1. INTRODUÇÃO AO PROBLEMA
1
B 9/10.
As nossas explicações ensinam-nos, pois, a realidade do espaço (isto é, a sua validade
objetiva) em relação a tudo o que nos possa ser apresentado exteriormente como objeto, mas
ao mesmo tempo a idealidade do espaço em relação às coisas, quando consideradas em si
mesmas pela razão, isto é, quando se não atenda à constituição da nossa sensibilidade (A 27-
28/B 44).
(...) [o tempo possui] apenas validade objetiva em relação aos fenômenos, porque estes já
são coisas que admitimos como objetos dos nossos sentidos; mas perde essa realidade
objetiva se abstrairmos da sensibilidade da nossa intuição, por conseguinte do modo de
representação que nos é peculiar e falarmos de coisas em geral (A 35/ B 51).
Quisemos, pois, dizer, que toda a nossa intuição nada mais é do que a representação do
fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como as intuímos, nem as
suas relações são em si mesmas constituídas como nos aparecem; e que, se fizermos
abstração do nosso sujeito ou mesmo apenas da constituição subjetiva dos sentidos em geral,
toda a maneira de ser, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo e ainda o espaço e
o tempo desapareceriam; pois, como fenômenos, não podem existir em si, mas unicamente
em nós. É-nos completamente desconhecida a natureza dos objetos em si mesmos e
independentemente de toda esta receptividade da nossa sensibilidade (A 42/B 59).
Todas essas diferentes passagens convergem para a relação da Estética com a Analítica e
com a dedução transcendental em particular: espaço e tempo são ideais apenas relativamebnte às
coisas quando “consideradas em si mesmas pela razão” ou quando “falamos das coisas em geral”
isto é, quando as pensamos por meio das categorias (conceitos das coisas em geral). Como entender
isso? A restrição: “espaço e tempo são predicados das coisas apenas na medida em que as
intuímos” tem como contrapartida a afirmação: não são predicados de toda e qualquer coisa (das
coisas em gerais), com abstração das condições sensíveis específicas em que são intuídas. Isso, por
sua vez, equivale a dizer: não são predicados das coisas quando as pensamos tais como são em si
mesmas por conceitos gerais, que nada mais são do que as categorias. Desse mesmo movimento,
que afirma a idealidade das formas sensíveis perante a pensabilidade ou inteligibilidade das coisas
em si mesmas, decorre a incognoscibilidade delas. Se é tese geral da Crítica de que é necessário
alguma intuição possível para conhecer algo; mais do que isso, se é resultado da dedução
transcendental de que conceitos puros só dão a conhecer algo quando referidos à intuição sensível,
então pensar as coisas em si memas, isto é, com abstração das condições sensíveis, é precisamente
afastar uma das condições necessárias para conhecê-las. Claramente, tendo de recorrer à doutrina
79
dos conceitos puros como conceitos gerais das coisas e a um resultado que somente é alcançado
apenas na deducao transcendental, a Estética Transcendental se mostra insuficiente para estabelecer
por si mesma a idealidade do espaço e do tempo e dos objetos da intuição.
Como contraprova, pode-se conjecturar que restaria do idealismo transcendental se a
dedução transcendental admitisse, contrariamente ao que efetivamente faz, que é possível conhecer
o inteligível ou as coisas como são em si mesmas por meros conceitos. Por essa hipótese, haveria a
completa desvalorização do conhecimento fenomênico em favor do conhecimento da essência
última das coisas, à maneira da ontologia leibniziana. Mesmo a possibilidade de que haja modos de
intuir diferentes do modo humano não bastaria para afirmar que não conhecemos as coisas em si
mesmas, apenas como aparecem relativamente a nossa constituição peculiar de intuir; pois ficaria
em aberto a possibilidade de reduzir as diferentes modalidades de intuição, humana e de outros
seres racionais hipotéticos, a uma mesma matriz universal conhecida por conceitos gerais. Desta
forma, os diferentes modos de aparecer das coisas poderiam ser reduzidos, em princípio, a um único
fundamento inteligível, tal como diversos idiomas podem ser, em princípio, reduzidos a uma mesma
linguagem originária (o indo-europeu, por exemplo). Entraria em colapso também a diferença entre
o conhecimento a priori e o a posteriori, uma vez que as categorias, mesmo que fundados em
regras puras do pensar, se limitariam a espelhar ou a exprimir propriedades e relações de coisas que,
subsistentes por si mesmas, seriam absolutamente independentes desses conceitos. Nesse caso,
haveria duas alternativas, não críticas, para explicar a correspondência entre o pensar e o ser. Ou por
um termo exterior a ambos: Deus como fundamento da harmonia essencial entre o pensar e as
coisas– hipótese rejeitada por Kant já na célebre carta a Herz de 1772. Ou então pela identificação
entre ser e representar, à maneira do idealismo de Berkeley, solução rechaçada por Kant com
veemência nos Prolegômenos.
A partir dessa contraprova, torna-se mais palpável não apenas a correlação necessária entre a
Estética e a Analítica para fundar o idealismo transcendental, mas também a correlação entre o
resultado negativo e positivo na própria elaboração do conceito crítico de objetividade. O pensar,
não podendo tomar emprestado das coisas uma unidade que não pode conhecer, vê-se obrigado a
introduzir uma unidade nas próprias coisas, ou melhor, nos fenômenos delas. Assim, o
conhecimento se funda em uma atividade cuja contrapartida é a inconoscibilidade da existência da
coisa dada como fenômeno.
Os epígonos de Kant e os comentadores mais antigos acabaram por privilegiar, em
detrimento da receptividade, o aspecto ativo do conhecimento, tido como a expressão mais legítima
do espírito do idealismo transcendental. Se sujeito e objeto são diferentes lados radicados no mesmo
ato de unificação, não seria incoerente admitir, sem mais, que objetos possam ser dados na intuição?
Não seriam antes produtos da síntese de um diverso que, a tal ponto esgarçado, não poderia sequer
ser denominado objeto? Não se teria, com isso, a vantagem adicional de deixar para trás uma
80
hipótese filosoficamente incômoda, se não supérflua, a hipótese de coisas em si como o fundamento
inteligível do objeto sensível?
Já a literatura mais recente ou parte importante dela tem tomado o caminho inverso,
limitando à Estética a discussão sobre o idealismo transcendental. Assim, pergunta
fundamentalmente se a distinção entre fenômeno e coisa em si é ingrediente indispensável e
legítimo da filosofia kantiana ou, ao contrário, se não passa de uma doutrina metafísica exterior à
filosofia crítica e em conflito com ela, devendo, portanto, ser deixada inteiramente de lado uma vez
que se entra na Crítica como tal. Curiosamente, mesmo quem defende que o idealismo
transcendental é doutrina tão coerente quanto indispensável na filosofia crítica acaba por não
conferir nenhum papel substantivo à distinção entre coisa em si e fenômento assim que entra na
Dedução Transcedental1. Tanto para os detratores como para os defensores do idealismo
transcendental, a discussão gira em torno, ao lado dos apectos mais técnicos da argumentação, da
questão do estatuto do dado empírico perante a atividade do sujeito: se o fenômeno pode ser dado
como objeto independentemente da atividade de síntese ou se esta é condição até mesmo da
apresentação de objetos sensíveis. Tudo se passa, portanto, como se o aspecto da atividade fosse
inteiramente desvinculado da questão do idealismo transcendental, em contraste nítido com a leitura
proposta pelos epígonos de Kant, que assimilavam o espírto do idealismo à atividade demiúrgica do
real.
Contudo, a dedução transcendental, sobretudo a da primeira edição da Crítica, coloca na
ordem do dia a correlação entre os dois aspectos comumente divorciados pelos intérpretes de Kant.
Por um lado, dá ênfase extrema à questão da síntese, por outro levanta a questão da relação da
síntese de representações com o objeto distinto delas. De fato, a Dedução Transcendental (de 1781),
embora possua estrutura argumentativa muito mais complexa do que a da segunda versão e, ao
contrário desta, torne distante a referência à dedução metafísica dos conceitos puros, mostra no
pormenor, mais do que em qualquer outra parte da Crítica, como se desdobra a atividade de síntese;
e ao mostrar como, ensina ao mesmo tempo o que é a síntese e qual o seu alcance. No entanto, essa
discussão está estreitamente vinculada, no interior mesmo da deducao transcendental, à pergunta
pela correspondência das representações unificadas com o objeto distinto delas: “O que se entende
pois, quando se fala de um objeto correspondente ao conhecimento e, por conseqüência,também
distinto deste?” (A 104). Aqui importa menos a resposta do que a própria formulação da pergunta,
pois esta nos obriga, no interior mesmo da doutrina da atividade do sujeito, a pensar o problema da
validade objetiva das categorias como relação com algo distinto das representacoes unificadas, o
objeto transcedental = X. Obriga-nos a pensar, pois, a questão da objetividade de nossos
conhecimentos no quadro de uma idealismo transcendental que firma um pé na Estética e outro na
Analítica.
1
A exemplo de Allison e de Longuenesse.
81
No presente trabalho, examinaremos apenas o problema da síntese e sua relação com o
objeto dado, centrando nossa análise na primeira parte da Dedução de 1781, conhecida como
deducão subjetiva, dedução psicológica ou síntese tripla. Pois é nesta que esse problema aparece
com maior nitidez.
Para provar a validade objetiva das categorias, questão básica da Dedução Transcendental, Kant
mostra, na dedução subjetiva, como os objetos, na medida em que são objetos de experiência, são
constituídos pela atividade do sujeito. Em outras palavras, a dedução subjetiva mostra como as
categorias, modos determinados da atividade da consciência, constroem a representação do objeto a
partir da representação de um diverso que a sensibilidade apresenta. Se o objeto, ou melhor, se a
objetividade ou conhecimento é entendido como “ um todo (ein Ganzes) de representações
comparadas e ligadas” (A 97) e se o ponto de partida para a constituição da objetividade é o diverso
oferecido por uma intuição sensível, vê-se claramente que o conhecimento, como termo final do
processo de objetivação, implica a síntese desse diverso1. A atividade de síntese ou espontaneidade
compreende três momentos. Para constituir a objetividade, a partir do diverso oferecido pela
sinopse dos sentidos, é necessário em primeiro lugar percorrer esse diverso, apreendendo-o como
diverso de uma intuição (síntese de apreensão na intuição); em segundo lugar, é necessário retomar
ou reter o diverso apreendido, a fim de se formar uma representação completa (síntese de
reprodução na imaginação); e, finalmente, é necessário tornar-se consciente da identidade do ato
contínuo de reprodução do diverso apreendido (síntese de recognição no conceito).
