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A ARTE DA NOVELA
Coleção publicada em cooperação com a editora Melville House
SOBRE A SÉRIE
Muito curta para ser um romance, muito longa para ser um conto, a novela é geralmente um gênero pouco
reconhecido por acadêmicos e editores. No entanto, é querida e pra cada por grandes escritores. A série A
ARTE DA NOVELA celebra esta forma de arte renegada publicando histórias, em muitos casos, apresentadas
como títulos independentes pela primeira vez.
GEORGE ELIOTé o pseudônimo de Mary Anne Evans, nascida em Chilvers Coton, Inglaterra, em 1819, em
uma fazenda gerenciada pelo pai. Quando sua mãe morre, em 1836, Mary Anne deixa a escola para cuidar
da casa, dando con nuidade a sua formação por conta própria na biblioteca da propriedade. Em 1841, ela
se muda com o pai para Coventry, e vive com ele até 1849, ano que ele morre. Ela sai em viagens pela
Europa e se estabelece por fim em Londres.
Em 1850, a autora começa a contribuir de forma anônima para a pres giada revista Westminster Review,
da qual torna-se mais tarde editora. Próxima dos 40 anos, em 1958, publica a coleção de histórias Scenes of
Clerical Life sob o pseudônimo de George Eliot, em parte para ser levada a sério – os livros escritos por
mulheres eram dos apenas como romances leves –, em parte para preservar sua privacidade; ela manteve
uma longa relação com o produtor editorial George Henry Lewes, que era casado.
Em 1859, lança o romance Adam Bede, de um realismo e análises psicológicas surpreendentes, que causou
comoção e foi um sucesso. Seu mais importante trabalho, Middlemarch (1872), é considerado um dos
maiores romances do século XIX. Segundo Virginia Woolf, é "um dos poucos romances ingleses escritos para
gente grande".
No fim de 1878 George Henry Lewes morre, quando estava juntos já fazia mais de duas décadas. Eliot casa-
se, então, com seu banqueiro, 20 anos mais novo que ela. Pouco depois ela morre, em 1880.
TEXTO DE ORELHA
Publicada no mesmo ano do seu primeiro romance, Adam Bede, esta novela exibe algumas das virtudes que
tornariam George Eliot famosa – rigor enérgico, introspecção, forte caracterização psicológica e moralização
idealista. No entanto, esta obra é singular em comparação aos demais trabalhos da autora: foi a única em
que usou uma narra va em primeira pessoa e escreveu a respeito do sobrenatural, expoente do realismo
que foi. A novela pertence à tradição vitoriana de histórias de terror, como Frankenstein (Mary Shelley) e O
Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (O médico e monstro, de Robert Louis Stevenson).
La mer, de natureza sensível e pouco prá ca, dono de uma beleza feminina, é o filho mais novo de um
banqueiro e vive à sombra do irmão mais velho, o exuberante Alfred. Aos 16 anos é mandado para Genebra
para completar sua educação, que fazia parte de um roteiro pré-determinado da vida de rico que levaria,
com o irmão no comando dos negócios. La mer adoece,a estadia na Suíça é interrompida, e sua vida sofre
uma reviravolta quando, convalescendo, ele começa a ter visões do futuro. Incapacitado, confuso, frágil,
ainda assim Latimer tenta subverter seu destino vividamente vislumbrado.
O véu erguido pode ser interpretado como revelador da sensibilidade de Eliot à opinião pública e de sua
consciência de que seus dias escondida atrás de um pseudônimo estavam condenados a uma descoberta
trágica (que de fato aconteceu logo após a publicação desta novela).
Copyright THE ART OF THE NOVELLA © 2014 Melville House Publishing
Essa tradução foi publicada após acordo firmado com a Melville House Publishing, EUA.
A série The Art of The Novella e sua identificação visual são propriedades da Melville House Publishing, USA.
design da série
DAVID KONOPKA
www.grualivros.com.br
grua@grualivros.com.br
Pinheiros
São Paulo – SP
05422-030
E42v
ISBN 9788561578466
CDU: 813.111-3
Não me dê luz, glorioso Céu, mas sopros
A hora do meu fim se aproxima. Nos últimos tempos tenho sido objeto de ataques da angina pectoris; e, no
curso ordinário das coisas, diz-me meu médico, posso esperar com razoabilidade que minha vida não se
prolongará por muitos meses. A menos, portanto, que eu tenha sido amaldiçoado com uma constituição física
excepcional, assim como fui amaldiçoado com um caráter mental excepcional, não deverei resmungar
longamente sob o pesado fardo desta existência terrena. Se tudo fosse de outro modo — se vivesse até a idade
que a maioria dos homens deseja e luta — eu deveria, ao menos uma vez, tentar descobrir se os sofrimentos
da expectativa ilusória conseguem sobrepujar os sofrimentos da previsão verdadeira. Pois antevejo quando
devo morrer e tudo mais que acontecerá em meus últimos momentos.
A um mês deste mesmo dia, aos 20 de setembro de 1850, estarei sentado nesta cadeira, neste mesmo
escritório, às dez horas da noite, ansiando morrer, cansado das incessantes percepções e previsões, sem
quaisquer ilusões e sem esperança. Enquanto observo a flama azulada se erguer sobre o fogo e a lamparina
queimar devagar, a horrível contração irá começar em meu peito. Terei tempo suficiente apenas para alcançar
o sinete e puxá-lo com violência antes da sensação de sufocamento chegar. Ninguém atenderá ao chamado. Eu
sei o porquê. Meus dois criados são amantes e terão brigado entre si. Minha governanta terá saído
furiosamente correndo da casa, duas horas antes, na esperança de que Perry acredite que ela foi se afogar.
Enfim, Perry se alarmará e irá atrás dela. A pequena serviçal da cozinha dorme em um banco: ela nunca atende
ao sinete; o som não a desperta. A sensação de sufocamento aumenta: a lamparina apaga com um mau cheiro
terrível: torno a fazer um grande esforço e novamente apanho o sinete. Anseio pela vida, mas não há ajuda. Eu
tinha sede do desconhecido: a sede se foi. Ó Deus, permita-me ficar no conhecido, e que eu me canse dele:
contento-me. Agonia da dor e do sufocamento — enquanto isso a terra, os campos, o riacho repleto de
pedregulhos ao sopé dos viveiros, o perfume fresco depois da chuva, a luz da manhã que entra pela janela do
quarto, o calor da lareira depois do ar congelado —, será que a escuridão se fechará por sobre tudo isso para
sempre?
Escuridão — escuridão — nenhuma dor — nada além da escuridão: mas sigo sempre em frente na
escuridão: meu pensamento se detém na escuridão, sempre com uma sensação de estar indo em frente…
Antes de esse tempo chegar, gostaria de usar minhas últimas horas de tranquilidade e vigor para contar a
estranha história da minha experiência. Eu nunca me confessei de forma plena para nenhum ser humano;
nunca fui incentivado a confiar muito na simpatia daqueles que me rodeiam. Não obstante, todos nós temos a
chance de encontrar algum dó, alguma ternura, alguma caridade quando morremos: apenas os vivos não
podem ser perdoados — apenas dos vivos é que se separam a indulgência e a reverência humana, como faz
com a chuva o ríspido vento leste. Enquanto ainda bate o coração, machuque-o — será sua única oportunidade;
enquanto o olho ainda pode virar, úmido de súplica tímida, em sua direção, paralise-o com um olhar glacial e
inescrutável; enquanto o ouvido, delicado mensageiro do mais interno santuário da alma, ainda pode captar
tons de gentileza, aplaque-o com áspera civilidade, ou com um elogio desdenhoso, ou com a afetação invejosa
da indiferença; enquanto o cérebro criativo ainda pulsa com o senso de injustiça, com o anseio pelo
reconhecimento fraternal — apresse-se —, oprima-o com seus julgamentos mal pensados, com suas
comparações triviais, com suas representações falhas e descuidadas. O coração aos poucos se abrandará — ubi
sæva indignatio ulterius cor lacerare nequit1 ; o olho deixará de suplicar; o ouvido ensurdecerá; o cérebro dará
cabo de todo desejo, bem como de toda atividade. Então, seus discursos caridosos poderão seguir caminho;
então, você poderá recordar e lamentar a labuta, o esforço e o fracasso; então, você poderá render honras pela
obra realizada; então, você encontrará a atenuação de seus erros e poderá consentir em enterrá-los.
Mas isso não passa de um texto de um colegial; por que me demoro nele? Tal texto pouco se refere a mim,
pois não deixarei obra para trás que possam os homens honrar. Não tenho parentes próximos que tentarão
remendar, com o choro sobre a minha cova, as feridas que a mim infligiram enquanto ainda estava em meio
deles. Apenas a história da minha vida seja, talvez, capaz de angariar maior simpatia de um estranho quando
eu estiver morto, pelo menos maior do que a que eu obteria de meus amigos enquanto ainda vivia.
Minha infância talvez me pareça mais feliz do que realmente foi quando comparada com os anos
subsequentes. Naquela época, a cortina do futuro era tão impenetrável para mim como o era para as outras
crianças: eu tinha todos os deleites na hora presente e doces esperanças indefinidas no amanhã; e tinha uma
mãe gentil: mesmo hoje, depois do lúgubre passar de longos anos, um leve resquício de sensação acompanha a
lembrança dos cuidados dela enquanto me segurava apoiado em seus joelhos — os braços ao redor do meu
corpo diminuto, o rosto dela contra o meu. Eu reclamava de algo nos olhos que me cegara temporariamente e
ela me carregou no colo desde a manhã até a noite. Aquele amor inigualável logo desapareceu da minha vida
e, mesmo para minha consciência infantil, era como se a vida tivesse ficado mais fria. Eu cavalgava meu
pequeno pônei branco com o cavalariço ao meu lado como antes, mas já não havia olhos amorosos fitando-me
na montaria, nem contentes braços abertos a me esperar no regresso. Talvez eu sentisse mais falta do amor de
minha mãe do que a maioria das crianças de sete ou oito anos, para quem os prazeres da vida continuavam
como antes; pois eu era decerto uma criança um tanto sensível. Ainda me lembro da trepidação confusa e da
excitação deliciosa que me afetavam surgidas do repisar dos cavalos no chão dos ecoantes estábulos, da
ressonância audível da voz dos cavalariços, do ribombar dos latidos dos cães enquanto a carruagem de meu pai
assomava debaixo da arcada do pátio, pelo soar do gongo que anunciava o almoço e o jantar. O marchar exato
dos soldados que eu às vezes ouvia — pois a casa de meu pai era próxima da sede do condado, que contava
com numerosas casernas — me fazia tremer e soluçar; não obstante, tão logo se haviam ido os soldados,
ansiava por vê-los regressar.
Creio que meu pai me considerava um filho ímpar e que pouca simpatia nutria por mim, apesar de ele ser
muito cuidadoso em realizar o que considerava como deveres paternais. Ele já passava da metade da vida e eu
não era o único filho. Minha mãe fora sua segunda esposa e ele contava com 45 anos quando a desposou. Era
um homem firme, inflexível e extremamente ordeiro, um banqueiro de corpo e alma, porém com um enxerto
vicejante de um latifundiário que aspirava a exercer influência: uma dessas pessoas que são sempre elas
mesmas, dia após dia, que não se deixam influenciar pelo clima e que não conhecem nem a melancolia nem a
hilaridade. Por ele eu nutria grande respeito e parecia mais tímido e sensível diante de sua presença;
circunstância que, talvez, tenha ajudado a confirmar nele a intenção de me educar com um planejamento
diferente daquele prescrito e por ele adotado no caso de meu irmão mais velho, um jovem alto que vivia em
Eton. Meu irmão deveria ser o representante e sucessor de meu pai; deveria frequentar Eton e Oxford no intuito
de estabelecer relações, é claro: meu pai não era homem de desprezar os ensinamentos dos satiristas latinos e
dos dramaturgos gregos que conduzem à obtenção de uma posição aristocrática. Não obstante, internamente,
ele tinha pouca estima por tais “espíritos mortos, porém coroados”; assim, achava seu valor na opinião
independente que formara a partir da leitura do Æschylus de Potter e dos mergulhos no Horace de Francis2 . A
essa visão negativista ele acrescentou uma positivista que advinha de um contato recente com certas
especulações; a saber, a de que uma educação científica era o treinamento mais indicado para um filho mais
novo. Além do mais, estava claro que um menino sensível e tímido como eu não fora talhado para encarar a
experiência áspera de uma escola pública. Era o que tinha dito decididamente o sr. Letherall. O sr. Letherall era
um homem grande que usava óculos e que certo dia tomou minha pequena cabeça em suas mãos, apertando
aqui e ali de maneira exploratória e suspeita — para logo depois repousar os polegares enormes em minhas
têmporas, me afastando um pouco dele, me encarando com os óculos reluzentes. Aquela contemplação pareceu
desagradar-lhe, pois franziu o cenho, e disse para meu pai, correndo os polegares agora por minhas
sobrancelhas:
“A deficiência está lá, senhor — ali; e aqui”, ele acrescentou, tocando as laterais do meu crânio, “eis aqui o
excesso. Isso precisa ser removido, senhor, e precisa ser posto para dormir.”
Eu estava em um estado de tremor, em parte pela vaga ideia de ser objeto daquela reprovação, em parte
pela agitação de meu primeiro ódio — ódio desse homem grande de óculos, que chacoalhou minha cabeça
como se para deixá-la mais barata visando uma compra.
