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Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja Católica

O CONCÍLIO DO PAPA JOÃO

Ângelo Giuseppe Roncalli: o futuro João XXIII


No conclave após a morte de Pio XII, o cardeal Ângelo Giuseppe Roncalli, patriarca de
Veneza, foi eleito Soberano Pontífice e tomou o nome de João XXIII. O novo Papa
tinha antecedentes bastante inquietantes.
Na época de seus estudos eclesiásticos, o jovem Ângelo Giuseppe Roncalli tinha se
tornado amigo de certos condiscípulos já ligados ao modernismo e que deviam depois
se tornar seus célebres representantes: Dom Ernesto Buonaiuti, Dom Alfonso Manaresi
e Dom Giulio Belvederi, que ele encontrava todas as noites na igreja do Gesú em Roma
para a visita ao Santíssimo Sacramento, mas também para inflamadas discussões
“progressistas”.
Isso, evidentemente, não permite deduzir automaticamente uma adesão de Ângelo
Giuseppe Roncalli ao movimento modernista, até porque naquela época ele era jovem e
inexperiente. Mas pode-se legitimamente pensar que as ideias debatidas naquela época
tiveram uma influência, nem que fosse indireta, sobre certos comportamentos
desconcertantes que ele adotará mais tarde e também depois da sua eleição como Papa.
Em contrapartida, Roncalli foi incontestavelmente influenciado por seu amigo Lambert
Beauduin, monge beneditino e famoso liturgista, censurado mais tarde devido a seu
desenfreado ecumenismo irenista que dissolvia o dogma católico, e cujas ideias falsas
em matéria de ecumenismo e de eclesiologia foram claramente adotadas pelo futuro
João XXIII, condicionando fortemente as orientações e decisões do seu pontificado.
Dessa influência, nós já encontramos vários traços nos escritos e sermões de Roncalli da
época em que era delegado apostólico na Bulgária, na Grécia e na Turquia. Em 1926,
por exemplo, a um jovem seminarista búlgaro, da igreja cismática dita “ortodoxa”, que
lhe perguntava se poderia seguir seus estudos na Igreja Católica, o delegado
apostólico respondeu negativamente e o exortou, ao contrário, “como eu sempre fiz
com todos os jovens ortodoxos, a aproveitar os estudos e a educação que recebem no
seminário de Sofia [cismático evidentemente – n.d.r.], porque segundo Rocalli, “os
católicos e os ortodoxos não são inimigos, mas sim irmãos. Eles têm a mesma fé,
participam dos mesmos sacramentos, sobretudo da mesma eucaristia. Alguns mal-
entendidos sobre a constituição divina da Igreja de Jesus Cristo nos separaram
[...]. Deixemos de lado as velhas controvérsias [...]. Mais tarde, apesar de passar por
caminhos diferentes, nos encontraremos na união das igrejas para formar todos juntos a
verdadeira e única Igreja de Nossa Senhor Jesus Cristo”[1].
Visando a uma futura e hipotética união — mas fundada na recusa de distinção entre
verdade e heresia e, portanto, necessariamente numa “super-igreja ecumênica” que não
seria mais católica — Mons. Roncalli rejeitava sistematicamente (“como eu sempre
fiz — escrevia ele — com todos os jovens ortodoxos”) as almas que a graça de Deus
levava a se aproximar da Igreja Católica e a se converter.
Esta atitude é evidentemente gravíssima e está em clara oposição com os deveres de um
delegado da Sé Apostólica: basta lembrar, a simples título de exemplo, na atitude
completamente oposta de grandes figuras como São Josafá, bispo de Polock, ou Santo
André Bobola, martirizados exatamente por causa de seus caridosos esforços para
conversão dos cismáticos orientais.
Uma atitude tão inusitada que mesmo o autor da biografia em questão, vendo ali em
germe, e antecipadamente, um exemplo fulgurante das mirabolantes “novidades” do
Concílio Vaticano II e da atual “pastoral conciliar” neo-modernista, não pôde deixar de
fazer enfático elogio comprometedor ao “profeta” Roncalli:
“A novidade explosiva das afirmações (de Mons. Roncalli) — comenta F. della Salda
— é que a substância da divisão está identificada como um problema institucional: a
linguagem, de modo impressionante, ignora todas as prudências da terminologia oficial
católica da época, enquadrada no problema do ‘retorno’ dos ‘dissidentes’ à
verdadeira e única igreja compreendida como a realidade histórica e concreta da
igreja romana[2]”, ou seja, ainda enquadrada na doutrina eterna da Igreja católica,
anti-ecumênica e que, portanto, deveria ser ultrapassada, no melhor estilo
neomodernista.
E eis que se explica, entre outras coisas, como à força de “novidades explosivas” em
oposição aberta com a doutrina católica, o futuro João XXIII e os outros inovadores
fizeram voar pelos ares, uma após a outra, as verdades de fé, a começar justamente pelo
dogma que define a Igreja católica romana como a única e verdadeira Igreja de Cristo.

O Papa Pio XI: a condenação do ecumenismo “a la Roncalli”

O ecumenismo irenista do delegado Roncalli (que na verdade não passava de mais um


ingênuo adepto do movimento pancristão, como se chamava então o movimento
ecumênico) seria rapidamente condenado com clareza pelo Soberano Pontífice Pio XI
com a encíclica Mortalium animos (1º de janeiro de 1928) nos seguintes termos: “É
verdade — escrevia Pio XI — que quando se trata de favorecer a unidade entre
todos os cristãos, certos espíritos ficam logo seduzidos por uma aparência de bem.
Não é justo, repete-se, não é até mesmo um dever para todos aqueles que invocam
o nome de Cristo, abster-se de acusações recíprocas e um dia de unir-se, enfim,
pelos laços da caridade de uns para com os outros?
“Quem então ousaria afirmar que ama a Cristo se não busca com todas as suas forças
realizar o voto do próprio Cristo, pedindo ao Pai que seus discípulos sejam ‘um’ (Jo.
XVII. 21)?” “Tais são — continuava o Papa — entre outros do mesmo gênero, os
argumentos que difundem e desenvolvem aqueles que são chamados de ‘pancristãos’...
Seu empreendimento é, alias, tão ativo que obtém em muitos lugares o acolhimento de
pessoas de todos os tipos e seduz até muitos católicos. [...] Mas de fato, sob a sedução
e a simpatia desse discurso, se esconde um erro muito grave, que desloca
completamente os fundamentos da fé católica”[3].
Todo o movimento ecumênico ou “pancristão” — continuava Pio XI — estava de fato
fundado na “estupidez” da ideia de uma “igreja dividida”: o que não passa de uma
heresia, pois a Igreja, que se identifica exclusivamente com a Igreja Católica romana é,
por promessa divina, indefectível, isto é, ela não poderá jamais nem desaparecer nem se
dividir (“as portas do inferno não prevalecerão sobre ela” Mt. 16.18).
O erro escondido sob “palavras tão atraentes” dos partidários do movimento ecumênico
— denunciava o Papa — consistia em considerar a unidade da Igreja como ainda não
realizada: coisa que não se pode afirmar senão negando à Igreja Católica romana o
atributo de única e verdadeira Igreja de Cristo, isto é, negando um dogma de fé definido.
A porta aberta pelos “ecumenistas” aos protestantes e aos “ortodoxos” acabava sendo,
para os católicos, uma porta de saída da verdadeira Igreja (o que precisamente está se
realizando hoje na Igreja “conciliar” e ecumênica inaugurada por João XXIII).
A encíclica Mortalium animos, como vimos, é de 1928.
Mas em 1935 — isto é, sete anos depois da condenação papal do “movimento
ecumênico” — Roncalli, sem se preocupar ao mínimo com a doutrina católica lembrada
pelo Magistério do Papa, afirmava tranquilamente:
“Jesus não fundou as diversas igrejas cristãs, mas a sua Igreja [...] Esta sociedade
divino-humana que deveria ser sobre a terra a imagem da sociedade celeste se
dissolvera à medida que aqui e ali os interesses humanos, locais, nacionais, impuseram-
se ao desígnio de Cristo [...]. Meus caros amigos... olhemos o futuro à luz do desígnio
de Cristo. A unidade da Igreja deve ser reconstruída plenamente...[4]”
A Igreja Católica romana, para Roncalli, não era senão um ”pedaço” da verdadeira
Igreja de Cristo, que se dissolveu ao longo da história; o que equivale a dizer “que
Jesus não foi capaz de fazer o que quis, ou se enganou quando disse que as portas
do inferno não prevaleceriam contra ela”[5].
Não, o Papa Pio XI tinha afirmado o contrário em Mortalium animos: “não é permitido
buscar a reunião dos cristãos de outra forma senão impulsionando a volta dos
dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, já que outrora tiveram a infelicidade
de se separar dela [...] É absurdo e ridículo dizer que [o corpo místico de
Cristo] pode se compor de membros esparsos e disjuntos”[6].

A maçonaria e Roncalli

Enfim, depois de ter chegado à Nunciatura Apostólica de Paris, Mons. Roncalli foi
nomeado Patriarca de Veneza e elevado à púrpura cardinalícia. O ecumênico cardeal
Roncalli representava indubitavelmente, para os meios neo-modernistas, um futuro Papa
ideal, um excelente instrumento entre suas mãos para fazer passar lentamente a Igreja de
suas "velhas certezas" e de sua "mesquinharia dogmática", à nova época. Um "Papa de
transição".
Não é por acaso que nas vésperas do conclave que ia elegê-lo Papa, seu amigo, o padre
Lambert Beauduin, que o conhecia bem, pronunciou estas palavras significativas:
"Se elegessem Roncalli [...] tudo estaria salvo: ele seria capaz de convocar um
concílio e consagrar o ecumenismo...", O silêncio caiu — continua o célebre Pe. Louis
Bouyer, seu discípulo, que conta o fato — e depois ele continuou com malícia e um
lampejo no olhar: "Tenho confiança — disse ele —, temos nossa chance; os cardeais,
em sua maioria, não sabem o que devem fazer. Eles são capazes de votar nele"[7].
Os neo-modernistas não foram os únicos a perceber no "papabile" Roncalli o nome
ideal para dar os primeiros golpes e abrir brechas nas muralhas da "velha Igreja".
"Em outubro de 1958 — testemunha o conde Paolo Sella di Monteluce, economista e
homem político — cerca de sete ou oito dias antes do Conclave, eu estava no santuário
de Oropa, numa das refeições habituais do grupo Attilio Botto, industrial de Bielle que
gostava de reunir em volta dele profissionais de diferentes ramos para discutir diversos
problemas.
Naquele dia tinha sido convidado um personagem que eu conhecia como uma alta
autoridade maçônica em contato com o Vaticano. Ele me disse, ao me levar para
casa de carro: "... o próximo Papa não será Siri, como estão murmurando em certos
círculos romanos, porque ele é um cardeal autoritário demais. Vai-se eleger uma Papa
de conciliação. O patriarca de Veneza Roncalli já foi escolhido".
Respondi surpreso: "Escolhido por quem?"
"Pelos nossos maçons representados no Conclave", respondeu serenamente meu
cortês acompanhante.
Perguntei então: "Há maçons no conclave?"
"Com certeza", respondeu, "a Igreja está em nossas mãos". Repliquei estupefato:
"Então quem manda na Igreja"? Após um breve silêncio, a voz de meu acompanhante
martelou: "Ninguém pode dizer onde estão os cumes. Os cumes estão ocultos".
A eleição do Patriarca Roncalli como Soberano Pontífice ocorreu em 28 de outubro de
1958. Como seu amigo Beauduin tinha previsto, alguns meses depois, em 25 de janeiro
de 1959, o novo Papa anunciava seu desejo de convocar um concilio ecumênico.
Primeira revanche dos "novos teólogos"
Ao longo das décadas precedentes muitos membros do Colégio cardinalício tinham
desaconselhado aos Soberanos Pontífices a convocação de um novo Concílio
ecumênico, precisamente devido ao perigo, bem real, de infiltrações modernistas.
Quando, por exemplo, por ocasião do Consistório secreto de 23 de maio de 1923, Pio
XI pediu o parecer dos cardeais a respeito da conveniência de convocar um concílio, o
cardeal Billot, cé1ebre teólogo, respondeu:
"Enfim, eis a razão mais grave, aquela que me parece bradar absolutamente pela
negativa. A retomada do Concílio [Vaticano I, interrompido em 1870] é desejada pelos
piores inimigos da Igreja, isto é, pelos modernistas, que já se preparam — como
demonstram os indícios mais seguros — para aproveitar dos estados gerais da
Igreja para fazer a revolução, o novo 1789, objeto de seus sonhos e suas
esperanças. Inútil dizer que eles não conseguirão, mas veremos novamente os dias tão
tristes do final do pontificado de Leão XIII e do início de Pio X; veremos coisas piores,
e isso será o aniquilamento dos felizes frutos da encíclica Pascendi, que os reduziu
ao silêncio"[8].
Pio XII também tinha pensado em convocar um concílio, mas tinha sido dissuadido
pelas mesmas razões.
O novo Papa, ao contrário, não quis levar em conta nenhuma dessas razões e instituiu
imediatamente uma comissão central preparatória cujo dever seria o de recolher as
diversas proposições dos episcopados e dos teólogos do mundo inteiro, para redigir as
primeiras provas dos textos sobre os assuntos que deveriam ser tratados ao longo de
Concílio.
É justamente neste período que é preciso situar a primeira revanche no plano oficial da
nova teologia, na pessoa de seus dois principais representantes.
O Papa João XXIII, inspirado segundo todas as probabilidades pelo inoxidável
Giovanni Battista Montini, chamou para surpresa geral (dos ingênuos, compreenda-se),
os célebres e já condenados Henri de Lubac e Yves Congar, para fazer parte da
mencionada comissão de preparação do Concílio.
E mesmo que eles não tenham podido fazer muito nesta ocasião — não teria sido
prudente para eles expor-se cedo demais, sobretudo em posição de franca minoria —
este gesto de João XXIII teve um valor simbólico de enorme importância e
desconcertou os meios da Cúria. Tratava-se, na verdade, de uma verdadeira reabilitação
oficial — se bem que tácita — da "nova teologia", assim como de uma escandalosa
desautorização das condenações de Pio XII e seus predecessores contra o antigo e novo
modernismo.
A esse respeito, o Pe. Congar, numa entrevista concedida há alguns anos à revista "30
Giorni", lembrava:
“Lubac me explicou que a lista dos ‘peritos’ já tinha sido preparada e que ela foi
submetida a João XXIII, para assinatura. O Papa Roncalli a leu, e em seguida
acrescentou do seu próprio punho dois nomes: o meu e o de Lubac”[9].
Depois de mais ou menos três anos de trabalho, João XXIII pôde abrir solenemente o
segundo Concílio do Vaticano, que veria a tomada de poder pelos adeptos da nova
teologia.

O "Concílio do Papa João"

Em 11 de outubro de 1962, João XXIII pronunciou na Basílica São Pedro do Vaticano,


o discurso solene de abertura do Concílio Vaticano II.
Nesta alocução o Papa anunciou "modernizações (aggiornamenti) oportunas” a serem
adotadas pela Igreja, e logo deplorou o pessimismo daqueles que ele chamava de
"profetas da desgraça":
"Nossos ouvidos são ofendidos — afirmava o Papa — pelos que dizem alguns que,
apesar de estarem inflamados pelo zelo religioso, carecem de precisão de julgamento
e de ponderação em seu modo de ver as coisas. Na situação atual da sociedade, eles
só veem ruínas e calamidades; eles têm o costume de dizer que nossa época piorou
profundamente em relação aos séculos passados [...]. Parece-nos necessário expor
nosso completo desacordo com estes profetas de desgraça, que sempre anunciam
catástrofes, como se o mundo estivesse perto do seu fim".
Deveras? Apenas alguns anos antes, o Papa Pio XII tinha descrito a situação da Igreja
em termos bem diferentes:
"O mundo de hoje corre em direção à própria ruína [...] é um mundo inteiro que é
necessário refazer desde suas fundações". (10 de fevereiro de 1952).
E ainda: "Hoje o inimigo de Deus tomou todas as alavancas do poder e temos o
dever de nos levantar contra a corrupção e os corruptores" (14 de julho de 1958).
Pio XII teria então, segundo o Papa João, sido também um "profeta de desgraça",
carecendo de "precisão de julgamento e de ponderação"?
O Papa Roncalli descrevia a seguir a tarefa do novo Concílio, que não devia consistir na
"discussão de certos capítulos fundamentais da doutrina da Igreja e, portanto, na
repetição mais abundante do que os Padres e os teólogos antigos e modernos já
disseram", para o que "não haveria necessidade de reunir um Concílio Ecumênico”.
A tarefa do Vaticano II era, ao contrário, dar um "salto em direção a uma penetração
doutrinal e uma formação das consciências [em correspondência mais perfeita à
fidelidade da doutrina autêntica aprofundada e apresentada através das formas da
pesquisa e da formulação literária do pensamento moderno]"[10]. Continuava João
XXIII: "uma coisa é o próprio deposito da fé, ou seja, as verdades contidas em nossa
verdadeira doutrina, e outra é a forma sob a qual essas verdades são enunciadas,
conservando-se, entretanto, seu mesmo sentido e seu mesmo alcance".
Mas essa "correspondência mais perfeita à fidelidade da doutrina autêntica"
estranhamente lembrava a ideia do pretenso "cristianismo autêntico" perdido pela Igreja
e depois redescoberto, no entender de Blondel e Lubac.
Assim também a vontade de apresentar e aprofundar a doutrina católica "através das
formas da pesquisa e da formulação literária do pensamento moderno" (isto é,
da filosofia moderna) evocava um pouco excessivamente a tática empregada pelos
"novos teólogos" para cobrir com a habitual "folha de parreira" seu evolucionismo
dogmático condenado, assim como o recurso ao "pensamento filosófico moderno", por
Pio XII na encíclica Humani generis.
Enfim, a cereja do bolo: João XXIII anunciou uma nova atitude do Magistério em
relação às heresias e aos erros no domínio dogmático e moral:
"A Igreja — proclamou o Papa João — nunca cessou de se opor a esses erros.
Frequentemente, ela até os condenou, e com muita severidade. “Mas hoje, a esposa de
Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia, ao invés de brandir as armas
da severidade. Ela estima que, em vez de condenar, ela responde melhor às
necessidades de nossa época pondo em relevo as riquezas de sua doutrina".
Entretanto, a Igreja sempre disse o contrário também neste ponto: a severidade, na
verdade, é também uma obra de misericórdia. Ela o é tanto em relação àquele que está
no erro (a Igreja sempre contou entre as obras misericórdia espiritual a "admoestação
dos pecadores") como em relação aos fiéis que têm o direito de ser protegidos do erro e
do mal.
Estranha "misericórdia” a do Papa João, que abandonava as almas aos lobos.
Inacreditável também a razão dada para justificar esta renúncia ilegítima do exercício do
poder coercitivo:
"Certamente, não faltam doutrinas e "opiniões falsas”, perigos contra os quais é preciso
se pôr em guarda e que se devem afastar; mas tudo isso é tão manifestamente oposto aos
princípios de honestidade e traz frutos tão amargos, que hoje os homens parecem
começar a condená-los por si mesmos. É o caso particular desses modos de viver que
desprezam a Deus e suas leis, pondo uma confiança exagerada no progresso técnico,
fazendo consistir a prosperidade unicamente no conforto da existência.
Divagações utópicas ou superficialidades irresponsáveis?

