Você está na página 1de 26

16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Acórdãos TRC Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra


Processo: 1407/19.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: DOAÇÃO
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL DO DONATÁRIO
ENCARGO MODAL
INDEMNIZAÇÃO
FIXAÇÃO EM INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 01-06-2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE
VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 966º C. CIVIL; 609º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: I – Há violação de um dever lateral ou acessório imposto no
contrato de doação de bens móveis do designado “acervo
hereditário” / “Espólio do Dr. ...’, por parte do doador ora Autor, a
que correspondem as consequências do incumprimento contratual
pelo donatário, se transcorridos mais de 12 anos sobre a data da
doação, o Município Réu, em lugar de proceder em conformidade
com o encargo de criação de um museu ao qual estavam destinados
os bens, e pagar uma remuneração ao Autor como compensação
pela doação desses bens, nada fez.
II – Não conferindo a violação do encargo modal o direito à
resolução do contrato de doação, por esse direito não ter sido
expressamente previsto (cf. art. 966º do C.Civil), resta sempre o
direito do doador a obter uma indemnização.
III – Aquela obrigação de indemnização, sendo impossível a
restituição in natura, configura uma típica dívida de valor, em que
o dinheiro intervém como um meio de liquidação da prestação, não
sendo o dinheiro, em si mesmo, o objeto da prestação, a qual é
constituída por um valor patrimonial.
IV – Estando-se perante uma dívida de valor, tem de ser restituído
o valor correspondente à prestação em falta, a definir de forma
objetiva e atual, devendo a indemnização a arbitrar colocar o
doador na situação em que estaria se não se tivesse verificado o
facto que obriga à indemnização.
V – Não se detendo todos os elementos que permitam apurar
aquele valor, dever-se-á relegar a sua fixação para ulterior
incidente de liquidação, a processar nos termos dos arts. 358º a
361º do n.C.P.Civil, por tal se mostrar exequível – art. 609º, nº 2, do
mesmo n.C.P.Civil.
VI – Isto porque quando não estão determinadas as “balizas”
dentro das quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites
mínimo e máximo” – deve optar-se pela condenação «no que vier a
ser liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil.

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 1/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

VII – Sendo certo que só quando for de antever que a prova


pericial, ou outras diligências que possam ser ordenadas,
oficiosamente, não surtam efeito útil, o Tribunal deve decidir com
base na equidade e, assente em tal critério, fixar desde logo a
indemnização devida.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]


1 – RELATÓRIO
R..., divorciado, residente na ..., intentou a presente ação de
condenação sob a forma de processo comum, contra MUNICÍPIO DE
..., alegando para tanto e em síntese:
Autor e Réu, Município de ..., celebraram um contrato de doação
modal, por escritura pública de 17 de Maio de 2006; o objeto desse
contrato foram os bens móveis constantes do clausulado; o Autor era
dono e legítimo possuidor dos bens constantes das 567 fichas
devidamente identificadas e apensas em dois dossiers rubricados pelas
partes (livros, jornais, revistas e mapas, cadernos constituídas por
material filatélico e numismático, medalhístico, objetos vários, revistas,
jornais e outros), bens esses, na sua maioria enorme relevância histórica
e elevado valor material atendendo ao facto de neles se incorporar parte
do “acervo hereditário de ...”.
O contrato de doação obedeceu a condições essenciais: o doador
transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este edificasse
um futuro museu, sendo que o donatário aceitou a doação com dois
encargos: a criação de um museu e a garantir uma remuneração mensal
ao doador a partir de finais de 2007, no valor de €24.000,00 (vinte e
quatro mil euros) por ano a pagar ao Autor, em parcelas de € 2.000,00
(dois mil euros) mensais, o que foi reciprocamente aceite pelos Autor e
Réu, tendo o Autor entregue os referidos bens ao Réu e o A. doou ao
Réu 1/3 da herança indivisa de ...
Mais alega que, até hoje, e apesar do doador autor ter cumprido com a
sua palavra, o Réu não cumpriu os encargos da doação; o Autor por
diversas vezes e de formas diferentes interpelou o R., para que este
cumprisse os encargos, não o tendo feito.
Refere o Autor que foi levado a aceitar as condições do contrato
sempre de boa-fé, atendendo a uma preocupação altruística por um lado
e por outro lado egoística, com vista à perceção das referidas
contraprestações e que seria incompaginável que alguém pudesse doar
um acervo composto de relevante interesse histórico sem ter como

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 2/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

assente uma contrapartida séria, justa e aprazada, pelo que, com a falta
de cumprimento dos encargos por banda do réu, sofreu o autor um
prejuízo que se pode quantificar e qualificar pela expectativa e pela
certeza que se verteram no referido contrato, não se tendo conferido à
violação do encargo modal o direito à resolução do contrato de doação,
assistindo assim ao autor o direito de obter uma indemnização, nos
termos do disposto nos artigos 801º e 966º do Código Civil,
indemnização essa que ascende a €288.000,00 (duzentos e oitenta e
oito mil euros), cujos cálculo se efetua da seguinte forma: €2.000,00 x
12 = €24.000,00 x 12 anos = €288.000,00, acrescidos dos juros legais.
Conclui que a conduta do réu causou ao autor enorme transtorno
pessoal, social e tem afetado a sua saúde, pugnando assim, e na
procedência da ação por provada, pela condenação do Réu a pagar ao
Autor a quantia de €288.000,00 (duzentos e oitenta e oito mil euros)
acrescido de juros à taxa legal desde a citação e na procuradoria
condigna.
                                                                          *
Citado para contestar, o Réu ofereceu contestação, por exceção e por
impugnação.
Excecionou desde logo a incompetência do Tribunal em razão da
matéria do tribunal em razão da matéria, com os fundamentos
constantes da contestação apresentada, pugnando pela absolvição do
Réu. da instância, nos termos do nº 2 do artigo 576º e nº 1 do artigo 99º
todos do Código do Processo Civil.
Excecionou ainda o Caso Julgado, alegando ter corrido termos neste
juízo, ação com o nº ... finda e já transitada em julgado por transação
homologada por sentença; que tal ação foi intentada pelo aqui Autor
contra o Réu Município de ..., peticionado a resolução do negócio que
configurou a doação do “Espólio do ...”, definindo o seu objeto pela
referência aos bens entregues constantes dos cadernos juntos na
referida ação e que, por não ter sido concretizado o fim a que se
destinaria tal doação viria o negócio a ser resolvido por devolução dos
bens, o que se operou em conformidade com a sentença, vindo agora o
Autor, com nova ação, sustentada na mesma causa de pedir mas dela
pretendendo extrair outras consequências que não peticionou na
anterior ação, apesar de ter transigido no sentido de que a questão do
“espólio entregue/doado”, ficava definitivamente resolvida,
verificando-se assim a exceção de caso julgado prevista nos artigos
576º, 577º alínea i) , 580º, todos do Código de Processo Civil,
importando assim a absolvição da instância.
Em sede de impugnação, veio arguir a nulidade do contrato de doação,
alegando que o aludido contrato não é escritura pública nem tão pouco
poderá ser considerado como contrato de doação modal, tal com
configurado pelo Autor; que as declarações subscritas pelo então
Presidente do Município de ... e o Autor, sem qualquer deliberação
prévia do órgão competente e sem posterior ratificação do órgão
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 3/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