Não tenho certeza de quanto o sr. Letherall teve a ver com o sistema posteriormente adotado para comigo,
mas era um tanto óbvio que a história natural, as ciências e as línguas modernas eram os objetos pelos quais
os defeitos da minha constituição seriam remediados. Eu era muito estúpido em relação a máquinas, de modo
que muito deveria me ocupar com elas; eu não tinha memória alguma para classificações, então se fazia
particularmente necessário que eu estudasse botânica e zoologia sistemática; eu tinha sede de feitos humanos
e de emoções humanas, portanto deveria ser abundantemente entupido com as forças mecânicas, com os
corpos elementares e com os fenômenos da eletricidade e do magnetismo. Um rapaz mais bem constituído
muito teria lucrado com meus tutores inteligentes e seus aparatos científicos; tal garoto também teria, sem
dúvida, considerado os fenômenos da eletricidade e do magnetismo fascinantes, como me queriam fazer crer
toda quinta-feira. Do jeito que as coisas eram, eu bem poderia ter sido instruído, dada a ignorância resultante
de tudo que me era ensinado, pelo pior professor de latim já saído de uma academia clássica. Eu lia Plutarco,
Shakespeare e Dom Quixote na clandestinidade e, assim, me abastecia de pensamentos divagantes enquanto
meu tutor garantia que “um homem melhorado, em comparação a um ignorante, era o homem que sabia o
motivo pelo qual a água corre morro abaixo”. Pois eu não tinha desejo algum de ser tal homem melhorado;
contentava-me com a água correndo; conseguia vê-la e ouvi-la murmurando em meio aos pedriscos, banhando
as plantas aquáticas de um verde vivo, horas a fio. Não desejava saber por que a água corria; eu tinha plena
confiança de que sempre havia bons motivos para tudo que era muito belo.
Não há necessidade de se demorar nessa parte da minha vida. Já contei o suficiente para indicar que minha
natureza era de ordem sensível e nada prática e que vicejava em um meio destoante, que jamais conseguiria
favorecer um desenvolvimento sadio e feliz. Quando fiz 16 anos fui mandado a Genebra para completar minha
educação; uma mudança muito fortuita para mim, pois o primeiro vislumbre dos Alpes, com o sol poente sobre
eles, enquanto descíamos o Jura, pareceu-me uma entrada para o céu; os três anos de minha vida ali foram
passados com uma sensação perpétua de exaltação, como se tivessem sido tirados de um barril de vinho
delicioso, na presença da Natureza em todo seu esplendoroso encanto. Você deve pensar, talvez, que eu
deveria ter sido um poeta, dada essa precoce sensibilidade pela Natureza. Mas meu destino não foi tão feliz
assim. Um poeta derrama seu canto e crê no ouvido que escuta e na alma que responde, para os quais seu
canto acabarão fluindo cedo ou tarde. Mas a sensibilidade do poeta apartada de sua voz — a sensibilidade do
poeta que não encontra caminho senão em lágrimas silenciosas nas margens ensolaradas, quando a luz do
meio-dia cintila na água, ou, então, em um arrepio interior causado pelo som de ásperos tons humanos, ou pelo
fustigar de um olhar humano congelante — essa paixão tola traz consigo uma solidão fatal da alma na
coletividade humana. Meus momentos menos solitários eram aqueles nos quais eu empurrava meu barco, no
fim da tarde, até chegar ao centro do lago; a mim parecia que o céu, os cumes iluminados das montanhas e a
vasta água azul me cercavam de um amor precioso, tal que nenhum rosto humano despejara algo parecido
sobre mim desde que o amor de minha mãe desaparecera da minha vida. Eu costumava fazer como Jean-
Jacques — deitava no barco e o deixava deslizar a esmo enquanto observava o brilho fugidio deixar um cume
após o outro, como se a carruagem de fogo do profeta passasse por eles a caminho da casa da luz. Então,
quando os cumes ficavam todos tristes e cadavéricos, eu tinha de voltar para casa, pois vivia sob vigilância
cerrada e não tinha permissão para vagar até tarde. Essa minha disposição não favorecia a formação de
amizades íntimas entre os numerosos jovens de minha idade que sempre se encontram estudando em Genebra.
Não obstante, consegui estabelecer uma dessas amizades; e, de forma um tanto singular, tal amizade se dava
com um jovem cujas tendências intelectuais eram o exato oposto das minhas. Vou chamá-lo Charles Meunier;
seu sobrenome real — um sobrenome inglês, pois ele era de origem inglesa — hoje é muito celebrado. Era um
órfão que vivia em lamentável miséria enquanto concluía seus estudos médicos, para os quais tinha especial
gênio. Estranho, pois com minha mente vaga, suscetível e desatenta, que odiava a indagação e que era dada à
contemplação, que eu tenha sido atraído por um jovem cuja paixão mais intensa era a ciência. Mas nossa
ligação não era intelectual; ela provinha de uma fonte que consegue alegremente misturar o estúpido com o
brilhante, o sonhador com o pragmático: tal ligação provinha da comunhão de sentimentos. Charles era pobre e
feio, ridicularizado pelos gamins 3 genebreses, jamais seria aceito em um estúdio de pintura. Eu o via isolado,
como eu era, mas por outra causa, e, movido por uma indignação compassiva, passei a promover tímidos
avanços na direção dele. É suficiente dizer que dessa relação brotou tanta camaradagem entre nós quanto
permitia a diferença entre nossos hábitos; e que, nos poucos dias livres que Charles tinha, subíamos o Salève
juntos, ou tomávamos o barco até Vevay, quando eu ficava ouvindo em meio a devaneios os monólogos em
que Charles descortinava suas corajosas concepções de experimentos e descobertas futuras. Eu misturava tais
ideias em uma confusão de pensamentos com lampejos de água azul e com delicadas nuvens flutuantes, com
as notas musicais dos pássaros e com o brilho distante das geleiras. Ele sabia muito bem que minha mente
vivia parcialmente absorta, mas gostava de conversar comigo mesmo assim; pois não falamos de esperanças e
planos até mesmo para cães e pássaros quando estes nos amam? Menciono essa amizade por conta de sua
relação com uma cena terrível e estranha que narrarei em minha vida posterior.
Essa vida feliz em Genebra encontrou fim em uma enfermidade severa que para mim é, em parte, uma
lacuna, e em parte um tempo de sofrimentos vagamente lembrados, com a presença de meu pai junto ao meu
leito de tempos em tempos. Então, veio a lânguida monotonia da convalescência, os dias gradualmente
quebrando-se em variedades e distinções conforme minhas forças me permitiam esforçar-me um pouco mais.
Em um desses dias mais vividamente lembrados, meu pai me disse, enquanto se sentava ao meu lado no sofá:
“Quando estiveres bem para viajar, Latimer, levarei você de volta para casa com igo. A viagem irá diverti-lo
e lhe fará bem, pois passaremos pelo Tirol e pela Áustria, onde você verá muitos lugares novos. Nossos
vizinhos, os Filmore, nos acompanharão; Alfred se juntará a nós na Basileia e iremos todos juntos para Viena,
voltando por Praga…”
Meu pai foi chamado antes que pudesse terminar a frase e assim deixou minha mente repousando na
palavra Praga, com a sensação de que uma cena nova e magnífica se desvelava sobre mim: uma cidade sob
amplo iluminar do sol, que a mim parecia o raiar do sol estival de um século há muito ido preso em seu
caminhar — que por eras não se refrescou com o orvalho da noite, ou com o correr da nuvem chuvosa;
escorchando a grandeza poeirenta, cansada e fustigada pelo tempo de um povo condenado a viver na repetição
estagnada das memórias, como reis depostos e aposentados em seus trajes dourados puídos. A cidade parecia
tão sedenta que o amplo rio me parecia antes um veio de metal; as estátuas enegrecidas, conforme eu passava
diante de seus olhares inexpressivos, enfileiradas ao longo da ponte sem-fim, com suas vestes anciãs e coroas
santificadas, pareciam os verdadeiros habitantes e donos daquele lugar, enquanto homens e mulheres
ocupados e triviais, indo e vindo apressados, eram um enxame de visitantes efêmeros que a infestavam por um
dia. São os seres severos e pétreos como esses, pensei, os pais dos rebentos há muito esvanecidos que
habitam as moradas queimadas pelo tempo que apinhavam o declive que se estendia diante de mim; que
fazem a corte na pompa gasta e em ruínas do palácio que alonga seu comprimento monótono lá no alto; que
louvam cansadamente no ar enrijecido das igrejas, sem sentir urgência causada pelo medo ou pela esperança,
mas compelidos pelo destino de ser sempre velhos e imortais, vivendo na rigidez do hábito, como se vivessem
em um perpétuo meio-dia, sem o repouso da noite nem o nascimento da manhã.
Um soar atordoante e metálico subitamente correu por mim e tornei a tomar ciência dos objetos em meu
aposento: um dos atiçadores caíra quando Pierre abriu a porta para me trazer o remédio. Meu coração
palpitava violentamente; pedi que Pierre deixasse o remédio ao lado; eu o tomaria de pronto.
Tão logo tornei a ficar sozinho comecei a me perguntar se estivera dormindo. Será que foi um sonho — essa
visão tão maravilhosamente peculiar — exato em sua distinção de uma projeção de arco-íris na calçada,
lançada por uma lamparina colorida com a forma de estrela — de uma cidade estranha, um tanto desconhecida
da minha imaginação? Eu jamais havia visto imagens de Praga: ela existia em minha mente apenas como
nome, com associações históricas vagamente lembradas — memórias disformes de grandeza imperial e de
guerra religiosa.
Nada igual jamais havia acontecido em minhas experiências com sonhos anteriormente, pois muitas vezes
me sentia mortificado por meus sonhos só serem salvos da completa desconexão e da mesmice pelo terror
frequente dos pesadelos. Mas não conseguia crer que estivera dormindo, uma vez que lembrava vivamente do
aparecimento gradual da visão desvelada sobre mim, como imagens novas surgindo da dissolução, ou como a
revelação crescente da paisagem conforme o sol erguia o véu da névoa matutina. Ainda consciente dessa visão
inicial, eu também estava consciente de que Pierre viera dizer a meu pai que o sr. Filmore esperava por ele, e
de que meu pai saiu apressado do quarto. Não, não fora um sonho; terá sido — esse pensamento se embebia
de trêmula exultação — a natureza do poeta dentro de mim, até aqui apenas uma sensibilidade inquieta e
ansiosa, agora se manifestando subitamente como criação espontânea? Decerto fora desse modo que Homero
viu a planície de Troia, que Dante enxergou as moradas dos falecidos, que Milton viu o voo terreno do
Tentador. Será que minha doença teria produzido algum câmbio fortuito em minha organização — dado uma
tensão mais firme aos meus nervos — removido alguma obstrução tola? Eu já havia lido muito a respeito de
tais efeitos — em obras de ficção, ao menos. Não; mesmo em biografias genuínas eu havia lido sobre sutilezas
e sobre a influência benéfica de algumas doenças em relação à capacidade mental. Pois Novalis não viu sua
inspiração se intensificar com o progresso do definhamento?
Após minha mente se deter por um tempo em tal ideia deliciosa, me pareceu por bem testá-la com um
exercício do meu esforço. A visão tivera início quando meu pai falava da viagem a Praga. Nem por um instante
acreditei que tal visão fosse uma representação daquela cidade; eu cri — desejei que fosse um retrato que meu
gênio recém-desperto tivesse pintado com fulgor apressado, tomando emprestadas as cores da memória
preguiçosa. Imaginemos que eu fixasse a mente em outro lugar — Veneza, por exemplo, paragem muito mais
familiar à minha imaginação que Praga: talvez o mesmo resultado fosse obtido. Concentrei os pensamentos em
Veneza; estimulei a imaginação com memórias poéticas e ansiei por me sentir presente em Veneza, assim
como me sentira presente em Praga. Tudo em vão. Eu não fazia mais que colorir as representações do
Canaletto que pendiam em meu velho quarto de casa; o retrato era variável, minha mente vagava incerta em
busca de imagens mais vívidas; eu não enxergava qualquer acidente de forma ou de sombra sem que não
tivesse esforço consciente, dadas as condições necessárias. Tudo não passava de esforço prosaico, em vez da
passividade extasiante que experimentara havia meia hora. Senti-me desencorajado; então, lembrei que a
inspiração é algo aleatório.
Por dias a fio permaneci em um estado de expectativa animada, esperando a recorrência de meu novo dom.
Eu enviava os pensamentos furiosos pelo mundo do meu conhecimento, na esperança de que encontrassem
algum objeto que despertasse uma vibração reanimadora através do meu gênio adormecido. Mas não; meu
mundo continuou sombrio como sempre e aquele clarão estranho de luz se recusava a voltar, por mais que eu
esperasse com avidez palpitante.
Todos os dias meu pai me acompanhava em um passeio e a duração da caminhada aumentava de acordo
com a recuperação da minha capacidade de andar; certa noite ele concordou em me buscar ao meio-dia do dia
seguinte para irmos juntos escolher uma caixinha de música e para fazer outras aquisições rigorosamente
exigidas de um inglês rico em visita a Genebra. Ele era dos homens e dos banqueiros mais pontuais, e eu ficava
sempre nervosamente ansioso por estar pronto à chegada dele na hora marcada. Porém, para minha surpresa,
um quarto de hora se passou sem que ele aparecesse. Eu sentia toda a impaciência de um convalescente que
não tem nada em particular a fazer e que acabara de tomar um tônico, dada a perspectiva de se exercitar, e
cujo estímulo logo cessaria.
Incapaz de aquietar-me sentado poupando as forças, passei a andar para lá e para cá no quarto, olhando
para a correnteza do Ródano, bem no ponto em que ele deixa o lago azul escuro; enquanto isso, pensava em
todas as possíveis causas que poderiam deter meu pai.
De repente me dei conta de que meu pai estava no quarto, mas não sozinho: havia mais duas pessoas com
ele. Que estranho! Eu não tinha ouvido passos nem visto a porta se abrir; mesmo assim, vi meu pai e, à sua
direita, nossa vizinha, sra. Filmore, de quem eu lembrava muito bem apesar de não tê-la visto em cinco anos.