Ao distinguir, como fundamento da objetividade, três sínteses, Kant segue, na análise da
representação, uma ordem ascendente: parte da representação singular, que é a intuição sensível,
passa pela imaginação2 e vai até a representação geral e mais elevada, que é o conceito1. Dessa
1
“Se, pois, atribuo ao sentido uma sinopse, por conter a diversidade na sua intuição, a essa sinopse corresponde sempre
uma síntese e a receptividade, só unindo-se à espontaneidade, pode tornar possíveis conhecimentos (A 97).
2
“Imaginação” é a tradução de “ Einbildung” e não de “Einbildungskraft”.Trata-se da representação (Einbildung)
produzida pela faculdade de imaginação (Einbildungskraft) e não da própria faculdade (cf. B. Longuenesse, op. cit,
p.26). Assim, Kant faz uma análise da representação (Anschauung, Einbildung e Begriff) não propriamente da
faculdade de representação: “so há uma síntese: nota-se que os três elementos no qual há uma atividade de síntese são
representações, não faculdades que perfazem três sínteses distintas (Longuenesse, 1998, p. 33).” . Desse modo, tanto
Longuenesse, de forma indireta, como B. Rousset (op. cit, p. 350), de forma direta, identificam a análise kantiana da
dedução subjetiva como análise genética da representação objetiva. De fato, Longunesse diz tratar-se de uma Esse
ponto, como se verá (cf. infra pp. 80-81), é de suma importância na questão do idealismo da dedução subjetiva, pois
Kant analisa o processo de representação objetiva do dado e não o processo - idealista por excelência - de construção
do próprio dado como dado. A posição de Longuenesse é complexa: se admite uma sinopse, parece não conceder-lhe
nenhuma importância.
82
análise, surge nossa primeira questão: nessa ordem ascendente, se a condição suprema da
objetividade é a síntese de recognição no conceito, não se tem então de reconhecer que as outras
duas sínteses inferiores (as de apreensão e de reprodução) não são completas em si mesmas nem
independentes, mas dependem e são produtos da síntese superior, a síntese da recognição? Afinal,
Kant afirma que “ a síntese de apreensão está, portanto, inseparavelmente ligada à síntese de
reprodução” (A 102), que, por sua vez, “seria vã ” sem a síntese de recognição no conceito (A 103).
Não temos então de reconhecer que cada síntese inferior tem como fundamento a síntese
superior, de modo que a síntese da apreensão dependa da síntese de reprodução e esta, finalmente,
da síntese de recognição? Assim pelo menos interpreta de Vleeschauwer, quando afirma que não se
pode ver na dedução subjetiva “une succession de synthèses isolées, independantes l'une de l'autre
et se suffisant individuellement”2. A síntese de apreensão, por exemplo, conforme uma tal linha de
interpretação, “ suppose déjà dans sa structure tout l'étagement des conditions supériores, parce que
de ces conditions dépend sa physionomie particuliére” 3.
Além de distiguir três sínteses, Kant mostra não só que cada uma delas se desdobra em síntese
empírica e síntese pura, mas também que a síntese empírica pressupõe a síntese pura. 4 Depois de,
em cada uma das três sínteses, apresentar a síntese empírica, Kant introduz, por meio de exemplos
matemáticos (construção da linha, figura, número), a síntese pura como fundamento da empírica.
Dessa análise surge a nossa segunda questão: se a sintese pura é fundamento da síntese empírica,
não temos então de reconhecer que a síntese empírica é produto da síntese a priori ? Tal é o que
parece querer dizer Kant, quando afirma, no caso da síntese de reprodução, que “ tem de haver algo
que torne possível essa reprodução dos fenômenos [essa, i. e., reprodução empírica], pelo fato de
que seja fundamento a priori de uma unidade sintética dos fenômenos” (A 101); ou então quando
Kant afirma, no mesmo sentido, que as três sínteses “conduzem-nos às três fontes subjetivas do
conhecimento que tornam possível mesmo o entendimento e, mediante este, toda a experiência
considerada como um produto empírico do entendimento” (A 97-98; grifo meu)5. Não haveria
assim uma idealização da matéria empírica, na medida em que esta é engendrada pela atividade do
sujeito, conforme o modelo de nossas representações matemáticas?
Por um lado a síntese empírica como consequência ou produto da síntese pura e, por outro lado,
a síntese tripla como síntese única (pois na verdade teríamos uma só síntese de carácter conceptual
1
Para a intuição como representação singular e imediata e o conceito como representação geral, cf., p. ex., A 68-69. A
imaginação (Einbildung), como representação intermediária entre a intuição apreendida e o conceito, vai se caracterizar
na síntese de reprodução, em oposição à representação do múltiplo “ como múltiplo” (A 99), como uma representação
inteira (eine ganze Vorstellung; A 102), mas não como um todo (ein Ganzes; A 103), em oposição à representação do
diverso determinada por uma categoria.
2
De Vleesch., op. cit, II, 292.
3
id ibid, p.292.
4
O texto da dedução subjetiva é construído do seguinte modo: apresentação, em cada uma das três sínteses, da síntese
empírica e, a seguir, da síntese pura. Para essa divisão, ver deVleeschauwer, op. cit., II, pp.242 e 248.
5
Do mesmo modo, sobre a afinidade (princípio da possibilidade da associação do diverso), Kant diz que a afinidade
empírica é mera consequência da afinidade trancendental (A 114).
83
que envolve ou produz as outras sínteses inferiores, meras abstrações de um momento único de
objetivação) – desse duplo movimento resulta um idealismo tal, que o objeto empírico, que parecia
no início ser dado independentemente do entendimento1, acabaria por se revelar uma construção da
consciência2; pois o dado empírico seria, segundo essa interpretação, produzido pela atividade
sintética, cuja forma é o conceito puro3.
Essa interpretação, como pretendo mostrar, não só não é necessária, como acaba por colocar de
cabeça para baixo a dedução subjetiva, pois na base da atividade sintética está não o conceito, mas o
dado empírico não-construído, apresentado pela sensibilidade independentemente do entendimento.
Em outras palavras, na dedução subjetiva:
1. o elemento puro não produz integralmente o elemento empírico, mas apenas a forma deste
último;
2. nem cada síntese inferior, como se fosse momento abstraído de um movimento único, depende da
superior e a pressupõe (síntese única e não tripla), mas cada etapa é completa em si e independente
da posterior. Vejamos a seguir esses dois pontos, num exame minuncioso de cada etapa de síntese.
3. AS TRÊS SÍNTESES
Toda a intuição contém em si um diverso que, porém não teria sido representado como
tal, se o espírito (Gemüt) não distinguisse o tempo na série das impressões sucessivas,
pois, como encerrada num momento, nunca pode cada representação ser algo diferente
da unidade absoluta. Ora, para que deste diverso surja a unidade da intuição (como, por
exemplo, na representação do espaço), é necessário, primeiramente, percorrer o diverso
(Durchlaufen der Mannigfaltigkeit) e depois tomá-lo conjuntamente
1
Cf. o § 13 da Dedução Transcendetal (A 84-92).
2
Cf. de Vleesch. (op. cit., II, 237): “La thése générale de la Critique [introduzida pela dedução subjetiva ou, mais
especificamente, pela teoria do tempo] énonce que l'intuition et, par conséquent, aussi le monde intuitif, requiert le
concours de la fonction synthétique, parce que toute prise de conscience plonge ses racines, en derniére analyse, dans
l'aperception” .
3
A teoria do objeto transcendental, que aparece na síntese de recognição no conceito, parece levar ao mesmo resultado,
na medida em que estabelece que a objetividade de nossas representações é a correspondência não com a coisa em si,
objeto não representacional, mas com o objeto transcendental = X, que nada mais é que a unidade da consciência.
Examino essa teoria no capítulo terceiro deste trabalho.
84
(Zusammennehmung), ato que chamo de síntese de apreensão, porque está diretamente
orientado para a intuição, que, sem dúvida fornece um diverso. Mas este, como tal, e
como contido em uma representação, nunca pode ser produzido sem a intervenção de
uma síntese (A 99).
1
O múltiplo “como tal, e como contido em uma representação, nunca pode ser produzido sem a intervenção de uma
síntese.” (A 99).
2
Cf. também A 182: “nossa apreensão do múltiplo do fenômeno é sempre sucessivo (...)”.
85
uma casa). É preciso, ainda, compor o diverso como unidade: tomá-lo conjuntamente, i.e.,
zusammennehmen.
Assim, a síntese de apreensão, ao unir o diverso em uma representação, seria a condição da
unidade do múltiplo (a Zusammennehmung)1.
***
Essa conclusão nos leva diretamente à interpretação idealista do dado empírico como construção
a priori. Até aqui vínhamos falando da síntese de impressões, i.e, da síntese empírica. A síntese a
priori de apreensão não é, porém, outra síntese, distinta da empírica, mas trata-se da mesma síntese,
que incide ou sobre uma matéria empírica ou sobre uma matéria a priori (o diverso puro da
sensibilidade). Conforme Kant, a síntese de apreensão “ tem de ser também exercida a priori, i. e.,
relativamente às representações que não são empíricas” (A 99, grifo meu). Ou seja, é a matéria
de nossas representações que diferença a síntese empírica e a síntese a priori, pois é o mesmo ato de
síntese que pode ter como matéria impressões sensíveis ou um múltiplo puro. Esse ato de síntese,
porém, como o demonstra a constituição do próprio espaço e do tempo determinados, é puro2.