competente para tal, põe em crise toda a validade jurídica que daí se
possa ou pretenda extrair por via da presente ação, uma vez que atuou o
então Presidente da Câmara de ..., sem poderes para tal, agindo de
modo próprio em representação do Município, aceitando a dita doação
e aí consignando uma obrigação “modal” cujo conteúdo não poderia
vincular então ou para o futuro, o Réu.
Alegou ainda que é inquestionável que o autor quis transferir
gratuitamente para o domínio e posse do Município bens de sua
pertença em momentos distintos, e que alguns deles se mantém na
posse do Município, nomeadamente os que se reportam à entrega de
2002, doação manual que se consumou com a traditio, sem que tivesse
sido outorgado qualquer contrato ou outra formalização, para além do
inventário realizado por A. e os serviços do R. e que o que se pode e
deve extrair das declarações negociais em causa é que o A. doou os
bens que entendeu doar, por transmissão gratuita ao R., para que este os
destinasse a um futuro museu que e se viesse a edificar e tal condição
apenas se teria por incumprida pelo R. se tal museu já tivesse sido
edificado e aos bens em causa tivesse sido dado destino diferente, o que
não ocorreu, nem se tendo o R. vinculado perante o A. a levar a cabo
tal edificação, não sendo ele o titular do direito subjetivo inerente a tal
edificação, pois que a opção de tal obra caberia estritamente no âmbito
dos poderes de gestão do interesse público, definidas pelos órgãos
colegiais próprios (Câmara Municipal e Assembleia Municipal).
Impugnou ainda alegando que a doação do quinhão hereditário nos
bens imóveis teve por base a sua incapacidade de manutenção dos
mesmos e a evidência da sua degradação.
Mais alega, e em conclusão, que a opção de edificação de um museu
sempre dependeria de variáveis que o Réu por si só não poderia
garantir, nomeadamente as que se prendem com a colegialidade dos
órgãos decisores e os ciclos políticos que lhes estão subjacentes, e bem
assim por força das regras de tutela administrativa do interesse público,
no que tange a opções orçamentais e de tesouraria, em cada momento e
que o valor histórico e material do espólio em causa não revestia de
facto o interesse e dimensão com que o Autor “o quis cunhar”, pelo
que existiria um enorme desvalor entre a doação e o encargo pelo que,
para além de ter sido devolvido ao Autor parte do espólio, aqui
peticionado como parte da causa de pedir e que veio a revelar-se de
nenhum valor, o demais fora já entregue em 2002 sem qualquer
condição à data da traditio, que o Réu aceitou.
Conclui assim pela procedência das exceções invocadas, com a
consequente absolvição do Réu da instância, ou, assim não se
entendendo, julgada a ação totalmente improcedente e o Réu absolvido
dos pedidos.
                                                                          *
O autor apresentou resposta às exceções.

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 4/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Procedeu-se realização de audiência prévia, julgando-se improcedente a


arguida exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria,
relegando-se para momento ulterior o conhecimento das exceções de
caso julgado e a arguida nulidade do contrato objeto dos presentes
autos, fixando-se o objeto do litigio e selecionando-se os temas da
prova.
Procedeu-se à realização de audiência de julgamento, com observância
de todas as formalidades legais, com observância de todas as
formalidades legais aplicáveis, conforme resulta das atas respetivas.
Na sentença, depois de se declarar que improcediam ambas as exceções
que restavam por apreciar [a do caso julgado e a da nulidade do
contrato], considerou-se, em suma, verificado o incumprimento culposo
do contrato de doação modal por parte do Réu Município, já que era
obrigação deste promover a constituição da sociedade nos termos ali
constantes e provou-se que, o não cumprimento dessa condição causou
prejuízos ao Autor na medida da sua expectativa quanto às
consequências do negócio, pelo que, passando ao arbitramento de
indemnização por esse incumprimento do contrato de doação modal,
entendeu-se que tal devia ter lugar através da equidade, fixando-se
assim o valor da indemnização a que o A. tinha direito em €150.000,00,
a que acresciam juros, nestes termos se dando procedência à ação, o
que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:
«Decisão
Face ao exposto, julgando improcedentes as exceções arguidas e
julgando parcialmente procedente por provada a presente ação, decido:
1– Condenar o Réu Município de ... a pagar ao autor R... a quantia total
de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescida de juros de
mora à taxa legal, a contar desde a presente data, até efetivo e integral
pagamento.
2 – No mais, absolver o Réu do pedido.
3 - Custas da ação a cargo do autor e réu, na proporção do respetivo
decaimento, nos termos do artigo 527º, n.º 1 e 2 do Código de Processo
Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia o
autor.»
                                                                          *
               Inconformado com essa sentença, apresentou o R. recurso de
apelação contra a mesma[2], terminando as suas alegações com as
seguintes conclusões:
...
Pelo exposto:
a)-deve a decisão recorrida ser substituida por outra que dê por
verificada a exceção de caso julgado, com base na ação já transitada no
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 5/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

mesmo Juízo Instância e Trribunal sob os sinais de processo nº ...,


assim ficando prejudicada a decisão de mérito com as legias
consequências.
c)-Não se decidindo pela reversão da decisão, ao abrigo do caso
julgado formal, sempre deveria ser proferida decisão que atendesse à
autoridade do caso julgado daquela outra ação, por forma a não ser
decidido nesta que um negócio que foi objeto de resolução e de
represtinação, em termos substantivos, pelo menos do lado do Autor, se
mantivesse com efeitos e condições de validadade, para ainda ser
suporte e causa de pedir noutra ação, assente na mesma relação
material controvertida e mesma causa de pedir, numa vertente
indemnizatória, pelo incumprimento do recorrente, por via da equidade.
Ao reverter-se a doação naquela ação, com devolução dos bens e
entrega dos cadernos que a suportavam, tendo sido tido por global a
entrega e o encargo, ficou o recorrente desapossado do seu lado da
contraprestação do doador, por via daquela ação e tendo sido declarado
extinto o direito deste último a ser indemnizado” a indemnizar nos bens
que se encontrem deteriorados ou em falta em quantia a liquidar em
execução de sentença”
d)-Devendo ser alterada a matéria de facto, em conformidade com o
aqui concluído, quanto à reapreciação da prova, nomeadamente pelas
certidões extraídas destes autos e peças processuais reproduzidas, por
confronto com as declarações prestadas pelo Autor, enquanto depoente
e declarante.
e)- Por se reputarem eventualmente prestadas em contravenção com o
disposto no artigo 359º do Códgo Penal e bem assim pela eventual
adulteração dos documentos que haviam estado na posse do recorrente
e
à guarda do tribunal e suportaram nesta ação a versão do Autor, quanto
à matéria do conteúdo e verificação dos bens entregues, pela pessoa do
então assessor do Presidente do recorrente em 2006, o que inquinou a
decisão recorrida, com as consequêncais previstas no nº 1 do artigo
639º do CPC.
f)-Quando assim não se entenda deverá ser a decisão recorrida alterada
e substituída por outra que decida da improcedência da ação por
modificabilidade da matéria provada e não provada por insufiência de
suporte probatório dos pedidos do Autor.
g)- Em qualquer dos casos, o que por cautela de mandato se peticiona,
sempre em alternativa ao peticionado de a) a f) devendo ser proferida
nova decisão que reaprecie o suporte probatório que redundou em
condenação no montante excessivo e desproporcionado de 150.000,00€
de indemnização fixada segundo as regras de equidade.
Assim se decidindo, por ser de integral Justiça.»
                                                             