Era uma mulher de meia-idade comum que vestia seda e caxemira; mas a mulher à esquerda de meu pai não
contava mais de vinte anos, perfazendo uma figura alta, esguia e graciosa, com cabelos loiros exuberantes
arranjados em tranças habilmente entrelaçadas que pareciam algo exageradas para o conjunto esbelto e para o
rosto pequeno e de lábios finos que coroavam. Mas seu rosto não era de expressão infantil: as feições eram
exatas, os olhos de um cinza-pálido imediatamente agudo, incansáveis e sarcásticos. Eles se fixavam em mim
com curiosidade quase sorridente e eu sentia uma dolorosa sensação, como se um vento afiado me cortasse. O
vestido verde-pálido e as folhas verdes que pareciam formar uma guirlanda ao redor dos cabelos loiros me
fizeram pensar em uma Ondina — pois minha mente estava cheia de música alemã, e essa mulher alva dos
olhos fatais, coberta de verdes, parecia ter saído de algum riacho frio cheio de plantas aquáticas, a filha de um
rio ancião.
“Bem, Latimer, você esteve me esperando”, disse meu pai…
Mas enquanto a última palavra ainda estava em meus ouvidos toda a companhia desapareceu e já não
havia mais nada entre mim e o biombo chinês defronte à porta. Eu tremia e sentia frio; pude apenas caminhar
trôpego e desabar no sofá. Meu estranho novo poder havia-se manifestado novamente… Mas será que era
mesmo um poder? Não seria antes uma doença — um tipo de delírio intermitente que concentra a energia do
cérebro em momentos de atividade insana, tornando minhas horas de sanidade ainda mais turvas?
Experimentei uma sensação de tontura e de irrealidade naquilo em que meus olhos repousavam; agarrei o
sinete convulsivamente, como alguém que tenta se livrar de um pesadelo, e toquei-o duas vezes. Pierre entrou
com um olhar de espanto estampado no rosto.
“Estou cansado de esperar, Pierre”, respondi, da maneira mais clara e enfática que consegui, como um
homem determinado a ficar sóbrio a despeito do vinho; “Temo que algo tenha acontecido a meu pai — ele
costuma ser deveras pontual. Corra até o Hôtel des Bergues e veja se ele está lá.”
Pierre saiu do aposento de imediato deixando um “Bien, Monsieur” reconfortante; e eu me senti melhor
depois dessa cena de prosa simples e despertadora. Procurando me acalmar mais um pouco, entrei em meu
quarto, um aposento contíguo ao salon, e abri um estojo de eau-de-Cologne; apanhei um frasco; manejei toda
a operação de tirar a rolha com cuidado e esfreguei o líquido vivificante sobre as mãos e a testa, e também sob
as narinas, desfrutando de novo deleite daquele olor por tê-lo procurado devagar e com detalhado esforço, não
por loucura súbita e estranha. Eu já começava a provar um pouco do horror característico dos seres humanos
cuja natureza não é compatível com as mais simples condições humanas.
Ainda desfrutando do aroma retornei ao salon, mas este já não estava mais vago como antes de eu tê-lo
deixado. Em frente ao biombo chinês estava meu pai, com a sra. Filmore à sua direita, e à esquerda a jovem
loira e esguia de feições sagazes e olhos afiados fixados em mim, com curiosidade quase sorridente.
Não ouvi mais nada, não senti mais nada, até me dar conta de que estava deitado com a cabeça no sofá,
com Pierre e meu pai ao meu lado. Tão logo eu me recobrei com certeza, meu pai deixou o aposento e de
pronto regressou, dizendo,
“Fui falar às damas sobre seu estado, Latimer. Elas estão esperando no quarto ao lado. Vamos ter de
cancelar nossa expedição de compras por hoje.”
Ele logo acrescentou: “Aquela jovem moça é Bertha Grant, a sobrinha órfã da sra. Filmore. Filmore a adotou
e ela agora mora com eles, de sorte que você a terá por vizinha quando voltarmos para casa — talvez até para
um relacionamento próximo; pois há certa ternura entre ela e Alfred, suspeito, e eu muito me alegro com essa
união, já que Filmore pretende prover a ela em tudo quanto necessitar, como se fosse sua própria filha. Não me
ocorreu que você nada soubesse sobre ela estar vivendo com os Filmore”.
Ele não fez qualquer alusão sobre eu ter desmaiado no momento em que deitei o olhar na jovem, e por
nada no mundo contaria a ele o motivo do ocorrido: eu me encolhia ante a ideia de revelar a quem quer que
fosse aquilo que poderia ser considerado uma peculiaridade lamentável, tanto mais em trair tal dom contando a
meu pai, que passaria a duvidar da minha sanidade para todo o sempre.
Não pretendo me estender em minúcias acerca dos detalhes dessa minha experiência. Já descrevi esses dois
casos o bastante, uma vez que ambos tiveram resultados claramente identificáveis em meu porvir.
Pouco tempo depois desta última ocorrência — creio que logo no dia seguinte — comecei a dar-me conta de
uma nova fase nessa sensibilidade anormal para a qual, dada a natureza lânguida e frágil das minhas
interações com o próximo desde o surgimento da enfermidade, eu não estava atento. Refiro-me à invasão
desse processo que evoluía, primeiro referente a uma só pessoa, depois com outras com quem eu entrava em
contato: as ideias e as emoções frívolas e errantes de algum conhecido desinteressante — como a sra. Filmore,
por exemplo — forçavam sua entrada em minha consciência como se fossem algum instrumento musical mal
tocado e intrometido, ou como a atividade barulhenta de um inseto aprisionado. Não obstante, essa sensação
desagradável era aleatória e me permitia momentos de descanso, quando as almas dos que me cercavam se
afastavam de mim e eu podia sentir um alívio semelhante ao que o silêncio proporciona aos nervos cansados.
Cheguei a acreditar que essa conclusão inoportuna não passava de uma atividade enferma da minha
imaginação, mas tal previsão de incalculáveis palavras e ações provou ter relação fixa com os processos
mentais de outros indivíduos. Essa consciência expandida, porém, tão cansativa e inoportuna quando me
conduzia à experiência trivial das pessoas indiferentes, se transformava em dor e sofrimento intensos quando
parecia revelar a mim as almas daqueles que me eram mais próximos — quando a fala racional, a atenção
graciosa, as frases sabiamente ditas e os feitos de bondade, que costumam compor a teia que forma o caráter
de tais pessoas, podiam ser vistos como se colocados sob visão microscópica, revelando toda a frivolidade
intermediária, todo o egoísmo suprimido, todo o caos ativo das puerilidades, toda a mesquinhez, os vagos
caprichos da memória e todos os pensamentos indolentes de sobrevivência a partir dos quais os feitos e as
palavras humanas emergem como as folhas de um montículo em fermentação.
Na Basileia ganhamos a companhia de meu irmão Alfred, agora um homem belo e confiante de 26 anos de
idade — um claro contraste em relação a meu ser frágil, nervoso e inútil. Creio que fui sorteado para ter um
tipo de beleza meio feminina, meio fantasmagórica; pois os pintores de retratos, que vicejam como erva
daninha em Genebra, sempre me convidavam a posar para eles, como quando acabei servindo de inspiração
para o retrato fantasioso de um menestrel moribundo. Mesmo assim meu físico me desagradava profundamente
e nada me fazia aceitá-lo, a não ser a crença de que esta era uma consequência natural de um gênio poético.
Mas essa esperança logo voava e eu não via em meu rosto mais que o retrato de uma organização mórbida,
emoldurada para sofrer passivamente — deveras frágil para a sublime resistência da produção poética. Alfred,
de quem eu vivia quase sempre apartado e que, no presente estado de caráter e aparência, se apresentava
como completo estranho, tendia a ser extremamente amigável e fraternal para comigo. Tinha a bondade
superficial de uma natureza bem-humorada e satisfeita, que não enfrenta rivalidade e que jamais encontrou
contrariedade alguma. Não tenho muita certeza de que minha disposição fosse benevolente o suficiente para
garantir que não houvesse inveja em relação a ele, mesmo que nossas vontades não concorressem, nem
mesmo se eu tivesse a saudável condição humana que favorece a confiança generosa e a caridade. Talvez
sempre tenha existido certa antipatia entre nossas naturezas. De qualquer modo, em poucas semanas ele se
tornou objeto de intenso ódio de minha parte; e quando ele entrava em um lugar, mais ainda quando falava,
era como se a sensação de metal retorcido atingisse meus dentes. Minha consciência enferma se ocupava em
maior intensidade e frequência com os pensamentos e emoções dele do que com os de qualquer outra pessoa
em meu caminho. Eu me sentia perpetuamente exasperado com as sugestões mesquinhas que ele oferecia de
suas opiniões e com o amor dele pela condescendência, com a certeza complacente dele em relação à paixão
que Bertha Grant lhe nutria, com o desprezo travestido de dó que me tinha — tudo isso visto não nas indicações
comuns da entonação, do fraseado e da ação, para as quais a mente aguda e suspeitosa se antecede, mas sim
na complexidade desnudada de suas intenções.
Éramos rivais e nossos desejos digladiavam, embora ele não tivesse consciência do fato. Ainda não disse
nada do efeito que Bertha Grant produzia em mim quando se aproximava. Tal efeito era primeiramente
determinado pelo fato de que ela era a única exceção, dentre todos os seres humanos ao meu redor, em
relação ao meu infeliz dom da vidência. Perto de Bertha eu estava sempre em estado de incerteza: podia
observar a expressão em seu rosto e ficar especulando algum significado; podia pedir sua opinião com
verdadeiro interesse nascido da ignorância; podia ouvir suas palavras e assistir a seu sorriso com esperança e
com medo: sobre mim, ela exercia o fascínio de um destino oculto. Afirmo que era esse fato que determinava o
forte efeito que ela produzia sobre mim: pois, em teoria, nenhuma natureza feminina parecia ter menos
afinidade com a de uma jovem miúda, romântica e apaixonada do que a de Bertha. Ela era mordaz, sarcástica,
sem imaginação, prematuramente cínica, permanentemente crítica e impassível diante dos cenários mais
impressionantes, tinha inclinação para dissecar todos os meus poemas favoritos e demonstrava especial
desprezo pelos clássicos alemães, minha literatura predileta naquele tempo. Até o presente momento sou
incapaz de definir meus sentimentos para com ela: não se tratava da admiração comum aos meninos, pois ela
era o exato oposto, até no matiz dos cabelos, da mulher ideal que representava o amor para mim; ela também
era desprovida do entusiasmo pelas coisas boas e elevadas que, até mesmo nos momentos em que exercia
maior domínio sobre mim, eu tinha em conta como os mais elevados elementos definidores do caráter. Mas não
há tirania mais completa do que aquela que a natureza negativa e egoísta exerce sobre a natureza
morbidamente sensível que anseia por compaixão e apoio. As pessoas mais independentes sentem o efeito do
silêncio elevar o valor de uma opinião — também percebem como triunfo a conquista da reverência de um
crítico habitualmente capcioso e satírico: não é de surpreender, portanto, que um jovem entusiasta e sem
confiança observe e espere diante dos segredos velados do rosto de uma mulher sarcástica, como se fosse o
brilho da deidade dubiamente benigna o soberano do destino dele. Pois tal jovem entusiasta é incapaz de
imaginar a total negação, em outra mente, das emoções que conduzem as dele próprio: podem ser frágeis,
latentes, inativas, ele crê, mas estão lá — podem ser trazidas à tona; às vezes, em momentos de fortuita
alucinação, ele crê que tais emoções estejam lá com tamanha força exatamente por não ver sinal externo que
as indique. Esse efeito, como descobri em meu íntimo, era elevado à sua última intensidade dentro de mim,
pois Bertha era o único ser que permanecia na misteriosa reclusão da alma que torna tais ilusões pueris
possíveis. Sem dúvida havia outro tipo de fascínio em ação — a sutil atração física que se delicia em enganar as
previsões psicológicas e em direcionar os homens que pintam silfos a se apaixonar por uma bonne et brave
femme, preguiçosa e sardenta.
O comportamento de Bertha para comigo era tal que incentivava todas as minhas ilusões, elevando minha
paixão pueril, tornando-me mais e mais dependente de seus sorrisos. Olhando para trás com meu
conhecimento torto de hoje, concluo que a vaidade e o amor pelo poder que ela sentia eram intensamente
recompensados pela crença de que eu havia desmaiado ao vê-la pela primeira vez apenas pela forte impressão
que a pessoa de Bertha produzira em mim. Mesmo a mais prosaica das mulheres aprecia o pensamento de se
crer objeto de paixão violenta e poética; e, mesmo sem grão de romance sequer em si, Bertha apresentava tal
espírito de intriga que empresta ardência à ideia de que o irmão do homem com quem deveria se casar morria
de amores e de ciúmes por ela. Que ela se casaria com meu irmão eu pouco acreditava na época; pois embora
ele fosse assíduo em sua atenção para com ela, e eu bem sabia que meu irmão e meu pai já se haviam
decidido buscar tal resultado, ainda não havia entendimento sobre um compromisso — não havia sequer uma
declaração explícita; além do mais, Bertha habitualmente, enquanto flertava com meu irmão e aceitava suas
deferências de maneira a deixar implícito um reconhecimento pleno das intenções dele, me fazia acreditar, com
os olhares e as frases mais sutis — pequenezas femininas que jamais se poderiam jogar contra ela —, que ele
era em verdade o objeto da ridicularização secreta da jovem; que ela o considerava, como eu, um janota, a
quem sentiria prazer em decepcionar. A mim ela abertamente afagava na presença de meu irmão, como se eu
fosse jovem demais e sempre enfermo a ponto de ser descartado como amante; e esta era a visão que ele
aceitava de mim. Não obstante, creio que Bertha deve ter-se deliciado com os tremores aos quais me lançava
pela maneira aduladora com que me afagava os cachos enquanto ria de minhas citações. Tais afagos eram
sempre distribuídos na presença de nossos amigos; pois, quando a sós, ela me infligia distância muito maior,
aqui e ali abraçando a oportunidade, com palavras ou ações diminutas, de estimular minha esperança tola e
tímida de que, na verdade, ela preferia a mim. E por que não deveria ela seguir tal inclinação? Não estava em
posição tão vantajosa como meu irmão, mas eu também tinha fortuna, era menos de um ano mais novo que
ela, e ela seria herdeira que logo alcançaria a idade de poder escolher por si mesma.