[1] Carta de 27 de julho de 1926 a C. Morcefki, em Francesco della Salda, Obéissance


et paix/L’éveque A.G. Roncalli entre Sofia et Rome – 1925-1934, éd. Mariet, 1989, pp.
48-49.
[2] F. dela Salda, op. cit., p. 49.
[3] Pio XI, Mortalium animos.
[4] Homilia de 25 de janeiro de 1935, in A. Melloni, Roncalli A. G./ La prédication à
Instanbul..., Florença, 1993.
[5] Mortalium animos.
[6] Ibidem.
[7] Louis Bouyer, Dom Lambert Beaudin, homme d’Église, éd. Casterman, 1964, pp.
180-181.
[8] G. Caprile S.J. Le Concile Vatican II, éd. “La Civiltà Catoolica”, Roma, 1969.
[9] 30 Giorni, março de 1993, p. 16.
[10] Versão em italiano empregada depois pelo papa: o texto latino é diferente.
Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja Católica
A CONDENAÇÃO OFICIAL DA NOVA TEOLOGlA

O Papa Pio XII condena a nova teologia


O cardeal Eugenio Pacelli, eleito Soberano Pontífice em 1939 com o nome de Pio XII,
perfeitamente consciente das consequências letais de uma tomada de poder na Igreja
pelos novos teólogos, interveio resolutamente para condenar em nome da Igreja a nova
teologia e seus propagadores.
Num discurso pronunciado em 17 de setembro de 1946 no Capítulo Geral dos Jesuítas,
o Papa já tinha alertado os Padres capitulares contra uma "nova teologia que evolui
juntamente com a evolução de todas as coisas, semper itura, numquam perventura,
"sempre a caminho (para a verdade) sem nunca atingi-la", acrescentando estas palavras
proféticas: "Se tal opinião for abraçada, o que será da imutabilidade dos dogmas, o que
seria da unidade e da estabilidade da fé?[1]”.
É quase o mesmo discurso que Pio XII dirigirá depois aos padres dominicanos, reunidos
também em Capítulo Geral, confirmando como antídoto contra o novo modernismo a
obrigação de não se afastar da doutrina de Santo Tomás de Aquino, assim como foi
prescrito pelo Canon 1366, parágrafo 2, do Código de Direito Canônico[2].
Mas os efeitos desta denúncia foram praticamente nulos por causa da profundidade da
infecção neo-modernista no mundo da intelligentsia católica, a ponto de o Papa decidir
intervir de modo oficial e definitivo pela publicação da encíclica Humani generis[3].
Nesta grande encíclica, que pode ser considerada como o terceiro Syllabus contra os
erros da época moderna (depois do Syllabus, com a encíclica Quanta cura, do bem
aventurado Pio IX, e depois do decreto Lamentabillii com a encíclica Pascendi de São
Pio X). O Papa condenava severamente "certas opiniões falsas que ameaçavam arruinar
os fundamentos da doutrina católica", sem nomear explícita e individualmente seus
partidários.
A nova teologia era condenada particularmente pelos seguintes erros:
Espirito anti-escolástico e subjetivista
Contra os ataques à filosofia escolástica feitas por Blondel, Lubac e seus amigos, que
queriam substituí-la pelas correntes filosóficas modernas e, especialmente, pela "nova
filosofia" imanentista e subjetivista blondeliana, o Soberano Pontífice reafirmou que a
filosofia escolástica "é como um verdadeiro patrimônio transmitido pelos séculos do
passado cristão... e goza ainda de uma autoridade de ordem superior, já que o magistério
da Igreja submeteu seus princípios e suas teses essenciais, que tinham sido pouco a
pouco esclarecidos e definidos por homens de gênio, à balança da revelação divina".
E continuava:
"Esta filosofia reconhecida e recebida na Igreja defende, sozinha, o autêntico e justo
valor do conhecimento humano; os princípios inabaláveis da metafísica, a saber, de
razão suficiente, de causalidade e de finalidade; e finalmente, a busca de toda verdade
certa e imutável.
Eis porque — prossegue ele — "pode-se reforçar esta filosofia com desenvolvimentos
mais eficazes, desembaraçá-la de alguns procedimentos escolares insuficientemente
adaptados, enriquecê-la discretamente também... mas nunca é possível revertê-la,
contaminá-la com falsos princípios. Pois a verdade e toda sua explicação filosófica
não podem mudar a cada dia...".
E então, acrescentava o Papa, "se compreendemos estas precisões, veremos sem
dificuldade por que razão a Igreja exige que seus futuros padres sejam instruídos nas
disciplinas filosóficas 'segundo o método, segundo a doutrina e os princípios do Doutor
Angélico" (CIC, can. 1366, 2)... “Sua doutrina é de todas a mais eficaz para pôr em
segurança os fundamentos da fé, assim como para recolher utilmente e sem perigo os
frutos de um verdadeiro progresso".
"É por tantos motivos, que é no mais alto grau lamentável que a filosofia recebida e
reconhecida na Igreja seja hoje desprezada por certos homens que, não sem
imprudência, as declaram velha em sua forma e racionalista em seu processo de
pensamento".
E ele concluía:
"Nós não teríamos certamente de deplorar estes afastamentos para longe da verdade se
todos, mesmo em filosofia, quisessem escutar o magistério da Igreja com todo o
respeito que lhe é devido; pois lhe cabe, por instituição divina, não somente guardar e
interpretar o depósito da verdade divinamente revelada, mas ainda exercer toda sua
vigilância sobre as disciplinas filosóficas para que sistemas errados não atinjam os
dogmas católicos".
Infelizmente, enfatizava ainda Pio XII, “hoje, para se apegar, mais do que convém, às
novidades no temor de passar por ignorantes de tudo o que surge num século de
progressos científicos, vê-se que, em sua pretensão de se subtrair à direção do
magistério sagrado, eles se encontram em grande perigo de afastar-se pouco a
pouco da verdade divinamente revelada e de induzir com eles os outros ao erro”.

Relativismo dogmático
Continuava a condenação em bloco dos novos teólogos:
“No que concerne à teologia, o propósito de alguns é enfraquecer o mais possível o
significado dos dogmas e liberar o dogma da formulação usual na Igreja há muito tempo
e das noções filosóficas em vigor nos Doutores católicos para voltar, na exposição da
doutrina católica, ao modo de se exprimir da Santa Escritura e dos Padres. Eles nutrem a
esperança de que o dogma, assim desembaraçado de elementos que eles consideram
extrínsecos à revelação, poderá ser comparado, com fruto, às opiniões dogmáticas
daqueles que estão separados da unidade da Igreja: chegar-se-á então a assimilar ao
dogma católico tudo o que agrada aos dissidentes.
“Bem mais, quando a doutrina católica tiver sido reduzida a tal estado, a via estará
aberta, pensam eles, para dar uma satisfação às necessidades atuais exprimindo o dogma
por meio das noções da filosofia moderna, do imanentismo, do idealismo, do
existencialismo ou de qualquer outro sistema que surgir."
"Que isso possa e mesmo deva ser feito assim — continuava o Papa —, os mais
audaciosos, o afirmam pela boa razão, dizem que os mistérios da fé não podem ser
significados por noções adequadamente verdadeiros, mas por noções. segundo eles,
aproximativas e sempre mutáveis, pelas quais a verdade é indicada sem dúvida até certo
ponto, mas fatalmente deformada." Segundo eles seria necessário que a teologia
"substituísse às noções antigas noções novas, para que, sob modos diversos e
frequentemente opostos, e, entretanto apresentados por eles como equivalentes, ela nos
exprimisse verdades divinas".
"Conclui-se, com evidência, do que dissemos — terminava o Papa — que tantos
esforços não apenas conduzem ao que se chama "relativismo" dogmático, mas já o
comportam de fato: o desprezo dos termos através dos quais ele é significado favorecem
muito [esta posição equivocada]".
O que propunham de fato os novos teólogos em substituição da teologia escolástica?
Nada além de "noções conjeturais e expressões flutuantes e vagas de uma nova filosofia
chamadas a uma existência efêmera, como a flor do campo; isso equivale a fazer do
próprio dogma algo como um caniço agitado pelo vento".

O "sobrenatural naturalizado" de Lubac


"Outros — escrevia o Santo Padre — corrompem a verdadeira gratuidade da ordem
sobrenatural, já que defendem que Deus não pode criar seres dotados de
inteligência sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica".

O falso ecumenismo e a dissolução da Igreja Católica Romana


Pio XII percebeu e condenou o ecumenismo irenista subjacente à nova teologia — a
hoje dominante na Igreja — como grave erro, causa de ruína da fé católica:
"Levados por irenismo imprudente — escrevia o Papa — alguns parecem considerar
como obstáculos à restauração da unidade fraterna tudo aquilo que se apoia nas leis e
princípios que Cristo nos deu e nas instituições que Ele estabeleceu, em tudo que se
constrói, em suma, como tantas defesas e sustentações para a integridade da fé: o
desabamento do conjunto garantiria a união, pensam eles, mas, digamo-lo, seria
uma união na ruína".
E ele precisava a este propósito: “Alguns estimam que eles não estão ligados pela
doutrina que Nós expusemos há poucos anos em nossa carta Encíclica (Mystici
Corporis) e que está fundamentada nas fontes da revelação, segundo a qual o
Corpo Místico e a Igreja Católica romana são uma só e mesma coisa. Alguns
reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para
obter a salvação eterna”.
Todos estes erros, condenados desde sempre, são difundidos hoje pela Hierarquia
conciliar, como veremos mais adiante.
Depois de ter enumerado outros erros gravíssimos (a respeito da inerrância bíblica, da
Santa Eucaristia, do evolucionismo, do poligenismo e de outros assuntos para os quais
remetemos nossos leitores ao texto integral da encíclica), o Soberano Pontífice concluía
com estas severíssimas palavras:
“Sabemos [...] que estes novos sistemas podem enganar os imprudentes; é por isso
que Nós preferimos Nos opor a eles desde seu princípio, antes de ter de remediar um
mal inveterado.
“Também, depois de ter amadurecido, pesado e considerado o assunto diante de
Deus, para não faltar com nosso dever sagrado, exortamos os Bispos e os Superiores
de famílias religiosas, tornando-lhes uma grave obrigação de consciência velar com
o maior cuidado para que estas opiniões não sejam expostas nas escolas, nas
reuniões, nem em qualquer publicação e que não sejam ensinadas de modo algum
aos clérigos e aos fiéis”.
Quanto aos professores dos institutos eclesiásticos — terminava o Papa — “que eles
saibam que não podem exercer com tranquilidade de consciência o encargo de
ensinar que lhes é confiado se não aceitarem religiosamente as normas doutrinais
que Nós editamos, e se eles não as seguirem exatamente ao longo da formação de
seus alunos... Que eles trabalhem, usando de todas suas forças e de toda sua aplicação,
a fazer avançar as disciplinas que eles ensinam, mas que eles se guardem também de
ultrapassar os limites que nós fixamos em vista de proteger as verdades da fé e a
doutrina católica”.

O banimento dos novos teólogos


“Eu me lembro — relatará vários anos mais tarde o Pe. Spiazzi O.P., professor
do Angelicum em Roma — que alguns meses depois da publicação de Humani generis,
fiz uma alusão à encíclica por ocasião de uma audiência com Pio XII e o ouvi dizer:
“Se eu não tivesse intervindo, poderiamos ter chegado a um ponto em que quase nada
mais ficaria de pé”.
A publicação da encíclica, mesmo tendo tido algum eco, não chegou a deter o avanço
dos novos teólogos. Mas seu valor fundamental foi — e ainda é — o de constituir o
documento oficial da condenação definitiva, pelo Magistério da Igreja, da nova teologia
e de seus discípulos, e portanto também a condenação antecipada, e definitiva, da atual
"nova corrente" eclesial.
Entretanto, algumas medidas foram tomadas e alguns "expurgos" realizados, como mais
tarde Urs Von Balthasar descreveu:
"Haviam nutrido suspeitas sobre ele [o Pe. de Lubac] desde antes
do Sobrenatural (1946)... Garrigou-Lagrange lançava contra Lubac e seus amigos a
palavra de ordem na Nova Teologia (1946); o papa, furioso (sic) atacou,
o L'Osservatore Romano trazia o discurso; o padre geral Janssens de início se
comportou lealmente em relação a Lubac, mas depois, quanto mais os ataques
aumentavam de todos os lados, mas ele foi se tornando diplomático. Buscava-se
também o que podia parecer suspeito em outras obras (Sur La connaissance de
Dieu, Corpus Mysticum, e também o livro sobre Orígenes). Com Humani generis a
tormenta se abateu sobre o escolástico de Lyon e Lubac tornou-se o principal bode
expiatório. Os dez anos seguintes foram um calvário para Lubac, que foi demitido do
ensino, expulso de Lyon, jogado de um lado para o outro. Seus livros, difamados, foram
retirados das bibliotecas da Companhia de Jesus e retirados do comércio [...]. A
mudança se fez muito lentamente [...]. Do arcebispo Montini chegaram palavras de
adesão e de encorajamento; mais tarde, já como Papa Paulo VI, ele insistiu para
que Lubac, no encerramento do congresso tomista na grande chancelaria, falasse
de Teillard de Chardin. Mas durante anos, névoas impenetráveis persistiram, até que
chegou a nomeação de Lubac por João XXIII como conselheiro dos trabalhos
preparatórios [do Concílio Vaticano II - ndr] da comissão teológica, com o Pe.
Congar. Este fato mudou a direção dos acontecimentos"[4].
A coisa não pode deixar de surpreender. Os novos teólogos, Marie-Dominique Chenu e
Yves Congar, de fato, tinham sido afastados do ensino quatro anos antes de Humani
generis, depois foi a vez de Lubac. Mais eis que incrivelmente — nos informa Von
Balthasar — e sem levar em conta qualquer das condenações da Santa Sé, "do arcebispo
Montini chegam palavras de adesão e encorajamento", para os novos teólogos
gnósticos.
Mas, o "arcebispo Montini", ressaltava Von Balthasar, ia depois se tornar o Papa VI.
Este é um fato que contribuiu para explicar muitas coisas, e que nos obriga a examinar
de mais perto sua pessoa e suas idéias.