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 6/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                                         *
               Por sua vez, apresentou o A. contra-alegações a esse recurso,
das quais extraiu as seguintes conclusões:
               ...
                                                                                        *
               Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do
objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
               2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do
recurso delimitado pelos RR. nas conclusões das suas alegações (arts.
635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e
sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso
(cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é
possível detetar o seguinte:
               - rejeição desse recurso por não apresentação de
conclusões e por não indicação das normas jurídicas violadas?
(como questão prévia suscitada nas contra-alegações do A.,
relativamente ao recurso do R.);
               - erro de decisão quanto à improcedência da exceção de
caso julgado;
- erro na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos de facto
“provados” sob “1.4.”, “1.6.” e “1.7.” [relativamente aos quais pugna
por que sejam julgados como “não provados” ou por uma distinta
redação];
- incorreto julgamento de direito [pois que ainda que se formulasse
uma condenação, essa condenação errou no juízo de equidade].
               3 – QUESTÃO PRÉVIA
Cumpre começar pela apreciação da invocada rejeição do recurso do
Réu, por não apresentação de conclusões e por não indicação das
normas jurídicas violadas (como questão prévia suscitada nas contra-
alegações do A., relativamente ao recurso do R.).
Sustenta, em síntese, o A./recorrido nas suas contra-alegações, que
«(…) neste caso as conclusões perfazem outro tanto das alegações
recurso apresentadas pelo Apelante; não sendo propriamente a
reprodução ipsis verbis das alegações, estão longe de ser conclusões.
Entendendo-se por isso que esta circunstância equivale à não
apresentação de conclusões, pelo que o recurso deve ser rejeitado nos
termos do art.º 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. Sem prescindir, é certo que
não obstante o ónus que lhe é imposto pelo art.º 639.º, n.º 2, al. a), do
CPC, o Recorrente no seu requerimento de Recurso não indica as
normas jurídicas violadas».
Será assim?
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 7/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão, nesta parte, ao


A./recorrido.
Em primeiro lugar porque, ao invés do aduzido, não é pelo facto de as
conclusões eventualmente constituírem a reprodução parcial e
substancial da alegação propriamente dita que reconduz a situação à de
“não apresentação de conclusões”.
Com efeito, tem sido doutamente entendido quanto a esse particular
que «“a falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do
n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso,
deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo,
independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena
de se abrir caminho a interpretações de pendor algo subjetivo.»[3] 
Donde, o dito vício constituiria, quando muito, um caso de conclusões
complexas ou prolixas, mas a “sanção” para tal seria então a de dirigir
convite ao recorrente para aperfeiçoar as conclusões, no sentido de lhes
conferir maior concisão – cf. art. 639º, nº 3, do n.C.P.Civil.
Acontece que, quanto a nós, essa opção deve ser fruto de adequada
ponderação, em ordem ao seu uso ficar reservado a situações em que
tal efetivamente seja imprescindível, designadamente por tal dificultar
objetivamente a apreensão/compreensão das questões recursivas [a sua
“inteligibilidade”] ou quando se detete o risco de o eventual vício ter
coartado/impedido o exercício do contraditório pela contraparte[4], o
que não cremos ser o caso, tanto mais que compulsando as contra-
alegações recursivas é possível constatar que esta entendeu o que havia
sido suscitado e deu-lhe cabal resposta.
Assim, porque, não obstante a extensão e prolixidade das conclusões do
recurso em apreciação, ainda assim não ficou em causa a possibilidade
de delimitação do objeto do recurso por parte deste tribunal, pelo que,
dando-se prevalência ao princípio da celeridade processual, entende-se
que não é de dar acolhimento a este argumento suscitado nas contra-
alegações, antes sendo de prosseguir, sem mais, com a apreciação do
recurso.
Depois, também porque ao invés do aduzido, foram clara e
profusamente indicadas as normas jurídicas violadas – ainda que de
forma um pouco “indisciplinada”, por demasiado dispersa ao longo das
conclusões [cf. arts. 963º, 945º, 334º, 473º do C. Civil e arts. 579º,
580º, 637º, 639º e 662º do n.C.P.Civil].
A esta luz, a invocação nos termos em que foi operada por parte do
A./recorrido só se compreende como fruto de qualquer lapso.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede
o suscitado nesta questão prévia.
4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 8/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

4.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos


factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que
foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o
elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se
provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”,
na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa
factualidade.   
               Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na
1ª instância em termos de “FACTOS PROVADOS”:
               ...
               4.2 – A primeira ordem de questões que com precedência
lógica importa solucionar é a que se traduz no alegado erro de decisão
quanto à improcedência da exceção de caso julgado, isto
relativamente ao processo nº ..., que correra termos no mesmo Juízo
Central Cível (J1) onde tramitaram os presentes autos, aquele com
decisão final já transitada em julgado, e no qual eram partes recorrente
e recorrido, com as mesmas posições processuais [Autor e Réu], «cuja
causa de pedir dimanava da mesma factualidade e documentos que a
suportaram».
               Com efeito, na alegação do Réu/recorrente, existe
coincidência ou repetição do objeto do processo nº ... e do que agora se
discute (neste processo nº 1407/19.5T8VIS), por em ambos estar em
causa o “espólio do ...”, que havia sido doado pelo Autor ao Réu, sendo
que naquele processo nº ... resultou transação entre as partes que pôs
termo ao processo [homologada por sentença no dia 26 de Outubro de
2017], pelo que resulta do disposto no artigo 580º do n.C.P.Civil a
exceção do caso julgado – a qual pressupõe a repetição de uma causa
depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite
recurso ordinário, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na
alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.
               Contrapôs o A./recorrido que a causa que o mesmo trouxe a
este juízo não tem nada que ver com a parte do “espólio” referido pelo
Réu, mas com outra que nunca foi objeto de julgamento, isto é, que que
foi com base nos factos em causa nesse dito processo nº ... (diversos da
ação que ora se discute) que integravam a causa de pedir, que chegaram
ambas as partes a um acordo, acordo esse que excluía – porque não
suscitado à apreciação do julgador – a parte do “espólio” que se debate
nos presentes autos.
               Na sentença recorrida entendeu-se, para o que ora releva, o
seguinte:
«Dos elementos de prova juntos aos autos constata-se que correu
termos neste juízo ação de processo comum nº ..., finda já transitada em
julgado por transação homologada por sentença.