As flutuações de medo e de esperança, confinadas nesse único canal, tornavam cada dia na presença de
Bertha um tormento delicioso. Houve um ato deliberado da parte dela de especial ajuda nessa minha
intoxicação. Quando estávamos em Viena ocorreu o vigésimo aniversário de Bertha e, uma vez que ela muito
apreciava ornamentos, todos nós abraçamos a oportunidade de aproveitar as esplêndidas joalherias dessa Paris
teutônica para comprar joias como lembrança da ocasião. Meu presente, naturalmente, foi o menos caro;
tratava-se de um anel adornado com uma opala — a opala era minha gema favorita, porque parecia corar e
empalidecer, como se tivesse alma. Foi o que eu disse a Bertha quando entreguei o regalo, dizendo que era um
emblema da natureza poética, mutável de acordo com a nuança das luzes do céu e do olhar feminino. À noite
ela surgiu vestida com elegância e ostentando conspicuamente todos os presentes, exceto o meu. Ávido,
busquei em seus dedos, mas não encontrei a opala. Não tive oportunidade de mencionar o fato a ela naquela
noite; porém, no dia seguinte, quando a vi sentada à janela sozinha, após o desjejum, interpelei: “Você
desdenha ao não usar minha pobre opala. Eu deveria ter lembrado o quanto despreza as naturezas poéticas e
tê-la presenteado com uma coral, uma turquesa ou outra gema opaca e inerte qualquer”. “Desprezo-a, então?”,
ela respondeu, tomando nas mãos um delicado cordão de ouro que sempre usava ao redor do pescoço e
puxando a ponta enterrada no seio, com meu anel pendendo na extremidade; “Me dói um pouco, posso
afirmar”, ela disse com o usual sorriso dúbio, “ter de usá-lo em local tão secreto; mas já que sua natureza
poética é tola a ponto de preferir uma posição mais pública, não mais suportarei tal dor”.
Bertha retirou o anel do cordão e passou-o ao dedo, sempre sorrindo, enquanto o sangue me subia à face,
sem que eu pudesse expressar súplica alguma para que mantivesse o anel onde antes se encontrava.
Fiquei tomado de completa tolice pela cena e, durante dois dias, trancava-me no quarto sempre que Bertha
se ausentava, a fim de poder intoxicar-me novamente com a lembrança do ocorrido e de todas as suas
implicações.
Devo mencionar que durante esses dois meses — que mais pareciam uma vida longa devido à novidade e à
intensidade dos prazeres e das dores que suportei — minha adivinhação enferma das consciências alheias
continuou a me atormentar; ora com meu pai, ora com meu irmão, ora com a sra. Filmore ou o marido, ora com
nosso mensageiro alemão, cujo fluxo de ideias me atravessava como ressoar no ouvido do qual não conseguia
me livrar, ainda que permitisse meus impulsos e minhas ideias seguirem seu curso ininterrupto. Era como um
sentido sobrenaturalmente elevado da audição, tornando audível como rugido o que outros consideravam como
perfeita mansidão. O cansaço e o desgosto dessa intromissão involuntária nas almas alheias eram
contrabalançados apenas pela ignorância em relação a Bertha e pela crescente paixão por ela; uma paixão
enormemente estimulada, senão produzida, por tal ignorância. Ela era meu oásis de mistério no deserto
monótono do conhecimento. Eu jamais permitira que minha condição enferma traísse a si mesma, nem que me
levasse a ação ou fala incomuns, exceto em determinada ocasião, quando, em um momento de peculiar
amargura contra meu irmão, antecipei algumas palavras que sabia que seriam expressas por ele — uma
observação sagaz que ele havia preparado de antemão. Por vezes ele hesitava com certa afetação na fala e,
quando pausou por instantes antes de pronunciar a segunda palavra, minha impaciência e meus ciúmes me
impeliram a continuar o discurso por ele, como se tratasse de algo que ambos tivéssemos aprendido de cor. Ele
enrubesceu e pareceu perplexo, além de aborrecido; tão logo as palavras deixaram meus lábios senti um
choque de alarme como se a antecipação delas — longe de serem palavras óbvias, de fácil adivinhação — me
denunciassem como um ser excepcional, uma espécie de energúmeno silencioso, a quem todos, Bertha ainda
mais, reprovariam e evitariam. Mas eu engrandecia, como sempre, a impressão que quaisquer palavras ou atos
meus pudessem causar nos outros; pois ninguém deu mostras de notar minha interrupção como algo além de
rudeza, algo a ser perdoado por conta da minha frágil condição nervosa.
Enquanto essa consciência expandida dos fatos era quase constante, nunca tive uma recorrência da
antevisão peculiar que descrevi na ocasião do meu primeiro encontro com Bertha; eu esperava com ansiosa
curiosidade para saber se minha visão de Praga se provaria um exemplo de tal previsão. Alguns dias após o
incidente com o anel de opala, fazíamos uma das frequentes visitas ao Lichtenberg Palace. Nunca consegui
contemplar muitas pinturas em sequência; pois quadros, quando são poderosos, me afetam com força tamanha
que bastam um ou dois exemplares para exaurir toda a minha capacidade de contemplação. Naquela manhã
me vi diante do quadro da mulher com olhos cruéis de Giorgione, que afirmavam ter sido retratada à
semelhança de Lucrécia Bórgia. Fiquei algum tempo parado em frente àquele quadro, fascinado pela terrível
realidade do rosto astuto e implacável, até uma sensação estranha e envenenadora me tomar, como se
estivesse inalando algum odor fatal por um tempo e tomando ciência de seus efeitos apenas naquele momento.
Talvez não tivesse saído do lugar se o resto da companhia não retornasse àquela sala anunciando uma ida à
Galeria Belvedere para resolver uma aposta surgida entre meu irmão e a sra. Filmore a respeito de um retrato.
Segui-os com os pensamentos nas nuvens e mal estava prestando atenção no que acontecia até que todos
entrassem na galeria, deixando-me no andar de baixo; pois eu me recusava a estar ao alcance de outro quadro
naquele dia. Caminhei até o Belvedere, uma vez que fora acordado um passeio nos jardins após a aposta ter
sido resolvida. Não fazia muito tempo que estava sentado, vagamente consciente dos jardins bem cuidados,
com sua cidade e montanhas verdes ao longe, quando, desejando evitar a proximidade dos sentinelas, levantei
e caminhei pelos largos degraus da escada de pedra, com a intenção de sentar-me mais afastado dos jardins.
Tão logo cheguei ao caminho forrado de pedriscos senti um braço se enroscar ao meu, com uma mão leve me
pressionando o punho. Naquele instante pude sentir uma paralisia inebriante passar por mim, como se
continuação ou clímax da sensação que eu ainda experimentava da contemplação do retrato de Lucrécia
Bórgia. Os jardins, o céu do verão, a consciência do braço de Bertha apoiado no meu, tudo isso desapareceu e,
de repente, eu parecia estar imerso em escuridão, da qual aos poucos surgia uma chama lúgubre, e logo
parecia que eu sentava na cadeira de couro da biblioteca de meu pai. Eu conhecia aquela lareira — os
cachorros ao lado da lenha —, a chaminé de mármore negro adornada com o medalhão de mármore branco da
moribunda Cleópatra ao centro. Um sofrimento intenso e inevitável me oprimia a alma; então, a luz se
intensificou, pois Bertha entrava com uma vela nas mãos — Bertha, minha esposa — e seus olhos cruéis, com
joias verdes e verdes folhas adornando um vestido branco de baile; cada um dos pensamentos odiosos dela
presentes em mim… “Louco, idiota! Por que não se mata, então?” Foi um momento infernal. Eu enxergava
dentro da alma impiedosa de Bertha — via toda a mundanidade estéril, todo o ódio escorchante — e a sentia
me recobrir como o ar que eu era obrigado a respirar. Ela surgiu com a vela e chegou ao meu lado com um
sorriso amargo de desprezo; então pude ver o grande broche de esmeralda em seu peito: uma serpente
adornada com olhos de diamante. Um arrepio — eu desprezava aquela mulher da alma infértil e dos
pensamentos mesquinhos; mas me sentia impotente diante dela, como se ela sequestrasse meu coração
sangrento, apertando-o até a última gota de sangue vital se esvair. Ela era minha esposa, e nós nos
odiávamos. Gradualmente a lareira, a biblioteca mal iluminada e a luz da vela desapareceram — pareciam ter
derretido dando lugar a um cenário iluminado, sem, contudo, desaparecer a imagem sombria da serpente verde
com olhos de diamantes, que permanecia na retina. De súbito minhas pálpebras pareceram tremer dando vida
à luz do dia que se derramava sobre mim; então pude divisar os jardins e ouvir vozes; estava sentado nos
degraus do Belvedere e meus amigos me rodeavam.
O tumulto mental ao qual fui jogado por tal horrenda visão me deixou enfermo por dias a fio, fazendo com
que prolongássemos a estadia em Viena. Eu me encolhia horrorizado à lembrança daquela cena; sua
recorrência era tamanha, e com tanta minúcia, que a lembrança parecia engastada na memória; não obstante,
tal é a loucura do coração humano sob influência dos desejos imediatos, que sentia uma alegria selvagem e
infernal em pensar que Bertha seria minha; pois a realização da previsão anterior na ocasião do primeiro
encontro com Bertha me deixava pouca esperança de que este último e horrível vislumbre do futuro não
passasse de traquinagem doentia da minha mente, brincadeira sem correlação com realidades externas. Só
existia um fato capaz de lançar dúvida sobre tal convicção sombria — a descoberta de que minha visão de
Praga era falsa — e Praga era a próxima cidade do nosso roteiro.
Enquanto isso, bastava eu estar na companhia de Bertha para tornar a ficar sob sua influência, como antes.
E se eu tivesse enxergado dentro do coração de Bertha, aquela mulher madura — Bertha, minha esposa? Mas
Bertha, a moça, continuava a ser um segredo fascinante: eu tremia com seu toque; sentia a feitiçaria de sua
presença; ansiava pela confirmação daquele amor. O medo do veneno não pode contra a sensação da sede.
Não, eu sentia a mesma inveja do meu irmão que antes — me irritava com suas pequenas maneiras
condescendentes; pois meu orgulho, minha sensibilidade enferma, continuavam lá como sempre estiveram e
tremiam com a mesma inevitabilidade sob cada ofensa assim como meus olhos tremem com um cisco. O futuro,
mesmo despontando na bússola dos sentimentos por uma visão que me fazia arrepiar, não tinha força maior
que a de uma ideia, quando comparado à força da emoção presente — do meu amor por Bertha, do meu
desagrado e do meu ciúme por meu irmão.
É história antiga ver os homens se venderem ao tentador, firmando pacto com sangue, já que o resultado só
se vê em dia distante; e então ver esses mesmos homens buscando avidamente o copo que aplaca a sede da
alma com um impulso não menos selvagem na companhia de uma sombra ainda mais negra. Não existe atalho,
nenhum trilho patente, para a sabedoria: mesmo com séculos de invenções, o caminho da alma deita pelo
ermo espinhento que precisa ser trilhado em solidão, com pés sangrentos, com soluços implorando ajuda, uma
vez que foi trilhado por eles em tempos idos.
Minha mente especulava incessantemente sobre os meios pelos quais eu me tornaria o rival triunfante de
meu irmão, pois eu ainda era deveras tímido, em minha ignorância a respeito dos sentimentos verdadeiros de
Bertha, para me aventurar a dar passo que fosse no sentido de conseguir obter da jovem uma confirmação. Eu
acreditava que ganharia confiança em tal pleito caso minha visão de Praga se provasse verdadeira; não
obstante, que horror imbuído em tal certeza! Por trás da jovem e esguia Bertha, de cujas palavras e olhares eu
era vigilante, de cujo toque nascia o êxtase, assomava permanentemente a Bertha em forma última, a dos
olhos duros, dos lábios enrijecidos — da alma estéril e egoísta desnudada; não mais um segredo fascinante,
mas fato medido, forçando-se perpetuamente naquela visão indesejada. Não conseguem emprestar-me sua
comiseração — vós que leem isto? Serão incapazes de imaginar tal consciência dúbia operando em mim, fluindo
como duas vertentes paralelas cujas águas não se imiscuem, juntando-se em um só matiz? Porém, devem os
senhores saber algo dos pressentimentos emanados de uma previsão em pé de guerra com a paixão; e minhas
visões não eram mais que pressentimentos intensificados pelo horror. Vós conheceis a inutilidade das ideias
diante da força do impulso; e minhas visões, uma vez passadas à memória, eram meras ideias — sombras
pálidas que acenam em vão, enquanto minhas mãos eram apertadas pelos seres vivos e amados.