Ora, e este é o nosso problema - se o que for dado no tempo é sempre, como o próprio tempo,
sucessão de unidades absolutas, de modo que teríamos unidades absolutas de percepção3, então a
matéria de nossas representações empíricas não se distingue essencialmente da matéria de nossas
representações puras (ambas são átomos de representação) e, consequentemente, teríamos de
reconhecer que a síntese de apreensão empírica é produto da síntese a priori e a ordem empírica,
produto da transcendental. Pois se, sem a síntese de apreensão, nada há senão a sucessão de
unidades absolutas, então a matéria empírica apresentada na sinopse dos sentidos tem de ser
também uma sucessão de unidades absolutas; mas o que é unidade absoluta não pode conter
nenhuma ligação e assim, como átomo de representação, se assemelha ao ponto matemático. Ora, se
tenho sucessão de pontos, então não há, na sensibilidade, apresentação de um objeto, na medida em
que este implica a ligação de diversas representações. Não haveria assim diferença essencial entre
traçar uma reta e perceber uma casa: parte-se em ambos os casos de átomos de representação, que
são representados como diverso e unidos em um objeto por uma mesma atividade pura de síntese.
Desse modo, seria forçoso admitir que a ordem empírica é produto da atividade sintética pura.
1
Note-se que na síntese de apreensão há dois momentos: primeiro, o percorrer o diverso (Durchlaufen) e, depois, o
compreendê-lo, i. e., o “tomar junto” (Zusammennehmung): “Para que desse múltiplo surja a unidade da intuição (como
na representação do espaço, é necessário, pois, em primeiro lugar, percorrer o múltiplo e, depois, tomá-lo junto, ato
que chamo síntese de apreensão... (A 99; grifos meus)” .
2
A síntese de apreensão deve ser praticada a priori, “ pois sem ela não poderíamos ter a priori nem as representações
do espaço nem as do tempo, porque estas apenas podem ser produzidas pela síntese do diverso que a sensibilidade
fornece na sua receptividade originária. Temos, portanto, uma síntese pura de apreensão” . (A 99-100).
3
Cf. de Vleesch., op. cit, II, 243.
86
Vêem-se claramente as consequências dessa interpretação idealista1 da síntese de apreensão, em
particular, e da atividade sintética em geral. A sinopse dos sentidos, que segundo Kant
oferece o múltiplo sensível para a espontaneidade sintetizá-lo2, se revelaria como uma “palavra
vazia”3, pois a sensibilidade apresentaria apenas percepções isoladas (átomos de representação) e a
forma da intuição não seria por si mesma princípio unificante, já que a síntese de apreensão seria
numa primeira instância condição da representação tanto do múltiplo como de sua unidade. Assim,
a síntese de apreensão seria o primeiro passo para a “correção” da Estética, que nos teria feito
acreditar que a forma espaço-temporal dos objetos seria devida exclusivamente à sensibilidade
passiva e à sua forma, independentemente do entendimento. A Analítica, ao mostrar que toda
ligação vem do entendimento, ensinaria que a função sintética está já na raiz do mundo intuitivo 4,
de modo que tanto a sensibilidade por fim se reduziria à espontaneidade do entendimento5 como a
matéria de nossas representações, sem a concorrência da atividade sintética do sujeito, se tornaria
completamente “inefável e inderteminada”. Assim, “ the next step, which is frequently taken by the
disciples of such a philosophy, is to drop out the material element altogether, since it plays no
assignable role. Thus Kant's theory tends to degenerate into an idealism, à la Hegel or Fichte, in
which the mind generates its own world” 6.
Tal interpretação, porém, não deixa de entrar em conflito com outras partes da Crítica7, como
reconhecem alguns de seus defensores8. Esse fato por si só já levanta a questão da possibilidade de
uma interpretação coerente com as outras partes da Crítica. Efetivamente, um exame atento mostra
ser insustentável o pilar da interpretação idealista -- a tese do atomismo das representações
sensíveis, tese que decorre da impossibilidade de uma apreensão simultânea, de modo que toda
apreensão seria a apreensão sucessiva de unidades absolutas.
Certamente, Kant diz que, “como contida num momento, nunca pode cada representação ser
algo diferente da unidade absoluta” (A 99); mas essa afirmação não significa necessariamente que a
representação é simples (elemento desprovido de composição), que é parte do composto a ser
sintetizado no todo da representação. Retomemos a Estética Transcendental: os argumentos 4 e 5
do espaço (A 24-25) e 4 e 5 do tempo (A 31-32), mostra que o espaço e o tempo não são compostos
de partes, mas sim que estas são dadas pela limitação da unidade, unidade que é essência do caráter
intuitivo do espaco e do tempo. No mesmo sentido, nas Antecipações da Percepção (A 166-176),
1
Idealista” no sentido que defini acima: supressão de toda a referência a um objeto transcendente ao sujeito e objeto
dado entendido como construção da atividade da consciência.
2
Cf. A 97.
3
Expressão de E. Adickes, cit. por de Vleesch., op. cit., 236.
4
Cf. de Vleesch, op. cit., II, 237 e 239 e R. P. Wolff, op. cit., 151-152
5
Cf. de Vleesch, op. cit., 249 : “Mais il est à craindre que la sensibilite y [i.e., com a Analítica] perde son caractère
rigoureusement receptif et passif” .
6
R. P. Wolff, op. cit.,52 n. A expressão “matéria inefável e indeterminada” é desse autor.
7
Como com todo o parágrafo 13 da Dedução ou a tese da sinopse dos sentidos.
8
Cf. de Vleesch, op. cit., II, p.292.
87
Kant define o espaço e o tempo como quanta continua: “nenhuma de suas partes é a mínima
possível (nenhuma parte é simples)” (A 169). Desse modo, nenhuma das partes do espaço ou do
tempo “pode ser dada sem ser encerrada entre limites (pontos e instantes) e, por conseguinte, só de
modo que essa parte seja, por sua vez, um espaço ou um tempo. O espaço é constituído por
hespaços, o tempo, por tempos” (A 169; itálico meu)1. Em outras palavras, o espaço e o tempo
puros não são compostos a partir de pontos e instantes absolutamente simples, mas por espaços e
tempos; i.e., por partes que são elas mesmas espaços e tempos – de modo que não há unidade
absoluta no sentido de “ átomo de representação”. Ora, se o espaço e o tempo puros não são
compostos pelo simples, o que os ocupa não pode tampouco ser simples, mas é igualmente
composto. Ou seja, temos de reconhecer que tudo o que se apresenta nas formas puras do espaço e
do tempo é complexo e não simples; possui enfim composição e não é elementar – não é uma
unidade absoluta de percepção no sentido de um “ átomo de representação” 2.
Mas não é essa unidade, portanto, uma unidade relativa (já que não é absolutamente simples,
mas complexa), contrariamente ao texto? Não temos, pois, uma unidade absoluta relativa (algo
como uma cor incolor)? Não necessariamente. Se se tiver em mente o caráter uno da intuição
sensível, unidade absoluta significa que a intuição não é constituída a partir de partes, mas é dada
como um todo, cujas partes, estas sim, surgem da divisão do todo, o que significa dizer que a
intuição é uma unidade absoluta, i.e., é unidade porque é dada como um todo, e absoluta porque
este todo não é construído por partes, mas as partes é que são dadas pela divisão da unidade 3. Mas
se não há elementos simples ou átomos de representação, a apreensão sucessiva (o percorrer do
diverso) das partes de um todo pressupõe então a sinopse simultânea de um todo complexo; ou
seja, a própria nocão de percorrer pressupõe um continuum a ser percorrido sucessivamente4.
Assim, a tese da apreensão sucessiva de partes, o “pilar” da interpretação idealista, em vez de
excluir e afastar como “ ein leeres Wort” a sinopse, a pressupõe. No início do processo de
construção do objeto, não há uma sucessão de átomos isolados que seriam unidos em um objeto
pela síntese de apreensão, mas a intuição una, um todo complexo, i.e., uma unidade que contém
uma diversidade. A segunda etapa desse processo, a síntese de apreensão, é condição não para que o
diverso seja dado, função da sinopse, mas sim para que seja “representado como tal”. Em outras
palavras, a sinopse apresenta objetos (e não uma sucessão de átomos sem ligação) – sem a
intervenção da síntese espontânea.
1
Cf. acima o capítulo 1.
2
Como se verá a seguir, a consciência da multiplicidade de partes do todo dado pela sinopse dos sentidos é a síntese de
apreensão. Ou seja a síntese de apreensão é a tomada de consciência da “diversidade como tal” e não a própria
apresentação da diversidade, função essa que é da sinopse. .
3
Cf. B. Rousset, op. cit.,111-112.
4
Pela interpretação idealista, considera-se que a apreensão suceessiva exclui a sinopse simultânea. Se “percorrer”
pressupõe um todo a ser percorrido, qual seria então esse todo, uma vez excluída a sinopse? Esses intérpretes apelam
então para a síntese de reprodução, que, ao unir as percepções apreendidas isoladamente, permitem o “percorrer”, e,
nesse sentido, a síntese de reprodução teria de preceder a apreensão (cf., p. ex., R. P Wolff, op. cit., 151).
88
De fato, a síntese de apreensão é caracterizada por dois momentos: “durchlaufen” e
“zusammennehmen”. Como se viu, o percorrer pressupõe um complexo, dado pela sinopse; ora,
quando percorro as partes de uma casa, nada mais faço de que decompor a percepção empírica
global da casa. Dito de outro modo, ao perceber uma casa, percebo um todo complexo (sinopse);
mas quando vou, digamos, descrever esse conteúdo, digo: vejo uma parede; ao lado há uma porta;
acima, o telhado. Não é a percepcão que é sucessiva, mas a sua descrição, i.e.,a apreensão do
diverso qua diverso. Dada essa decomposição sucessiva do complexo da sinopse simultânea, entra
em cena então o segundo momento da síntese de apreensão: a Zusammennehmung, que recompõe
(“o tomar-junto”) a representação do diverso qua diverso em “uma representação” .
Agora é possível compreender por que, embora a síntese de apreensão pura seja fundamento da
empírica1, não se pode concluir, como faz a interpretação idealista, que a síntese pura produza
inteiramente a síntese empírica ou, de uma maneira geral que a ordem empírica seja integralmente
produto da transcendental. A interpretação idealista se baseava na tese da apreensão sucessiva de
átomos isolados; conseqüentemente, se não há nada senão um diverso de representação atômicas, a
ordem empírica é produzida pela atividade pura do sujeito, já que, sem síntese, não haveria ligação
alguma e, portanto, nenhum objeto empírico prévio a síntese. Mas, como se viu, esse atomismo dos
sense data não se justifica, e a apreensão sucessiva pressupõe uma sinopse simultânea, de modo
que, previamente à síntese de apreensão, a sinopse apresenta objetos empíricos. A síntese pura de
apreensão exerce, assim, sua atividade não sobre um diverso de átomos de representação isolados
uns dos outros, mas sobre uma intuição empírica, ou seja, sobre uma ordem empírica prévia.