Monsenhor Giovanni Battista Montini


Nascido em 1897 e ordenado padre em 1923, o futuro arcebispo Montini, quando ainda
estava no início de sua carreira eclesiástica, trabalhava como redator na Secretaria de
Estado, assumindo ao mesmo tempo o cargo de Assistente eclesiástico da F.U.C.I.,
(Federação Universitária Católica Italiana).
Mas eis o primeiro sintoma inquietante de suas idéias pró-modernistas: Montini foi
obrigado à pedir demissão pelo Cardeal Vigário de Roma, Sua Eminência Maechetti
Selvaggiani, de 1933. O que tinha acontecido? Assim o jovem Montini explicava os
fatos numa carta a seu bispo de Brescia, de 19 de março deste ano:
"O motivo de minha demissão é antes uma oposição, que me parece ainda inexplicável
[...] A tal ponto que fui descrito por alguns ao Eminente Cardeal Vigário como anti-
jesuíta e, conseqüentemente, como alguém a ser vigiado em todos os âmbitos, tanto
práticos quanto doutrinais e a quem se pode com razão atribuir intenções
inquietantes[5]”.
O jovem Montini, entretanto, graças à benevolência insuficientemente previdente de
Monsenhor Ottaviani, excelente homem, futuro Cardeal prefeito do Santo Oficio[6],
conseguiu se reciclar nos meios vaticanos, chegando mesmo, com o tempo, a recuperar
o cargo de substituto na Secretaria de Estado, sob o pontificado de Pio XII.
Mas que Monsenhor Montini fosse realmente "alguém a ser vigiado em todos os
âmbitos, tanto práticos quanto doutrinais, e a quem se podem com razão atribuir
intenções inquietantes" e que o cardeal Marchetti-Selvaggiano tivesse razão, a
sequência dos acontecimentos mostrará cada vez claramente, sobretudo por ocasião da
publicação da encíclica Humani generis, de Pio XII.
O Papa interveio, como vimos, para condenar a nova teologia que ameaçava a própria
existência da Igreja.
Mas eis que Mons. Montini, desde então Substituto na Secretaria de Estado,
respondendo às interrogações inquietas do filósofo Jean Guitton, que viera encontrá-lo
em 8 de setembro de 1950, se permitiu franca oposição à intervenção do Papa e
"reconfortou" o amigo neo-modernista:
“O senhor certamente também terá observado as nuances desse texto pontifical. Por
exemplo, a encíclica não fala nunca de erros (errores). Ela fala somente de opiniões
(opiniones). Isso indica que a Santa Sé não procura condenar verdadeiros erros, mas
modos de pensamento susceptíveis de produzir erros, apesar de serem respeitáveis em
si. Por outro lado, existem três razões para que a encíclica não seja deformada.
“A primeira razão, eu confidencio ao senhor, é a vontade expressa do Santo
Padre.
“A segunda é a mentalidade do episcopado francês, de vistas largas, aberto às
correntes contemporâneas. Certamente um episcopado, todo episcopado (porque
exerce um contato direto com as almas, e porque deve permanecer fiel a seu ministério
pastoral, como se diz...), é sempre levado a alargar as vias da doutrina e da fé. E ele
sem dúvida tem razão. Em Roma, temos o dever de velar também sobre o lado
doutrinal. Somos particularmente sensíveis a tudo o que poderia alterar a pureza da
doutrina que é verdade. O soberano pontífice deve guardar o depósito, como diz São
Paulo.
“E chego à terceira razão. Ela se resume em duas palavras: ‘os franceses são
inteligentes’[7].
E assim, enquanto o Papa condenava radicalmente sem apelo o novo modernismo de
Lubac e de seus amigos, um de seus mais próximos colaboradores, Mons. Montini traía
sua confiança e minava seu Magistério apresentando as heresias dos novos teólogos
como "respeitáveis em si", tentando fazer crer que esta interpretação da Humani
generis era a interpretação autêntica, a ser difundida conforme a "vontade expressa do
Santo Padre", para evitar que a encíclica não fosse "deformada".
O "reconforto" dado por Montini a seu amigo Guitton traíam, infelizmente, sua
mentalidade pró-modernista.
O que igualmente impressiona é sua aprovação, com o habitual pretexto da "pastoral",
da tendência a "alargar as vias da doutrina e da fé", tendência própria a bispos que,
evidentemente, não têm mais fé. Trata-se, além do mais, da mesma tendência, típica dos
modernistas, que encontraremos na base dos documentos do Vaticano II e da "pastoral
pós-conciliar" que está devastando a Igreja.
É também evidente que Mons. Montini têm uma noção modernista da autoridade da
Hierarquia, vista como elemento que frearia o processo de evolução da doutrina
(enquanto o elemento progressista seria, ao contrário, a elite modernista, mergulhada na
vida a na "pastoral"), exatamente como São Pio X já havia denunciado na Pascendi:
“Digamos então — escrevia São Pio X — para mostrar plenamente o pensamento dos
modernistas, que a evolução resulta [para eles] do conflito de duas forças, das quais
uma empurra ao progresso, enquanto a outra tende à conservação.
“A força conservadora, na Igreja, é a tradição, e a tradição está representada pela
autoridade religiosa. Isso, de direito e de fato: de direito, porque a defesa da tradição é
como um instinto natural da autoridade; de fato, porque, planando acima das
contingências da vida, a autoridade não sente, ou sofre muito pouco os estímulos do
progresso. A força progressiva, ao contrário, que responde às necessidades,
fermenta nas consciências individuais, e, sobretudo naquelas que estão em contato
mais íntimo com a vida. [...] Ora, é em virtude de uma sorte de compromisso e de
transação entre a força conservadora e a força progressiva que as mudanças e os
progressos se realizam".
Tese, antítese, síntese: Hegel no estado puro, em suma, para uma evolução indefinida
rumo ao "Ponto Ômega" teilhardiano...
Com estes pressupostos, era perfeitamente lógico — a lógica do erro — que o substituto
Montini tentasse "reconfortar" seu amigo filósofo com uma mensagem codificada
reservada aos iniciados: os bispos franceses eram "inteligentes" e certamente à altura de
se organizar para deixar a Humani generis cair no esquecimento.
Sempre em seu livro de lembranças sobre seu amigo Paulo VI, Guitton acrescenta:
"Falo a Mons. Montini sobre o Pe. de Lubac, sobre a emoção que causaram na França
certas disposições tomadas a seu respeito [precisamente depois de Humani generis -
ndr].
“Nós o sabemos — responde ele — mas não se inquiete, o Pe. de Lubac ainda
prestará eminentes serviços à Igreja. Conhecemos sua doutrina, sua influência,
seus méritos[8]”.
Portanto, o Pe. Lubac e os outros novos teólogos não deveriam se inquietar: Mons.
Montini e seus "amigos" trabalhavam para tecer a trama de seu futuro golpe de estado,
que iria reabilitá-los.
Não entraremos, no escopo deste artigo, no exame detalhado das outras atitudes
"montinianas" efetuadas pelas costas do papa. Lembremos simplesmente a carta de
felicitações ao modernista Maurice Blondel, enviada pela Secretaria de Estado e
assinada pelo Substituto Montini, mas em nome de Pio XII e com votos, sempre em
nome do Papa, para continuação de sua obra filosófica e apologética, definida como
"uma preciosa contribuição para uma melhor compreensão [...] da mensagem
cristã[9]”.
Lembremos também de outra atitude de Montini: descobriu-se que ele
mantinha, secretamente e contra a proibição de Pio XII, sempre em nome da Santa Sé,
relações diplomáticas com o governo soviético de Stalin em Moscou[10].
Depois dessa última traição, Pio XII, muito contristado, afastou Mons. Montini da
Secretaria de Estado, enviando-o a Milão como arcebispo, mas sem nomeá-lo cardeal,
apesar de Milão ser uma sede cardinalícia há séculos.
Esta nomeação era na realidade um promoveatur ut amoveatur, uma espécie de
promoção-destituição; mesmo os neo-modernistas estão de acordo com essa
interpretação, como, por exemplo, o Pe. G. Martina, jesuíta e professor da Universidade
Gregoriana de Roma, que admite que se tratava de um "afastamento do substituto
Montini, ‘promovido’ arcebispo de Milão, jamais nomeado cardeal e jamais
recebido em audiência privada pelo Papa (com quem ele tivera contato quotidiano
durante anos)[11]”.
E o Pe. Maritina observa:
“O episódio do afastamento significativo de Mons. Montini para Milão ainda não está
completamente esclarecido. Diversos fatores influenciaram a destituição: o pouco de
simpatia de que ele gozava na Secretaria de Estado, a irritação de Pio XII em relação
à independência de julgamento de seu colaborador, o atraso de Montini para
comunicar certos fatos, na esperança de que, enquanto se esperava, as dificuldades
se resolvessem[12]”.
Mas mesmo como arcebispo de Milão e apesar da clara advertência do Papa, Mons.
Montini continuou imperturbável, a desobedecer, apoiando novos teólogos e o
progressismo em geral.
Como já vimos, "do arcebispo Montini — relatou Von Balthasar — chegaram palavras
de adesão e de encorajamento" para Lubac e seus amigos. E com seus melhores votos a
Pio XlI.

A difusão velada da nova teologia nas costas do Papa


Os últimos anos do pontificado de Pio XII transcorreram num grande isolamento,
ressaltado por todos os historiadores e interpretado de diferentes maneiras. O fato é que
o Papa não podia mais confiar em ninguém.
A Igreja estava por demais repleta de Montinis e Lubacs de diversos calibres e em todos
os níveis. Apesar de suas intervenções, Pio XII via subir a maré do modernismo,
hipocritamente difundido às suas costas.
Estas manobras desleais e secretas dos adeptos da nova teologia foram recentemente
descritas com eloquência pelo Pe. Henrici, S.J., já citado, num artigo publicado na
revista Communio, órgão de imprensa da ala "moderada" da nova teologia (co-
fundadores: Henri de Lubac, Hans Urs Von Balthasar e... Joseph Ratzinger).
E eis como o Pe. Henrici descreve a tática dissimulada dos novos teólogos que
ensinavam nas universidades dos Jesuítas de certos países da Europa, nas quais ele tinha
estudado (Suíça, Alemanha, França e Bélgica):
"Durante nossos estudos no seminário nós liamos Kant, Hegel, Heidegger e Blondel;
Kant e Heidegger, em particular, constituíam referências constantes
e onipresentes. Geist und Welt de Karl Rahner [...] e todas as obras da escola de
Marechal eram lidas como best-sellers[13]”.
Em Louvain, por exemplo, Henrici estudava "uma teologia fortemente apoiada nos
autores da nova teologia bíblica e ecumênica[14]".
E ainda: "Àqueles que tinham interesses teológicos particularmente pronunciados, o
prefeito dos estudos aconselhava como primeira leitura os dois primeiros capítulos
de Surnaturel de Henri de Lubac — o mais proibido dos livros proibidos! — e
seu Corpus Mysticum, e isso com o intuito de levá-lo a adquirir uma sensibilidade
para o fato de que afirmações teológicas idênticas, enunciadas em épocas
diferentes e em contextos diferentes podem ter um sentido diferente"[15], isto é,
com o intuito de instilar nas almas dos estudantes o relativismo e o evolucionismo
dogmáticos mais evidentes.
Certamente, para salvar as aparências, os professores "propunham para cada matéria um
Manual antigo (de estilo escolástico) que, entretanto, só era, no máximo, rapidamente
folheado[16]".
Depois disso, os mesmos professores se consagravam de corpo e alma à difusão entre os
alunos do neo-modernismo mais escancarado no domínio bíblico e teológico.
“O que era novo, ou melhor, surpreendente — continua o Pe. Henrici — para aqueles
que começavam seus estudos de teologia, era sobretudo o modo de abordar a
Sagrada Escritura. Era necessário se habituar a não tomar completamente ao pé
da letra não apenas o Antigo Testamento, mas também os Evangelhos (por
exemplo os Evangelhos da Infância)[17]”.
E ainda:
“No estudo da Bíblia também se fazia referência contínua e de modo natural a
autores não católicos” enquanto que, inútil dizer, “a teologia estudada [...] era
inteiramente ecumênica”[18].
Pio XII morreu em Castelgandolfo em 9 de outubro de 1958, deixando uma Igreja que,
à primeira vista, ainda podia parecer sólida e tranquila em sua tradição apostólica. Mas
era a bonança que precede a tempestade.
[Fonte: Courrier de Rome, março de 2007]
(Continua)

[1] L’Osservatore Romano, 19 de setembro de 1946.


[2] L’Osservatore Romano, 22-23 de setembro de 1946.
[3] De 12 de agosto de 1950.
[4] H. U. von Balthasar. “le p. Henri de Lubac. La tradition, source de renouveau”,
Milan, Jaca BOOK, 1978.
[5] Fappani-Molinari, Giovanni Battista Montini jeune. Éd. Marietti.
[6] Ibidem.
[7] Jean Guitton, Dialogues avec Paul VI.
[8] Ibidem.
[9] Carta de 2 de dezembro de 1944, em Doc. Cath. 08/07/1945. Col. 498-499.
[10] Ver por exemplo o testemunho de Monsenhor Roche (que foi durante muitos anos
secretário do cardeal Tisserant, e que havia herdado arquivos pessoais do cardeal) numa
de suas cartas, publicada no número 285 da revista Itinéraires.
[11] AA. VV., Vatican II – Bilan et perspectives vingt-cinq ans après (1962-1987); éd.
Cittadella, 1987.
[12] Ibidem.
[13] Communio, nov-dez. 1990, “La maturation du Concile. Expériences de théologie
dans le pré-concile”.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem.

Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja Católica


Os novos modernistas da Nova teologia[1]

Henri de Lubac e os “novos teólogos”


Nos anos 30 e 40, uma nova geração de modernistas entrou em cena. Seus nomes serão
muito conhecidos mais tarde, como os dominicanos Marie-Dominique Chenu e Yves
Congar, os jesuítas Henri de Lubac, Hans Urs von Balthasar e, em seguida, Karl
Rahner, formuladores de uma “nova teologia”, cujas raízes estão fincadas no velho
modernismo.
Assim como os “velhos” modernistas, os novos teólogos estavam, eles também,
fortemente impregnados de imanentismo, subjetivismo e relativismo, com todas as
consequências imagináveis no domínio da dogmática e da moral.
O Padre Henri de Lubac, por exemplo, líder da Nova Teologia e, por isso mesmo, tido
como “pai” do Concílio Vaticano II e da nova Igreja conciliar, tinha ele também, assim
como seus mestres modernistas, uma noção muito elástica da verdade.
Certamente, nos seus escritos oficiais, Lubac era bastante prudente e cauteloso para não
deixar transparecer seu relativismo de fundo, mas nos seus escritos privados
manifestava evidentemente com mais liberdade seu pensamento real, sem dissimulá-lo
por detrás das habituais elocubrações intelectuais.
Numa carta ao filósofo Maurice Blondel, seu amigo, escrevia ele:
“[...] O número de Recherches de science religieuse recentemente publicado, traz um
artigo do Pe. Bouillard [representante da Nova Teologia - Ndr] que contesta
fortemente as idéias do Pe. Garrigou-Lagrange [adversário de Lubac - Ndr] sobre as
noções conciliares e suas visões simplistas acerca do absoluto da verdade. Este artigo,
eu posso te confidenciar, não foi apenas aprovado, mas desejado por gente de cima[2]”.
Estamos persuadidos de que Lubac não hesitaria em acusar Nosso Senhor mesmo,
notoriamente intransigente neste quesito, de “visões simplistas sobre o absoluto da
verdade”...
“Sua afirmação principal — resumirá em seguida seu confrade, o Pe. M. Flick S. J.,
falando de Lubac — parece ser a seguinte: as crenças ulteriores da Igreja não devem
necessariamente relacionar-se por um laço lógico ao que ela sempre creu
explicitamente desde os primeiros séculos”[3].
Segundo Lubac, portanto, o Magistério da Igreja poderia tranquilamente ensinar hoje o
contrário do que era ensinado ontem, e mudar de ideia periodicamente, seguindo a
inspiração da famosa consciência humana, isto é, das fantasias dos vários Lubacs de
prontidão.
Como arremate da sua obra, num livro (“Sobrenatural”, publicado em 1946) que
provocou a reação dos teólogos católicos até ser oficialmente condenado na
Encíclica Humani Generis, Lubac apresenta seu pensamento sobre a relação entre a
graça sobrenatural e a natureza humana: em meio às ambiguidades habituais e da
afetação de vítima incompreendida, a graça sobrenatural é aí considerada
como necessariamente devida por Deus ao homem, enquanto parte constitutiva da
própria natureza humana.
Para os que não compreenderam a gravidade da questão, lembramos que desta
afirmação — que postula uma humanidade em permanente estado de graça e, portanto,
“auto-suficiente” na ordem do conhecimento de Deus e da salvação eterna — decorria
necessariamente a demolição do dogma do pecado original, no sentido entendido pela
Igreja, e a completa inutilidade da Revelação, da Redenção e da própria missão da
Igreja, que se tornam realidades puramente acessórias e relativas.
Finalmente — fato revelador e significativo do fundo gnóstico da Nova Teologia — o
Pe. de Lubac não escondia sua simpatia por esta verdadeira gnose que é o Budismo.
Conquanto sustentasse a “extraordinária singularidade do fato cristão”, confessava:
“Sempre fui atraído pelo estudo do Budismo, que considero como o maior dos fatos
humanos, tanto por sua originalidade como por sua difusão multiforme pelo espaço e
pelo tempo, para nada dizer da sua profundidade espiritual”[4]. (A propósito: Qual é a
imagem mais emblemática, mais difundida do tristemente famoso “Encontro inter-
religioso de Assis”, de 1986? Talvez seja fruto do acaso, mas é justamente o beijo de
João Paulo II, entusiasta da Nova Teologia, no... Dalai Lama, colocado neste evento no
lado esquerdo do papa...)