Nos dias que se seguiram eu costumava pensar, com amargo rancor, que, caso tivesse previsto algo a mais,
ou algo diferente — se, em vez da horrenda visão que envenenava a paixão que não conseguia destruir, ou se
mesmo junto de tal visão eu tivesse algum vislumbre daquele momento em que olhei para o rosto de meu
irmão pela última vez, ou se tivesse existido alguma influência atenuadora sobre meus sentimentos em relação
a ele, o orgulho e o ódio decerto teriam dado lugar à pena, e o registro de meus pecados ocultos teria sido
abreviado. Mas este é um dos pensamentos vãos com os quais nós, homens, elogiamos a nós mesmos.
Tentamos acreditar que o egoísmo em nós seria facilmente dispensado, e que tal egoísmo é o único
estreitamento do conhecimento que encerra nossa generosidade, nossa admiração, nossa piedade humana, e
que nos impede de substituir a indiferença cruel pelas sensações e emoções das amizades. A ternura e a
abnegação parecem fortes quando finda o egoísmo — quando, depois do esforço mesquinho que busca um
triunfo nascido da derrota alheia, brota o triunfo de súbito, e com ele estremecemos, pois tal se sustenta
apenas pela mão gelada da morte.
A chegada a Praga aconteceu durante a noite e isso me alegrou, pois soava como postergação de um
momento terrivelmente decisório estar em uma cidade por horas sem poder enxergá-la. Uma vez que não nos
demoraríamos em Praga, devendo seguir com pressa para Dresden, foi acordado que tomaríamos apenas uma
visão geral do lugar, e que também visitaríamos alguns locais de particular interesse antes de o calor se tornar
opressivo — era chegado agosto e o clima estava quente e seco. Mas acontecia de as damas estarem um tanto
atrasadas na toalete matinal e, para a irritação educadamente reprimida, porém perceptível, de meu pai, não
embarcamos na carruagem até que a manhã havia muito já tinha ido. Logo me ocorreu, com um senso de
alívio, enquanto nos dirigíamos ao quarteirão judeu, onde deveríamos visitar a antiga sinagoga, que
acabaríamos presos nessa parte plana e isolada da cidade, até ficarmos todos cansados e assolados pelo calor
para seguir em frente, o que nos faria retornar sem ver mais do que as ruas pelas quais já havíamos passado.
Isso traria mais um dia de suspense — suspense, a única forma em que um espírito temeroso conhece o alívio
da esperança. Porém, enquanto me encontrava sob os arcos enegrecidos da antiga sinagoga, visível apenas
pela parca luz das sete finas velas do candelabro sagrado, e enquanto nosso cicerone judeu apanhava o Livro
da Lei e começava a ler em uma língua antiga — senti uma impressão arrepiante de que aquela construção
estranha, com suas luzes fugazes, aquele sobrevivente ressecado testemunho de um judaísmo medieval, não
passava de uma das peças de minha previsão. Aqueles santos cristãos escurecidos e empoeirados, com seus
arcos ainda mais altos e velas imensas, necessitavam do escárnio consolador com que pudessem apontar para
uma morte em vida ainda mais encarquilhada que a deles próprios.
Como eu esperava, ao deixar o quarteirão judeu, os mais idosos de nossa companhia desejaram retornar
para o hotel. Porém agora, em vez de me alegrar com o fato, como acontecera anteriormente, eu sentia um
impulso súbito e irrefreável de me dirigir imediatamente à ponte para colocar fim àquele suspense que eu
desejava postergar. Assim declarei, com firmeza incomum, que desceria da carruagem para andar só; os outros
poderiam regressar sem mim. Meu pai, acreditando ser a ocasião apenas uma mostra da minha “tolice poética”
usual, objetou que só me faria mal caminhar sob tal calor; não obstante, ao persistir, ele redarguiu
nervosamente que eu poderia seguir minha vontade absurda, contanto que Schmidt (nosso mensageiro) me
acompanhasse. Concordei e me pus com Schmidt na direção da ponte. Eu mal havia passado a arcada do
grande portal que levava à ponte quando uma tontura me tomou de assalto, deixando-me gelado sob o sol a
pino; mas prossegui mesmo assim; estava em busca de alguma coisa — um detalhe ínfimo do qual me
lembrava com especial intensidade e que era parte da minha visão. E lá estava — a projeção do arco-íris na
calçada, lançada por uma lamparina com a forma de estrela.
II
Antes de o outono chegar ao fim, enquanto as folhas pardas ainda preenchiam as faias do jardim, meu irmão e
Bertha ficaram noivos, e era de conhecimento geral que o casamento aconteceria no começo da primavera
vindoura. A despeito da certeza que eu sentira naquele momento da ponte, em Praga, de que Bertha um dia
seria minha esposa, minha timidez e minha desconfiança inatas continuavam a me entorpecer, e as palavras
com as quais eu, no passado, premeditara uma confissão do meu amor acabaram morrendo, nunca exprimidas.
O mesmo conflito de antes prosseguia em mim — o anseio por obter uma afirmação de amor vinda dos lábios
de Bertha, o temor de uma palavra de desprezo ou de negação recaía sobre mim como ácido corrosivo. O que
era a convicção de uma necessidade distante para mim? Eu tremia sob um olhar presente, tinha fome de
alegria imediata, me encolhia e me arrepiava diante do medo presente. E assim caminhavam os dias: eu
testemunhava o noivado de Bertha e as discussões acerca do casamento como se vivesse em um pesadelo
consciente — sabendo que era um sonho fadado a desaparecer, mas ainda me sentindo sufocado pelo agarrar
de dedos bem firmes.
Quando não estava na presença de Bertha — e eu estava com ela com frequência, pois Bertha continuava a
me tratar com a condescendência jocosa que não despertava ciúme algum em meu irmão — quase sempre
passava o tempo vagueando, caminhando e fazendo passeios tão longos como a duração da luz do dia,
passando depois a me recolher com meus livros não lidos; pois também os livros haviam perdido o poder de
cativar minha atenção. Minha autocrítica se elevara até o nível de intensidade em que as emoções assumem a
forma de um drama que se incita imperativamente na contemplação humana, quando passamos a chorar,
menos pela sensação dos sofrimentos e mais pela ideia de que temos deles. Eu sentia um tipo de angústia
imbuída de pena em relação ao pathos que me cabia: a sina de um ser finamente ajustado para a dor, mas
com quase nenhuma fibra que respondesse ao prazer — alguém a quem a ideia do mal futuro roubava o
presente de sua alegria, e para quem a ideia de uma bonança futura não acalmava a tormenta de um anseio ou
de um temor presentes. Passei pelo estágio do sofrimento do poeta, em que ele sente as deliciosas dores da
expressão e cria imagens com suas chagas.
Eu quase não conhecia exemplos dessa vida sonhadora e caprichosa: conhecia a opinião de meu pai sobre
mim: “Aquele rapaz jamais servirá para algo na vida: ele pode gastar os anos que ainda tem de maneira
insignificante com a renda que lhe cabe: não me preocuparei em construir uma carreira para ele”.
Em certa manhã amena do começo de novembro aconteceu de eu estar sob o pórtico, do lado de fora,
acariciando o velho e preguiçoso Cæsar, um newfoundland quase cego pela idade, o único cão que chegou a
me notar — pois até os cachorros me desprezavam, divertindo-se com as pessoas mais alegres que me
rodeavam —, quando o cavalariço apareceu trazendo o cavalo em que meu irmão montaria para caçar, ao que
logo depois meu irmão apareceu à porta, corado, de peito largo e feliz consigo mesmo, sentindo como sua
natureza era boa por ele não se comportar com insolência para com todos nós do alto de suas enormes
vantagens.
“Latimer, meu rapaz”, ele me disse em tom de cordialidade compassiva. “É de se lamentar que você não dê
uma corrida com os cães de vez em quando! É a melhor coisa do mundo para os espíritos caídos!”
“Espíritos caídos!”, pensei amargamente enquanto ele cavalgava para longe. “Este é o tipo de frase que
naturezas grosseiras, como a sua, usam para descrever uma experiência sobre a qual não conseguem saber
mais do que sabe também seu cavalo. São tipos como o seu sobre os quais recaem as bênçãos deste mundo: a
tolice sempre de prontidão, o egoísmo com saúde, o preconceito com bom humor — eis as chaves para a
felicidade.”
Veio então um pensamento rápido de que meu egoísmo era ainda mais forte que o dele — tratava-se antes
de um egoísmo sofredor, em vez de um egoísmo do qual se desfruta. Mas, então, aquele vislumbre exasperador
da alma autoindulgente de Alfred, da liberdade dele diante de todo medo e de toda dúvida, dos anseios
insaciáveis, das torturas peculiares da sensibilidade, tudo isso que servia para formar a teia da minha vida,
pareceu me absolver de todo e qualquer laço em relação a meu irmão. Aquele homem não precisava de
piedade, não precisava de amor; esses impulsos sutis teriam sido tão pouco sentidos por ele como a delicada
bruma mal é sentida pela pedra que recobre. Não havia rancor guardado para ele: se não desposasse Bertha,
seria por encontrar algo mais agradável para si.
A residência do sr. Filmore não ficava a mais de meia milha além de nossos muros e sempre que eu sabia
que meu irmão tinha ido na direção contrária, lá ia eu em busca de uma chance de encontrar Bertha em casa.
Mais tarde, naquele mesmo dia, caminhei até lá. Por um feliz acidente Bertha estava sozinha e a convidei para
caminhar pelo gramado comigo, pois ela raras vezes tocava com o pé o terreno além dos caminhos
cuidadosamente mantidos forrados de pedriscos. Lembro-me de como ela me pareceu uma linda sílfide com o
sol baixo de novembro resplandecendo nos cabelos loiros, saltitando e me provocando com seus gracejos
frívolos de sempre, aos quais eu ouvia em parte com carinho, em parte de mau humor; isso era tudo que o
interior misterioso de Bertha chegava a me revelar. É provável que, naquele dia, o mau humor predominasse,
uma vez que ainda não me livrara do acesso de ódio invejoso que meu irmão incitara em mim com aquela
despedida condescendente. De repente interrompi e surpreendi Bertha dizendo, quase de forma cruel: “Bertha,
como você consegue amar Alfred?”.
Ela me olhou surpresa por um instante, mas logo seu sorriso alegre reapareceu, acompanhado da resposta
sarcástica: “Por que você presume que eu o amo?”.
“Ora! Sua sabedoria crê ser necessário que eu ame o homem a quem desposarei? Seria a mais desagradável
das coisas. Com ele eu duelarei; dele terei ciúmes; nosso ménage será conduzido do modo mais torto. Um
pouco de desprezo silencioso muito contribui para a elegância da vida.”
“Bertha, não são esses os seus reais sentimentos. Por que você se diverte em tentar me enganar inventando
discursos cínicos?”
“Jamais precisarei me dar o trabalho de inventar para iludir você, meu pequeno Tasso” — (era esse o
apelido jocoso com que ela costumava se dirigir a mim). “O modo mais fácil de enganar um poeta é dizer a
verdade.”
Ela testava a validade daquele epigrama com certa ousadia e, por um instante, a sombra da minha visão —
de Bertha com a alma que já não me era segredo — passou entre mim e aquela jovem radiante, a sílfide
brincalhona cujos sentimentos eram um mistério fascinante. Acredito que deva ter estremecido ou que tenha
sido denunciado por alguma outra reação àquele arrepio momentâneo de horror.
“Tasso!”, disse Bertha ao agarrar meu pulso e conferir meu semblante. “Será que você está começando a
perceber a garota sem coração que sou? Ora, você mesmo não é metade do poeta que imaginei que era; você
é capaz até de acreditar na verdade a meu respeito.”
A sombra passou por entre nós e deixou de ser o objeto mais próximo de mim. A jovem cujos dedos me
agarravam, cujo rosto de um charme élfico olhava para o meu — quem, eu pensava, traía o interesse próprio
por meus sentimentos, aos quais ela nunca se dirigia diretamente —, aquela presença de sussurros cálidos mais
uma vez tomava posse de meus sentidos e minha imaginação, como a melodia de uma sereia temporariamente
subjugada pelo ribombar de ondas ameaçadoras. Foi um momento tão delicioso para mim como o acordar de
uma consciência à juventude depois de um sonho de meia-idade. Eu esquecera tudo além da minha paixão, e
então disse, com olhos aturdidos:
“Bertha, será que você vai me amar quando nos casarmos? Não me importaria se você me amasse só por
algum tempo.”
O olhar de espanto em Bertha, no momento em que ela se apartava da minha mão e começava a se
afastar, me devolveu a compreensão daquela indiscrição estranha e criminosa.
“Perdoe-me”, disse com pressa, tão logo pude falar novamente. “Eu não sabia o que estava dizendo.”
“Ah, eis que o ataque de loucura de Tasso se revela, enfim”, Bertha respondeu calmamente, já que se havia
recuperado antes de mim. “Que ele volte para casa e esfrie o raciocínio. Devo entrar, pois o sol está se pondo.”
Eu a deixei — cheio de indignação comigo mesmo. Eu deixara palavras escapar que, caso ela refletisse a
respeito, talvez incitassem em Bertha a suspeita sobre minha enfermidade mental anormal — uma suspeita
que, acima de tudo, eu temia. Além do mais, sentia a vergonha da aparente vileza que cometera ao expressar
tais palavras diante da esposa prometida do meu irmão. Caminhei devagar na volta para casa, entrando no
jardim por uma porta secreta em vez de usar o portão. Ao me aproximar da casa vi um homem correndo o
máximo que podia do estábulo e cruzando o jardim. Será que havia acontecido algum acidente em casa? Não;
talvez não passasse de um dos afazeres dos negócios de meu pai que exigiam aquela pressa abrupta.
Não obstante, apertei o passo sem qualquer motivo em mente, e logo cheguei à casa. Não vou me demorar
na cena que ali encontrei. Meu irmão estava morto — fora jogado do cavalo e acabou morrendo ali mesmo com
uma concussão no cérebro.