Mas se a síntese empírica de apreensão não é integralmente produzida pela pura, como entender
que esta seja fundamento daquela? Não teríamos então o paralelismo das duas sínteses, sem que
ambas mantivessem alguma relação entre si? A síntese pura é efetivamente fundamento da síntese
empírica, mas daí não se segue que esta última seja integralmente produzida por aquela. Uma vez
reconhecido que a sinopse dos sentidos apresenta, independentemente da síntese espontânea, dados
empíricos, a atividade pura de síntese não pode ser senão formal. Desse modo, a síntese empírica
pressupõe a pura, porque esta é forma daquela; em outras palavras, a síntese empírica nada mais é
do que a síntese a priori exercida sobre uma matéria empírica.
Trata-se na síntese empírica e na a priori do mesmo ato (já que, como atividade formal, apenas o
conteúdo varia) que incide ou sobre a matéria pura (o diverso puro da sensibilidade) ou sobre a
matéria empírica. Assim, a síntese empírica é possível, porque possuo a capacidade de sintetizar em
geral, capacidade que não está condicionada, portanto, à contingência do conteúdo. Assim como sei
contar as árvores e as pedras diante de mim, porque sei, antes, contar em geral, assim também
1
Note-se que a síntese de apreensão empírica e a a priori não são paralelas, pois como diz o texto, “essa síntese [i.e., a
síntese empírica examinada no parágrafo anterior] tem também de ser exercida a priori” (A 99). Mas, e esta é a questão
a se responder, significa tal afirmação de Kant que a síntese empírica de apreensão é produzida integralmente pela
síntese pura de apreensão?
89
posso percorrer e compreender o diverso empírico, porque sei, antes de tudo, percorrer e
compreender em geral, i .e., porque sei apreender o diverso puro.
A síntese empírica é produto da síntese pura de apreensão mas só no sentido da forma do ato,
pois o conteúdo, o dado empírico, é irredutível e extrínseco à atividade sintética pura. O elemento a
priori não é jamais causa do empírico, mas apenas forma1: a atividade pura de síntese, ao tomar
como matéria a intuição empírica indeterminada2, dada imediatamente pela sinopse dos sentidos,
constitui a forma universal e necessária da intuição, i.e, determina-a objetivamente. Em vez de
apontar para um idealismo segundo o qual a atividade sintética da consciência geraria seu próprio
mundo sem a ajuda do múltiplo dado na intuição, o idealismo kantiano mostra que a atividade
sintética de construção da objetividade pressupõe um dado empírico (irredutível à atividade
sintética pura de construção) complexo e estruturado, passivamente recebido.
***
Agora temos os elementos para responder à questão de que a síntese de apreensão pressuporia a
de reprodução ou que seria impossível sem esta3. Segundo essa interpretação, como se viu acima, a
síntese inferior só seria possível pela superior, de modo que, no final, a síntese tripla se reduziria à
síntese única de natureza conceptual, da qual a síntese de apreensão e a de reprodução seriam
momentos abstratos. Nesse caso, teríamos a demonstração de que o dado é afinal não dado, mas
construído pela consciência de si próprio, cuja expressão é o conceito.
A interpretação que vê a síntese de apreensão como dependente da síntese de reprodução decorre
basicamente, lembremo-nos, da consideração de que, no estádio inicial do processo de construção
do objeto, a síntese de apreensão é a apreensão sucessiva de elementos isolados uns dos outros;
consequentemente, nos encontraríamos diante do simples, e não da diversidade (pois a própria
noção de diverso implica já a relação de um elemento com outro). Mas, então, como pergunta de
Vleeschauwer, “ s'il n'y a pas de diversité, quelle est la matière de la synthèse de l'apprehension,
1
Cf. Riehl ( Der Philosophische Kriticismus, II, .374): “Wir haben zu beachten, dass eine Vorstellung a priori niemals
die Ursache einer empirischen, sondern die Form derselben sei. An der psychologischen Vorstellungsbildung wird das a
priori als ihre Form nachgewiesen” . Cf. tb. B. Rousset, op. cit, 347-348.
2
Indeterminada não no sentido de “ inefável” e sem propriedades ou função específica, conforme a interpretação
idealista, mas no sentido de não estar, sem a síntese de entendimento, determinada por leis universais e necessárias.
3
É o que parece sugerir Allison, in Kant´s concept of transcendental objetct, p. 173. Por outro lado, Allison talvez pense
ser impossível apenas no sentido de que nenhuma etapa é suficiente em si mesma para explicar a consciência de um
múltiplo unificado.
90
puisque toute synthèse présuppose une multiplicité d'élements?” 1. Alguns intérpretes de Kant, para
responder a essa questão, dizem que a síntese de apreensão na verdade pressupõe a síntese de
reprodução2, pois a síntese de apreensão é um percorrer e um compreender de percepções
sucessivas; mas já a noção de percorrer implica um todo ou um diverso a ser percorrido e,
conseqüentemente, a ligação dos momentos sucessivos, que não poderia ser, dizem, senão a
reprodução das percepções, as quais de outro modo sairiam do campo da “ consciência” , não
podendo então ser percorridas. Igualmente a “Zusammennehmung”, como um tomar junto,
implicaria a reprodução dos elementos anteriormente apreendidos.
Essa infidelidade ao texto de Kant é superada, quando se considera que a síntese de apreensão,
que é sucessiva, opera sobre a base de uma sinopse simultânea. De fato, a sinopse dos sentidos, em
virtude do princípio do espaço e do tempo como quanta continua, apresenta não uma sucessão de
elementos isolados, mas a simultaneidade de partes que não são simples, i.e., apresenta uma
diversidade ou, antes, um todo complexo. Assim o “ Durchlaufen” , que pressupõe um todo a ser
percorrido, é possível não porque a síntese de reprodução esteja na base da apreensão, mas porque a
sinopse apresenta esse todo, um conjunto complexo. Uma vez dado o conteúdo complexo da
intuição empírica global, é possível então percorrê-la. i.e. decompô-la ou analisá-la.
Ora, como pode uma síntese, como a síntese de apreensão, ser uma análise? Aí é que entra em
cena o segundo momento da síntese de apreensão: a “ Zusammennehmung” , que toma junto o que
o Durchlaufen separou. À primeira vista, a “ Zusammennehmung” parece implicar a síntese de
reprodução: se o Durchlaufen decompõe a intuição global sucessivamente, não é necessário então,
para “tomar junto” os elementos anteriormente decompostos e formar uma representação,
reproduzi-los? Em outras palavras, se a análise do todo é sucessiva, ao chegar à última parte, as
precedentes já saíram do campo da consciência; então, parece ser necessária a síntese de
reprodução para reter as partes precedentes da intuição, quando da análise da última, a fim de tê-las
juntas.
Essa conclusão não é porém necessária. Lembremos que Kant diz que, sem a reprodução, não
poderia surgir uma representação completa (eine ganze Vorstellung, A 102), mas não diz que não
haveria representação alguma. Do mesmo modo, Kant, logo depois, não vai dizer que sem
recognição a síntese de reprodução é impossível, mas sim que é vã e não constitui um todo (kein
Ganzes; A 103). Trata-se assim não de negar a independência de um nível em relação ao superior,
mas de focalizar a passagem de um nível (insuficiente para a constituição da objetividade) para um
nível de maior objetividade.
1
Op. cit., II, p.238.
2
Cf. de Vleesch, op.cit, II, pp.246, 247 e 249. Mesmo um intérprete realista como Riehl diz que “ die Apprehension
setzt die Reproduktion voraus oder schliesst sie vielmehr in sich ein” . (op. cit., I, p.379). R.P. Wolff vai mais longe e
coloca a síntese de reprodução antes da síntese de apreensão (op. cit., p.151).
91
Vê-se então por que a Zusammensetzung não implica a síntese de reprodução: a diferença entre
ambas reside na diferença entre dois níveis de determinação: a síntese de reprodução é,
relativamente ao conhecimento, uma determinação superior à síntese de apreensão. De fato, na
síntese de apreensão, trata-se da representação do diverso “como tal, e mesmo contido em uma
representação” (als ein solches, und zwar in einer Vorstellung, A 99), ao passo que na síntese de
reprodução trata-se da “ representação completa” (eine ganze Vortellung). Talvez se possa explicar
essa diferença, se retomarmos o exemplo anterior da descrição sucessiva de um campo visual,
campo dado, primeiramente, pela sinopse simultânea dos sentidos. Uma vez dada a intuição
empírica global de um campo, por exemplo, (sinopse), passo então a descrevê-lo: há um gramado,
uma trilha corta esse gramado, no meio há uma árvore, etc. A descrição do campo visual, sucessiva,
é a sua análise em partes (o Durchlaufen). Mas essa análise é ao mesmo tempo a consciência de
que são partes de um campo, ou melhor, de um mesmo campo (dado pela sinopse). Em outras
palavras, é a consciência de que as partes decompostas (o gramado, a trilha, a árvore) estão em
relação recíproca, o que é, afinal, um “tomar junto” (Zusammennehmung)1. Assim, não reproduzo as
partes anteriormente decompostas para recompor o campo visual, o que exigiria efetivamente a
síntese de reprodução; basta-me a consciência de que a parte que agora descrevo (a árvore) é
resultante de uma análise: relaciona-se com um todo e com outras partes, embora possa não ter
agora em mente quais sejam precisamente essas partes, função essa que é da síntese de reprodução.
É por esse motivo que Kant pode dizer que a síntese de apreensão é a representação, uma vez
dado o diverso na intuição, do diverso “como tal e mesmo contido em uma representação” , ao
passo que a síntese de reprodução é a “representação completa” .
***
1
Já a própria origem do termo Zusammennehmung nos indica essa operação de relacionar (tomar, pegar: Nehmung) as
diversas partes com o mesmo: “Zusammen” tem origem no antigo alto-alemão samo, o mesmo (em inglês, same).