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 9/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Da prova produzida em sede de audiência de julgamento e da análise


do objeto dos processos em causa, designadamente quanto aos bens que
foram objeto de doação nestes e naqueles autos, pese embora resulta de
forma clara que a identificada ação de processo comum nº ... foi
intentada pelo aqui A. R... contra o aqui R. Município de ... tendo em
vista a resolução de um contrato configurou a doação do “Espólio do
...”, definindo o seu objeto pela referência aos bens entregues
constantes dos cadernos juntos na aludida ação e objetos ali
identificados.
Alega o Réu que vem o A., com nova ação, sustentada na mesma causa
de pedir mas dela pretendendo extrair outras consequências que não
peticionou na anterior e identificada ação, na qual livremente transigiu
no sentido de que a questão do “espólio entregue/doado”, ficava
definitivamente resolvida.
Antes do mais, e quanto à transação efetuada e homologada por
sentença no âmbito do processo nº ..., e tal como decorre das regras
processuais, designadamente do disposto no artigo 283º, n.º 2 do
Código de Processo Civil, é lícito às partes, em qualquer estado da
instância, transigir sobre o objeto da causa. Daqui resulta desde logo, e
na falta da referência, na transação apresentada no âmbito do processo
n.º ... a qualquer outro objeto, que a transação ali homologada por
sentença e que colocou um fim ao litígio apenas pode abranger o
concreto objeto ali discutido e os concretos objetos doados e ali
identificados, que não têm coincidência com os objetos identificados
nos presentes autos, correspondendo, tal como resultou da análise quer
da prova documental, quer da prova testemunhal, a negócios jurídicos
distintos, celebrados em alturas distintas, tendo os objetos sido
devidamente identificados, não havendo coincidência quanto ao objeto
concreto do processo nem tendo havido qualquer renúncia por parte do
autor a reclamar o que quer se fosse quanto a outros negócios jurídicos
celebrados com o Município de ..., designadamente outros contratos de
doação.
Tal como decorre do artigo 580º do Código de Processo, a exceção do
caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira
causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso
ordinário.
Por todo o exposto, não se verifica assim a exceção dilatória de caso
julgado prevista nos artigos 576º, 577º alínea i) e 580º, todos do Código
de Processo Civil, improcedendo assim a requerida absolvição da
instância.»
Que dizer?
Consabidamente, verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e
causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora
dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na
alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão (cf. arts. 580º e 581º
do n.C.P.Civil).
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 10/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Assim sendo, é precisamente por referência ao concreto objeto


discutido no processo nº ..., ou melhor, os concretos objetos doados e
ali identificados, e na sua eventual coincidência com os objetos
identificados nos presentes autos que reside a decisão da presente
questão.
Isto é, tudo passa por se conseguir alcançar uma conclusão e certeza
sobre essa coincidência, ou não.
               Ora, relativamente a tal, apesar do enfaticamente alegado e
mais uma vez posto em causa pelo Réu nesta sede recursiva, quanto a
nós, compulsados os autos e tudo o que deles consta, designadamente
os elementos relativos ao dito processo nº ..., é possível obter uma
conclusão com a suficiente certeza e segurança quanto a esse particular.
               Senão vejamos.
               Compulsada a p.i. desses autos de processo nº ..., logo se
constata que foi alegado no art. 1º da mesma o seguinte:
«Em 9 de Novembro de 2007, 20 de Dezembro de 2007 e 19 e 24 de
Setembro de 2008 e 27 e 28 de Janeiro de 2009 o Autor entregou ao
Réu, com o intuito de os doar, entre outros, os bens a seguir
identificados, que faziam parte do espólio do ... que se encontram
descritos em (3) três cadernos manuscritos pelo Autor, numerados no
caderno n.º 1, da página 852 à página 1011, no caderno n.º 2, da página
1012 à página 1139, e no caderno n.º 3, da página 1012 à página 1199,
que se encontram na posse do Réu e que se passam a descrever: (…)»
[sublinhados nossos]
A “descrição” que foi enunciada de seguida nesse mesmo art. 1º da p.i.
vai da verba nº1 à verba nº 263, sendo que o A. alega, na sequência,
que não consegue “identificar” os demais bens que constam nesses três
cadernos [porque não tem cópia dos mesmos e sem essa cópia «não os
consegue identificar»], mais aduzindo que nunca chegou a ser
formalizada a doação correspondente ao Município Réu, por as partes
não terem logrado acordar quanto aos termos/formulação dessa doação,
sendo que foi por o Réu Município não ter concretizado o projeto da
Construção do Centro de Estudos e Museu do ... a que se havia
obrigado, e no qual estava destinada a integração dos bens doados, é
que ele A. veio reivindicar através dessa ação a sua devolução.
Por outro lado, está assente nos autos que essa ação / processo nº ...
veio a terminar por transação homologada por sentença [cf. pontos de
facto “provados” sob “1.15.” e “1.16.”], o que mais concretamente se
traduziu nos seguintes concretos termos literais:
«(…)

Consideram as partes resolvida a doação efetuada pelo Autor ao
Município de ... de bens pertencentes ao ... --- ------------------------------
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 11/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

------------------

Em consequência de tal resolução, o Município devolverá ao Autor
todos os bens que constituem o acervo descriminado no CD que se
encontra a fls. 159, que constitui o espólio existente, no prazo máximo
de 90 dias, assumindo o R. o transporte desde o local onde se
encontram ao local a indicar pelo Autor, sito na localidade do ... –-------
------------------------------------------------------------------
3º.
Com a celebração do presente acordo, as partes consideram
definitivamente encerrado o litígio relativo ao denominado espólio do
Sr. Prof. ...----------------------------------
                             4º
As custas serão suportadas em partes iguais, sem prejuízo do benefício
de apoio judiciário concedido ao Autor. --------------------------------------
---------------------------------------------------------------
                                                                                     ***
Seguidamente, pela Mmª Juiz foi proferida a seguinte: --------------------
------------------------------
=SENTENÇA=
Na presente Ação de Processo Comum, que R... propôs contra o
Município de ..., homologo, por sentença, a transação que antecede,
atento o seu objeto e a qualidade dos intervenientes, condenando as
partes a cumprirem o acordado nos seus precisos termos e declarando
extinto o direito pretendido fazer valer na parte sobrante do pedido
formulado nos autos – artºs 283º, 289º a contrario sensu e 290º do
C.P.C.. -----------------------------------------------------------------
As custas serão suportadas em partes iguais, nos termos acordados -
artº 537º nº2 do C.P.C.. ----
Tendo em consideração a postura de colaboração das partes na
composição amigável do litígio-dos autos, e a fase processual em que
colocam, por acordo, termo à presente ação, bem como-o objeto do
processo e o valor da ação, dispenso as partes do pagamento da taxa de
justiça-remanescente, nos termos do nº 7 do artº 6º do R.C.P.. ------------
--------------------------------------------------------------------------------
Em consequência, dou sem efeito a audiência para hoje agendada. ------
------------------------------
Registe e notifique.»
               Por sua vez, é do seguinte concreto teor o “Termo de Entrega”
que foi lavrado nesses autos:
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 12/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                «Termo de entrega


