Literatura-
cultural, podendo, assim, transmiti-lo para Ensino: Uma Problemática. Ática. p.109
seus concidadãos.
ZIlBERMAN, Regina (1988). A Leitura e o Ensino
Sabemos que não existe um modelo
da Literatura.- São Paulo- Contexto. p. 48
mágico na prática pedagógica centrada na
natureza do literário, o que não significa dizer
que não existam caminhos possíveis,
mecanismos que possam apresentar
resultados satisfatórios e fujam dos moldes
automatizados de aplicação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, João Alexandre (1999). Entre


livros. SP: Ateliê Editorial. p. 18

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