Note-se que essa identidade não é a da síntese de recognição no conceito (consciência da identidade do ato de síntese),
já que esta última é expressa por um conceito, a categoria, e constitui-se em um nível superior (relativamente à
reprodução) de determinação do objeto.
92
unidade, para diferençá-la da unidade objetiva, construída pela atividade sintética). Mas em vista da
unidade completa e necessária do conhecimento, a unidade da sinopse não constitui conhecimento
algum (é um todo complexo, mas confuso e indeterminado) e precisa então ser determinado
objetivamente. É nesse sentido apenas que o objeto dado vai ser construído pela atividade subjetiva.
Nesse processo de construção do conhecimento, a síntese de apreensão é, em relação à sinopse, o
primeiro passo para a determinação do objeto: se os sentidos oferecem um diverso, a síntese de
apreensão, por sua vez, constitui a consciência do diverso como tal, contido em uma representação.
Esse primeiro passo é, porém, insuficiente: se a síntese de apreensão dá a consciência do diverso
como tal em uma representação, ela não constitui ainda a “representação completa”; para haver
esta, é necessário um passo a mais: a síntese de reprodução. Assim, se Kant conclui, quando do
exame da síntese de reprodução, que “a síntese de apreensão está, portanto, inseparavelmente
ligada à síntese de reprodução” e “aquela é o fundamento (Grund) transcendental da possibilidade
de todos os conhecimentos” (A 102; itálico meu), não devemos entender por essas palavras que a
síntese de apreensão inclui ou pressupõe a de reprodução, mas sim que, na construção do
conhecimento, a apreensão, desligada da reprodução, não constitui conhecimento algum. Ou seja,
como Kant, na síntese de reprodução, está focalizando a “ representação completa” , a síntese de
apreensão está, nesse nível, inseparavelmente ligada à síntese de reprodução, ligação que é condição
necessária do conhecimento (embora não suficiente, pois ainda é necessária a síntese de
recognição). Desse modo, a síntese de apreensão é Grund de todo o conhecimento, ou melhor, da
possibilidde de todo o conhecimento (Grund der Möglichkeit aller Erkenntnisse), pois a síntese de
reprodução é um passo a mais do que a síntese de apreensão, passo que é dado, porém, sobre a base
(Grund) da apreensão, o nível imediatamente inferior.
A idéia de retomar o estádio ou nível anterior mostra-se fundamental. A síntese inferior não é
produto ou dependente da síntese superior, mas o fundamento ou a base (Grund) a partir da qual a
etapa superior opera, ao retomar o resultado da anterior, em vista de um maior grau de determinação
e objetividade do dado sensível1.
1
A idéia de “ passos necessários” para a constituição do conhecimento não é uma representação arbitrária para explicar
a determinação da sinopse por três sínteses independentes. Essa idéia aparece já na Dedução metafísica das categorias,
quando Kant escreve: “O que primeiro nos tem de ser dado para efeito do conhecimento de todos os objetos a priori é o
diverso da intuição pura; a síntese desse diverso pela imaginação é o segundo passo, que não proporciona ainda
conhecimento. Os conceitos, que conferem unidade a esta síntese pura e consistem unicamente na representação dessa
unidade sintética necessária, são o terceiro passo para o conhecimento de um dado objeto e assentam no entendimento”
(A 78-79).
93
II. Síntese De Reprodução Na Imaginação
Conforme o esquema geral da dedução subjetiva, Kant apresenta primeiro a síntese empírica e
depois a a priori. A síntese empírica de reprodução é introduzida a partir da lei empírica da
associação, numa referência à Hume1:
Porque, por exemplo, muitas vezes tive a sensação de calor ao me aproximar do fogo, quando
vejo o fogo, associo-lhe a idéia de calor. Mas para que possa haver essa associação empírica, não
bastam as regras associativas ou a capacidade do sujeito de associar representações, pois é preciso
que os próprios fenômenos estejam submetidos a uma regra, que os torne associáveis: “Essa lei da
reprodução pressupõe, contudo,que os próprios fenômenos estejam realmente submetidos a uma tal
regra e que no diverso das suas representações tenha lugar acompanhamento ou sucessão,segundo
certas regras (A 100). Ou seja, se os próprios fenômenos não se apresentassem de modo regular ou
constante, seria impossível para a imaginação empírica associá-los: se “a” nem sempre for
seguido de “b”, não posso associar “ b” a “a”. Num mundo caótico (sem regularidade), minha
imaginação empírica, porque sem ocasião para executar a associação, se tornaria morta: “se o
cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado (...) minha imaginação empírica nunca
teria ocasião de receber no pensamento, com a representação da cor vermelha, o cinábrio pesado”;
sem que “houvesse uma certa regra, a que fenômenos estivessem por si mesmos (von sich selbst)
submetidos, não podia ter lugar nenhuma síntese de reprodução” (A 100-101). Em suma, a
associação, por parte da imaginação, depende da regularidade inscrita nos próprios fenômenos.
Para explicar as regularidades dos próprios fenômenos, Kant introduz um princípio a priori (até
então se tratava apenas da associação empírica) como fundamento: “Deve portanto haver qualquer
coisa que torne possível esta reprodução [i.e., reprodução empírica] dos fenômenos, servindo de
princípio a priori a uma unidade sintética e necessária dos fenômenos” (A 101). Devemos entender
por essa afirmação que a regularidade e a constância empírica se fundamenta num princípio a
1
B. Longuenesse nota que essa referência é também aos manuais de psicologia inspirados em Hume, como a
Psycologia de Wolff, a Metaphysica de Baumgarten e a Versuche de Tetens (op. cit., 31 n. 1).
94
priori, de modo que a reprodução empírica seja integralmente produzida pela reprodução a priori?
Se assim for, teríamos de entender que o fato empírico de a cor vemelha estar ligada ao peso do
canábrio deriva de um fator transcendental, a síntese a priori de reprodução. Essa interpretação
parece se impor, na medida em que Kant, para mostrar que um princípio a priori serve de
fundamento para a reprodução empírica, evoca o caráter representacional dos fenômenos: “A isto
[i.e., a um fundamento a priori da reprodução empírica], porém, se chega quando se reflete que os
fenômenos não são coisas em si, mas o simples jogo da nossas representações que, em último
termo, resultam das determinações do sentido interno” (A 101). Parece então que Kant quer dizer
que a regularidade dos dados materiais – já que são fenômenos e, conseqüentemente, representações
e não coisas em si – é introduzida pela atividade sintética a priori do sujeito. Se os fenômenos são
representações e, portanto, determinações da consciência, não se impõe que o sujeito produza as
regularidades, o que não seria possível se os objetos fossem coisas em si? Mas quando invoca o
caráter representacional dos fenômenos para explicar a regularidade inscrita nos próprios dados
materiais, Kant não quer dizer nem diz que a associação ou reprodução empírica é, com todas as
suas determinações específicas e seu conteúdo, produto da síntese pura de reprodução. É verdade
que há certa ambigüidade, pois Kant diz haver um fundamento a priori na regularidade dos
próprios fenômenos. Mas esse ponto torna-se claro, quando se reconstrói a demonstração de Kant.
A demonstração (A 101-102) pode ser reconstruída do seguinte modo:
a. os fenômenos são representações (e não coisas em si), pois são determinações
(Bestimmungen) do sentido interno, o tempo;
b. o próprio tempo1, por sua vez, apenas se torna conhecimento, quando submetido à síntese de
reprodução, como o demonstra o fato de uma representação inteira (ganze Vorstellung, A 102)
do espaço ou do tempo ser possível, somente quando reproduzo as partes anteriormente
apreendidas (como uma linha reta ou um determinado período de tempo);
c. Ora, se as representações puras do espaço ou do tempo são possíveis apenas por uma síntese
de reprodução, esta tem de ser igualmente pura;
d. Todos os fenômenos estão, pois, necessariamente submetidos à síntese de reprodução a
priori, já que a representação pura do tempo, condição universal de todas representações e,
portanto, condição também das representações empíricas, só é possível, como Erkenntnis, por
uma síntese pura de reprodução.
1
E, conseqüentemente, o espaço, já que o tempo é forma universal de todas as representações (A 98-99).
95
formal do sentido interno, conforme a tese geral da dedução subjetiva que comanda as três sínteses1.
Assim, a demostração de Kant se restringe ao caráter formal e não material da reprodução empírica.
Kant mostra, pelo exemplo da construção matemática, que a intuição pura só origina conhecimento
(Erkenntnis verschaffen) mediante a síntese de reprodução: ora, a intuição pura, assim determinada,
é simplesmente a forma dos objetos empíricos, de modo que não podemos passar indevidamente do
nível formal para o material e dizer que a síntese pura de reprodução é condição da síntese empírica
em tudo e que esta contém. Desse modo, posso associar o calor ao fogo ou o vermelho ao peso do
cinábrio não porque o fogo ou o cinábrio, com suas propriedades específicas, ligadas de maneira
regular, foram produzidas a priori pela minha atividade de síntese, mas porque tenho a capacidade
formal de reprodução (é sempre o mesmo ato, independentemente da matéria sobre a qual é
exercido), i.e., porque sei reproduzir em geral. Assim como posso contar as pedras e as árvores
diante de mim, não porque as produzi, mas porque sei, antes que me sejam dadas, contar em geral,
assim posso reproduzir empiricamente, não porque produzi a priori as ligações de propriedades
específicas do objeto empírico, mas porque sei reproduzir em geral, antes que me sejam dadas
ocasiões específicas de associação. Se eu não possuísse a capacidade em geral de unir uma
representação “ b” a outra “ a” , toda vez que a experiência me apresentasse o fogo associado ao
calor, não poderia perceber a conjunção deste com aquele, pois, em virtude de a apreensão ser
sucessiva, assim que sentisse o calor da chama, a representação do fogo teria já escapado do campo
da minha consciência. Do mesmo modo, se não possuísse a capacidade de reproduzir em geral e, na
presença da representação “b”, deixasse escapar a representação anterior “a” , não poderia perceber,
a fortiori, a repetição de conexões empíricas específicas, na medida em que perceber repetições
significa trazer de novo à mente (i.e., reproduzir) as associações passadas. Se não possuísse essa
capacidade... Ora, os exemplos da matemática mostram haver tal capacidade; logo, possuo a
capacidade pura de reproduzir, e a “ reprodutibilidade” dos fenômenos (i.e., a possibilidade de estes
serem reproduzidos), pressuposta pela experiência, tem de ser admitida.