               Aos vinte e nove dias do mês de Janeiro de 2018, na
residência do Autor do processo nº ... R..., procedeu o Município de ...
à devolução e entrega de todo o Espólio reclamado em tal ação em
conformidade com a sentença proferida naqueles autos nada mais
sendo devido o reclamável a esse ou outro título por força de tal
sentença, considerando-se assim aquela integralmente cumprida por
este meio.
               A presente entrega foi verificada pelas mandatárias nos autos
em causa que assim a julgando conforme o vão assinar.
                                            ...., 29 de janeiro de 2018» [sublinhados
nossos]
               De referir que se seguem as assinaturas manuscritas das
mandatárias mencionadas, e bem assim do próprio Autor.
Assente isto, importa agora ter em consideração que nos presentes
autos foi alegado e estava em causa uma doação de bens móveis
formalizada por escritura pública a 17 de Maio de 2006, que
alegadamente integrou ou complementou uma doação verbal anterior
[do ano de 2002].
Ora se assim é, parece-nos clara e inequívoca a conclusão de que
naquele  processo nº ... e nos presentes autos, ainda que ambos
reportados a bens que compunham o “Espólio do Dr. ...”, estavam em
causa bens móveis distintos – sublinhe-se, mais uma vez, no primeiro
bens doados em 9 de Novembro de 2007, 20 de Dezembro de 2007 e
19 e 24 de Setembro de 2008 e 27 e 28 de Janeiro de 2009, e, neste
segundo, bens doados em 17 de Maio de 2006 (e no ano de 2002).
Sendo certo que a “transação” alcançada no processo nº ... apenas
abrangeu, na sua literalidade, os bens em causa nesse processo, o que
foi confirmado pelo “termo de entrega” constante desses mesmos
autos, no qual também ficou expresso, literalmente falando, que apenas
se visaram os bens móveis em causa nesses autos…
Assim se confirmando o decidido neste particular pela sentença
recorrida, com a consequente improcedência, sem necessidade de
maiores considerações, deste argumento recursivo.
4.3 – A segunda ordem de questões traduz-se no invocado erro na
decisão da matéria de facto, quanto aos pontos de facto “provados”
sob “1.4.”, “1.6.” e “1.7.” [relativamente aos quais o Réu/recorrente
pugna por que sejam julgados como “não provados” ou que lhes seja
conferida uma distinta redação]
Esta é efetivamente a subsequente questão a que importa dar solução.
Importa começar por referir que a seleção destes pontos de facto como
sendo os visados pela impugnação à decisão sobre a matéria de facto
assenta em alguma incerteza/dúvida, na medida em que o
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 13/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Réu/recorrente não primou pela clareza na tarefa de especificação dos


mesmos, mas ainda assim, se o ponto de facto “provado” sob “1.4.” era
o único expressamente indicado, os outros dois [“1.6.” e “1.7.”] foram
suficientemente referenciados como estando em causa para este efeito.
Vejamos, então, um por um, cada um desses pontos de facto,
rememorando, sempre, o teor literal respetivo.
«1.4. Tais bens revestem na sua maioria enorme relevância histórica e
elevado valor material atendendo, não só, mas também, que neles se
incorpora parte do acervo hereditário de ...»
Quanto a este ponto de facto, o Réu/recorrente manifesta a sua
discordância quanto ao teor/redação do mesmo, assente na
argumentação recursiva de «sem que em momento algum destes autos
se tivesse demonstrado a real e efetiva conexão entre esses bens, essa
conclusão e um seu efetivo valor».
Que dizer?
Salvo o devido respeito, tal não constitui um válido e proficiente modo
de impugnar a correspondente decisão sobre a matéria de facto em
causa.
Na verdade, tanto quanto é dado perceber, o Exmo. Juiz a quo formou
convicção positiva nesse particular assente na conjugação de toda a
prova produzida, no que assumiu decisivo relevo e preponderância a
prova testemunhal produzida.
Ora se assim é, desde logo avulta que nesta parte não se mostra
minimamente observado o prescrito legalmente para uma impugnação
fundada em meios de prova constantes do processo que nele tenham
sido registados através de gravação áudio.
Com efeito, é consabido que por força do estatuído no art. 640º do
n.C.P.Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de
facto encontra-se adstrito à realização de vários ónus previstos nos nºs
1 e 2 desse preceito, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa
parte.
Na verdade, lê-se em tais disposições:
«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve
o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de
registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os
pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões
de facto impugnadas.

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 14/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o


seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro
na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,
sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar
com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso,
sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que
considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal,
incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as
conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados,
indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e
proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere
importantes.»
Tendo presentes estas legais prescrições, e revertendo à situação sub
iudice, ao confrontar as alegações recursivas, desde logo se pode
constatar que não se observou nos moldes exigidos o estatuído na al.b)
supra transcrita, na sua conjugação com o constante do nº2 desse dito
normativo.
De facto, tendo em conta que houve prova produzida em sede de
julgamento, não especifica nem explicita o Réu/recorrente a concreta
razão da discordância, isto é, em que termos é que se evidencia o
invocado erro de julgamento na apreciação dos ditos meios de prova e,
em contraponto, qual o mais correto modo da sua apreciação.
Senão vejamos.
«1. Para se proceder à reapreciação de provas gravadas em caso de
recurso sobre a matéria de facto, o recorrente tem de indicar os pontos
de facto concretos que considera incorrectamente julgados e apontar,
com exactidão, as passagens da gravação em que se funda o recurso,
sob pena de imediata rejeição do mesmo no que se refere à impugnação
da matéria de facto.
2. Fundamentando-se o recurso de facto na desconformidade entre a
prova documental e a factualidade que veio a ser demonstrada, não
basta remeter para o teor do documento, recaindo sobre o recorrente o
ónus de indicar eventuais erros do julgador na livre apreciação das
provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução
jurídica do pleito, especificando os fundamentos da sua discordância,
os motivos que justificam que o documento conduza a um juízo
diferente do efectuado pelo juiz.»[5]
Temos assim que ao referir-se a “concretos meios probatórios” a lei
está a colocar a exigência de que se alegue o porquê da discordância,
que se apontem as passagens precisas dos depoimentos que
fundamentam a concreta divergência, que se explique em que é que os
depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido.
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 15/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Exigência esta também imposta pelo princípio do contraditório, pela


necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos
concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder
contrariar…
Sucede que se o Réu/recorrente não indicou qualquer passagem da
gravação a atender para efeitos desta sua impugnação, muito menos
indicou “com exatidão” as passagens da gravação relevantes em que se
fundava…
Por outro lado, o Réu/recorrente invocou igualmente nesta sede e para
este efeito a “documentação” junta aos autos.
Mas quais os documentos que em concreto poderão assumir relevo
decisivo?
E em que é que consistiu ou se revela a incorreção na apreciação dos
mesmos?
Eis novas interrogações sem resposta.
Com efeito, o Réu/recorrente sustenta a incorreção/desacerto quanto a
todo este particular unicamente assente em argumentos vários de teor
opinativo e conclusivo.
Assim sendo, a não ser de optar pela liminar rejeição da impugnação e
do escrutínio da decisão sobre a factualidade constante deste ponto de
facto “provado”, sempre estamos reconduzidos a uma situação em que
a incontornável deficiência com que foi deduzida conduz à manifesta
improcedência da mesma, o que tem o mesmo efeito prático.
                                                                          ¨¨
«1.6. O contrato de doação em causa obedeceu a condições essenciais:
o doador transferiu a propriedade dos bens ao donatário para que este
edificasse um futuro museu, sendo que o donatário aceitou a doação
com dois encargos, a criação de um museu e a garantir uma
remuneração mensal ao doador a partir de finais de 2007, no valor de
€2.000,00 (dois mil euros) mensais, correspondente a € 24.000,00
(vinte e quatro mil euros) por ano, a pagar ao Autor, o que foi
reciprocamente aceite pelos A. e R. e tendo o A. entregue os referidos
bens ao Réu.»
Relativamente a este ponto de facto, o Réu/recorrente discorda em
concreto do segmento em que consta ter-se ele Réu obrigado a “garantir
uma remuneração mensal ao doador”, pois que, mais precisamente, tal
se teria traduzido antes em garantir “um lugar remunerado em
sociedade que viesse a ser constituída”.
Que dizer?
Quanto a nós que assiste efetivamente razão ao Réu/recorrente nesta
parte, na medida em que a redação literal dada a este ponto de facto
pode significar um sentido que não corresponde ao que resulta
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 16/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

textualmente da escritura do contrato de doação em causa [junta a fls.