Todos os “amigos” de Lubac


Em matéria de relativismo evolucionista, os amigos e discípulos de Lubac estavam
certamente à altura do seu “mestre”.
O Pe. Hans Urs von Balthasar, por exemplo, desde 1953 no seu livro A demolição dos
bastiões — cujo título já constituía, por si só, todo um programa — anunciava boa parte
dos erros do Concílio e sustentava que a Tradição dogmática da Igreja deveria ser
compreendida numa clave vitalista-modernista:
“A Tradição — escrevia, com efeito, von Balthasar — [...] não pode ser outra coisa
senão um deixar-se levar pela força espiritual da geração precedente para se
aproximar do mistério de modo vital (uma verdade que não fosse mais vital ou que não
pudesse tornar a sê-lo não seria uma verdade)”. E para evitar todo mal-entendido, ele
precisava: “A verdade da vida cristã é nisso como o maná do deserto: não podemos
guardá-la para conservá-la; hoje é fresca, amanhã estará estragada”[5].
Deste relativismo filosófico e dogmático de fundo derivaram, em seguida, e de modo
necessário, todos os outros erros e heresias que Urs von Balthasar propunha na obra
citada, e que são dominantes hoje em dia na Igreja “conciliar”: o ecumenismo, a
abertura ao mundo, o aniquilamento programado do primado de jurisdição do Papa
naquilo que ele chamava de a futura “Igreja marial-joânica”, a dissolução da Igreja
católica romana na futura e tão aguardada Igreja “católica” globalista etc.
Finalmente, após o Concílio, von Balthasar sustentará também a tese do inferno vazio.
Não surpreende.
O jesuíta Pe. Henri Bouillard, ele também da escola de Lubac, seguia na mesma toada e
afirmava seriamente: “Quando o espírito evolui, uma verdade imutável se conserva
apenas graças a uma evolução simultânea e correlata de todas as noções [...] Uma
teologia que não fosse atual, seria uma teologia falsa”[6]; enquanto seu confrade, o Pe.
Gaston Gessard, ridicularizando uma suposta “modorra santa que serviu para proteger o
tomismo canonizado, mas também, como dizia Péguy, ‘enterrado’”, atacava
frontalmente a filosofia e a teologia de Santo Tomás, desde sempre proposta pelo
Magistério da Igreja como uma fortaleza contra toda heresia (cf. can. 1366, §2 do
Código de Direito Canônico, 1917).
É preciso finalmente sublinhar o papel absolutamente fundamental para o
desenvolvimento da Nova Teologia desempenhado por dois dos principais amigos de
Lubac e que foram, por sua vez, os seus gurus: o filósofo Maurice Blondel e o jesuíta
Pierre Teilhard de Chardin.
Para evocar a pessoa e as ideias de Maurice Blondel, modernista empedernido e
colaborador do periódico modernista do Pe. Laberthonnière, bastará citar trecho de um
artigo seu de 1906: “Nós substituímos a abstrata e quimérica adæquatio rei et
intellectus [adequação do espírito ao objeto conhecido] pela procura metódica deste
direito, a adæquatio realis mentis et vitæ [adequação real da inteligência à vida]”[7].
Traduzindo em linguagem compreensível para o comum dos mortais, isto significa que
a verdade — e aqui também a verdade religiosa — não é algo exterior ao homem, que
se deva compreender com a inteligência — isso para Blondel é quimérico — e sim algo
que, segundo a perspectiva modernista, só podemos sentir refletindo sobre os
movimentos vitais íntimos da consciência humana, que evidentemente está em evolução
contínua.
Estamos, portanto, em pleno imanentismo, domínio no qual Blondel desenvolveu sua
apologética, fundada precisamente sobre o método de imanência, em que todo o
cristianismo aparecia fundado sobre experiências puramente interiores, enquanto as
provas exteriores de credibilidade da Revelação — os milagres, por exemplo — eram
dissolvidos nas brumas do subjetivismo.
“Se quisermos aprofundar — escrevia Blondel — não há dúvida que no milagre não
há nada que ultrapasse o mais irrelevante dos acontecimentos quotidianos, assim
como, nestes acontecimentos quotidianos, não há nada de inferior ao milagre”.
Consequentemente, se tudo é milagre, nada realmente o será. Ademais, para Blondel, os
milagres seriam “invisíveis”, a ponto de só poderem ser percebidos pelos... que já
acreditam:
“Os milagres, portanto, são milagrosos apenas para o olhar daqueles que já estão
dispostos a reconhecer a ação divina nos acontecimentos e nos atos mais simples”.
(ibidem)
Não é difícil compreender a que gênero de “fé” conduz semelhante “apologética”,
condenada, de resto, pela encíclica Pascendi.
Blondel, contudo, não tinha a consciência perfeitamente tranquila e temia ser descoberto
e cair assim sob a censura da Igreja.
Alguns anos mais tarde, com efeito, numa carta a seu amigo Lubac, Blondel revelará a
tática hipócrita de que lançou mão para escapar à vigilância das autoridades
eclesiásticas:
“Quando, há mais de quarenta anos, abordei problemas para os quais eu não estava
preparado o suficiente, reinava um extrinsequismo [=tomismo, filosofia perene]
intransigente, e, se eu tivesse dito já naquela época o que o senhor deseja, eu teria
agido de modo temerário e teria comprometido todo o esforço empenhado, toda a
causa por defender, afrontando censuras que seriam inevitáveis e certamente
causariam atrasos. Era preciso deixar o tempo amadurecer-me o pensamento e
amansar os espíritos rebeldes [ou seja, o papa, o Santo Ofício etc - ndr]. [...] O senhor
conhece as dificuldades, os riscos — que não desapareceram — em meio aos quais
persegui um plano que se tornaria ainda mais oneroso pelas dificuldades de saúde,
pelas tarefas profissionais ou pelos conselhos de prudência e de espera que me eram
manifestados”.
O jesuíta Pierre Teilhard de Chardin[8], outro amigo e “mestre” de Lubac — estava, por
sua vez, na origem de um novo sistema filosófico-religioso pan-evolucionista, uma
espécie de mistura de Darwin com Hegel, que ele considerava nada menos como a
“religião do futuro”, um “metacristianismo”, destinado a destruir a Igreja Católica por
meio da reinterpretação sistemática dos seus dogmas conforme uma clave gnóstica.
Segundo o sistema do Pe. Teilhard de Chardin, oriundo do seu fascínio pela mitológica
(porque se trata precisamente de um mito) teoria da evolução de Darwin, a matéria não-
orgânica teria evoluído ao estágio de matéria orgânica, e esta, por sua vez, teria
evoluído até atingir o estágio mais avançado com o homem, cuja alma espiritual não
seria outra coisa que o fruto espontâneo de uma evolução ulterior da matéria.
Porém, na saga de ficção científica de Teilhard, o processo evolutivo deveria continuar
inexoravelmente, com a cooperação do homem ao progresso científico e técnico, até
que a humanidade alcance o estágio de “suprahumanidade”, de modo a tornar-se
“cristificada”, naquilo que ele chamava de “ponto ômega”: um “Cristo cósmico”
compreendido em sentido panteísta.
“Eu creio — resumia Teilhard — que o Universo é uma Evolução. Eu creio que a
Evolução caminha em direção do Espírito. Eu creio que o Espírito termine em
alguma coisa pessoal. Eu creio que o Pessoal supremo é o Cristo Universal”[9].
E ainda: “O que domina o meu interesse e minhas preocupações interiores [...] é o
esforço para estabelecer em mim e para difundir ao meu redor uma nova
religião (chame-a de um Cristianismo melhor, se quiser) na qual o Deus pessoal deixa
de ser o grande proprietário “neolítico” de outrora, para se tornar a Alma do Mundo,
que nosso estágio cultural e religioso reclama”[10].
“Não há, concretamente, Matéria e Espírito: há apenas Matéria que se torna
Espírito. Não há, no Mundo, nem Espírito nem Matéria: o “Tecido do Universo” é o
Espírito-Matéria. eu sei muito bem que esta ideia [...] é vista como um monstro
híbrido [...] mas estou convencido que as objeções levantadas contra ela dependem do
fato de que poucos arriscam abandonar um ponto de vista antigo por uma noção
nova”[11].
Tudo isso só poderia acabar numa aberta apostasia da Fé:
“Se, depois de alguma crise interior — escrevia Teilhard desde 1934 — eu viesse a
perder minha fé em Cristo, minha fé num Deus pessoal, minha fé no Espírito, parece
que eu continuaria invencivelmente a crer no Mundo. O Mundo (o valor, a
infalibilidade e a bondade do mundo), tal é, em última análise, a primeira, a última e a
única coisa na qual eu creio.
É para esta fé que eu vivo. E é a esta fé, eu o sinto, que no momento de morrer,
acima de qualquer dúvida, eu me abandonarei. [...] a fé confusa num Mundo único
e infalível, eu me abandonarei, seja onde for que ela me conduzir”[12].
Assim como para os outros neo-modernistas da nova teologia, a aspiração do Pe.
Teilhard de Chardin era a de conseguir permanecer escondido como um vírus mortal no
seio da “velha” Igreja Católica, com um objetivo bem preciso: esvaziá-la desde o
interior, para em seguida transformá-la numa “super-Igreja” ecumênica no sentido mais
amplo do termo.
É com razão que o filósofo Etienne Gilson, que conhecera pessoalmente o Pe. Teilhard,
denunciava sem meias-palavras:
“...Isso me reconduz à dúvida que me assalta: [Teilhard de Chardin] ele foi
simplesmente um incoerente ou foi, ao contrário, o mais sombrio dos heresiarcas,
lúcido e consciente do que ele estava fazendo e decidido a gangrenar a Igreja desde
dentro, continuando a pertencer a ela? Naturalmente, o que eu chamo de fazer a
Igreja apodrecer significava para ele renová-la; isso significava talvez proceder a uma
reforma em comparação da qual, como ele diz, a reforma operada pela doutrina do
Verbo, no século II de nossa era, pareceria superficial? Há um orgulho luciferino neste
projeto. É o triunfo do naturalismo e do secularismo que prosperam em nosso
tempo”[13].
Inútil dizer que esta acusação pode ser estendida aos demais representantes da nova
teologia, de espírito menos futurista, mas todos impregnados, como vimos, de
imanentismo, subjetivismo e evolucionismo dogmático.
É igualmente interessante saber que o Pe. Henri de Lubac, o “pai do Vaticano II”, foi
também o divulgador mais ativo e efusivo do “pensamento” — devidamente filtrado —
de seu amigo Teilhard no meio católico. Em particular, desde o pós-guerra até o início
do Concílio Vaticano II, uma propaganda insistente feita pelos meios da “nova teologia”
em favor das ideias de Teilhard de Chardin foi introduzida no seio
da intelligentsia católica com efeitos devastadores, tornados em seguida bem visíveis e
palpáveis, durante e depois do Vaticano II, através do comportamento de numerosos
membros influentes da Hierarquia, já inclinados a crer no mito do progresso, da
modernidade e da abertura ao mundo.
Outro célebre representante da “nova teologia” era o Pe. Karl Rahner, teólogo jesuíta e
um dos peritos mais influentes do Vaticano II.
Para compreender o personagem e suas ideias, bastarão algumas citações extraídas de
algumas de suas publicações que, apesar de pouco posteriores ao Vaticano II,
revelam ad abundantiam o que ele já tinha em mente bem antes:
“A natureza efetiva — escrevia Rahner, seguindo as pegadas de Lubac — nunca é
“natureza pura”, mas uma natureza na ordem sobrenatural, da qual o homem
(mesmo enquanto incrédulo e pecador) não pode escapar”[14].
É a base da tese rahneriana dos “cristãos anônimos”(para a qual todos os homens seriam
cristãos, mesmo sem sabê-lo nem querê-lo) e também da doutrina da “salvação
universal”: um modo elegante, em suma, de eliminar discretamente a Santa Igreja
Católica submetendo-a à eutanásia.
Escutemos ainda Rahner:
“Pode-se até mesmo tentar ver a união hipostática na linha deste aperfeiçoamento
absoluto do que é o homem”[15]. Segundo o teólogo mais aclamado do Concílio
Vaticano II, então, a união hipostática — isto é, a Encarnação do Verbo divino — não
teria passado de uma fábula, e Nosso Senhor só teria sido um homem qualquer, que
chegou, entretanto, a uma perfeição tal que teria se tornado Deus...
E ainda:
“O dogma [da Imaculada Conceição] não significa de modo algum que o nascimento
de um ser humano seja acompanhado de alguma coisa contaminante, de uma
mancha, e que para evitá-la, [a Santíssima Virgem] deveria ter um privilégio”[16].
Rahner nega aqui tanto o dogma do pecado original (e portanto a necessidade da
Redenção, da Igreja e do batismo), quanto o sentido autêntico do dogma da Imaculada
Conceição, pelo qual o bem-aventurado Pio IX define justamente que a santa Mãe de
Deus tinha sido, “por graça especial, desde o primeiro instante da sua concepção [...]
preservada de qualquer mancha do pecado original”[17].

A marca infalível da heresia


Por influência dos “velhos” modernistas, em suma, os novos teólogos — Lubac à frente
— por seu naturalismo e seu relativismo não se limitavam a negar uma ou outra verdade
de fé, mas atacavam as raízes sobrenaturais da Igreja, acabando por destruí-la por via de
inflação, ou seja, através da sua identificação progressiva com toda a humanidade.
Mas o que espanta mais nessa sopa de cultura de fermentos maléficos, que são os meios
do novo modernismo, é sem dúvida a soberba destes pseudo “reformadores”, fundada
na pretensão de ter nem mais nem menos redescoberto o “cristianismo
autêntico” (perdido pela “velha” Igreja ao longo dos séculos).
“Eu saúdo antes de tudo — escrevia em 1945 Blondel a Lubac — sua grande obra o
natural, pois se é útil e até necessário destruir os erros, é ainda mais importante expor
a fundo a verdade do cristianismo autêntico...”[18]. (e, como por acaso, o que
pretendem hoje os partidários do Concílio Vaticano II, senão ter finalmente descoberto,
depois de dois mil anos, o “cristianismo autêntico”?).
Esta pretensão se repete constantemente na história das heresias, trata-se de um sinal
infalível para reconhecermos o herético: dos gnósticos dos séculos II e III até os Cátaros
medievais, de Ário de Alexandria até Lutero, de Nestório até os modernistas e aos
“novos teólogos”, todos pretendem ser os descobridores e restauradores do “verdadeiro
cristianismo”.
“O Senhor... dissipou aqueles que se orgulhavam com os pensamentos do seu
coração”[19]: mesmo a condenação ulterior da nova teologia pelo Soberano Pontífice
Pio XII não conseguirá dobrar o orgulho presunçoso dos novos teólogos, nem convencê-
los a abandonar seu plano pretensioso de reformar a Igreja.
A influência dos novos teólogos na “Igreja do Vaticano II”
Como o leitor terá observado, este rápido panorama procurou sobretudo pôr em
evidência — escavando brevemente as areias movediças da “nova teologia” —
o naturalismo e o evolucionismo dogmáticos dos “novos teólogos”, fontes de todos seus
outros desvios doutrinais, mas sobretudo da tragédia do Vaticano II e do desastre pós-
conciliar.
Entre os representantes da nova teologia de que já falamos, numerosos são os que foram
teólogos dos padres conciliares durante os trabalhos do Vaticano II, que por esta razão
foi chamado — justamente — o “Concílio dos teólogos”[20]. A consequência hoje é que
os católicos estão morrendo, sem sequer perceberem, da nova teologia (ou seja, em
última análise, de blondelismo e de teilhardismo cuidadosamente filtrados) cujo
espírito, inoculado nos documentos conciliares e no magistério pós-conciliar, impregna
hoje uma boa parte da Hierarquia e é largamente difundido nos cursos teológicos de
formação para o clero e para os “leigos engajados”.
As provas? Eis algumas:
“Blondel está em casa nas universidades e faculdades católicas”, observa o Pe.
Xavier Tilliette S. J, “novo teólogo”, num artigo celebrando Blondel na Civiltà
Cattolica de 4/9/1993, onde precisava:
“A Universidade Gregoriana sob a influência recente de Mons. Peter
Henrici [sobrinho de Urs von Balthasar] não é menos consagrada ao filósofo de Aix”
(ibid. pág. 389)
O próprio Papa João Paulo II, por ocasião do centenário da obra principal de Blondel
(L’ Action), enviou uma carta elogiosa — assinada pessoalmente — na qual ele assim a
exaltava: “Lembrando a obra entendemos antes de tudo honrar seu autor que em seu
pensamento e em sua vida soube fazer coexistir a crítica mais rigorosa... com o
catolicismo mais autêntico”[21].
Quanto ao Pe. Teilhard de Chardin, o mesmo Osservatore Romano publicou na primeira
página uma carta enviada à Secretaria de Estado, assinada pelo Cardeal Casaroli e em
nome de João Paulo II, datada de 12 de maio de 1981 (véspera do atentado na Praça
São Pedro), enviada ao Reitor do Instituto Católico de Paris, Mons. Poupard (hoje ele
também cardeal, evidentemente), por ocasião das celebrações do centenário do
nascimento do jesuíta apóstata, carta na qual eram exaltadas “a impressionante
ressonância das pesquisas [de Teilhard de Chardin], a irradiação de sua
personalidade e a riqueza de seu pensamento” e onde Teilhard era definido como “um
homem tomado por Cristo na profundeza de seu ser, desejoso de honrar ao mesmo
tempo a fé e a razão, respondendo assim quase que por antecipação ao apelo de João
Paulo II: ‘Não tenhais medo; abri a Cristo as portas, os imensos espaços da cultura, da
civilização, do desenvolvimento’”. (L’Osservatore Romano de 10 de junho de 1981).
E mesmo se a reação de um grupo de cardeais exigiu do diário oficial da Santa Sé uma
reconsideração da perspectiva desta carta incrível, o fato não permanece menos
significativo.
Como se isso não fosse suficiente, seu amigo e discípulo Henri de Lubac S. J., foi em
seguida nomeado cardeal e outros representantes de ponta da nova teologia receberam a
púrpura cardinalícia ao mesmo tempo que ele: Jean Daniélou, Hans Urs von Balthasar,
Yves Congar, enquanto sua nova teologia gnóstica, condenada pelo Papa Pio XII,
tornou-se, como nos informa o Pe. Henrici S. J (sobrinho de Von Balthasar, ex-
professor da Universidade Gregoriana e hoje bispo), nada menos do que a “teologia
oficial do Vaticano II”. E consequentemente, também da atual “Hierarquia conciliar”.