A síntese de reprodução pura é condição de possibilidade da síntese empírica não porque as
regularidades específicas, inscritas nos próprios fenômenos, são produzidas pela atividade a priori
de síntese, mas porque, sem a capacidade formal ou geral de reprodução, eu, para obter
conhecimento, não poderia, diante de ocasiões específicas, associar as regularidades factuais
(apresentadas a mim independentemente da atividade sintética pura), de modo que só então é
possível dizer que, sem a síntese pura de reprodução, não haveria síntese empírica.
***
1
Todas as nossas representações, como fenômenos “ pertencem contudo, como modificações do espírito (Gemüt ), ao
sentido interno e, como tais, todos os nossos conhecimentos estão, em última análise, submetidos às condições formais
do sentido interno, a saber, ao tempo, (...)” (A 99). Essa tese, diz Kant, é o fundamento de todo o desenvolvimento das
três sínteses (id. ibid.)
96
O nervus probandi da demonstração de que a síntese empírica de reprodução é apenas possível
pela síntese pura se fundamenta, como se viu acima, no caráter formal do sentido interno, o tempo,
condição universal de todas as representações, o que já é suficiente para mostrar que a reprodução
pura não pode ser causa da empírica, mas apenas forma. Pode-se objetar, porém, que se trata de uma
reconstrução e, portanto, de uma alteração ou contrafação do argumento original. Mas esse
resultado, se restar ainda alguma dúvida, é confirmado pela análise da conclusão da prova, tal como
Kant a apresenta. (Notemos que, em argumentos confusos, a conclusão permite ver com clareza a
direção ou o propósito da prova). A prova, ipsis litteris, é esta (A 101-102):
a. “ Se pois podemos mostrar que mesmo as nossas intuições a priori mais puras não originam
conhecimento a não ser que contenham uma ligação do diverso, que uma síntese completa da
reprodução torna possível” ;
b. “ então esta síntese da imaginação também está fundada, previamente a toda a experiência
(vor aller Erfahrung), sobre princípios a priori” [consequens 1];
c. “e temos de admitir uma síntese transcendental pura desta imaginação, que é mesmo o
fundamento da possibilidade de toda experiência (Möglichkeit aller Erfahrung) (enquanto esta
pressupõe necessariamente a reproducibilidade dos fenômenos)” [consequens 2];
d. ora, podemos mostrar (a) pelos exemplos do traçar uma linha, representar-me um número,
etc.1
f. mas se (a), então (b) e (c).
As consequências (1) e (2) nos mostram que o que tem de ser provado é que a imaginação:
(1) previamente a toda experiência, está fundada sobre princípios a priori e
(2) é fundamento da possibilidade de toda a experiência.
Ou seja, o que tem de ser demonstrado não é que as ligações empíricas específicas (como o fato
de o fogo vir sempre acompanhado do calor) são produtos da atividade sintética a priori da
imaginação, mas sim que a síntese da imaginação está fundada não sobre princípios empíricos, mas
sobre princípios a priori. A questão é mostrar, portanto, que a imaginação não é uma faculdade
empírica (ou, digamos, psicológica), mas transcendental2. Ou seja, se a imaginação fosse
exclusivamente empírica, ela teria como condição uma regularidade dada pelos próprios fenômenos
e seria assim sempre derivada e condicionada por leis empíricas, i.e., seria a posteriori; sem essa
regularidade inscrita nos próprios fenômenos, não poderia haver “ nenhuma síntese empírica de
reprodução” (A 101). Importa então mostrar que, longe de ser exclusivamente derivada da
regularidade dos próprios fenômenos, a síntese da imaginação se fundamenta em princípios a priori
1
Cf. o texto: “Ora é evidente (...) do espaço e do tempo” (A 102).
2
A conclusão da síntese de reprodução vai no mesmo sentido, ao estabelecer que “ ... a síntese de imaginação pertence
aos atos transcendentais do espírito e, em vista disso, designaremos também esta faculdade por faculdade transcendental
da imaginação” (A 102).
97
previamente a toda experiência (consequens 1). Em segundo lugar, importa mostrar que a síntese
da imaginação, já que antecede a experiência, síntese que é fundada em princípios a priori (como
mostrou consequens 1), é fundamento da possibilidade de toda experiência, na medida em que esta
pressupõe a reproducibilidade dos fenômenos (consequens2). Fosse a imaginação meramente
empírica, não haveria necessidade alguma nas suas associações: um homem associa uma palavra a
uma coisa; outro, a mesma palavra, a outra coisa, e um terceiro não a associa a nada; nesse caso,
não pode haver conhecimento, cuja a marca é a necessidade1.
Nesses dois passos não é jamais questão de provar que a regularidade empírica dada seja
produzida, com todo o seu conteúdo, pela síntese pura de reprodução, mas sim que essa última
síntese da imaginação, por não ser empírica ou psicológica, pode ser condição da experiência (no
sentido crítico de conhecimento), na medida em que exerce sua atividade a priori tanto sobre um
diverso puro como sobre um diverso empírico2.
Como sustentar uma atividade produtiva de âmbito tão limitado, quando se abre diante de nós a
hipótese de um mundo apocalíptico?
Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto; ora leve, ora pesado; se o homem se
transformasse ora nesta ora naquela forma animal, se no mais longo dia a terra
estivesse coberta ora de frutos, ora de gelo ora de neve, a minha imaginação empírica
nunca teria ocasião de receber no pensamento, com a representação da cor vermelha, o
cinábrio pesado; (...) sem que nisso houvesse uma certa regra, a que os fenômenos
estivessem por si mesmos submetidos, não poderia ter lugar nenhuma síntese empírica
de reprodução (A 101).
É grande a tentação (reforçada pela seqüência do texto: “Deve portanto...”, que analisamos
acima) de interpretarmos esse texto, como se Kant afirmasse que o mundo não é caótico, porque os
fenômenos não seriam dados independentemente da atividade espontânea (contrariamente ao §13 da
1
Lembremos que Kant diz: “Tem de haver qualquer coisa que torne possível esta reprodução dos fenômenos, servindo
de princípio a priori a uma unidade sintética necessária dos fenômenos” (A 101; itálico meu, exceto em a priori).
2
Na dedução objetiva (1ª edição), a imaginação já não é chamada de reprodutiva, como na dedução subjetiva, mas de
produtiva (A 118, A 121, A 123). De Vleeschauwer vê nessa mudança, senão uma mudança da doutrina, pelo menos
uma correção na denominação, uma vez que a reprodução seria necessariamente a posteriori, pois reproduzir seria
reproduzir elementos passados, o que não pode corresponder a um fator a priori (op. cit, II, 257). Essa correção seria
confirmada na segunda edição, quando Kant relega a reprodução, como fator a posteriori, à psicologia (B 152). Há
decerto uma reprodução a posteriori (como a associação psicológica) que opera não só sobre um material empírico, mas
também com regras empíricas. No entanto, a imaginação pura pressupõe uma reprodução a priori: para construir uma
linha reta, preciso produzir um diverso puro: primeiro uma parte, depois outra e assim sucessivamente; mas para ter a
linha, preciso reter, i.e., reproduzir, a primeira parte quando da produção da segunda, etc. Ou seja, a reprodução opera
sobre um mateial puro, baseada em princípios não empíricos. Em contrapartida, pode haver uma imaginação produtiva
empírica: a Antropologia, §§ 30 a 33, faz menção aos sonhos, às alucinações e à arte, que produzem imagens novas na
base de um material e regras empíricas (Cf. Rousset, op. cit, 344).
98
Dedução Transcendental1), de modo que a ordem específica inscrita nos próprios fenômenos seria
fruto da atividade transcendental de síntese. Se de fato não vivemos em tal mundo, não seria porque
somos os autores da sua ordem em todas as manifestações e ocorrências, inclusive da ordem
empírica específica?
Apesar da ambigüidade do texto, a análise da própria demonstração (de como a síntese empírica
de reprodução é condicionada pela a priori) mostrou que tal interpretação não se justifica, em
consonância, aliás, com o § 13, segundo o qual os fenômenos são dados independentemente do
entendimento. É verdade que é afastada a hipótese inicial do §13, segundo a qual, num mundo
caótico, o entendimento não encontraria os fenômenos conforme às condições de sua unidade e
assim nada nos fenômenos ofereceria uma regra de síntese que pudesse corresponder aos nossos
conceitos puros2. Essa hipótese é afastada, quando a Dedução Transcendental mostra que a unidade
determinada pelas categorias é introduzida nos fenômenos pelo sujeito, de modo que elas não
podem propriamente corresponder a nenhuma regra inscrita nos fenômenos, já que não são
abstraídas da regularidade dos próprios fenômenos, mas introduzidas neles. Não se trata de
constatar a adequação ou correspondência entre os conceitos puros e as regras dos fenômenos
(nesse caso, um mundo caótico tornaria vazios os conceitos puros, já que não haveria
correspondência destes com o mundo), mas de introduzir nos fenômenos, pela primeira vez, as
regras do entendimento. Apesar de ser afastada a hipótese, permanece de pé, contudo, o princípio
geral de que o fenômeno é dado independentemente do entendimento (princípio que se viu
confirmado na análise da síntese de apreensão)3. Nesse sentido, já que o objeto empírico é dado
independentemente do entendimento (dado, mas não conhecido), o fato da legalidade empírica do
mundo (que o cinábrio não seja ora vermelho ora preto, ora leve ora pesado) não pode ser derivado
das condições transcendentais. Unicamente as regras universais das categorias é que são
introduzidas nos fenômenos.