8-9].
Por outro lado, compulsados os autos, também não foi alegado por
qualquer das partes que o sentido do acordado fosse diverso do que foi
consignado literalmente na dita escritura.
Assim sendo, importa efetivamente que este ponto de facto reproduza
com fidelidade o que resulta do acordado e vertido na escritura, pelo
que, operando a reapreciação dos meios de prova dos autos, determina-
se que este ponto de facto figure doravante com a seguinte redação:
«1.6. O contrato de doação em causa obedeceu a condições
essenciais: o doador transferiu a propriedade dos bens ao
donatário para que este edificasse um futuro museu, para o qual
seria constituída uma sociedade da qual o Município deveria ser
detentor da maioria do capital social, sendo que o donatário
aceitou a doação com dois encargos: a criação do dito museu e,
após a constituição daquela sociedade “que, em princípio, deverá
iniciar a sua actividade até ao final do ano de 2007”, se obrigava “a
garantir ao doador um lugar remunerado na futura sociedade, no
montante anual de €24.000,00, a pagar em duodécimos de €2.000,00
mensais, actualizáveis anualmente por aplicação do Índice do Preço
do Consumidor, sem habitação”, o que foi reciprocamente aceite
pelos A. e R. e tendo o A. entregue os referidos bens ao Réu.»
                                                                          ¨¨
«1.7. Até hoje, e apesar do Autor doador ter cumprido com a sua
palavra, o R. não cumpriu os encargos da doação.»
Quanto a este ponto de facto, o Réu/recorrente manifesta a sua
discordância, pugnando por ser dado como “não provado” «Que à data
da propositura da ação o Autor ainda mantivesse a sua palavra (facto
1.7) (uma vez que pelo menos desde 2014 já peticionara a resolução da
respetiva declaração negocial e viu ser-lhe devolvido o Espólio” e o
inventário de todos os cadernos correspondente à totalidade dos bens
entregues que lhes corresponderiam em Janeiro de 2018.»
Será assim?
Salvo o devido respeito, não se vê como conferir tutela a esta pretensão
do Réu/recorrente.
É que, ao invés do que está pressuposto na alegação, olvida
seguramente o Réu/recorrente que o ponto de facto “provado” em
referência expressa a realidade relativa aos bens doados que estão em
causa nestes autos, e apenas essa, isto é, não se cuida de noticiar ou
sinalizar o que se passou relativamente a outros bens doados,
designadamente aqueles a que se reportaram o processo nº ...
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, igualmente
improcede a impugnação quanto a este ponto de facto.
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 17/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

5 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre agora entrar na apreciação da última questão igualmente supra
enunciada, esta já diretamente reportada ao mérito da sentença, na
vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, ter havido
incorreto julgamento de direito [pois que ainda que se formulasse
uma condenação, essa condenação errou no juízo de equidade].
Que dizer?
Nesta parte – e releve-se o juízo antecipatório! – assiste alguma razão
ao Réu/recorrente, embora se conclua em termos diversos do por ele
pretendido.
Na verdade, impõe-se começar por afirmar que, quanto a nós, face ao
quadro fáctico apurado – e que subsistiu face à improcedência da
impugnação à decisão sobre a matéria de facto pretendida pelo mesmo
Réu/recorrente! – a condenação do Réu/recorrente afigura-se
incontornável, apenas se discordando dos termos em que ela foi
operada, pois que, quanto a nós, essa condenação terá que ser a liquidar
em decisão ulterior.
Com efeito, a prova, ou melhor, a não prova pelo Réu de não ter
incumprido com o que se havia vinculado [face à presunção de culpa
do incumprimento], tem a consequência jurídica que lhe está
consabidamente associada, isto é, a obrigação de ressarcir/indemnizar
os prejuízos sofridos pela contraparte.
De referir ab initio que, em nosso entender, apenas está validamente em
causa nestes autos a indemnização pelo incumprimento da cláusula
modal constante da escritura de 17.05.2006 relativamente aos bens
móveis, na medida em que, tendo sido celebrada nessa mesma data e
entre as mesmas partes, uma escritura de doação de bens imóveis,
independentemente da conexão objetivamente temporal e até lógica
entre as duas doações, relativamente à da doação de bens imóveis não
existe qualquer cláusula modal que tenha sido incumprida e que por
essa via possa conferir ao Autor a indemnização reclamada nos autos.
Sem embargo do vindo de dizer, isto é, operando a ressalva respeitante
à situação dos bens imóveis igualmente doados, até subscrevemos o
segmento da sentença recorrida que procedeu ao enquadramento geral
neste particular, a saber
«No caso concreto, como referido, está-se perante uma situação de
incumprimento contratual, consistente no incumprimento do encargo
ou modo aposto na doação, respeitante ao fim a que se destinavam os
imóveis doados, por parte do réu Município de ... e remuneração a
pagar ao autor, como compensação pela utilização desses bens,
considerados de valor histórico relevante, para fins de utilidade pública
e de utilização do Município, encarregue de os preservar.
Nos termos do disposto no artigo 798º do Código Civil, o devedor que
falta culposamente ao cumprimento da obrigação, “ou mesmo quando
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 18/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

está em causa, não a obrigação principal, mas os deveres secundários e


ou deveres laterais ou deveres acessórios de conduta, como é o caso da
cláusula modal aposta à doação em apreço” torna-se responsável pelo
prejuízo que causa ao credor.
Não tendo o réu ilidido a presunção de culpa, conforme lhe competia,
tal como decorre do disposto no artigo 799º do Código Civil, o réu
Município de ... incumpriu, culposamente, o encargo que havia
assumido perante o autor, causando prejuízos ao autor, como aos
demais munícipes e, a todos aqueles que assim ficaram privados da
análise dos móveis doados (e imóveis) como integrantes de um
relevante valor histórico e patrimonial, o que se traduz, no caso
concreto do autor, numa desvantagem patrimonial, pois que se frustrou
um propósito real – concreto e efetivo – de auferir uma remuneração
como contrapartida da utilização do réu dos bens doados.
Tal como decorre do disposto no artigo 566º do Código Civil, sendo
impossível a restauração natural, o que o é por força do contrato, a
indemnização é fixada em dinheiro, calculando-se o seu “quantum” de
harmonia com a chamada “teoria da diferença” – ou seja, a
indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a
situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser
atendida pelo tribunal e a que ocorreria nessa data se não existissem
danos.
A obrigação indemnizatória só existe em relação aos danos que o
lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563º
do código Civil, que consagra a teoria da causalidade adequada) e o
dever de indemnizar compreende não apenas “o prejuízo causado”
(dano emergente), mas também “os benefícios que o lesado deixou de
obter em consequência da lesão” (lucros cessantes) (artigo 564º n.º 1 do
citado diploma legal), e configura uma “típica dívida de valor, em que
o dinheiro intervém como um meio de liquidação da prestação, não
sendo o dinheiro, em si mesmo, o objecto da prestação, a qual é
constituída por um valor patrimonial”.
Assim, sendo impossível a restauração natural, a indemnização é fixada
em dinheiro, indemnização que só integra os danos que o lesado
provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Não se trata de uma obrigação pecuniária propriamente dita, não tem
diretamente por objeto o dinheiro em si mesmo considerado, mas a
prestação correspondente ao valor de certa coisa. E o dinheiro, a repor
pelo respetivo devedor, constitui a medida do valor necessário para a
liquidação da prestação em dívida, isto é, o meio de compensação da
sua não restituição em espécie, e não o objeto da efetiva obrigação em
causa.
“Na dívida de valor, tem de ser restituído o valor correspondente à
prestação em falta, a definir de forma objetiva e atual, devendo a
indemnização a arbitrar colocar o doador na situação em que estaria se
não se tivesse verificado o facto que obriga à indemnização”.
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 19/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