Subi ao aposento onde ele estava com meu pai ao lado, cujo olhar era petrificado de desespero. Eu
desprezara meu pai mais do que ninguém depois de nossa volta para casa, pois a antipatia radical entre nossas
naturezas fazia meu vislumbre do eu interior dele uma constante aflição para mim. Mas agora, depois de subir
até lá, depois de ficar em pé, em silêncio, a seu lado, senti a presença de um novo elemento que nos ligava
como nunca aconteceu antes. Meu pai era um dos homens mais bem-sucedidos na esfera da caça ao dinheiro:
não sofria com sentimentos, não tinha doenças. O maior fardo que se abateu sobre ele fora a morte da primeira
esposa. Mas logo depois ele desposou minha mãe; e lembro que parecia exatamente o mesmo, para a minha
aguçada observação infantil, tanto na semana anterior quanto na posterior à do falecimento. Agora, por fim,
uma tristeza chegava — a tristeza da velhice, que sofre mais com o demolir de seu orgulho e de suas
esperanças, na medida em que orgulho e esperança sejam estreitos e prosaicos. O filho se casaria em breve —
talvez tivesse até concorrido ao condado nas próximas eleições. A existência daquele filho era o melhor motivo
para se alegar quando da aquisição de novas terras todo ano para aumentar a propriedade. É cansativo viver
fazendo a mesma coisa ano após ano, sem saber o porquê de fazer tal coisa. Talvez a tragédia da juventude e
da paixão decepcionadas seja menos lamentável que a tragédia da velhice e da mundanidade decepcionadas.
Quando enxerguei a desolação no coração de meu pai senti um movimento de profunda pena por ele, o que
deu início a uma nova afeição — uma afeição que crescia e se fortalecia a despeito da estranha amargura com
que meu pai me tratou nos primeiros meses após a morte de meu irmão. Se não tivesse sido pelo efeito brando
de minha compaixão para com ele — a primeira compaixão profunda que já tinha sentido — eu acabaria
chocado com a constatação de que meu pai transferira a herança de um filho primogênito para mim, com base
em um senso mortificado de que o destino o forçava a seguir o caminho indesejado de ter de cuidar de mim
como um ser especial. Fora a despeito de si mesmo que meu pai começava a pensar em mim com um cuidado
ansioso. Praticamente não haverá criança negligenciada no mundo a quem a morte abriu uma vaga para
assumir uma posição favorável que não entenda o que estou dizendo.
Aos poucos, no entanto, minha nova deferência aos desejos do meu pai, efeito da paciência nascida da pena
que sentia por ele, ganhou sua afeição, de modo que meu pai começou a se agradar com o esforço de me fazer
tomar o lugar de meu irmão com tanta plenitude quanto permitiria minha frágil personalidade. Eu via que o
prospecto que aos poucos se apresentava, em que me tornaria o marido de Bertha, agradava meu pai, e que
ele até contemplava, no meu caso, o que jamais planejara para meu irmão — que seu filho e nora
estabelecessem um único lar ao lado dele. Meus sentimentos abrandados para com meu pai transformaram
esse período na época mais feliz que eu tivera desde a infância; — estes últimos meses em que dei guarida à
deliciosa ilusão de amar Bertha, de ansiar, de duvidar e de esperar que ela talvez também me amasse. Ela agia
com certa consciência renovada e com algum distanciamento em relação a mim depois da morte de meu irmão;
e eu também estava sob constrição dobrada — aquela advinda da delicadeza em relação à memória de meu
irmão, e a da ansiedade quanto à impressão que minhas palavras abruptas deviam ter deixado na mente de
Bertha. Mas a tela além, que essa reserva mútua ergueu entre nós, só serviu para me colocar ainda mais sob o
poder de Bertha: não importa o quão vazio esteja o ádito, conquanto seja espesso o véu. Tão absoluta é a
necessidade da alma de algo escondido e incerto visando à manutenção da dúvida, da esperança e do esforço,
que são o sopro da vida, que, mesmo que todo o futuro nos fosse desnudado hoje, o interesse da humanidade
inteira recairia nas horas intermediárias; nos afobaríamos com as incertezas de uma só manhã e de um único
ocaso; correríamos ávidos até a Bolsa em busca da última oportunidade de especulação, de sucesso, de
decepção; haveria uma fartura de profetas políticos vaticinando uma crise ou uma anticrise nas últimas vinte e
quatro horas abertas à profecia. Imagino a condição da mente humana se toda e qualquer proposição fosse
autoexplicativa exceto uma, que se tornaria evidente no findar de um dia de verão, mas que, enquanto isso,
pode ser o objeto de questionamento, de hipótese, de debate. A arte e a filosofia, a literatura e as ciências se
tumultuariam como abelhas sobre essa única proposição repleta do mel da probabilidade, e tais artes estariam
ainda mais famintas porque seu deleite findaria com o ocaso. Nossos impulsos, as atividades espirituais, não se
ajustam à ideia da nulidade futura mais do que já fazem as batidas do coração ou a irritabilidade dos
músculos.
Bertha, a jovem esguia e de cabelos claros, cujos pensamentos e emoções presentes me eram um enigma
em meio à fatigante obviedade das demais mentes que me cercavam, era tão cativante para mim como um
único dia desconhecido — como uma única proposição hipotética que permanece problemática até o cair do sol;
e todas as crenças e descrenças apertadas e macetadas, todas as confianças e desconfianças guardadas dentro
de mim irrompem desse canal único e estreito.
E ela me fez acreditar que me amava. Sem jamais abandonar o tom de badinage5 e a superioridade jocosa,
Bertha me intoxicou com a ideia de que eu era necessário a ela, de que ela jamais se sentia à vontade se eu
não estivesse ao seu lado, me submetendo àquela tirania brincalhona. Tão pouco esforço se requer da mulher
para nos estupefazer assim! Uma palavra em parte reprimida, um momento de silêncio inesperado, até mesmo
um simples ataque de petulância de nossa parte servirão como haxixe por um bom tempo. Da rede sutil de
sinais parcamente percebíveis, ela me pôs a tecer a ideia de que, inconscientemente, sempre me amou mais
que a Alfred, mas que, com a sensibilidade ignorante e flutuante de uma jovem, ela sofrera a imposição do
charme que lhe fora revelado na distinção se ser admirada e escolhida por um homem que constituía tão
brilhante figura no mundo como meu irmão. Bertha satirizava a si mesma de maneira bastante graciosa quanto
à vaidade e à ambição que lhe eram características. E de que me importava que eu tivesse a luz de minha
tortuosa provisão no fato de que, agora, era eu quem possuía todas as vantagens, exceto as pessoais, que
haviam pertencido a meu irmão? As ilusões mais doces são aquelas meio conscientes, como os efeitos de cores
que se podem ver em lantejoulas, cacos de vidro e retalhos.
Casamo-nos dezoito meses após a morte de Alfred, em uma manhã clara e gelada de abril, quando tivemos
sol e granizo juntos; e Bertha, em seu vestido branco de seda com folhas de um verde-claro, e os pálidos
matizes de seu cabelo e de seu rosto, parecia como se fosse o espírito da manhã. Meu pai estava mais feliz do
que eu jamais tinha imaginado que tornaria a ser: meu casamento, ele tinha certeza, completaria as
modificações desejáveis em meu caráter, e me tornaria mais suficientemente pragmático e mundano para
assumir meu lugar na sociedade em meio aos homens sãos. Pois meu pai se deliciava com a agudez e o tato de
Bertha, e tinha certeza de que ela seria senhora de mim, me obrigando a fazer o que ela quisesse: eu contava
apenas 21 anos e estava perdido de amor por ela. Pobre pai! Ele ainda manteve tal esperança por certo tempo
depois do primeiro ano de nosso casamento, e essa esperança não chegou a se extinguir por completo mesmo
quando veio a paralisia que o salvou de experimentar a decepção total.
Devo me apressar com o resto de minha história, evitando me debruçar tanto quanto tenho feito até aqui
sobre minha experiência interna. Quando as pessoas se conhecem muito bem, acabam conversando antes do
que lhes preocupa externamente, deixando emoções e sentimentos para serem apreendidos por dedução.
Por algum tempo vivemos em um rodízio de recepções de visitas depois de termos voltado para casa,
quando dávamos esplêndidos jantares festivos, causando sensação na comunidade com o lustre novo
destacando-se em nossa mobília, já que meu pai havia reservado essa demonstração de riqueza crescente para
o período do casamento de seu filho; e dávamos aos conhecidos a oportunidade bastante liberal de verbalizar
como era uma pena o fato de eu representar figura tão parca quanto aos papéis de herdeiro e de noivo. A
fadiga nervosa dessa existência, as insinceridades e platitudes, que eu era forçado a experimentar em dobro —
com o discernimento interno e o externo —, teriam sido enlouquecedoras para mim, se eu não sofresse daquele
tipo de calosidade inebriante surgida das delícias de um primeiro amor. Noiva e noivo, cercados de toda a
aparelhagem advinda da riqueza, correndo pelos dias movidos pelo girar da sociedade, preenchendo os
momentos de solidão com carinhos apressadamente roubados, se preparam para a vida conjunta futura assim
como a noviça se prepara para o claustro — experimentando seu absoluto oposto.
Durante todos esses meses apinhados e agitados o ser interior de Bertha se manteve recoberto e protegido
de mim, e eu só consigo ler os pensamentos dela através da linguagem expressa pelos lábios e pelo desprezo
de Bertha: eu ainda mantinha o interesse humano de ponderar se o que eu fazia e dizia a agradava, ainda
ansiava por ouvir uma palavra de afeto, por oferecer um exagero delicioso de significados para o sorriso dela.
Não obstante, estava consciente quanto a uma crescente mudança no trato em relação a mim; mudança por
vezes forte o suficiente a ponto de ser chamada de frieza arrogante, tão penetrante e gelada como o granizo
que perpassou o sol na manhã de nosso casamento; mas de outras vezes apenas perceptível através do hábil
evitar de um tête-à-tête casual ou em um jantar que havia muito eu esperava. Isso me atingia profundamente
— eu chegara até a sentir um desmoronamento do coração, nascido da sensação de que meu breve dia de
felicidade se aproximava do fim; não obstante, eu permanecia na dependência de Bertha, ávido pelos últimos
raios de um êxtase que logo desapareceria para sempre, desejando e vigiando por um brilho atrasado ainda
mais belo da noite iminente.
Foi com esse estado de espírito que me juntei a Bertha em seus aposentos privados. Ela se sentava com
postura algo inclinada em um canapé, com as costas voltadas para a porta; os cachos grandes e ricos de seus
cabelos loiros recobriam o pescoço pequeno, visível pouco acima do encosto do canapé. Lembro, logo depois de
fechar a porta atrás de mim, de um tremor frio tomar conta de mim e de uma vaga sensação de ser odiado e
de me sentir só — um sentimento vago e poderoso, como um pressentimento. Sei qual era a figura que eu fazia
naquele momento, pois pude ver a mim mesmo nos pensamentos de Bertha quando ela ergueu os olhos cinza e
penetrantes para me olhar: eu era um miserável, alguém que enxergava fantasmas, cercado deles ao meio-dia,
tremendo sob a brisa mesmo com as folhas paradas, sem qualquer apetite pelos objetos comuns do desejo
humano, mas ansiando profundamente pelos raios de luar. Estávamos frente a frente, e também nos
julgávamos. Então o terrível instante de iluminação completa me atingiu, e pude ver que a escuridão não
escondia paisagem alguma de mim, a não ser um prosaico muro vazio: daquela noite em diante, durante os
anos enfermos que se seguiram, eu tudo via através do estreito aposento da alma daquela mulher — eu vi o
artifício mesquinho e a mera negação onde antes me deleitava em acreditar existir uma sensibilidade reservada
e um raciocínio em guerra com os sentimentos latentes — eu vi as leves e flutuantes vaidades da jovem
definindo-se através da picardia sistemática, do egoísmo maquinador, daquela mulher — eu vi a repulsão e a
antipatia se endurecerem, dando lugar ao ódio cruel, oferecendo a dor em nome apenas de machucar a si
mesmo.
Pois Bertha também, a seu próprio modo, sentia o amargor da desilusão. Ela acreditara que minha selvagem
paixão de poeta por ela me tornaria seu escravo; e que, sendo seu escravo, eu executaria os caprichos dela em
todas as coisas. Com a rasadura essencial a uma natureza negativa e sem imaginação, Bertha não conseguia
conceber o fato de que a sensibilidade era qualquer coisa que não fraqueza. Ela acreditava que minhas
fraquezas me poriam sob seu domínio, mas acabou por descobri-las como forças indomáveis. Nossas posições
foram trocadas. Antes do casamento ela havia absolutamente conquistado minha imaginação, pois Bertha era
um segredo para mim; e eu criava o pensamento desconhecido diante do qual tremia como se aquele
pensamento fosse dela. Porém, agora que a alma de Bertha se desnudava à minha frente, agora que me sentia
compelido a compartilhar da privacidade da motivação dela, a acompanhar todos os dispositivos mesquinhos
que antecediam as palavras e os atos daquela mulher, ela se encontrava sem poderes diante de mim, a não ser
o poder de produzir em mim o arrepio gelado da repulsa — impotente, pois eu não mais seria manipulado por
alguma alavanca ao alcance de sua mão. Eu estava morto no que tangia a ambições mundanas, a vaidades
sociais, a todos os incentivos ao alcance da estreita imaginação dela, e vivia sob influências deveras invisíveis
para Bertha.