Essa conclusão é confirmada nas Antecipações da Percepção, por mais estranha que pareça (na
verdade menos estranha do que o seu contrário, desde que confrontada com a hipótese de uma
atividade de gênese da natureza; essa atividade requer uma intuição intelectual ou arquétipa, em que
os objetos são produzidos ao mesmo tempo com a consciência de si; mas essa intuição é concebida
como a intuição divina, que não possuímos e, como não nos é própria, nos é, então, estranha). As
Antecipações da Percepção (A 166-176) estabelecem que, nos fenômenos, não se pode conhecer a
priori nenhuma sensação, como as cores ou o gosto, pois ela é sempre dada a posteriori; mas não
1
“Pois de qualquer maneira, poderia haver fenômenos de tal modo constituídos, que o entendimento os não
considerasse conforme as condições da sua unidade e que tudo se encontrasse em tal confusão que, na sequência dos
fenômenos, por exemplo, nada se oferecesse que nos proporcionasse uma regra da síntese (...). Nem por isso os
fenômenos deixariam de apresentar objetos à nossa intuição, pois esta não carece, de modo algum, das funções do
pensamento” . (A 90-91; itálico meu).
2
Cf. cap
3
A hipótese só faz sentido uma vez admitido o princípio da independência do dado em relação ao entendimento.
99
obstante se pode conhecer a priori que toda sensação possui um grau. Esse princípio já nos impede
de ver as regularidades empíricas específicas como produto de uma síntese a priori. Que o cinábrio
não passe do vermelho ao preto, do pesado ao leve, mas apresente uma regularidade na
apresentação de suas propriedades (o vermelho associado a um certo peso), esse fato não pode ser,
portanto, resultado de uma síntese a priori, já que a constância ou a mudança da intensidade da cor
(a permanência do vermelho ou sua mudança) é um fator a posteriori. Posso saber a priori
unicamente que, se houver tal mudança (do vermelho para o preto, do pesado para o leve), ela será
contínua no tempo e apresentará graus sucessivos. Assim, a constância ou regularidade na
apresentação de propriedades específicas não pode ser derivada das condições transcendentais:
unicamente as determinações formais podem ser a priori. É por esse motivo que Kant, na conclusão
da Dedução Transcendental, reconhece a existência de leis empíricas que não derivam sua origem
no conhecimento puro (embora tenham como forma as leis puras do entendimento)1.
Paradoxalmente, talvez não pudéssemos viver em um mundo caótico, mas nem por isso não seria
possível conhecê-lo.
1
Cf. A 127-128
2
Cf., p. ex., de Vleeschauwer: “ ... Kant ne dit pas que l'une ou l' autre forme de la synthèse est la condition unique,
complète et suffisante de l'intuition, mais que chacune d'elles est une condition partielle, dont l'aperception est la
suprême et la plus enveloppante” (op. cit., II, 247).
100
que não se poderia afirmar que esta última síntese constitui uma etapa completa em si, independente
da síntese conceptual?
Ora, Kant não diz que sem a síntese de recognição no conceito a síntese de reprodução é
impossível, mas diz apenas que ela seria “vã” (vergeblich). Ou seja, Kant estabelece unicamente a
insuficiência da reprodução para a construção do conhecimento. Nada mais “natural” , pois o foco
de Kant incide na passagem do dado para o seu conhecimento e no que é necessário para, a partir de
uma etapa, ir para a etapa seguinte, de um maior grau de objetividade. Assim, a síntese de
apreensão, como se viu acima, não suprimia ou negava a sinopse dos sentidos, mas era o primeiro
passo na construção do conhecimento do objeto dado; igualmente, a síntese de reprodução na
imaginação não era, como se viu, condição de possibilidade da síntese de apreensão, mas um nível
superior, para constituir uma “ representação inteira”. Por dirigir o foco sobre esse processo, em
que a retomada do nível anterior se faz necessária para uma determinação maior da objetividade, é
que Kant diz que a síntese de reprodução, sem a recognição, é vã, pois sem o conceito, que exprime
um modo determinado de síntese, não tenho ainda conhecimento1.
Em oposição à unidade completa e universal produzida pela categoria, (o conhecimento objetivo,
que é definido em A 97 como “um todo (ein Ganzes) de representação comparadas e ligadas” ), a
síntese de reprodução na imaginação não constitui ainda esse todo (kein Ganzes, A 103); daí a
necessidade de um passo a mais. Em nenhum momento se trata de negar a autonomia e completude
da síntese de reprodução relativamente à de recognição, mas sim de focalizar a insuficiência de uma
etapa e o movimento de construção da objetividade a partir da retomada da etapa anterior, em vista
de um processo completo de determinação do objeto empírico2, dado independentemente da
atividade sintética do sujeito.
1
Nesse sentido, cf. A 78: “A síntese em geral é, como veremos mais adiante, um simples efeito da imaginação, função
cega, embora imprescindível, da alma (Seele), sem a qual nunca teríamos conhecimento algum, mas da qual muito
raramente temos consciência. Todavia reportar essa síntese a conceitos é uma função que compete ao entendimento e
pela qual ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra”. De resto, dizer que a
imaginação é cega é precisamente afirmar sua independência em relação à consciência determinada categorialmente, ao
mesmo tempo que se afirma sua insuficiência para, por si só, constituir o conhecimento objetivo. Cf. tb. A 105, 106 e
108, onde se diz que o conceito torna possível não a própria síntese de reprodução, mas a reprodução necessária do
múltiplo, o que é propriamente o conhecimento.
2
O que é esse processo categorial da determinação será explicado adiante, quando da análise da síntese recognição no
conceito. Ao mesmo tempo, em contraste com a síntese de recognição, ver-se-á com mais nitidez no que consiste a
síntese de reprodução na imaginação.
101
III. Síntese De Recognição No Conceito
Sem a consciência de que que aquilo que nós pensamos é precisamente o mesmo que
pensávamos no instante anterior, seria vã toda a reprodução na série de representações.
Pois haveria no estado atual uma nova representação, que não pertenceria ao ato pelo
qual devia ser, pouco a pouco, produzida, e o diverso dessa representação não formaria
nunca um todo (kein Ganzes), porque faltaria a unidade, que só a consciência lhe pode
alcançar (verschaffen). Se esquecesse, ao contar, que as unidades, que tenho
presentemente diante dos sentidos, foram pouco a pouco acrescentadas por mim umas às
outras, não reconheceria a produção do número por essa adição sucessiva de unidade a
unidade nem, por conseguinte, o número, pois esse conceito consiste unicamente na
consciência dessa unidade da síntese (A 103).
1
Op. cit., 150 e 154. Cf. tb. B. Longuenesse, op. cit., 39; essa autora supõe haver a distinção entre a recognição
empírica e a a priori, embora, diz ela, a apresentação de Kant não a faça explicitamente.
2
Op. cit., II, 242 e 286.
102
2. a síntese de recognição empírica é seguida da a priori, mas não imediatamente, pois entre ambas
Kant intercalou a teoria do objeto transcendental1 (que vai do terceiro ao sexto parágrafo do texto,
A 103-110).
Se a estrutura do texto não afirma claramente a existência de uma síntese de recognição empírica
e a sua subordinação à síntese de recognição a priori, o princípio em que se fundamenta a
recognição não deixa margem à dúvida: a apercepção transcendental, referência necessária de toda
representação objetiva.
A síntese de apreensão, uma vez dado um diverso pela sinopse dos sentidos, produz a consciência
do diverso como diverso de uma intuição; a síntese de reprodução, uma vez produzida essa
consciência, compõe o diverso em uma representação completa (eine ganze Vorstellung). Esses
dois passos não dão ainda o “ todo de representações comparadas e ligadas” , i.e., o conhecimento
(A 97). Para que se tenha esse todo (Ganzes) é preciso ainda reconhecer “ que aquilo que nós
pensamos é precisamente o mesmo que pensávamos no instante anterior2, o que só é possível
quando se reconhece que a representação que tenho diante de mim pertence “ a um só e mesmo ato”
pelo qual foi produzida3. Em outras palavras o Ganzes só é possível mediante a unidade da
consciência na síntese do diverso de todas as nossas intuições. O princípio dessa unidade é a
apercepção transcendental (A 107), consciência pura, originária e imutável, que “ precede todos os
dados da intuição e em relação à qual é somente possível toda representação de objetos” (A 107;
grifo meu). Ora, se o princípio da unidade da consciência na síntese do diverso (vale dizer, o
princípio da recognição), a apercepção transcendental, é condição de possibilidade de “ toda
representação de objetos” , e se o objeto empírico não é coisa em si, mas fenômeno – representação
– então é necessário admitir uma síntese de recognição que incida sobre representações empíricas,
i.e., é necessário admitir uma síntese de recognição empírica. Que haja uma síntese de recognição
empírica se torna claro, quando se considera o conceito empírico (e Kant dá o exemplo do conceito
empírico de corpo, A 106), conceito esse que “representa nos fenômenos dados a reprodução
necessária do diverso desses fenômenos e, por conseguinte, a unidade sintética na consciência que
deles temos” (A 106; grifo meu). Em outras palavras, a síntese de recognição empírica é a “unidade
sintética na consciência” dos fenômenos dados. Se antes havia a dúvida quanto à existência, ao lado
da síntese a priori, de uma síntese de recognição empírica4, agora se vê que Kant distingue, a
exemplo da apreensão e da reprodução, uma recognição a priori (consciência da unidade sintética
1
Ver abaixo terceira parte deste trabalho.
2
Ou seja, a consciência da identidade das representações reproduzidas com aquelas apreendidas.
3
Cf. B. Longuenesse, op. cit, 39-40.
4
Note-se que a dúvida era se havia, na recognição, uma síntese empírica, e não se havia uma a priori, pois esta, desde o
início, já com o exemplo da construção do número, era dada como certa. Mas se considerarmos o exemplo do número
como inadequado, para que possamos manter o paralelismo com a apreensão e a reprodução, em que se deve ter
primeiro a recognição empírica, então temos de considerar que a existência de uma recognição a priori é mostrada em
virtude de que mesmo a unidade objetiva mais pura, a dos conceitos a priori (espaço e tempo determinados) são
possíveis apenas pela relação das intuições à apercepção transcendetal (A 107).
103
de um diverso puro) e uma recognição empírica (consciência da unidade sintética de um diverso
empírico dado).