No apuramento daquele valor, o que está em causa é a violação do fim


a que o bem doado se destinava e a que o Município expressamente se
vinculou.
Assim, e como passados vários anos, desrespeitou o réu essa finalidade,
a reposição no património do doador há de traduzir-se no valor
correspondente à prestação em falta, atribuindo-se uma indemnização
que colocará o doador na situação em que estaria se não se tivesse
verificado o facto que obriga à indemnização – a não utilização do fim
a que se destinava o objeto da doação e a consequente e assuma
remuneração.
Para o cálculo do quantum indemnizatório, deverá ter-se em conta a
condição em causa que foi incumprida, por refletir o aumento de valor
que acresceria ao Município a utilização dos bens, e o valor da doação,
que estabelecerá o seu limite máximo.»
Sucede que assente isto, já discordamos de que a solução passava pelo
imediato recurso ao juízo de equidade – como operado pela sentença
recorrida! – ao que acresce a discordância quanto ao valor/montante
indemnizatório fixado, em si mesmo.
É que, em nosso entender, à data da prolação da sentença no Tribunal a
quo, este não dispunha dos elementos indispensáveis para sequer fazer
funcionar o juízo de equidade, pelo que, tendo-o operado nesse
contexto e circunstancialismo, formulou em grande medida um juízo
arbitrário, sancionando – indevidamente, já se vê! – a superação da
falta de prova de factos que podiam ainda ser provados.
Atente-se que, quando não estão determinadas as “balizas” dentro das
quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e
máximo”[6] – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser
liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº2 do n.C.P.Civil.
Isto porque, como já foi doutamente sublinhado, «a equidade é a
resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que
é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para
colmatar as incertezas do material probatório; noutras para corrigir as
arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto…
A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta
da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da jurisdicidade…
A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto…
não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação… é uma justiça de
proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. Quando se faz
apelo a critérios de equidade, pretende-se somente encontrar aquilo
que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está
assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça
ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal».
[7]
Na verdade, o princípio geral nesta temática é o de que «Se for de
antever que a prova pericial, ou outras diligências que possam ser
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 20/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

ordenadas, oficiosamente, não surtam efeito útil, o Tribunal deve


decidir com base na equidade e, assente em tal critério, fixar a
indemnização devida ao credor/exequente.»[8]
Ou, dito de outra forma:
«A condenação ilíquida, que tanto é possível no caso de se ter
formulado pedido genérico, como no de se ter formulado pedido
especifico, pode ser objeto de subsequente liquidação ainda que não se
tenha conseguido fazer prova da especificação na ação, não resultando,
assim, impedida, em função do fracasso da prova nessa ação, só assim
não se devendo proceder quando um juízo de razoabilidade implique
que se anteveja como impossível conseguir-se a prova em falta, caso
em que se deve desde logo recorrer à equidade.»[9]
Revertendo estes ensinamentos para o nosso caso, temos que, carecem
e devem ser apurados, antes de mais, um conjunto de factos e
elementos, tendo em vista a liquidação da quantia devida/valor exato,
sendo que, tal não se logrando, então o que mais singelamente se tiver
apurado virá a funcionar como as “balizas” para a fixação do valor
segundo a equidade, isto é, se, nessa liquidação, a prova produzida pela
partes for omissa ou insuficiente, e/ou a prova pericial não seja
concludente para os fins pretendidos, aí então, mas só então, a
liquidação deverá ser efetuada segundo a equidade.[10]

Atente-se que, como preceitua o art. 566º do C.Civil, nos seus nos 1 e
2, sendo impossível a restauração natural, a indemnização é fixada em
dinheiro, calculando-se o seu “quantum” de harmonia com a chamada
“teoria da diferença” – ou seja, a indemnização em dinheiro tem como
medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais
recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ocorreria nessa data
se não existissem danos.
Sendo certo que a obrigação indemnizatória “só existe em relação aos
danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a
lesão” [cfr. art. 563º do mesmo C.Civil, onde se consagra a teoria da
causalidade adequada) e que o dever de indemnizar compreende não
apenas “o prejuízo causado” - dano emergente -, mas também “os
benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” -
lucros cessantes [cfr. art. 564º nº1 do dito C.Civil], e configura uma
típica dívida de valor, em que o dinheiro intervém como um meio de
liquidação da prestação, não sendo o dinheiro, em si mesmo, o objeto
da prestação, a qual é constituída por um valor patrimonial.
Dito de outra forma: o art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil estipula que «Se
não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal
condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação
imediata na parte que já seja líquida»; a aplicação desta norma depende
da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de
prejuízos; mas como pressuposto primeiro de aplicação do dispositivo,
deverá ocorrer a prova de existência de danos; este preceito tanto se
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 21/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e


de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de
ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer
prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir
dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade
de condenação.[11]
Concretizando.
Importa ter presente que deve a indemnização a arbitrar colocar o
doador aqui Autor/recorrido na situação em que estaria se não se
tivesse verificado o facto que obriga à indemnização, sendo certo que
no apuramento desse valor, o que está em causa é a violação do fim a
que os bens doados se destinavam e a que o Município expressamente
se vinculou – a não utilização do fim a que se destinava o objeto da
doação e a consequente e assumida remuneração.
Por outro lado, para o cálculo do quantum indemnizatório, não poderá
deixar-se de ter em conta a primeira condição em causa que foi
incumprida, por refletir o aumento de valor que acresceria ao
Município a utilização dos bens, e o valor da doação, que estabelecerá
o seu limite máximo.
Ora se assim é, temos desde logo o aspeto do valor dos bens móveis
doados, que objetivamente se encontra por definir.
Impõe-se, assim, ser apurado o valor real e efetivo do conjunto dos
bens doados, mormente o que passariam a ter com a sua prevista
catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu a ser
edificado [cf. factos “provados” sob “1.6.” e “1.13.”], sendo certo que a
alusão vaga e generalista de que o conjunto desses bens móveis doados
[“acervo hereditário” / “Espólio do Dr. ...”] tinha «enorme relevância
histórica e elevado valor material» [cf. factos “provados” sob “1.4.”,
“1.11.” e “1.12.”] carece de ser materialmente concretizada,
nomeadamente com recurso a prova pericial, em ordem ao apuramento
da diferença entre o seu valor no estado atual [enquanto meramente
arquivados/armazenados] e o que teria nesse outro estado.
Depois, temos que foi previsto atribuir «ao doador um lugar
remunerado na futura sociedade, no montante anual de €24.000,00, a
pagar em duodécimos de €2.000,00 mensais (…)» [cf. facto “provado”
sob “1.6.”]
Sucede que a quantificação deste montante remuneratório não poderá
ser dissociada do apuramento de o “lugar” do doador e aqui
Autor/recorrido ser num plano representativo [ao nível dos órgãos de
administração], num plano executivo/gestão ou num plano de
desempenho de trabalho manual ou intelectual sob subordinação.
Na verdade, se é certo que não teve lugar qualquer contraprestação da
parte do mesmo em qualquer uma dessas categorias/funções, também
cremos que corresponderá a uma diferente avaliação o prejuízo real e
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 22/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