Continua.

[Fonte: Sim Sim Não Não, nº 185


1] O leitor também lerá com proveito, acerca da Nova Teologia, o opúsculo “Os que
pensam que venceram”, publicado na Revista Permanência 282-283. [N. da P.]

[2] Carta inédita de 28 de julho de 1948 in A. Russo “Henri de Lubac: théologie et


dogme dans l’histoire”, éd. Studium, Roma, 1990, p. 356.

[3] “Le développement du Dogme selon la doctrine catholique”, Ed. Gregoriana, 1953.

[4] H. de Lubac, “Mémoires autour de mes oeuvres”, ed. Jaca Book, 1992, p. 46.

[5] H. U. von Balthasar.

[6] “Conversion et grâce chez saint Thomas d’Aquin”, 1944, p. 219. Citado por Pe.
Garrigou-Lagrange, La nouvelle théologie, où va-t-elle? in Angelicum n. 23, ano 1946,
p. 126.

[7] Annales de philosophie chrétienne, 13 de junho de 1906, p. 235.

[8] Remetemos o leitor interessado ao capítulo 15 do livro “Cem anos de modernismo”,


do Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX , que publicamos na internet:
http://permanencia.org.br/drupal/node/5203 [N. da P.]

[9] Comment je crois, éd. du Seuil, Paris, 1969, p. 117.


[10] Lettre à Léontine Zanta, éd. Desclée de Brouwer, Paris, 1965, p. 127.

[11] L’Énergie Humaine, éd. du Seuil, Paris 1962, p. 74.

[12] Comment je crois, ed. du Seuil, Paris, 1969, p. 120 e 124.

[13] Carta de 14/8/1967 a A. Del Noce, in Pensées d’un homme libre, 30 Giorni, abril
1991.

[14] “Rapport entre Nature et Grâce” in “Essais d’anthropologie surnaturelle”, ed.


Paoline, Rome, 1969.

[15] Ibidem.

[16] Marie/Méditations, Herder-Morcelliana, Brescia, 1970.

[17] Bula Ineffabilis Deus, Denz. 2803.

[18] Carta de 15/4/1945, in A. Russo, Henri de Lubac: théologie et dogme dans


l’histoire —Línfluence de Blondel, Studium, 1990. p. 307.

[19] Lc 1, 51.

[20] Peter Henrici S. J. in Communio, nov-dez de 1990.

[21] L’Osservatore Romano, 12 de maio de 1993.


Teilhard de Chardin, o profeta do Cristo cósmico

[Capítulo XV do livro Cent ans de modernisme. Généalogie du Concile Vatican


II (Editions Clovis, 2003) do padre Dominique Bourmaud, FSSPX.]
1. O profeta e sua visão
Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955) nasceu em Auvérnia (França), e descende de
Voltaire por parte de mãe. Seu professor de literatura e futuro amigo, Bremond, o
descreve à idade de quatorze como muito inteligente, mas desesperadamente tranquilo.
Não se podia encontrar a menor exaltação em seus olhos, de tão imerso que vivia em
outro mundo, de tão absorto que estava por uma paixão todo-poderosa. Este é o
primeiro testemunho da dupla personalidade de Teilhard: por um lado, o estudante
modelo que se tornará sacerdote jesuíta; por outro lado, o visionário obcecado por uma
idéia fixa, seu sonho da evolução criadora. Esta dualidade psíquica se revela em suas
atitudes paradoxais. Teilhard exulta de uma alegria lírica e romântica perante as bombas
atômicas, que evocam, para ele, nem tanto o dia do Juízo, mas as fecundas entranhas da
evolução. Ele chora de emoção diante do ferro oxidado. Extasia-se na presença da
matéria, na presença de toda matéria. Esse delírio pela evolução provavelmente explica
seu interesse pelos audaciosos avanços da bioética e pela revolução chinesa de Mao Tse
Tung.
A atração irresistível pela biologia e a paleontologia orienta seus estudos pessoais, e daí
em diante tudo será compreendido sob o ponto de vista da evolução da matéria. Os anos
1916-1918 marcam a virada decisiva de seu pensamento, o que ele chama de seu
segundo nascimento. Ora, nessa época, buscava-se um pioneiro, um herói dentro do
clero, e se fosse jesuíta, tanto melhor. Um herói e um pioneiro entre os jesuítas deveria
dar mostras de certas qualidades: um profundo intelectualismo, um contato fácil com os
grande deste mundo, um toque de poesia e de misticismo, um espírito de independência
frente a Roma e, enfim, relações mundiais que lhe dessem distinção, e mesmo um certo
nível de celebridade, de internacionalismo[1]. Ora, Teilhard não só possui todas estas
qualidades, mas também muitas outras. Ele tem uma imensa fé em suas crenças que,
mesclada a uma pitada de auto-suficiência e de originalidade, lhe trará uma incrível
popularidade. Sua linguagem esotérica e mistificadora apresenta a grande vantagem de
permitir que cada um o entenda como melhor lhe pareça[2]. Se, além disso, com sangue
frio e convicção, ele diviniza o progresso indefinido do mundo, o advento do Super
Homem e a evolução inelutável, logo será consagrado como o profeta dos novos
tempos. Este é o segredo deste homem fascinante. Teilhard nada tem de pensador
profundo; é um visionário atormentado por um desejo messiânico que nele se torna uma
idéia fixa. Não é um teórico, é um vulgarizador. Não é um sábio especulativo, é um
profeta. Um profeta que, ao mesmo tempo, é consciente de sua missão:
“ele tem a sensação de possuir, por seus estudos, relações e mesmo dons, uma espécie
de missão científico-religiosa in partibus infidelium”[3].
Se sua visão do mundo e da religião apresenta um atrativo irresistível para o
pensamento moderno, é porque oferece uma explicação que não deixa de ter um toque
de gênio. Propõe uma síntese notável por sua coerência, tão grandiosa quanto atrevida.
Para Teilhard, tudo, tanto o mundo sobrenatural como o natural, emergiu da matéria em
perpétua evolução, e tudo converge para um ponto comum. Este sistema está
perfeitamente elaborado em suas duas obras, O fenômeno humano e O ambiente divino,
que resumiremos rapidamente.
Na obra O fenômeno humano, que trata da gênese da espécie humana a partir do
cosmos, Teilhard quer fazer uma obra de ciência pura, baseada apenas na aparência
sensível, o fenômeno[4]. Como biólogo que é, seu ponto de partida é o evolucionismo
biológico, uma hipótese científica que explica que tudo o que se move sobre a terra
descende de um tronco comum. Em particular, o homem evoluiu a partir da ameba
monocelular mais simples, que, por sua vez, saiu da matéria inerte. Deste ponto de
partida, ele deduz, por generalização, a «lei de complexidade e de consciência». Esta lei
estabelece que, na escala dos seres vivos, o grau de consciência vital corresponde ao
grau de complexidade do organismo nervoso, nos vegetais, ou do cérebro, nos animais.
O homem, único ser dotado de reflexão, apresenta o máximo de consciência. Mas, longe
de ser exclusiva dos seres vivos, a lei de complexidade e de consciência se aplica
também aos minerais, que acreditamos desprovidos de vida, e que têm, não obstante,
uma parte de consciência que Teilhard chama de energia psíquica.
Com semelhantes princípios condutores, ele está em condições de descrever a formação
do universo criado, a “cosmogênese”. O universo formou-se por uma progressão
contínua de complexidade orgânica, que seguia lado a lado com a intensidade de
energia. O mundo se fez em três etapas separadas por dois saltos, vale dizer, por
transformações de energia mais profundas. O primeiro salto é a passagem dos seres
inanimados para os seres vivos. O segundo salto designa a passagem dos seres vivos
mais desenvolvidos aos homens. A evolução termina no homem? Os cérebros humanos
acabarão por se reunir fisicamente para produzir um cérebro mais complexo? Teilhard
não acredita nisso, porque o homem já tem em si mesmo toda a perfeição de reflexão e
de pensamento. Porém, a evolução biológica continuará no sentido da convergência de
todos os espíritos humanos para reunir a humanidade inteira. O pensamento deve tender
biologicamente a se socializar, isto é, a se unir em uma comunidade perfeita de
pensamento e de amor. Ela terminará em um ponto de união, um Superespírito, ser
pessoal e preexistente a todos, sem, no entanto, absorvê-los. Este ponto final, que
Teilhard chama de «Ponto Ômega», será dotado das propriedades do próprio Deus. E,
finalmente, chegará o dia em que essa convergência exigirá uma evasão coletiva de toda
a humanidade para fora da matéria, a fim de reunir-se no Ponto Ômega: este será o fim
do mundo.
O fenômeno humano pretendia ser uma obra puramente natural e científica. Já O
ambiente divino escreveu-o Teilhard como cristão e pressupõe as verdades de fé. Este
segundo livro tem uma dinâmica paralela ao primeiro e visa principalmente a identificar
o Ponto Ômega com a encarnação de Cristo. É a obra mística de Teilhard, e a ela não
faltam atrativos. Posto que tudo, até mesmo o material, foi feito para nossa alma, e que
nossa alma está consagrada a Deus, segue-se que todo o real é sagrado.
“Cristo é o término da evolução inclusive natural dos seres: a evolução é santa”[5].
Tudo está submetido à atração de Cristo por via de consumação. Teilhard afirma que a
encarnação fez do mundo inteiro um sacramento. Ele compara o mundo com as espécies
sacramentais:
“Deus meu …, para que eu não sucumba à tentação de maldizer o Universo, fazei que
eu o adore, vendo-vos oculto nele. A grande palavra libertadora, Senhor, a palavra que
revela e opera, ao mesmo tempo, repita-a para mim, Senhor: “Hoc est corpus meum.”
De fato, o monstro, a sombra, o fantasma, a tempestade – se quisermos, sois Vós … No
fundo, não são mais que as espécies ou as aparências de um mesmo Sacramento”[6].
É igualmente pela Encarnação que o Verbo se constituiu o centro físico e biológico da
evolução natural do mundo. Reinterpretando a doutrina de São Paulo sobre a formação
do Corpo místico de Cristo, Teilhard transpõe essa união mística dos eleitos com a
Cabeça da Igreja em termos de evolução para um todo natural e físico. Assim como a
«santa matéria» engendrou os homens por evolução vital, os homens engendrarão o
Cristo por evolução progressiva: a cosmogênese se converte em cristogênese, a
formação do Cristo total entendida, em Teilhard, como um todo biológico e físico.
Claro está que ele não se refere à pessoa histórica de Jesus de Nazaré. Ele fala de uma
“terceira natureza de Cristo, em um sentido verdadeiro, que não seria humana nem
divina, mas cósmica”[7]. “Para converter-se no Alfa e no Ômega, Cristo deve, sem
perder sua dimensão humana, fazer-se coextensivo às dimensões físicas do tempo e do
espaço”[8].
Inútil dizer que este Cristo está ainda em vias de formação e só existirá definitivamente
quando se tornar o Ponto Ômega. O Cristo de quem Teilhard fala é
“o motor essencial de um humanização que conduz a uma ultra-humanização. O desvio
cósmico move-se em direção a um incrível estado quase “monomolecular”… onde cada
ego está destinado a alcançar seu paroxismo em algum misterioso superego … Somente
esta integração poderá fazer que apareça a forma do homem futuro, em que o homem
alcançará plenamente o fim e o ápice do seu ser”[9].
Teilhard explica que esta integração desemboca na religião sincretista, isto é, na
convergência geral das religiões em direção a um Cristo universal que, no fundo,
satisfaça a todas. Esta lhe parece ser a única conversão possível para o Mundo e a única
forma imaginável para uma Religião do futuro[10].
Desde as primeiras publicações, essas teses audaciosas foram submetidas a duras
críticas, e seus superiores romanos o proibiram de escrever. Mas Teilhard recebia a
proteção dos superiores locais, e nos ambientes da vanguarda seus textos circulavam
com ainda mais gosto pelo sabor que tinham de fruto proibido. Exilado em Pequim, ali
ficou sob bloqueio durante toda a guerra, só regressando à Europa em 1945. Cinco anos
depois, na encíclica Humani generis, Pio XII condenou seus erros teológicos. O
superior de Teilhard, Janssens, cogitava expulsá-lo, mas temendo seriamente uma
revolta na Companhia de Jesus, acabou por lhe dar total liberdade de movimento,
exilando-o nos Estados Unidos, em 1951. Lá, graças ao fascínio por suas ideias e,
ressalte-se, graças também a sua agilidade mental, Teilhard pode seguir com suas
investigações até à morte, em 1955.
Assim, por quinze anos, até o Concílio, se tornou possível o lançamento metódico de
seus livros, que contradiziam quase sistematicamente todas as posturas ortodoxas. Na
verdade, nem sua pessoa e nem mesmo suas ideias foram importunadas seriamente, uma
vez que poderosos protetores o cobriram com um pudico véu[11]. Suas obras, imbuídas
de modernismo, nunca foram condenadas durante sua vida, e, em 1962, um
simples Monitum, que estava longe de ter a força de uma inclusão no Index, declarou
suas obras póstumas como "cheias de ambiguidades, ou melhor, de graves erros, que
ofendem a doutrina católica". Esta ausência de condenação é um sinal da enfermidade
que atravessava a Igreja, mas também da astúcia que os seus amigos utilizaram para
proteger o novo precursor da Igreja do futuro.

2. A convergência da fé modernista e da ciência


Qual é a explicação para o fenômeno teilhardiano? Diga-se o que quiser, a razão
primordial para a imprensa internacional colocá-lo nas nuvens, era ser um cientista,
além de padre e jesuíta, que enfrentava o dogma da Criação e do pecado original,
colocando a fé de joelhos diante da ciência. Eis o motivo da auréola de sábio atribuída
ao jesuíta. Teilhard pretendia revisar o velho problema da relação entre a fé e a ciência.
Desde Siger e Lutero, a partir de Descartes e da filosofia moderna, a fé e a ciência
tinham sido consideradas autônomas, cada uma reinando em sua esfera. Mas como a
ciência é rigorosa e seus progressos trazem imensos serviços à humanidade, o homem
moderno, que deixou de lado a metafísica, já não tem o que fazer com um Deus
inoportuno que pouco a pouco se tornou quimérico. O modernismo nasceu da briga
mortal entre a fé católica e a «ciência» que pretende contradizer o dogma. O
neomodernismo de Teilhard tropeça no mesmo escolho. Ora, naquela época, falava-se
muito da teoria da evolução científica das espécies. Spencer, Lamarck, e por último
Darwin, desenvolveram várias idéias para propagar essa hipótese científica.
É nesta conjuntura que Teilhard intervém. Vendo a antiga Igreja desafiada pela ciência
moderna, procura oferecer uma solução. Pretende ser não tanto o apóstolo da Igreja
antiga, mas o fundador de uma nova religião. Quer estabelecer essa religião que floresce
no coração do homem moderno a partir da ideia de evolução. Na verdade, o verdadeiro
fundador do novo culto não é Yahvé e nem Cristo, mas Charles Darwin. Para reabilitar
seu leitmotiv da evolução divina, Teilhard vai cruzar os mares e realizar as descobertas
do homem de Piltdown e do homem de Pequim[12]. Mas essas descobertas científicas,
que o levaram à glória, provocaram também seu ocaso quando comprovado que se
tratavam falsificações. Porém, o problema capital desta teoria não reside na adoção de
uma hipótese científica, por mais discutível que seja. Deriva, principalmente, do fato de
que Teilhard pretende implantar a evolução darwiniana em um campo que não era o
seu: a teologia. É neste ponto que reside o pecado original do teilhardismo: querer
passar do chinês ao árabe, de um registro a outro; querer traduzir os dados das ciências
experimentais (biológicos, geológicos, etc.) para a linguagem filosófica e teológica.
Como se o botão de rosa e a evolução do grão em espiga pudessem definir uma verdade
atemporal ou um dogma de fé!
Santo Tomás tinha suas razões para dizer que uma falsa ideia sobre a natureza da
criação implica sempre em uma falsa ideia de Deus: a criação é a única via racional que
conduz a Deus. Ora, a "criação" teilhardiana está nas antípodas do Gênesis bíblico.
É a partir de um novo conceito da gênese do mundo, uma evolução extrema da matéria
"espiritual", que Teilhard constrói toda sua teologia. O cosmos se desenvolveu a partir
da "santa matéria", por graus sucessivos ordenados em milhares de anos. A matéria é o
estofo do mundo,
"onde o mais pressupõe o menos, onde pela Evolução algo de substancial se depura e
passa realmente do polo material ao polo espiritual do Mundo"[13].
Os dogmas da criação e da existência de um Deus criador, e, por tabela, o dogma do
pecado original, são sacrificados no altar da Evolução, a única categoria do pensamento
teilhardiano, segundo as palavras de seu amigo e admirador Urs Von Balthasar.
Se Teilhard acolhe a invenção darwiniana de evolução no que se refere ao início do
mundo, o fim dessa evolução é fruto de seu próprio credo. Em um determinado
momento, surgiram homens — homo sapiens — em diferentes pontos do globo[14].
Com o aparecimento dos homens, começa a História humana e a ascensão de todos os
indivíduos à unidade perfeita, o Ponto Ômega da História. Nós nos encontramos agora
no coração desse processo de gestação grandiosa da Humanidade. A evolução contínua
acabará em apoteose quando a Humanidade inteira se transformar em um Super-homem
tão certo quanto misterioso. É a mesma doutrina que encontramos exposta em Hegel e
Strauss, repetida depois por Loisy e Tyrrell. Mas por que essa necessidade de pôr em
maiúsculas o homem, abstraindo-o de sua condição individual, para não ver senão sua
essência pura e ideal? Porque o indivíduo concreto, Pedro ou Paulo, tomado
separadamente, é limitado, e não é necessário acreditar no pecado original para ver que
é um ser caído. Por outro lado, o Super-homem, o Homem ideal, é isento do pecado
original e se torna mais verossímil qualificá-lo de salvador e de todo-poderoso. Esta
salvação pelo Super-homem, esta redenção com a qual sonha Teilhard, é a hominização,
a reunião dos homens em uma fraternidade universal, a salvação futura e coletiva.
É evidente que semelhante enfoque exige o abandono completo da fé. Além da criação,
todo o catecismo é desfigurado na sinfonia teilhardiana da evolução: o espírito, o mal, o
pecado original, a parusia e o céu. As noções mais sagradas são conservadas, mas, ao
mesmo tempo, são esvaziadas de seu sentido original e transformadas ao modo da
“gênese”. Se o sistema teilhardiano é notável por sua consistência, também é célebre
pela série de erros graves. Em Teilhard, tudo flui por necessidade física. Toda a
evolução biológica, histórica e crística é organicamente coerente. Há um fluxo evolutivo
necessário entre a criação, o pecado, a Redenção e a Ressurreição. Entre a cosmogênese
e o Ponto Ômega quase não sobra lugar para o sobrenatural, que, segundo Teilhard,
teria sido inventado por Santo Agostinho:
“Não me falem desse homem nefasto: pôs tudo a perder ao inventar o
sobrenatural!”[15].
Tampouco há lugar para Deus e sua liberdade:
“A fim de ser Deus, deveria criar o mundo”[16].
Mas essa é a essência mesma do panteísmo, pois afirma que o mundo procede por
emanação necessária, e por conseguinte, que é tão necessário e divino como o próprio
Deus.