Era realmente lamentável que ela tivesse um marido assim, pensava todo mundo. Uma mulher graciosa e
brilhante como Bertha, que sorria logo ao acordar, que era destaque nos salões de dança e dona de um
pensamento leve e rápido, de tal mulher se aceita que anule a falta de simpatia de um marido que vivia
doente, abstrato e que era, como alguns suspeitavam, maluco. Mesmo os serviçais de nossa casa pendiam para
o lado dela na balança da estima e da piedade. Pois não havia discussão audível entre nós; nossa alienação,
nossa repulsa mútua residiam no silêncio do coração de um e outro; e se a patroa se ausentava muito e se
parecia desagradar a ela a companhia do patrão, não era mais do que natural, coitadinha? O patrão era
estranho. Eu era justo e gentil para com os que dependiam de mim, mas causava neles uma pena diminutiva,
quase desprezadora; pois o tipo de tais homens e mulheres pouco se deixa determinar, no que diz respeito à
avaliação alheia, por considerações generalistas, até de experiências generalistas, de caráter. Esse tipo julga
pessoas como se julgam moedas, dando valor àqueles que garantem a conversão com melhores taxas.
Depois de algum tempo eu interferia tão pouco nos hábitos de Bertha que pareceu até incrível a intensidade
com que o ódio dela em relação a mim pôde crescer em volume e disposição. Mas ela começou a suspeitar,
devido a algumas traições involuntárias de minha parte, que existia algum poder de penetração anormal em
meu ser — que por vezes, ao menos, eu estranhamente tinha consciência dos pensamentos e das intenções
dela, de modo que Bertha passou a ser perseguida por um medo de mim, medo que se alternava vez por outra
com uma atitude desafiadora. Ela meditava continuamente sobre como poderia se livrar do íncubo em sua vida
— como poderia se libertar do odioso vínculo com um ser que ela desprezara como imbecil de imediato, e que
agora temia como a um inquisidor. Durante muito tempo ela viveu com esperança de que minha podridão
evidente me levaria à realização do suicídio; mas o suicídio não estava em minha natureza. Eu vivia tão
completamente absorto pelo sentimento de estar sob controle de forças desconhecidas que não conseguia crer
no meu poder de autolibertação. Em relação a meu destino eu me tornara totalmente passivo; pois meu único
desejo ardente se havia queimado e o impulso já não predominava sobre o raciocínio. Por tal motivo jamais
pensei em dar qualquer passo na direção da separação completa, o que faria nossa alienação evidente aos
olhos do mundo. Por que eu deveria buscar outro caminho, se estava apenas sofrendo as consequências de um
ato que resultava de meu mais ardente desejo? Pois esta seria a lógica empregada por alguém movido pela
gratidão, e eu não tinha em mim tal desejo. Em vez disso, eu e Bertha vivíamos cada vez mais distantes um do
outro. Para os ricos é fácil viver casado e separado ao mesmo tempo.
Esse curso de nossa vida que indiquei em umas poucas frases preencheu o espaço de anos. Tanto
sofrimento — o crescimento moroso e horrível do ódio e do pecado pode ser comprimido em uma sentença! E
os homens julgam a vida dos outros por esse breve resumo. Epitomam a experiência de seus companheiros
mortais e promulgam o julgamento com impecável sintaxe, criando um sentimento de sabedoria e virtuosidade
— conquistadores das tentações definidas em predicados bem escolhidos. Sete anos de desventuras fluem
loquazmente pelos lábios do homem que jamais parou para contá-los nos momentos de decepção fria, de
confusão do coração e da mente, de luta temível e vã, de remorso e de desespero. Aprendemos palavras
mecanicamente, mas não o significado delas; isso, pois, deve ser pago com o sangue da vida e impresso nas
fibras sutis de nossos nervos.
Mas me apressarei para terminar a história. A brevidade se justifica imediatamente àqueles que de pronto
compreendem, como também àqueles que jamais compreenderão.
Já se passavam alguns anos desde a morte de meu pai e eu me encontrava em frente à parca luz da lareira
em minha biblioteca, em certa noite de janeiro — estava sentado na cadeira de couro que costumava pertencer
a meu pai — quando Bertha apareceu à porta, com uma vela na mão, vindo em minha direção. Eu conhecia o
vestido de festa que ela estava usando — o vestido de gala branco, enfeitado de joias verdes, brilhava sob a luz
da vela de cera que iluminava o medalhão da Cleópatra moribunda na cornija da lareira. Por que ela vinha até
mim antes de sair de casa? Eu não a via na biblioteca, que era habitualmente meu local, havia meses. Por que
ela se apresentava diante de mim com uma vela na mão, com os olhos cruéis cheios de desprezo fixados em
mim, e com a serpente resplandecente, como um demônio familiar, pendendo no seio? Por um instante pen sei
que essa materialização da visão que tive em Viena sinalizava uma crise temível em meu destino, mas eu nada
via na mente de Bertha, diante de mim, além do escárnio causado pelo olhar de pungente sofrimento com o
qual eu me sentava em frente a ela… “Tolo, idiota, por que não se mata, então?” — era esse o pensamento
dela. Após um longo tempo seus pensamentos migraram para a tarefa que tinha em mãos, então ela falou em
voz alta. A natureza aparentemente indiferente da tarefa parecia criar um ridículo anticlímax quanto à minha
previsão e minha agitação.
“Eu preciso contratar uma nova serviçal. Fletcher vai se casar e ela rogou que eu lhe pedisse para deixar o
marido assumir a casa e a fazenda em Molton. Eu desejo que ele a ocupe. É preciso que você dê sua palavra
agora, pois Fletcher parte amanhã pela manhã — que seja rápido, pois tenho pressa.”
“Muito bem; você pode prometer isso a ela”, respondi, indiferente, e Bertha deixou a biblioteca.
Eu sempre me encolhia ao divisar uma pessoa desconhecida, tanto mais quando se tratava de pessoa cuja
vida mental tinha maior propensão a cansar minhas relutantes previsões com trivialidades mundanas e
ignorantes. Mas encolhi ainda mais com a visão dessa nova serviçal, pois seu advento já me havia sido
anunciado em um momento ao qual não conseguia deixar de relacionar com uma fatalidade: eu tinha um leve
temor de que a veria envolvida com o pesado drama da minha vida — de que alguma visão nova e doentia
revelaria ser tal moça um gênio do mal. Quando, por fim, não mais consegui evitar conhecer a jovem, esse leve
temor se transmudou em absoluto desprezo. Ela era uma mulher alta, magra e de olhos escuros, a tal srta.
Archer, com um rosto belo o suficiente para dar à s ua natureza rústica e dura um acabamento odioso de
frivolidade corajosa e confiante. Isso bastava para me fazer evitá-la, bem distante do sentimento de desprezo
com que ela me contemplava. Eu mal a via; mas percebi que logo se tornou a favorita de sua senhora e,
decorridos oito ou nove meses, comecei a notar que surgira na mente de Bertha um sentimento misturado de
medo e de dependência em relação à jovem, e que tal sentimento estava associado a imagens mal definidas de
cenas à luz de vela em seu vestiário e ao ato de trancar alguma coisa no gabinete de Bertha. As conferências
com minha esposa se tornaram tão breves e tão peculiarmente solitárias que não tive oportunidade de
perceber tais imagens armazenadas na mente dela com maior nitidez. A lembrança do passado foi se tornando
cada vez mais compactada na rapidez dos pensamentos, a ponto de tais pensamentos em quase nada
refletirem distintamente a realidade externa, como acontece com o alfabeto oriental em relação aos objetos
que ele sugere.
Além do mais, no último ano, ou talvez mais, progredia uma modificação em minha enfermidade mental que
se tornava cada vez mais marcante. Os vislumbres dentro da mente daqueles que me cercavam se repetiam
com fragilidade e aleatoriedade crescentes, e as ideias que povoavam minha dupla consciência se tornaram
cada vez menos dependentes de um contato pessoal. Tudo que me era pessoal parecia sofrer de uma morte
gradual, de modo que eu estava perdendo o órgão pelo qual as agitações e intenções alheias me afetavam.
Junto ao alívio das visões cansativas, estava em desenvolvimento o que concluí — conforme vim a confirmar
como certo — ser uma provisão de cenas externas. Era como se a relação entre mim e meus pares morresse
mais e mais, enquanto minha relação com o que consideramos inanimado se fortalecia com vida nova. Quanto
mais apartado eu vivia da sociedade, e na mesma medida em que minha infelicidade se transformava de
arroubos violentos de paixão agonizante em tédio causado pelo hábito da dor, tanto mais frequentes e vívidas
se tornavam as visões como aquela que me ocorrera sobre Praga — de cidades estranhas, de planícies
arenosas, de ruínas gigantes, de céus da meia-noite repletos de brilhantes constelações estranhas, de
passagens em meio a montanhas, de clareiras gramadas variegadas com o sol da tarde que permeia as
árvores: eu me via em meio a tais cenários, e em cada um deles uma presença parecia pesar sobre mim sob
tais formas imponentes — a presença de algo desconhecido e inclemente. Ora, o sofrimento contínuo aniquilara
a fé religiosa em mim: ao absolutamente miserável — aquele que não ama nem é amado — não há religião
possível, nenhum louvor exceto ao destinado aos demônios. E para além de todas essas visões, de forma
continuamente recorrente, estava ainda a visão da minha morte — as dores, o sufocamento, o último esforço,
quando a vida seria agarrada em vão.
Era esse o estado das coisas ao fim do sétimo ano. Eu me tornara inteiramente livre das visões, da cognição
anormal das consciências que não a minha, e em vez de invadir involuntariamente a seara das mentes alheias
eu vivia continuamente em meu próprio futuro solitário. Bertha tinha consciência de que eu havia mudado em
demasia. Para minha surpresa, ela parecia estar buscando oportunidades de permanecer em minha companhia
e tinha cultivado um tipo de conversa distante, porém familiar, que é costumeira entre marido e mulher que
vivem em alienação educada e irrevogável. Eu aceitava esse fato com lânguida submissão e sem sentir
interesse suficiente nos motivos que a levavam a apreciar uma observação assim aguda; não obstante, não
podia deixar de perceber algo de triunfante e de excitante no modo como Bertha vivia e na expressão de seu
rosto — algo sutil por demais para ser expresso em tons ou palavras, mas que davam a ideia de que ela vivia
em um estado de expectativa ou de suspense esperançoso. O sentimento que mais me dominava era a
satisfação por ver o interior de Bertha mais uma vez apartado de mim; e eu quase me deliciava
momentaneamente na melancolia ausente com que eu respondia aos propósitos torcidos dela, traindo a
absoluta ignorância em relação ao que quer que ela estivesse falando. Bem me lembro do olhar e do sorriso
com que ela disse, certo dia, depois de um deslize desse tipo de minha parte: “Eu costumava crer que você era
clarividente, e que tal era o motivo de sua amargura contra outros clarividentes, como um anseio de proteger
seu monopólio; mas hoje vejo que você se tornou mais tedioso que o resto do mundo”.
Eu nada disse em resposta. Ocorreu-me que o recente fechamento dela talvez tivesse sido desencadeado
pelo desejo de testar meu poder de detectar seus segredos; mas imediatamente deixei tal pensamento se
esvair: os motivos e os atos de Bertha não me interessavam, e fossem lá quaisquer interesses que ela pudesse
estar buscando eu não desejava contrariá-la. Em minha alma ainda abundava a pena por tudo que vive, e
Bertha vivia — cercada de possibilidades infelizes.
Foi bem nesse período que ocorreu um evento que me tirou da inércia e que ressuscitou um interesse no
tempo corrente que eu há muito considerava impossível. Trata-se da visita de Charles Meunier, que me havia
escrito anunciando uma vinda à Inglaterra buscando relaxar do trabalho extenuante e que gostaria de me ver.
Meunier agora desfrutava de boa reputação na Europa; mas a missiva por ele enviada expressava lembranças
exatas de um período bem anterior, tipo de antiga simpatia, inseparável da nobreza de caráter: eu também
sentia que a presença dele seria uma ressurreição transiente de uma existência precedente e feliz.
Ele veio e, tanto quanto pude, renovei nosso antigo prazer de realizar excursões tête-à-tête, mas, em vez de
montanhas e geleiras e o amplo lago azul, tínhamos de nos contentar com simples morros e lagoas e
plantações artificiais. Os anos mudaram a nós dois, mas como eram distintos os resultados! Meunier agora fazia
brilhante figura na sociedade, era alguém a quem mulheres elegantes fingiam ouvir e alguém cuja companhia
era alardeada pela nobreza ávida por conhecimento. Ele reprimiu com a mais exemplar delicadeza qualquer
traição que pudesse demonstrar com o choque, que tenho certeza de ele ter sentido em nosso encontro, assim
como também reprimia o desejo de se aprofundar no conhecimento de minhas condições e circunstâncias,
buscando, através da plena execução de suas encantadoras habilidades sociais, deixar nosso encontro tão
agradável quanto possível. Bertha muito se surpreendeu com os fascínios inesperados de um visitante que ela
esperava ser apresentável apenas por conta de sua reputação, o que a fez exibir todas as suas realizações e
picardias. Bertha teve sucesso, ao que parece, em atrair a admiração dele, pois os modos de Meunier para com
ela eram atenciosos e elogiosos. O efeito da presença dele em mim era tão benigno, sobretudo nos episódios
de renovação de nossas escapadas tête-à-tête, quando ele derramava diante de mim maravilhosas narrativas
de sua experiência profissional, que em mais de uma ocasião, quando a fala dele caía nas relações psicológicas
das enfermidades, me passou pela cabeça que, caso sua estadia fosse suficiente, eu poderia contar para aquele
homem os segredos que me cabiam. Será que não haveria remédio para mim, também, na ciência dele? Será
que não haveria, ao menos, alguma compreensão e simpatia para comigo naquela mente ampla e suscetível?