efetivo a considerar para o próprio, nomeadamente pelo nível de


envolvimento/assiduidade que para si implicaria cada uma das distintas
possibilidades dessa contraprestação, sendo que não tendo essa
contraprestação tido lugar da sua parte, também não poderá tal deixar
de ser descontada em alguma medida no apuramento do valor a
atribuir-lhe [mensalmente ou anualmente].  
Acresce que também carece de ser apurada e definida a idade desse
mesmo doador e aqui Autor/recorrido, pois que para além de não nos
parecer que se possa acriticamente aderir ao entendimento de que se
tratava de um cargo/função vitalícia, sempre importa aferir da
possibilidade legal do exercício do “lugar remunerado” por um total de
12 anos [desde o ano de 2007 a 2019], nomeadamente em função do
quadro legal previsto pelo regime que seja aplicável [v.g. a Lei Geral
do Trabalho em Funções Públicas].
Assim como finalmente importa assentar no que estava no espírito das
partes quando estabeleceram tal valor remuneratório, mais
concretamente se se tratava de um valor líquido ou antes ilíquido [por
sujeito ou não aos descontos e contribuições legalmente previstos].
Tendo sempre presente que no caso ajuizado tem de ser restituído o
valor correspondente ao prejuízo efetivo do Autor/recorrido, a definir
de forma objetiva e atual.
O que tudo serve para dizer que à luz do critério e determinante de que
a indemnização a arbitrar terá de colocar o aqui Autor/recorrido na
situação em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à
indemnização, tal tarefa não pode olvidar a diretriz indicada pelo já
referido art. 566º, nº 2, do C.Civil, mas precisamente por isso, por não
se deterem, neste momento, todos os elementos que permitem apurar
aquele valor, dever-se-á relegar tal fixação para ulterior incidente de
liquidação, a processar nos termos dos arts. 358º a 361º do n.C.P.Civil,
por tal se mostrar exequível – art. 609º, nº 2, do mesmo n.C.P.Civil.
Nestes termos procedendo o recurso.
                                                                          *
6 - SÍNTESE CONCLUSIVA
I – Há violação de um dever lateral ou acessório imposto no contrato de
doação de bens móveis do designado “acervo hereditário” / “Espólio
do Dr. ...”, por parte do doador ora Autor, a que correspondem as
consequências do incumprimento contratual pelo donatário, se
transcorridos mais de 12 anos sobre a data da doação, o Município Réu,
em lugar de proceder em conformidade com o encargo de criação de
um museu ao qual estavam destinados os bens, e pagar uma
remuneração ao Autor como compensação pela doação desses bens,
nada fez.
II – Não conferindo a violação do encargo modal o direito à resolução
do contrato de doação, por esse direito não ter sido expressamente
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 23/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

previsto (cf. art. 966º do C.Civil), resta sempre o direito do doador a


obter uma indemnização.
III – Aquela obrigação de indemnização, sendo impossível a restituição
in natura, configura uma típica dívida de valor, em que o dinheiro
intervém como um meio de liquidação da prestação, não sendo o
dinheiro, em si mesmo, o objeto da prestação, a qual é constituída por
um valor patrimonial.
IV – Estando-se perante uma dívida de valor, tem de ser restituído o
valor correspondente à prestação em falta, a definir de forma objetiva e
atual, devendo a indemnização a arbitrar colocar o doador na situação
em que estaria se não se tivesse verificado o facto que obriga à
indemnização.
V – Não se detendo todos os elementos que permitam apurar aquele
valor, dever-se-á relegar a sua fixação para ulterior incidente de
liquidação, a processar nos termos dos arts. 358º a 361º do n.C.P.Civil,
por tal se mostrar exequível – art. 609º, nº 2, do mesmo n.C.P.Civil.
VI – Isto porque quando não estão determinadas as “balizas” dentro das
quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e
máximo” – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser
liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº2 do n.C.P.Civil.
VII – Sendo certo que só quando for de antever que a prova pericial, ou
outras diligências que possam ser ordenadas, oficiosamente, não surtam
efeito útil, o Tribunal deve decidir com base na equidade e, assente em
tal critério, fixar desde logo a indemnização devida.
                                                                                         *
7 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, dando procedência à apelação, revogar
a sentença recorrida, determinando agora a condenação do Réu a pagar
ao Autor o valor pecuniário equivalente à quantia, a liquidar, que
resultar da diferença entre o valor atual dos bens móveis doados pela
escritura de 17.05.2006 se lhe tivesse sido, integralmente, dado o
destino de catalogação e exposição museológicas, no âmbito do museu
a ser edificado pelo Réu, tal como constante dessa escritura de doação,
e o valor atual que esses bens têm enquanto meramente
arquivados/armazenados, valor esse acrescido do montante total,
também ele a liquidar, definido de forma objetiva e atual, 
correspondente ao período máximo de 12 anos (entre 2007 e 2019), a
título de remuneração mensal a que o Autor teria legalmente direito
pelo lugar a ocupar na sociedade que seria detentora do já referido
museu, como igualmente previsto nessa escritura, que seja o prejuízo
efetivo para o mesmo, que nada recebeu, mas também não exerceu
qualquer cargo ou função correspondente.  
               Fixam-se as custas, provisoriamente, na proporção de metade
para cada uma das partes, sem prejuízo daquilo que resultar apurado no
www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 24/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

ulterior incidente de liquidação.


                                                                                         Coimbra, 1 de
Junho de 2021
Luís Filipe Cravo
                                                                     Fernando Monteiro
                                                                          Ana Márcia Vieira
                                                

***

[1] Relator: Des. Luís Cravo


  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira

[2] De referir que também foi deduzido um recurso “per saltum” para o
STJ pelo A., mas na medida em que houve também recurso de apelação
deduzido pelo Réu [o supra aludido, de cuja apreciação se vai cuidar de
seguida], encontra-se impedida a imediata intervenção do STJ quanto
àquele, como, aliás, logo foi determinado pelo despacho oportunamente
proferido pelo Tribunal a quo.
[3] Assim, inter alia, o acórdão do STJ de 16.12.2020, no proc. nº
2817/18.0T8PNF.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Cf., para além do aresto citado na precedente nota, o acórdão do
mesmo STJ de 11.07.2019, proferido no proc. nº 334/16.2T8CMN-
G.G1.S2, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Assim o acórdão do TRC de 03-03-2015, no proc. nº
1381/12.9TBGRD.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.

[6] Neste sentido vide J. LEBRE DE FREITAS / ISABEL


ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed.,
Livª Almedina, 2017, a págs. 717.
[7] Cf. DÁRIO MARTINS DE ALMEIDA, in “Manual de Acidentes
de Viação”, 2ª ed., a págs. 103/105.
[8] Citámos o acórdão do TRP de 31.01.2005, proferido no proc. nº
0457249, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[9] Assim no acórdão do TRL de 22.11.2012, proferido no proc. nº
434/03.9TBBNV.1.L1-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[10] Neste sentido o acórdão do TRL de 16.12.2009, proferido no proc.
nº 3327/07.7TTLSB.L1-4, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[11] cfr. ALBERTO DOS REIS, in “Código de Processo Civil
Anotado”, vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71; VAZ SERRA, in “RLJ”,

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 25/26
16/06/2021 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

ano 114.º, pág. 309 e RODRIGUES BASTOS, in “Notas ao C.P.C”,


vol. III, pág. 233.

www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/956a9879a97dcc6a802586eb003b3cc4?OpenDocument 26/26

Você também pode gostar