3. A convergência do modernismo e do panteísmo


Sublinhamos, há pouco, os traços inequívocos de panteísmo nos escritos de Teilhard de
Chardin. Se ele é discreto em seus primeiros textos, é certo que suas obras, senão seu
pensamento, amadureceram com os anos, de maneira que seus últimos trabalhos são
muito reveladores. Eis aqui alguns trechos:
“Não me dei conta que, inevitavelmente, à medida que, das profundezas da Matéria até
os cumes do Espírito, Deus “metamorfoseava” o mundo - o mundo, por sua vez, devia
‘endomorfizar’ a Deus. Sob o efeito mesmo da operação unitiva que o revela a nós,
Deus de algum modo ‘se transforma’ encorporando-nos a si.”[17]. “Não aceito a postura
‘antipanteísta’ que o senhor atribui a mim. Ao contrário, sou essencialmente panteísta
de pensamento e de temperamento; e passei toda a minha vida declarando que existe um
verdadeiro ‘panteísmo de união’, Deus omnia in omnibus (um pancristismo, diria
Blondel) frente ao pseudopanteísmo de dissolução, Deus omnia. E por isto mesmo não
sinto nenhuma simpatia pelo Criacionismo bíblico (salvo na medida em que funda a
possibilidade de união). De outro modo, a idéia da criação bíblica me parece infantil e
antropomórfica”[18]. “Se, em consequência de alguma perturbação interior, eu chegasse
a perder sucessivamente minha fé em Cristo, minha fé em um Deus pessoal, minha fé
no Espírito, parece-me que continuaria acreditando no mundo. O mundo (o valor, a
infalibilidade e a bondade do mundo) é, em última instância, a primeira e a única coisa
em que acredito… Abandono-me à fé confusa em um Mundo uno e infalível, onde quer
que ela me conduza”[19].
Vejamos agora rapidamente as relações e implicações que existem entre o modernismo
e o panteísmo, que decididamente parecem obcecar os pensadores cativados pelas ideias
modernas. Trata-se de harmonias inexplicáveis sem vínculo necessário, ou há entre elas
relação de causa e efeito? Esta é a questão que precisamos responder neste parágrafo.
Historicamente só houve duas formas de pensamento e de vida[20]: o “sobrenatural”
carnal e o sobrenatural espiritual. O que a História revela dos sistemas religiosos, a
razão prova com facilidade. A religião, vínculo entre o homem e Deus, tem duas
expressões possíveis: ou o homem reconhece um Deus exterior que a ele se revela, ou o
rejeita. Se o aceita, essa religião não é outra que a religião católica, a única que recebeu
a Revelação do Deus feito homem. Ela tem uma visão otimista do mundo saído das
mãos de Deus, “Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra”, e se há o mal, a culpa
recai nas criaturas que pecaram e caíram. Posto que é um ser caído, o homem tem
necessidade de um Salvador para elevar-se até Deus. Mas se o homem não reconhece
seu Criador, tem de introduzir “Deus” em seu foro interior, fazendo, assim, “Deus” à
sua imagem e semelhança. Neste caso, “Deus” é uma criação do homem, é o homem
que toma consciência de si mesmo. Tudo está contido no homem que, mediante
evolução progressiva, torna-se “Deus” por suas próprias forças. A religião em que o
homem se autodiviniza e adora a si mesmo é a negação do pecado original e a rejeição
do Salvador. Estamos no coração da heresia modernista.
Essa divisão das crenças e da cultura em duas posturas antagônicas constitui o enredo da
História considerada em seu conjunto. O primeiro homem sucumbiu à mesma tentação
de Lúcifer, a de querer ser como Deus. E, depois do pecado original, a história das
religiões, quer dizer, a História simplesmente, é um perpétuo recomeço. Os persas
seguem Zoroastro e a religião maniquéia dos dois deuses do bem e do mal; os budistas
seguem os hinduístas com sua filosofia panteísta (o mundo é Deus), e rumam em
direção à “perfeição” do nada, que chamam de nirvana — extinção — por meio da
autoconsciência e do espírito[21]. No século III, a gnose maniquéia retoma as mesmas
ideias panteístas ensinando precisamente o contrário da doutrina cristã. Três princípios
conjugados lhes dão coesão: a desvalorização do cosmo; o vôo místico para o mais
além; e o meio para realizar este voo místico, a gnose ou o conhecimento esotérico. Os
gnósticos negam absolutamente o pecado original universal e a necessidade de um
Redentor[22]. Longe de sermos seres caídos, somos seres divinos que, sem culpa da
nossa parte, fomos atirados em um universo cruel, inexplicável e caótico. Da Criação
maligna, os gnósticos deduzem que o homem tem de libertar-se deste mundo para se
divinizar, mediante um “êxodo” ou viagem mística. Como o único caminho racional
que conduz a Deus, a Criação boa, lhe está fechado, o homem tem de inventar um
caminho gnóstico, a descoberta do “sagrado”, que o eleva por suas próprias forças até a
divindade.
A crença panteísta tem sete vidas. Nesse ponto, a História corrobora o que já a teologia
ensinava anteriormente sobre a origem única de todas as heresias. O panteísmo repete
no homem o pecado de Lúcifer e dos anjos rebeldes, e não é nada surpreendente que
todas as heresias deitem nele as suas raízes. A mesma tentação de um Deus imanente,
do homem que faz Deus a sua imagem, existe há mais de vinte séculos. Passou
sucessivamente por Confúcio e Buda, no século VI antes de Cristo, à cabala farisaica,
ao maniqueísmo dos séculos II e III, e ao bramanismo. Voltamos a encontrá-la no
milenarismo, depois no catarismo do século XIII, e finalmente em Jakob Böhme e
Baruch Spinoza, no século XVII[23]. Curiosamente, observa-se um recrudescimento
das mesmas tendências imanentistas e panteístas no século XVIII, o século da
maçonaria, o século dos filósofos "deístas", que seriam melhor chamados de ateus. Os
novos magos são legião: Rousseau, Voltaire, os enciclopedistas, Kant e Hegel,
Nietzsche e Marx. Sua linguagem é direta quando descrevem o "assassinato de Deus", a
"Sexta-feira Santa especulativa" de Hegel e o "Deus está morto" de Nietzsche. Vimos
como os protestantes modernistas do século XIX estavam imbuídos das mesmas
tendências, com Schleiermacher e Strauss. Os modernistas católicos do início do século
XX foram contaminados por essas idéias deletérias. Bergson e Le Roy, Hébert e Loisy,
Blondel e Tyrrell, professaram todos de maneira mais ou menos matizada sua fé num
Deus que existe dentro da mente humana.
Assim, quando Teilhard chega ao campo das idéias depois do período modernista, só
precisa consultar seus predecessores para continuar os seus temas habituais.
Possivelmente foi buscar também em Madame Blavatsky e seu movimento teosófico,
nascido pouco depois de Darwin[24]. Teilhard não esconde que suas idéias exalam o
odor do maniqueísmo[25]. De fato, a síntese de Teilhard faz progredir a causa panteísta
ao lhe dar coesão. Até então, os mestres haviam sentido dificuldade em unir as duas
pontas da cadeia: a queda da criação material e a salvação terrestre. A Teilhard coube o
mérito de tê-las unido. Ele é o arauto da Igreja sincretista, onde o homem salva-se por si
mesmo ao alcançar o Ponto Ômega. Mas para que esta "Boa Nova da salvação por si"
seja aceita, é preciso, que seja apresentada sob os auspícios da "criação por si"
darwiniana. Melhor que os maniqueus e os alemães, Teilhard descreve perfeitamente a
relação íntima entre a “criação por si” e a “salvação por si”, graças ao incessante
processo da evolução. Se os átomos se uniram em moléculas, e as moléculas em seres
vivos de todas as classes, por que a humanidade não poderia se unir por si mesma na
Nova Jerusalém? A Jerusalém apocalíptica é o Corpo místico de Cristo, o "Super-
homem" que começa a se formar diante de nossos próprios olhos, pelo esforço único do
homem, através das façanhas da tecnologia e do aparecimento dos Superestados. E esta
“superevolução” pretende continuar a evolução darwiniana das formas orgânicas.
Se a religião panteísta sempre existiu como fenômeno oculto transmitido pela
maçonaria e pelas seitas, agora dispõe de uma generosa difusão no recente movimento,
embora já muito poderoso, da New Age. É suficiente citar a profissão de fé feita por um
jornalista partidário desta Nova Era de Aquário para compreender a influência panteísta,
hegeliana, teilhardiana, e por que não confessá-lo, luciferiana, desse movimento:
“O universo em sua totalidade é um ser espiritual, vivo e consciente, do qual nós todos
fazemos parte. Esta Consciência, chamem-na de ‘Deus’ ou do nome que lhes convier,
está habitada por aspectos de si mesma, quer dizer, por seres conscientes. O universo
não é mais que uma única e mesma vibração, o Amor! A partir do Amor, as
consciências desejam ser geradas, como aspectos vibratórios, como sombras, como
fontes luminosas. Os seres humanos criaram-se a si mesmos para experimentar o amor,
a inteligência, a matéria e a ação. Atravessamos uma série de vidas encarnadas e
desencarnadas que nos conduzirá à fusão final com a Consciência Única, que é a
identidade subjacente de tudo o que existe no universo, e é a origem e o destino de
todos os seres separados. É preciso preparar o futuro da humanidade, o Homem Novo,
um ser de quem nós ainda não podemos ter idéia de como será, como tampouco
podemos suspeitar em que consistirá a originalidade da Consciência coletiva humana. A
missão que cabe a nós, homens da Nova Era, é conduzir todos os seres humanos
capazes de ser receptivos ao estado de consciência anterior à queda. Pouco a pouco, esta
nova consciência se introduzirá nas atividades cotidianas dos homens e, cada vez mais,
as células humanas individuais tomarão consciência do que acontece. A mudança
acontecerá a uma velocidade exponencial”[26].

4. Discípulos e continuadores de Teilhard


Teilhard está morto e enterrado há algum tempo. Assim também a maior parte de suas
obras. O teilhardismo, por outro lado, tem se portado bem. Com a revolução vaticana,
Teilhard obteve não só o direito de cidadania, mas o trono de monarca absoluto nos
meios eclesiásticos influentes. Se seus primeiros livros destilavam veneno em doses
mais ou menos homeopáticas, nos últimos, o veneno corria aos borbotões. As primeiras
publicações passavam de mão em mão entre bons amigos. Assim que foi atacado, seus
amigos fizeram coro para defender aquele mártir da boa causa. Aproveitaram a ocasião
para injuriar seus oponentes e injetar mais evolucionismo teilhardiano nas veias de
leitores ingênuos. De Lubac, embora negasse ser teilhardiano, foi seu maior protetor e
promotor antes e depois da censura romana. Já falamos também de Von Balthasar, que
se inclinou seriamente às doutrinas do seu amigo. Mesmo se, em 1919, Blondel se
escandalizava com as afirmações exageradas de uma ação demasiado naturalista e física
de Cristo no mundo, manteve, ainda assim, uma grande admiração por este amigo de
seus amigos.
“Compartilho também em tudo (como sempre o fiz) as idéias e sentimentos do padre
Teilhard sobre o problema cristológico”[27].
Por fim, resta apenas acrescentar algumas palavras sobre a geração seguinte.
Ratzinger cita-o elogiosamente por ter repensado as relações do homem com Cristo a
partir da imagem atual do mundo. Não hesita em mesclar o sonho de Teilhard com a
cristologia de São Paulo.
“A partir daí, a fé verá em Cristo o começo de um movimento que introduz cada vez
mais a humanidade dividida no ser de um único Adão, de um único ‘corpo’, no ser do
homem futuro. Verá em Cristo o movimento para este porvir do homem, em que este se
compreenderá totalmente ‘socializado’ e incorporado ao Único. Cristo, o último
homem: mais que homem, o homem verdadeiro, o mais ilimitado, que não só entra em
contato com o Infinito, mas que é um com ele: Jesus Cristo. Nele, o processo de
hominização chega realmente a seu termo”[28].
O Papa Paulo VI manifesta também sua amizade por esse arauto dos novos tempos. Em
uma entrevista com o padre Boyer, um dos adversários mais encarniçados de Teilhard, o
Papa o exorta vivamente a reabilitar simultaneamente Teilhard e De Lubac. Boyer, sob
o efeito da pressão pontifícia, é obrigado a escrever a De Lubac, assinalando
“a grande estima que [o Papa] sente por sua pessoa e seus escritos. Ao mesmo tempo,
expressou, apesar de algumas reservas, uma apreciação sobre o padre Teilhard que não
desagradaria ao senhor. Minhas reflexões me levaram a pensar, pois, que nesse
congresso nós deveríamos ouvir uma exposição favorável ao pensamento do padre
Teilhard de Chardin”[29].
O futuro João Paulo II estava familiarizado com Teilhard há muito tempo, pois, de
acordo com os estudiosos, ele é o autor que cita mais frequentemente, junto com De
Lubac. Imitando-o, pensa que a evolução serve de explicação em matéria religiosa, o
que chama de historicismo do dogma. O Papa compartilha sua visão escatológica e a
aplicou particularmente para o ano 2000. Acredita também na salvação coletiva da
humanidade[30]. Sua admiração por Teilhard iguala-se a de Paulo VI. Em 1981, por
razão do centenário do nascimento de Teilhard, João Paulo II enviou uma carta ao
Instituto Católico de Paris que
“manifestava uma atitude da Santa Sé que lhe era [a Teilhard] bastante favorável,
dissipando assim os temores difundidos por teólogos de rara falta de inteligência e
grande agressividade; e exaltava a maravilhosa repercussão das suas investigações, ao
mesmo tempo que o brilho da sua personalidade e a riqueza do seu pensamento”[31].
Teilhard foi definido ali como
“um homem cativado por Cristo no mais profundo do seu ser, solícito por honrar ao
mesmo tempo a fé e a razão, respondendo deste modo, quase com antecipação, a
invocação de João Paulo II”.
*
* *
A teologia de Teilhard[32] situa-se na linha do modernismo panteísta dos
Schleiermacher, dos Loisy e dos Tyrrell. Apresenta, inclusive, o mesmo desprezo pela
razão[33]. Sacrifica os dogmas mais fundamentais da fé católica: o pecado original,
Deus e o Salvador. Oferece incenso aos mitos da Evolução e do Homem, e à salvação
universal pelo homem e para o homem. É evidente que Teilhard afirmou coisas
contrárias à fé, para quem o compara aos inimigos da Igreja, que souberam usar as teses
do paleontólogo jesuíta. Alguns dos seus amigos não duvidam em definir cruamente sua
obra:
“Teilhard de Chardin cometeu o pecado de Lúcifer que Roma reprovara nos maçons: no
fenômeno da ‘humanização’, o homem é que se encontra no primeiro plano. Quando a
consciência alcança seu apogeu, o Ponto Ômega, como diz Teilhard, o homem será tal
como nós o desejamos, livre em sua carne e em seu espírito. Assim, Teilhard pôs o
homem no altar e, ao adorá-lo, não pôde adorar a Deus”[34].
Seria Teilhard um maçom que vendeu sua alma ao diabo, animado a destruir para
construir o novo? Não. Carecia totalmente de espírito prático. Terá servido
conscientemente à anti-Igreja para destruir o Reino de Cristo a partir do seu interior?
Não se pode ter certeza. Mas fato é que, atuando sozinho no terreno minado da
evolução, fez mais pela causa dos inimigos da Igreja do que se o ataque tivesse vindo de
fora. Ninguém jamais injetara o veneno modernista da ciência “pura” e do
revolucionismo religioso como Teilhard. É preciso reconhecer que seu sistema chega na
hora certa para servir aos projetos tanto maçônicos quanto modernistas, pois a nova
formulação teilhardiana dos dogmas cristãos é o meio para transformar a Igreja e
integrá-la — ou melhor dizendo, desintegrá-la — em uma Superigreja universal.