Mas tal pensamento tremulava frágil de vez em quando, acabando por morrer antes que pudesse se
transformar em desejo. O horror que eu sentia em novamente invadir a privacidade de uma alma alheia me
fazia, por instinto irracional, atrair a mortalha da reclusão para ainda mais perto de mim, assim como
realizamos certos gestos automáticos que parecem necessitar da continuidade de outro gesto.
Quando a visita de Meunier se aproximava de uma conclusão, aconteceu um incidente que gerou certa
agitação em nossa casa, muito em parte por conta do efeito surpreendentemente intenso que tal evento teve
sobre Bertha — em Bertha, dona de si, que muito parecia inacessível às agitações femininas, as quais ela
mesma odiava não sem um entendimento contido e higiênico. Tal incidente refere-se à enfermidade súbita e
severa da criada de Bertha, a srta. Archer. Até o presente momento resguardei a menção a uma circunstância
que se impôs à minha percepção pouco antes da chegada de Meunier, a saber, que houve alguma disputa entre
Bertha e a criada, aparentemente durante uma visita a parentes distantes, em que a serviçal acompanhou a
patroa. Lembro-me de ter ouvido Archer falando com tom de amarga insolência, o que eu teria considerado
razão adequada para uma dispensa imediata. Mas não houve dispensa alguma; ao contrário, Bertha parecia
suportar em silêncio qualquer inconveniência pessoal advinda dos rompantes do gênio da criada. Fiquei ainda
mais surpreso ao observar que a doença da criada gerou intenso sentimento de solidariedade em Bertha; tanto
que Bertha se postou próxima ao leito da serviçal dia e noite, sem permitir que lhe tomassem o posto de
enfermeira-chefe. Acontecia de o médico da família estar viajando de férias, um acidente que tornou a presença
de Meunier em casa duplamente bem-vinda, e ele, ao que parece, assumiu o caso com um interesse que
parecia muito mais forte que mero sentimento profissional, a ponto de um dia, quando Meunier mergulhava em
um longo silêncio depois de conferir a paciente, eu perguntar:
“Não”, ele respondeu. “Trata-se de um ataque de peritonite, que será fatal, mas que não difere fisicamente
de muitos outros casos que já me chamaram a atenção. Mas vou lhe dizer o que tenho em mente. Desejo fazer
uma experiência com essa mulher, caso me dê a permissão. Não haverá dano a ela — não sentirá dor —, pois
não realizarei a experiência até ser extinta a vida para os propósitos dos sentidos. Desejo experimentar os
efeitos da transfusão de sangue para as artérias depois de o coração ter deixado de bater por alguns minutos.
Eu já realizei a mesma experiência diversas vezes com animais mortos em decorrência da mesma doença,
obtendo resultados impressionantes, o que me faz desejar testar com um paciente humano. Tenho todos os
pequenos tubos necessários, em uma maleta que trago comigo, e o resto do aparato pode ser obtido em pouco
tempo. Pretendo usar meu próprio sangue — irei retirá-lo do meu próprio braço. Essa mulher não passará desta
noite, estou convencido, e preciso que você me prometa sua assistência na realização dessa experiência. Não
conseguirei realizá-la sem ajuda, mas também não acho benéfico convocar ajuda médica dentre os doutores
provincianos. Talvez uma tola opinião discordante gere uma versão que se espalhe por aí.”
“Você consultou minha mulher a esse respeito?”, perguntei. “Pois ela parece ter especial interesse nessa
mulher: é sua serviçal favorita.”
“A bem da verdade”, Meunier devolveu, “não desejo que ela tome conhecimento da experiência. Sempre há
dificuldades insuperáveis quando lidamos com mulheres em casos assim, e os efeitos sobre o suposto corpo
falecido podem ser estarrecedores. Eu e você nos sentaremos juntos e ficaremos prontos. Quando certos
sintomas aparecerem chamarei você para dentro e, no momento certo, temos de retirar todos os demais do
aposento.”
Não preciso me estender acerca do resto da conversa sobre aquele assunto. Meunier entrou bem em
detalhes e conseguiu vencer a resistência que eu criava a tais detalhes, causando em mim um misto de espanto
e curiosidade quanto aos possíveis resultados do experimento.
Deixamos tudo preparado e Meunier me instruiu a assumir meu papel de assistente. Ele não contara a
Bertha a respeito da convicção absoluta de que Archer não passaria daquela noite e ainda conseguiu persuadi-
la a deixar a paciente, dando a si mesma uma noite de descanso. Mas Bertha era obstinada, ela suspeitava de
que a morte estivesse ao alcance, e presumiu que o médico desejava apenas que ela poupasse os nervos.
Assim, Bertha recusava-se a deixar o quarto da enferma. Meunier e eu nos sentávamos na biblioteca, com ele
fazendo visitas frequentes ao aposento e retornando com informações de que o caso seguia precisamente o
curso que esperava. Em algum momento, ele perguntou: “Você consegue imaginar algum motivo para a criada
ser tão malcomportada para com sua patroa, que é tão devotada a ela?”.
“Creio ter havido alguma desavença entre as duas pouco antes de a doença aparecer. Por que pergunta?”
“Porque tenho observado, pelas últimas cinco ou seis horas — desde quando, imagino, ela perdeu toda a
esperança de se recuperar — o que parece ser uma estranha tentativa de dizer algo que a dor e a falta de força
a impedem de pronunciar; e há um olhar de maléfico significado no semblante da jovem, que continuamente
lança na direção da patroa. Nessa doença, a mente quase sempre permanece singularmente lúcida até o fim.”
“Não me surpreendo com uma indicação de sentimento maligno nela”, respondi. “Trata-se de uma mulher
que sempre me inspirou desconfiança e desgosto, mas, de algum modo, ela conseguiu se insinuar sobre o favor
de sua patroa.” Meunier silenciou após a resposta, olhando então para o fogo com ar absorto, até que tornou a
subir as escadas. Ele demorou mais do que de costume e, ao regressar, disse em voz baixa: “Venha comigo”.
Eu o segui até o aposento em que pairava a morte. A cobertura escura e pendente, acima do leito, servia de
pano de fundo que muito aliviava a palidez do rosto de Bertha. Ela se levantou e veio em minha direção tão
logo entrei, depois olhou para Meunier com expressão de raiva inquisidora; mas ele ergueu a mão como se
impusesse o silêncio, ao mesmo tempo em que deitava os olhos na mulher moribunda e lhe tomava o pulso. O
rosto da jovem estava retorcido e assustava, uma perspiração fria lhe cobria a testa e as pálpebras baixavam a
ponto de cobrir os grandes olhos negros. Depois de um ou dois minutos, Meunier contornou o leito, indo para
onde estava Bertha, e com o ar de nobre polidez que lhe era característico, rogou a ela que deixasse a paciente
sob nossos cuidados — tudo seria feito pela criada — uma vez que já não se encontrava consciente da presença
aficionada da patroa. Bertha hesitava, aparentemente quase propensa a crer na afirmação e a obedecer à
instrução. Ela se virou e olhou mais uma vez para o assustador rosto da moribunda, como se buscasse ler a
confirmação do médico, quando, por um instante, as pálpebras baixadas tornaram a se erguer, e parecia que os
olhos miravam Bertha, porém vazios. Um arrepio tomou conta de Bertha e ela retornou para o posto assumido
ao lado do travesseiro, tacitamente indicando que não deixaria o quarto.
As pálpebras tornaram a cerrar. Então olhei para Bertha enquanto ela contemplava o rosto da moribunda.
Bertha vestia um peignoir adornado e trazia os cabelos loiros cobertos com um chapéu de amarrar: ela estava,
como sempre, uma mulher elegante, pronta para constar de um retrato da vida aristocrática moderna: mas eu
me perguntava de que modo aquele rosto poderia ter me parecido o de uma mulher nascida de outra mulher,
com memórias da infância, capaz de sentir dor, com necessidades de ser afagada? As feições dela naquele
momento pareciam tão sobrenaturalmente afiadas, os olhos tão ríspidos e ávidos — ela lembrava um imortal
cruel que se refestela espiritualmente nas agonias de uma corrida mortal. Por entre tais feições ásperas surgiu
um clarão quando soprava a última hora, e todos nós sentimos que o véu escuro havia completamente caído.
Que segredo haveria entre Bertha e aquela mulher? Tirei os olhos de Bertha por um medo horrível de ter de
volta os vislumbres, com medo de ser obrigado a enxergar aquilo que fermentava no coração entre duas
mulheres não amadas. Senti que Bertha aguardava o momento daquela morte como se esperasse o
sepultamento de um segredo: eu agradeci ao Céu por tal segredo permanecer oculto para mim.
Meunier disse em voz baixa: “Ela se foi”. Ele ofereceu o braço a Bertha e ela aceitou ser conduzida para fora
do quarto.
Suponho que tenha sido por ordem dela que outras duas ajudantes entraram no quarto, dispensando a
ajudante que já estava lá. Quando elas entraram Meunier já havia aberto a artéria naquele pescoço longo e
fino que jazia rígido no travesseiro e eu as dispensei, ordenando que ficassem a certa distância até chamarmos:
o doutor, eu disse, precisava realizar uma operação — ele não tinha certeza quanto à morte. Nos vinte minutos
que se seguiram me esqueci de tudo que não fosse Meunier e o experimento que tanto o absorvia, a ponto de
achar que os sentidos dele estavam fechados para todo som ou imagem que não tivesse ligação com o ato. No
começo, foi meu dever manter a respiração artificial do corpo depois de iniciada a transfusão, mas agora
Meunier me aliviara e eu assistia ao espantoso e vagaroso regresso da vida; o peito tornou a arfar, a respiração
se tornava mais profunda, as pálpebras tremiam e a alma parecia retornar escondida em tais sinais. A
respiração artificial fora interrompida: não obstante, continuava a respiração, e via-se um movimento dos
lábios.
Foi então que ouvi a maçaneta da porta girar; creio ter Bertha ouvido da moça que fora dispensada:
provavelmente um receio vago lhe perpassara a mente, dado que Bertha entrou com olhar alarmado. Ela se
postou ao pé da cama e soltou um lamento sufocado.
Os olhos da jovem morta estavam arregalados e se encontravam com os de Bertha demonstrando completo
reconhecimento — o reconhecimento do ódio. Com um esforço súbito e intenso, a mão que Bertha pensara para
sempre paralisada apontava na direção dela, e o rosto fatigado se mexia. A voz fraca e ávida disse —
“Você pretende envenenar seu marido… o veneno está no armário preto… eu o consegui para você… você
riu de mim, e contou mentiras a meu respeito pelas minhas costas, para me fazer parecer repugnante… porque
tinha ciúmes… está arrependida… agora?”
Os lábios continuavam a murmurar, mas já não se distinguiam os sons. Logo não havia som algum —
apenas um sutil movimento: a chama se abrandara, e se extinguia com rapidez. As cordas do coração daquela
mulher infeliz se voltavam na direção do ódio e da vingança; o espírito da vida havia tocado tais cordas por um
instante, mas agora tornara a partir, para sempre. Grande Deus! É isso que significa viver de novo… acordar
com uma seca implacável, com maldições nunca verbalizadas brotando dos lábios, com os músculos prontos
para completar pecados parcialmente cometidos?
Bertha estava pálida ao pé da cama, tremendo e inútil, acionando dispositivos de desespero, como um
animal astuto cujos esconderijos estão rodeados de chamas avançando rapidamente em sua direção. Até
Meunier parecia paralisado; a vida, naquele instante, deixou de ser uma questão científica para ele. Quanto a
mim, essa cena parecia ter a mesma textura do resto da minha existência: o terror me era familiar, e essa nova
revelação não era mais que uma velha dor recuperada por novas circunstâncias.
Desde então, Bertha e eu temos vivido afastados — ela em uma propriedade sua, senhora de metade da
nossa riqueza, e eu perambulando por países estrangeiros, até que decidi regressar a esse ninho em
Devonshire para morrer. Bertha vive cercada de pena e de admiração; pois o que é que eu teria contra aquela
mulher encantadora, em cuja companhia todos além de mim teriam sido felizes? Não havia testemunhas da
cena naquele leito de morte além de Meunier, e enquanto Meunier viver, seus lábios estarão selados por uma
promessa feita a mim.
Vez por outra, cansado de perambular, eu descansava em algum lugar favorito e meu coração saía a buscar
homens, mulheres e crianças cujos rostos começavam a parecer familiares: mas eu tornava a fugir,
aterrorizado, com o ressurgimento dos antigos vislumbres — fugindo para viver continuamente com a Presença
Desconhecida revelada, porém escondida pela cortina volúvel da terra e do céu. Até que, por fim, a doença se
apoderou de mim e me forçou a repousar aqui — me forçou a viver na dependência de meus servos. E então a
maldição dos vislumbres — da minha consciência dupla, retornou, sem jamais me deixar novamente. Conheço
todos os pensamentos mesquinhos deles, suas opiniões inúteis, a piedade um tanto cansada que eles sentem.
Hoje é 20 de setembro de 1850. Conheço todos os personagens que acabei de descrever, como se eles
fossem uma inscrição há muito familiar. Já os vi inúmeras vezes nestas páginas sobre minha mesa, sempre que
a cena de minha morte problemática se desvela diante de mim…
TÍTULOS DA COLEÇÃO
A ARTE DA NOVELA
1.
“A colérica indignação não mais pode lacerar-lhe o coração”, epitáfio de Jonathan Swift, escritor irlandês (1667-1745). (N.T.)
2.
Traduções de clássicos gregos: Ésquilo, por Robert Potter (1721-1804) e Horácio, por Philip Francis (1708-1773), ambos notáveis tradutores
contemporâneos da autora. (N.T.)
3.
5.