Tradução: Ricardo Bellei

[1] Malachi Martin, The Jesuits, p. 286.


[2] Harmorização, hominização, cristogênese, cristificação, plerominização,
excentração, etc.; a cadeia de palavras híbridas e indefinidas é longa.
[3] Em De Lubac, La pensée religieuse, p. 328.
[4] Em dom Frénaud, Estudio crítico sobre Teilhard, pp. 6-9.
[5] Em Frénaud, p. 18.
[6] Em Frénaud, p. 11.
[7] Opúsculo Le Christique, em Frénaud, p. 19.
[8] Em Frénaud, Ibid.
[9] Em Courrier II, p. 101, texto de Teilhard explicado no mesmo sentido panteísta por
Ratzinger, em La foi chrétienne, hier et aujourd’hui, p. 162.
[10] Citado por Garrigou-Lagrange, capítulo 19.
[11] Muito tempo depois o grande público soube que Teilhard, durante 25 anos, havia
sido amante da escultora Lucile Swan, protestante divorciada, segundo relata Mantovani
em Avvenire, 14 de fevereiro de 1995, p. 17.
[12] Sinanthropus (Pithecanthropus pekinensis). (Nota do Tradutor).
[13] Em Philippe de la Trinité, Rome et Teilhard de Chardin, pp. 72-74.
[14] Isto supõe afirmar o poligenismo, que despreza o dogma do pecado original
universal, o qual exige, ao contrário, a existência de um só casal nas orígens da
humanidade.
[15] Dietrich von Hildebrand, The Trojan Horse, apêndice, p. 227. Contra a vontade do
autor, o apêndice foi suprimido na tradução francesa do livro (Savoir I, p. 74).
[16] Teilhard, Le Cœur de la matière, em Frénaud, pp. 14-15.
[17] Em Philippe de la Trinité, p. 163.
[18] Carta de 14 de janeiro de 1954, em Philippe de la Trinité, p. 168.
[19] Comment je crois, texto datado de 1934, citado pelo Osservatore Romano de 1 de
julho de 1962, apresentando o Monitum do Santo Ofício, em Philippe de la Trinité, p.
190.
[20] Meinvielle, De la cábala al progresismo, conclusão.
[21] Esta é, ao menos, a visão da escola Mahayana, que será
retomada substancialmente pelo budismo Zen. Pretende, como Heráclito, que só o
movimento existe, e que não há coisas e nem mesmo pessoas, entendidas como
substâncias. O mundo é essencialmente vazio (sunyata) e aquilo que consideramos
como coisas depende tanto do Grande Todo monista como do pensamento humano. O
homem compreende a harmonia de todas as coisas quando entende que o mundo vazio,
o eu não-ser e o nirvana-extinção são iguais. Isto se consegue, em última instância, pelo
Zen — meditação — religioso e filosófico que considera o «eu» como o que é na
realidade, quer dizer, vazio, apagado e, definitivamente, um «não-eu» (em
Cooper, World of Philosophies, pp. 40-44, 214-222).
[22] Na doutrina católica, tudo se sustenta reciprocamente ou tudo desmorona. A
redenção é correlativa ao dogma do pecado original. Santo Agostinho, paradoxalmente,
demostrou a existência do pecado original, entre outras razões, pela fé no Salvador do
gênero humano.
[23] Meinvielle, De la Cábala al progresismo, passim; Molnar, Le Dieu inmanent.
Todas as religiões orientais (budista, brahmanista, hinduista) são amplamente
sincretistas e são enriquecidas com as recentes contribuições que têm modificado
notavelmente seus credos.
[24] O teosofismo nega a existência de um Deus pessoal e criador de todas as coisas.
Segundo esta teoria, Deus é idêntico e consubstancial ao mundo, a matéria com o
espírito. Por outro lado, distingue o Cristo singular (o Deus antropomórfico que, de
acordo com eles, é somente um sábio como Buda) do Cristo universal. Veja Hugon, Les
24 thèses thomistes, pp. 80-86; Action familiale et scolaire, «Connaissance élémentaire
du Nouvel Âge», suplemento do número 94, pp. 52-53.
[25] Escreve em L’union créatrice: «[Minha concepção] sugere que a criação não foi
absolutamente gratuita, mas que representa uma obra de interesse quase absoluto. Tudo
isto redolet manicheismum… É verdade, mas, sinceramente, podem-se evitar estes
obstáculos — ou melhor dizendo, estes paradoxos — sem cair em explicações
puramente verbais?» (em Frénaud, p. 15).
[26] Eric Pigani, Channel, les médiums du Nouvel Âge. Os itálicos são nossos.
[27] Blondel, 5 de dezembro de 1919, em Courrier II, p. 175.
[28] Ratzinger, La foi chrétienne, hier et aujourd’hui, pp. 159-163, em Courrier II, pp.
100-101.
[29] Courrier II, p. 92.
[30] Ver capítulo 24.
[31] La sapienza della Croce, abril-junho de 1996, p. 137, em Courrier II, p. 120.
[32] A título de curiosidade, o escritor Morris West, em sua obra “As Sandálias do
Pescador” (The shoes of the Fisherman – publicado em 1963) e, depois, no filme
homônimo (1968), retratou Teilhard de Chardin como o controverso Padre Jean
Tellemond (interpretado por Oscar Werner), amigo pessoal do “papa russo” Kiril
Lakota (interpretado por Anthony Quinn) e inimigo confesso do então Santo Ofício. A
semelhança com a realidade é realmente impressionante. (Nota do Tradutor)
[33] F. Brunelli, Principi e metodi di massoneria operativa, pp. 66-84: «A iniciação
instrui e ensina: Morte à razão! Somente quando a razão morrer poderá nascer o homem
novo da Era futura, o verdadeiro iniciado. Somente assim poderão cair as muralhas dos
templos, porque a aurora de uma nova humanidade surgirá no Oriente… Todas as
disputas (religiosas) desaparecerão com o rechaço da lógica e do princípio de
contradição» (em Courrier I, p. 409).
[34] J. Mitterrand em René Valvève, Teilhard l’apostat, p. 52, em Courrier I, p. 417.
O magistério conciliar é infalível?
O texto que ora publicamos é a resposta do articulista ao Padre Lucien, autor do
livro Les Degrés d’autorité du magistère [Os graus de autoridade do magistério], em
que este contesta a tese cara aos católicos tradicionais, qual seja, de que o Concílio
Vaticano II não se valeu da infalibilidade, nem da indefectibilidade da Igreja, ao
declarar o que se promulgara naquele concílio. Embora não esteja disponível em
vernáculo a obra e os artigos do Padre Lucien acerca do tema, o dominicano Pierre-
Marie expõe-nos com retidão e circunstância os argumentos utilizados por aquele;
assim sendo, nada impede a leitura deste artigo, nem sua nímia compreensão, à falta da
leitura do livro e artigos aos quais já referimos.
O magistério conciliar é infalível?
Pe. Pierre-Marie, O.P.

A posição do padre Lucien


O Padre Bernard Lucien considera o Concílio Vaticano II infalível, pelo menos nos
“pontos centrais”. Eis o esquema da argumentação:
1. O magistério ordinário universal (MOU) da Igreja é infalível;
2. Ora, o Concílio Vaticano II exerceu o MOU nos pontos centrais;
3. Logo, o Concílio Vaticano II foi infalível, pelo menos nos “pontos centrais” do
ensinamento.

1. Acerca da primeira proposição, descreve o Padre Lucien o MOU desta forma:


O “magistério ordinário e universal” é aquele exercido de forma usual, cotidiana, em
cada época pelo papa e os bispos subordinados, com unanimidade moral.
Tal magistério é infalível, pois que propõe uma doutrina como revelada, ou
necessariamente ligada à revelação, ou certa, ou para se conservar como definitiva 1.

2. No que tange à segunda proposição de seu raciocínio, eis o que afirma o Padre
Lucien:
Algumas passagens do Vaticano II estão cobertas pela infalibilidade do magistério
ordinário e universal. Tais são passagens em que a doutrina está diretamente afirmada,
e em que esta doutrina se apresenta como revelada, ou necessariamente ligada à
revelação, ou obrigatória de forma absoluta para todos os fiéis. Estas são de fato
diversas maneiras de dizer que uma doutrina é para se crer (ou se conservar) de forma
definitiva e de modo irrevogável 2.
Explica o Padre Lucien que se não deve confundir o MOU com “o cânon Leriniano” 3.
No Communitorium, declarou São Vicente de Lerins que há-de se crer no que se
ensinou “em todo lugar, sempre e por todos (quod ubique, quod semper, quod ab
omnibus)” 4. Trata-se dum critério que permite afiançar a ortodoxia duma doutrina, i. é,
que se repita durante certo tempo.
Nestas condições, o ensino ordinário de concílio, caso seja novo, não pode aspirar à
infalibilidade.
O cônego René Berthod 5, Michel Martin 6 e Arnaud de Lassus 7 sobressaíram-se na
defesa desta opinião.
O Padre Lucien combate tal opinião: não é preciso, diz ele, para que o MOU seja
infalível, que o magistério se exerça durante um certo tempo. Basta que todos os bispos
(unanimidade moral) num dado momento, ensinem a mesma doutrina como revelada ou
necessariamente ligada à revelação, para que uma pessoa esteja na presença dum
magistério infalível.
Ora, foi o que precisamente se deu no Concílio, pensa o Padre Lucien, no que tange aos
pontos centrais do ensino.

3. Como terceira proposição de seu raciocínio, o Padre Lucien dá como exemplo o


ensinamento central da declaração Dignitatis Humanae. Eis o que ele escreveu:
Sejamos exatos: o que aqui sustentamos, e diversos autores “tradicionalistas” negam, é
que a infalibilidade do magistério ordinário e universal cobre a afirmação central
de Dignitatis Humanae, afirmação contida no primeiro parágrafo de DH, 2, o qual
transcrevemos:
“O Concílio Vaticano II declara que a pessoa humana tem direito à liberdade
religiosa. Consiste esta liberdade em que todos os homens devem ser eximidos do
constrangimento da parte de indivíduos, quanto da parte de grupos sociais ou de
qualquer poder humano, de tal sorte que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a
agir contra sua consciência, nem impedido de agir, nos justos limites, conforme sua
consciência, tanto em privado como em público, sozinho ou associado a outrem. Além
disso, declara que o direito à liberdade religiosa funda-se na dignidade mesma da
pessoa humana, tal como fê-la conhecer a palavra de Deus e a própria razão.”
A análise literária elementar demonstra à evidência que esta passagem é
verdadeiramente central na declaração, é a ela que se tem em vista. Demais, possuímos
em registro uma confirmação quase oficial desta “centralidade”. A comissão teológica
encarregada de examinar, acrescentar ou recusar as correções que demandavam os
padres afirmou na declaração exarada quando da 164ª reunião geral (19 de novembro
de 1965). [...]
“[Resposta da comissão] – O inteiro teor do texto faz-se necessário no lugar em que se
encontra: é como que um ponto central da declaração. Além disso, já que se trata de
ponto fundamental, não há por isso necessidade de argumentos.”
Assim, afirma a comissão que a passagem é o ponto central da declaração, e ela
determina que a afirmação fundamental faz parte deste ponto central, sendo logo por si
mesma necessária, não podendo relegá-lo ao simples papel de argumento 8.
Contrariamente ao Sr. Padre Lucien, pensamos que o ensinamento do Concílio não está
coberto da infalibilidade do MOU 9. Fundamos a argumentação sobre dois pontos:
1. Para fazer parte do MOU, é preciso que o ensinamento se apresente como verdade
para se crer ou se conservar de modo firme e definitivo. Ora, no Concílio, o
ensinamento se não apresentou desta maneira.
2. O magistério ordinário e universal da Igreja é o ensinamento dos bispos dispersos.
Ora, no Concílio, os bispos estavam reunidos.
Em seu livro, o Sr. Padre Lucien toma para si a segunda razão. Esta segunda é menos
importante que a primeira, como explicamos em Le Sel de la terre 41 (p. 239): “Este
ponto é secundário, pois que, desde o final do Concílio, os bispos agora dispersos
continuam a ensinar os erros deste Concílio.”
A razão principal por que afirmamos que o MOU não cobre o ensinamento conciliar
sobre a liberdade religiosa (por exemplo), é a de que o magistério conciliar não se
apresenta no ensino das verdades a se crer ou a se conservar de modo firme e
definitivo 10.
Dito isto, uma vez que o Padre Lucien criticou-nos a segunda razão [o magistério
ordinário e universal da Igreja é o ensinamento dos bispos dispersos], vamos examinar
seus argumentos. Se superiores aos nossos, não nos imiscuiremos de lhe dar razão.

Os argumentos de autoridade
Numa querela teológica, os argumentos de autoridade são os mais importantes. Citamos
para defender nosso ponto de vista diversos autores, sobretudo o Concílio de Trento, Pio
IX, os esquemas preparatórios dos dois últimos concílios e o DTC 11.
O Padre Lucien não examina esses textos. Contenta-se em conceder que uma “rápida
leitura de vários textos oficiais (com autoridades diversas) pode dar a impressão de
identificação entre o ‘magistério ordinário e universal’ e ‘magistério disperso’”.
Acrescenta:
Enfim, encontram-se teólogos que, antes do Concílio Vaticano II, exprimiam-se como
se houvesse identidade entre “magistério ordinário e universal” e “magistério
disperso” [p. 170].
Reconhece o Padre Lucien que “vários textos oficiais” e “teólogos” exprimem-se como
nós 12.
Para defender sua posição, o Padre Lucien limita-se a citar apenas um texto, uma
intervenção de Mons. Zinelli, membro da deputação da fé, no Concílio Vaticano I:
O acordo dos bispos dispersos possui valor idêntico a quando estão reunidos: prometeu-
se a assistência à união formal dos bispos, e não tão-somente à união material 13.
O texto pode impressionar. Mas quando uma pessoa observa o contexto, vê que Mons.
Zinelli comenta um projeto de anátema acerca das definições solenes:
Se alguém diz que o assentimento da Igreja dispersa não possui valor de estatuir um
dogma de fé, e que, em conseqüência, é necessário que os bispos se reunam para
definir questões de fé e costume, que seja anátema 14.
Neste texto, Mons. Zinelli não fala como membro da deputação da fé, mas como bispo
de Treviso. Contempla o caso em que alguém renunciaria definir o dogma da
infalibilidade do papa (por causa da oposição dalguns bispos que julgavam tal definição
inoportuna), propondo dar não obstante ensinamento acerca da questão (na forma de
quatro cânones), de modo a convencer grande número de bispos. Neste projeto de
anátema, vislumbra-se uma definição papal, a que se acorde ou apoie uma parte do
episcopado. Explica que não é preciso reunir os bispos para fazer tal definição. Não fala
do MOU, mas de condições que permitem ao papa fazer uma definição infalível.
O acordo entre os bispos dispersos sobre que se fala, é aqui um acordo dos bispos para
permitir ao papa “estatuir um dogma de fé”, “definir as questões de fé e costumes”.
Não é o caso do magistério ordinário, entre cujos objetos não está o definir dogmas, mas
o de transmitir a doutrina, e menos ainda o do magistério ordinário universal que é
exercido pelo conjunto dos bispos, e não só pelo papa.
Por isso, não pode o Padre Lucien conferir autoridade a este texto para apoiar sua
tese 15.
Poderíamos parar por aqui a discussão.
De fato, ao passo que temos muitos argumentos de autoridade em favor de nossa tese, o
Padre Lucien não pode citar nenhum em favor da sua.
Todavia, como acusa-nos o Padre Lucien de “desconhecer completamente a verdadeira
causa da infalibilidade do magistério universal, em cada época” 16, prossigamos ainda
um pouco esta resenha.

A verdadeira causa da infalibilidade do MOU


Em Le Sel de la terre 35 (p. 48), escrevemos:
Quando todos os bispos dispersos sobre a terra ensinam a mesma doutrina como sendo
de fé, é a razão da unanimidade tão-somente sua origem comum, a saber, a Tradição
Apostólica. Se o ensinamento é comum, a só razão disso está em que se nutrem da
mesma fonte: a Tradição Apostólica.
Mas se os bispos estão reunidos, alguém pode encontrar outros motivos para a
unanimidade do ensinamento: pode existir pressões, influências 17, etc.. Precisamente,
foi o que ocorreu no Concílio Vaticano II. Se uma pessoa perguntasse aos padres, antes
de irem ao Concílio, quando estavam ainda dispersos, se a doutrina conciliar sobre a
liberdade religiosa fazia parte da fé de suas Igrejas, é evidente que a maioria
esmagadora, senão a unanimidade, responderia por uma negativa. Mas no Concílio,
depois de quatro anos de pressão, de insistirem por seis vezes (no caso da declaração
sobre a liberdade religiosa), conseguiram que quase todos se curvassem 18.
Comenta o Padre Lucien:
O Padre Pierre-Marie desconhece completamente a verdadeira causa da infalibilidade
do magistério universal, em cada época. A causa é Nosso Senhor Jesus Cristo agindo
sempre de forma atual, ao longo dos séculos, enquanto Cabeça da Igreja. Esta é a
doutrina do Corpo Místico. Nosso Senhor age de modo permanente, invisível e
visivelmente. Invisível, por si mesmo e pelo Espírito Santo que envia 19.
Antes nos parece que é o Padre Lucien que desconhece a natureza do magistério, e de
forma mais geral a natureza da causalidade.
Nosso Senhor, cabeça e chefe da Igreja, assiste (pelo Espírito Santo) invisivelmente o
magistério (“estarei convosco todos os dias” Mt 28, 20), mas isso não obriga os
agentes segundos em seu modo humano e visível e agir.
Assiste invisivelmente o Espírito Santo a Igreja, de sorte a assegurar a transmissão
visível da Revelação em cada época, de modo humano, de mão em mão 20, desde os
Apóstolos até a nós.
Podemos constatar tal transmissão, e logo vejamos a unanimidade no ensinamento
ordinário dos bispos de toda a terra, asseguramo-nos tanto pela razão 21 quanto pela
fé 22 que este ensinamento remonta aos Apóstolos e faz parte da Revelação.
Temos agora o caso dos bispos reunidos em concílio.
Caso um concílio se equivoque numa definição (a que todos são obrigados a se
submeter), a Igreja teria falhado: Nosso Senhor não o permitirá jamais, os concílios são
infalíveis em suas definições 23.
Mas se um concílio ensina um erro sem o definir (e portanto sem o impor como
obrigatório), alguns bispos (minoritários no concílio ou ausentes) poderiam resistir e
continuar a transmissão da verdadeira fé, e, após certo tempo, reduzir seus colegas.
A indefectibilidade da Igreja não requer, de modo sistemático, a infalibilidade do
magistério ordinário dos concílios, na mesma medida em que requer a do magistério
ordinário dos bispos dispersos.
Foi isso que o Padre Lucien não entendeu: para ele, a reunião dos bispos em concílio ou
sua dispersão pelas dioceses é uma diferença acidental 24.
Realmente, essa diferença não é acidental aos olhos da fé, uma vez que em um dos
casos estão implicados todos os bispos, e a indefectibilidade da Igreja está diretamente
comprometida (se todos os bispos do mundo se enganam em seu magistério ordinário, a
Igreja não teria conservado a fé), enquanto que no outro caso não estão implicados
todos os bispos, e logo não se compromete a indefectibilidade (se um concílio se engana
num ensinamento ordinário, alguns bispos podem resistir e reduzir seus colegas) 25.
Esta diferença não é tampouco acidental aos olhos da razão. Explicamos como se
exercem pressão num concílio. Provavelmente, é o motivo por que o papa Pio XI, bem
aconselhado pelo cardeal Billot, renunciou a convocação dum concílio:
Sabe-se que o Concílio Vaticano I haveria de se interromper por causa da guerra de
1870. Pio XI, que desejava prosseguir com os trabalhos do concílio, consultara os
cardinais sobre a oportunidade de convocar os bispos para concluir o Vaticano I.
Segundo as pesquisas de Giovanni Caprile, vinte e seis resposta se conservaram nos
arquivos vaticanos. Somente dois cardeais responderam pela negativa: o cardeal
austríaco Andreas Früthwirth O.P. (1845-1933) e o cardeal Billot, S.J.. O argumento
de Billot está cada dia mais atual, pois parece descrever – com quarenta anos de
antecedência – o clima e a atmosfera do Vaticano II. “Parece, considera Billot, que a
era dos concílios ecumênicos está totalmente acabada, em razão das dificuldades e
perigos que comportam, sobretudo: o prolongamento excessivo dos debates; o grande
número de participantes; a dificuldade dos padres em guardar segredo, assediados por
uma chusma de jornalistas de todos os países, municiados dos meios que a ciência e os
costumes moderníssimos põem a sua disposição; a repercussão imediata, fora da aula
conciliar, da menor das discussões, da menor polêmica; a preponderância dalguns
blocos nacionais; a duração excessiva do conjunto do Concílio; o perigo dos elementos
extremistas – os modernistas – se aproveitarem do Concílio “para fazer a revolução,
um novo 1789, objeto de seus sonhos e esperanças”. (O texto entre aspas é da pluma do
cardeal Billot: ver La Pensée Catholique nº 170, setembro-outubro 1977, p. 48 e 49).
Que diria Billot assistindo ao Concílio Vaticano II, manipulado pelos periti,
influenciado pelos “marx-midia”, invadido pelas coortes germânicas que preparavam
a Revolução de Outubro? 26

Da infalibilidade do magistério ordinário num concílio


Das precedentes explicações, não se deve tirar conclusões apressadas, de que o
magistério ordinário jamais seria infalível por ocasião dum concílio.
Realmente, participa o concílio da infalibilidade papal 27: no caso das definições,
participa da infalibilidade papal falando ex cathedra; afora as definições, é infalível
como papa em seu magistério ordinário.
Ora, o magistério ordinário do papa pode ser infalível. Sobre este ponto a posição de
Dom Paul Nau parece-nos equilibrada: para que haja infalibilidade, é
preciso continuidade e coerência do ensinamento pontifical 28. Em conseqüência, o
magistério ordinário pontifical deve se repetir durante um certo tempo para ser
infalível 29.
Assim, para que o magistério ordinário dum concílio seja infalível, forçoso é que
haja continuidade e coerência do ensinamento conciliar 30.
Imagina o Padre Lucien que o ensinamento ordinário dum concílio é infalível nos
“pontos centrais”, conceito novo e difícil de captar. Se por “ponto central” entende ele
as definições, estaríamos de acordo. Mas neste caso, Dignatis humanae não é infalível,
porque o papa Paulo VI admitia que o Concílio “evitou a promulgação de definições
dogmáticas solenes que se valesse da infalibilidade do magistério eclesiástico” 31.
Todavia, notemos que o magistério ordinário conciliar, até quando não infalível, tem
excelente autoridade. Diga-se o mesmo do magistério ordinário do papa nos
documentos mais importantes (como uma grande encíclica). Alguns teólogos chegam a
pensar que nunca se permitira a um mero fiel criticar tal ensinamento 32.
Eis porque, para que se nos permita contestar o Vaticano II, expusemos outros
argumentos com antecedência 33.
Concluindo, as considerações do Padre Lucien se nos deparam bem frágeis;
continuamos a pensar que fora possível ao Vaticano II enganar-se, até nos “pontos
centrais” de seu ensinamento.
O Padre Lucien exagera a autoridade do Concílio; nesta exageração, está próximo aos
sedevacantistas, a ponto de amiúde remeter pura e simplesmente a suas obras para
criticar nossa posição 34.
Neste primeiro erro acerca da autoridade do Concílio, acrescenta o Padre Lucien outro:
pensa ele que a declaração Dignitatis Humanae não está errada em seu “ponto central”.
Refutamos em diversas ocasiões tal erro, explicando os sofismas do Padre Lucien 35.
Sobre este ponto, não encetou debate conosco. Não há nada que responder?

(Tradução: Permanência)
1. 1.Padre LUCIEN, Les Degrés d’autorité du magistère, p. 16.
2. 2.Padre LUCIEN. Les Degrés d’autorité du magistère, p. 159.
3. 3.Sobre este ponto, estamos de acordo com o padre Lucien, como ele mesmo
destaca (p. 137), sem todavia dar as referências do trabalho em que publicamos
nosso ponto de vista. Ei-los então, as referências a Le Sel de la terre: Le Sel de
la terre 26, p. 47; Le Sel de la terre 34, p. 47-48; Le Sel de la terre 35, p. 45-46.
4. 4.São VICENTE DE LÉRINS, Communitorium, cap.II, RJ 2168.
5. 5.Padre RENÉ-MARIE, “L’infaillibilité du magistère ordinaire de l’Église”,
Una Voce Helvetica (Chalet des neiges, CH 1634 La Roche), janeiro 1981.
6. 6.De Rome et d’ailleurs nº 15, novembro-dezembro de 1980.
7. 7.Action Familiale et Scolaire 145 (1999), p. 2-33; Action Familiale et Scolaire
183 (fevereiro de 2006), p. 3-27.
8. 8.Padre LUCIEN, Les Degrés d’autorité du magistère, p. 160-161.
9. 9.Ver por exemplo Église et Contre-Église au concile Vatican II, Actes du 2e
congrès théologique de Si Si No No, janeiro de 1996, p. 32-63, Ed. Publications
du Courrier de Rome, 1996, p. 287 et sq; Le Sel de la terre 35, inverno 2000-
2001, p. 32-63 (especialmente p. 42-52; Autorité et réception du concile Vatican
II, Actes du 4e Symposium de théologie de Paris, Paris, 2006, p. 99-150.
10. 10.Esta carência do magistério conciliar, que o impede de ensinar
infalivelmente, já há muito se explicou nos artigos do Sr. Padre Calderon,
publicados em Le Sel de la terre (nºs 47, 55 e 60), e no livro Autorité et
réception du concile Vatican II, Actes du 4e Symposium de théologie de Paris,
Paris, 2006.
11. 11.Ver os textos e as referências em Le Sel de la terre 35, p. 46-49. Citamos o
esquema preparatório do Vaticano II do cardeal Ottaviani: “O corpo dos
legítimos pastores e doutores da Igreja [...] [gozam] da prerrogativa da
infalibilidade quando, cada qual ensinando enquanto autoridade da diocese,
concordam num mesmo ensinamento com o romano pontífice, em testemunho
da fé na doutrina da fé a se transmitir.” Ver Le Sel de la terre 34, p. 47-48.
12. 12.P. 170. Parece-nos que tal constatação deveria impedir o Padre Lucien de
qualificar nossa posição de “extravagante” (p. 138). A revista Sedes Sapientue,
número 101, que consagra 15 páginas em louvaminhas ao livro do Padre Lucien,
qualifica nossa tese de “fantasista” (p. 114).
13. 13.MANSI, t.51, col. 676 A. O Padre Lucien cita este texto em seu livro a
páginas 171, mas não dá a referência. Contenta-se em remeter a uma de suas
próprias obras, uma de 1984. Não é tal facilitar o trabalho dos que querem
verificar a referência e o contexto.
14. 14.“Si quis dixerit , adsensum Ecclesiae dispersae non valere ad statuendum
dogma fidei, ac proinde necessarium omnino esse ut episcopi congregentur ad
res fidei et morum definiendas, anathema sit.” (MANSI, t.51, col.673).
15. 15.A autoridade de Mons. Zinelli é também a única trazida à tona pelo irmão
Augustin Aubry (autor do artigo de Sedes Sapientiae 101), permitindo-lhe
qualificar nossa tese de “fantasista”.
16. 16.Padre LUCIEN, Les Degrés d’autorité du magistère, p. 177.
17. 17.Era claro, e isto é mui compreensível, que a maioria dos bispos, por ocasião
do último concílio, buscava saber o que pensava o papa para lhe seguir os
vaticínios.
18. 18.Mons. Lefebvre explicava que os bispos que vieram a Roma para um concílio
de poucas semanas (é o que pensava joão XXIII, durante a convocação),
acabaram por se deparar com um longo concílio. Amiúde estavam mal alojados,
impacientes por estarem distantes de suas dioceses. Tinham pois pressa em
terminar. Deste modo, quando modificaram a declaração acerca da liberdade
religiosa, acrescentando uma frase para dizer que esta declaração não contradizia
o ensinamento tradicional da Igreja, a oposição protestou com veemência.
Contudo, o teor da declaração contradiz o ensinamento tradicional da Igreja.
19. 19.Padre LUCIEN, Les Degrés d’autorité du magistère, p. 177.
20. 20.A expressão é do Concílio de Trento: “quasi per manus traditae” (DS 1501).
21. 21.No patamar da razão, pois que uma tal unanimidade não possui razão
suficiente se não vem duna fonte comum, ou seja, da Tradição Apostólica.
22. 22.No patamar da fé, pois que a fé nos diz que a Igreja não pode cair
universalmente no erro, o que seria o caso de todos os bispos ensinarem, cada
qual em sua diocese, a firme conservação dum mesmo erro para todos os
católicos.
23. 23.Recordemos que uma definição conciliar é uma proposição solenemente
ensinada, como obrigatória de se crer. A última definição conciliar é a da
infalibilidade papal, por ocasião do Concílio Vaticano I.
24. 24.Refere-se o Padre Lucien à frase de Mons. Zinelli, que interpreta às avessas,
como já explicamos. O Padre Lucien admoesta-nos a oposição de um
ensinamento revelado: “As palavras de Nosso Senhor [Mt 28, 19-20] afirmam a
assistência permanente (um “estar com”), não mencionando nunca o estado de
dispersão ou reunião: seria contrário ao ensinamento revelado achar que a
assistência de Nosso Senhor ao magistério cessaria por causa duma
circunstância, cuja acepção não se faz na promessa”. [p. 175]. Mas a promessa
de Nosso Senhor não menciona de forma alguma as quatro condições indicadas
pelo Vaticano I para a infalibilidade pontifical; não diz também que o magistério
só é infalível nos seus “pontos centrais”; etc.. Toda a doutrina da Igreja acerca
da infalibilidade não se expôs em detalhe, nesta palavra do Salvador.
25. 25.Aqui vai uma observação sobre a unanimidade requerida para que o
magistério ordinário seja universal. Para o Padre Lucien, se 90% dos bispos
manifestam acordo com o papa, está-se em presença do MOU (p. 184). Não
estaria o Padre Lucien sob a influência da mentalidade democrática moderna?
Realmente, a questão nos parece mais simples. O magistério ordinário é
universal quando uma doutrina está suficientemente exposta para que toda a
Igreja a reconheça enquanto doutrina para se considerar como de fé (ou
necessariamente ligada à fé). Quando um bispo (sobretudo o papa) não a
condena, pode-se considerar que a maioria do episcopado está unida. Se uma
pessoa manifesta opinião divergente, deve-se condená-la por uma voz de
autoridade bastante (o papa ou outra autoridade qualquer com o aval implícito
do papa) para que a doutrina majoritária ainda represente o MOU, apesar da
oposição. No caso que nos respeita, Mons. Lefebvre e Mons. de Castro Mayer
deram a conhecer em público sua oposição aos erros do Concílio. Esta oposição
fora suficientemente conhecida (a carta aberta dirigida ao papa a 21 de
novembro de 1983, na qual declaram que ‘a declaração Dignitatis humanae’ do
Concílio Vaticano II afirma a existência dum falso direito natural do homem, em
matéria religiosa, contrario aos ensinamentos pontificais que negam
formalmente tamanha blasfêmia” chegou a ser publicada em DC 1984, nº 1874,
p. 544-547), oposição esta que nunca se condenara em sua doutrina. Isto basta
para que não haja universalidade do magistério ordinário, supondo que se
cumprissem as demais condições do MOU (sobretudo, a de que as novidades em
doutrina ensinadas após o Vaticano II se impusessem como devendo se
considerar de fé).
26. 26.Introdução de Gustavo CORBI, “Billot et Vatican II”, para a obra de Louis
BILLOT, L’Erreur du libéralisme (El error del liberalismo, Cruz y Fierro 1978,
Argentina, p. 28 e 29).
27. 27.O fato de os bispos juntarem-se ao papa aumenta a solenidade do ato, mas
não aumenta o grau de assistência do Espírito Santo.
28. 28.Dom P. NAU, “Le magistère pontifical ordinaire, lieu théologique”, Revue
Thomiste, julho-setembro de 1956, p. 406 et sq.
29. 29.Parece-nos um sinal da infalibilidade o seguinte: como corolário da primazia
da sé de Pedro, se o papa repete durante um certo tempo a mesma doutrina, sem
que haja protestos do episcopado, necessariamente se segue a aceitação pelo
conjunto do episcopado, e nos encontramos no caso da infalibilidade do
magistério ordinário e universal. A aceitação pelo conjunto do episcopado é um
sinal da infalibilidade do magistério pontifical, e não sua causa; a causa é a
assistência particular à Igreja de Roma.
30. 30.Equivocou-se o Padre Licien ao criticar o cônego Berthod. Provavelmente, o
que este diz (“é necessário que haja continuidade no tempo para ter magistério
ordinário infalível”) é inexato se se compreende por magistério ordinário os
bispos dispersos; mas é exato para o magistério em concílio.
31. 31.Audiência de 12 de janeiro de 1966, citada em Le Sel de la terre 35, p. 37-38.
Damos neste passo outros textos que provam à saciedade que o Concílio não
quis se valer do magistério extraordinário. O mesmo Padre Lucien o reconhece
(nota 46, p. 217).
32. 32.É provável não haja exemplo de erro no ensinamento ordinário dos concílios
anteriores ao Vaticano II. Se for o caso, deve-se à prudência dos papas que
conduziram e aprovaram esses concílios. Fora essa prudência que sugerira aos
papas Pio XI e Pio XII a renúncia à sua primeira intenção de convocar um
concílio. Eles se deram conta das dificuldades e riscos dum tal empreendimento
em nossa época. O papa João XXIII não teve a prudência. Cometera inclusive a
grande imprudência – partilhada por Paulo VI – de favorecer a ala progressista,
que recusava levar em consideração o ensinamento passado da Igreja,
especando-se na “nova teologia” de inspiração modernista.
33. 33.Ver Autorité et réception du concile Vatican II, Paris, 2006, p. 99-150
(disponível nos representantes de Le Sel de la terre: 29 € + 4 € de remessa).
Resenha em Le Sel de la terre 60, p. 165-180.
34. 34.Ver a nota 86, p. 221, que remete aos artigos do Padre Ricossa e do Padre
Murro, que apareceram em Sodalitium.
35. 35.Ver sobretudo: “La liberté religieuse: l’erreur de l’abbé Lucien... et des
autres” em Sel de la terre 2, p. 110-114 (ver também no mesmo número: p. 8 e
p. 23-24); e “Brève réfutation de la thèse de l’abbé Lucien” em Sel de la terre
56, p.184-186.

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