Mas, uma vez estabelecida a distinção entre recognição a priori e empírica, são meramente
paralelos o nível transcendental e o nível empírico? Ou, a exemplo da apreensão e da reprodução,
na recognição também a síntese empírica é subordinada à síntese a priori ? A recognição empírica
no conceito é, viu-se, consciência da unidade sintética de fenômenos dados, ou seja, a reprodução
necessária do diverso dos fenômenos (A 106): “o conceito de corpo, na percepção de algo exterior a
nós, torna necessária a representação da extensão e, com esta, as representações da
impenetrabilidade, da forma, etc.” (itálico meu). Se a recognição empírica implica a necessidade da
reprodução dos fenômenos dados, então essa necessidade só pode advir de um fundamento
transcendental, pois “toda necessidade tem sempre por fundamento (Grund) uma condição
transcendental” (A 106); esse fundamento transcendental não pode ser naturalmente a apercepção
empírica (determinações do nosso estado na percepção interna), que é sempre mutável, fluxo de
fenômenos internos, mas é a apercepção pura, elemento fixo e permanente. Assim, na síntese de
recognição, o nível transcendental não é meramente paralelo ao empírico, mas é fundamento
(Grund) deste último.
Mas ao se dizer que a recognição a priori é fundamento da empírica, embora se estabeleça uma
relação, não se determina com essa expressão ambígua (“ser fundamental de”) a natureza da relação
entre o a priori e o empírico1. Segundo a passagem acima citada, de A 107, “toda representação de
objetos” somente é possível pela relação com a apercepção transcendental. Mas se a apercepção
transcendental é condição de possibilidade de toda representação de objetos, e se objeto empírico
dado é, por sua vez, representação (porque fenomênico), então a apercepção transcendental é
condição também do objeto empírico. Assim, na síntese de recognição, uma vez que objeto
empírico dado é representação do sujeito e toda representação é possível unicamente mediante a
apercepção transcendental, parece ser forçoso concluir que o dado empírico é inteiramente
produzido pelo elemento a priori. Dito de outro modo, parece que o objeto empírico, porque
representação da consciência e não coisa em si, depende dos princípios sintéticos da consciência e
os tem como condição de possibilidade. Se concebermos o objeto como unidade de representações,
e se toda unidade é produto de uma atividade de síntese, como seriam possíveis, sem a referência à
apercepção transcendental, tanto uma unidade das representações, o objeto, como a ordem
empírica? Se, sem a referência à apercepção ranscendental, não há nada que se apresente à
consciência senão um fluxo contínuo de representações, parece ser impossível que seja dado um
objeto (unidade de representações). A dedução subjetiva estabelece não só a distinção entre
recognição empírica e a priori, mas também, à primeira vista, que o empírico e o dado é produzido
1
O termo Grund não é ambíguo no sentido de que implica a noção de conseqüência (Folge) e estabelece assim uma
subordinação. A ambiguidade está, em nossa questão, nisto: o objeto empírico (Folge) é inteiramente produzido pelo a
priori (Grund) ou unicamente a forma do objeto é produzida, como Folge, pelo a priori?
104
pelo transcendental. Assim, reencontramos o tema, caro aos epígonos, de que o dado seria na
verdade construção do sujeito. O idealismo kantiano, pelo menos na dedução subjetiva, seria então
um idealismo construtor absoluto1.
A dedução subjetiva, talvez mais do que qualquer outra parte da Crítica da Razão Pura, parece
indubitavelmente apontar para essa direção. Certamente não porque, centrando-se no exame das
faculdades do sujeito, acabe por suprimir toda referência a algo outro que o sujeito e assim conduza
a um idealismo subjetivo à Berkeley, que se ocuparia tão somente dos estados e modificações da
Gemüt; mas sim porque, pondo em evidência a atividade subjetiva de construção da objetividade,
parece reduzir inevitavelmente o dado empírico, como produto ou termo final de um processo, às
condições e princípios da própria atividade transcendental produtiva, e assim qualquer referência a
um objeto dado independentemente da atividade construtora do sujeito pareceria ser, no mínimo,
fora de propósito. No entanto, o exame do mecanismo da recognição no conceito vai mostrar o que
o exame das duas outras sínteses já mostrou: trata-se de uma atividade exclusivamente formal da
consciência e, nesse sentido, pressupõe um dado prévio à sua atividade e independente dela
Segundo a apresentação de Kant da síntese de recognição (texto de A 103, acima citado), há duas
condições para que se possa alcançar o todo das representações comparadas e ligadas2:
1. consciência de que as representações reproduzidas sejam idênticas às apreendidas: consciência
de que aquilo que pensamos agora é o mesmo que pensamos no instante anterior;
2. consciência de que as diversas representações diante de mim pertencem a um conjunto e não a
um agregado de representações: consciência da identidade do ato de síntese.
Para que essas duas condições sejam cumpridas, a fim de se ter a unidade do diverso, é preciso
reconhecer que o diverso de representações pertencem a um só e mesmo ato de produção do todo de
representações3. Por exemplo, para ter o número dois, tenho de produzir uma unidade, depois outra
e ter em mente, quando da produção dessa segunda unidade, que antes produzi outra unidade. Essa
etapa corresponde ao item 1 e não dá ainda o número dois, pois até agora só tenho consciência da
justaposição de uma unidade ao lado da outra. É preciso, pois, quando da produção da segunda
unidade, reconhecer a primeira não só como anterior, mas também como precursora da segunda
unidade produzida (o que corresponde ao intem 2 acima). Em outras palavras, se eu pudesse me
lembrar, quando da produção da segunda unidade, de que produzi antes outra unidade, mas não
reconhecesse esta como primeira etapa da mesma atividade que produziu a seguir a segunda
unidade, teria a “colagem” de uma unidade ao lado da outra, mas não o número dois. Assim é
preciso o conceito de número que comande cada etapa de produção de unidades e faça dessas etapas
1
Cf. de Vleesch.: (...) l'objet de connaissance n'est pas une chose en soi ou une réalité externe, mais une construction de
l'esprit, dont toute l'existence se borne à l'existence idéale. Reconnaissons, toutefois, que ce n'est pas la doctrine
exclusive de la Critique, tout en étant assurément celle de la déduction subjective (op. cit, II, p.292).
2
Sobre esse ponto, cf. R.P. Wolff, op. cit., 125-130.
3
Cf. B. Longuenesse, op. cit, 39-40.
105
etapas de uma mesma e única atividade. Só assim o diverso de representações se constituirá em um
Ganzes e não uma colagem ou um agregado de representações. Ou seja, é preciso a consciência da
identidade do ato de síntese, consciência essa que Kant identifica ao conceito1. E quando o conceito
é um conceito puro do entendimento, uma categoria, o todo de representações ligadas e comparadas
é a experiência ou, antes, o sistema de experiência2.
Assim, a consciência transcendental não é simplesmente a consciência que acompanha as
representações3 ou mesmo a simples comparação entre as representações segundo a identidade ou a
diferença4, mas é a consciência que se identifica ao conceito puro e se exprime necessariamente por
uma categoria. Eu penso significa, no nível transcendental, eu penso a substância, eu penso a causa,
etc. (A 346). Nesse sentido, consciência transcendental e conceito puro são indissolúveis. Mas
pensar a substância, a causa, etc., nada mais é do que estabelecer relações ou ligações no diverso de
representações: estabelecer um modo determinado para a síntese. No exemplo da produção do
número, a consciência da identidade do ato de adicionar unidades puras é a ligação das unidades
segundo um determinado modo, unidades que assim se tornam um todo e não um agregado. Já no
caso da recognição empírica, o diverso a ser unificado não é o diverso puro, de representações
homogêneas da matemática, mas um diverso de representações com propriedades específicas, como
no exemplo do cinábrio. Nesse caso, a recognição empírica consiste na reprodução do diverso
empírico segundo um conceito, que nada mais é do que o ligar representações de certo modo
(segundo a substância, segundo a causa, etc.); dessa maneira, essas representações são inscritas no
sistema de experiência. Assim, a consciência transcendental, indissolúvel do conceito, (como
consciência da unidade da síntese) é apenas o fator que estabelece relações, modos determinados
(necessários) de ligação no diverso sensível, vale dizer, a consciência transcendental é
necessariamente formal5. Em suma, o mecanismo da síntese de recognição mostra que, para ser
possível um sistema de experiência (o Ganzes), a síntese de reprodução tem de ser condicionada por
um conceito. Nesse nível de objetividade, ser consciente de algo é pensar, segundo os conceitos de
causa, substância, etc., os fenômenos dados. Mas pensar categorialmente é estabelecer modos
1
Assim, o conceito de número consiste simplesmente na consciência da unidade sintética da adição de unidades (A
103). No mesmo sentido de identificar o conceito não à representação geral (repraesentatio per notas communes) ou
refletida (repraesentatio discursiva) da lógica (Cf. Logik , Ak. IX, 91), mas à consciência da unidade do ato de síntese,
Kant diz que o conceito é “a consciência una que unifica em uma representação o diverso, sucessivamente intuído e
depois também reproduzido” (A 103).
2
É justamente o que Kant vai dizer depois na Explicação Preliminar (A 110-115): “Há apenas uma experiência, onde
todas as percepções são representadas num encadeamento (Zusammenhange) completo e conforme a leis (...). Quando
se fala de experiências diferentes, trata-se apenas de outras tantas percepções, que pertencem a uma única e mesma
experiência. A unidade completa e sintética das percepções exprime, com efeito precisamente a forma da experiência e
não é outra coisa que a unidade sintética dos fenômenos segundo conceitos” (A 110).
3
É o que Kant vai dizer na segunda edição, em B 133.
4
Cf. Logik, Ak., IX, 65. Na Lógica, Kant chama essa comparação sem consciência de conhecer (kennen) em oposição
ao conhecimento com consciência que é erkennen. Os animais conhecem (kennen) os objetos, mas não os reconhecem
(erkennen).
5
O elemento formal sempre diz respeito, naturalmente, ao aspecto relacional. Cf., p. ex., A 20-B 34: “(...) ao que,
porém, possibilita que o diverso do fenômeno possa ser ordenado segundo determinadas relações, dou o nome de forma
do fenômeno”. Cf. tb. Dissertação, parágrafos 2, 4, 13 e 16.
106
determinados de relações nos fenômenos dados, vale dizer, a consciência transcendental é
meramente formal.
***
O que está em jogo na síntese de recognição não é, portanto, a produção de uma natureza
material como se, a exemplo do modelo matemático de construção, a atividade transcendental,
diante de uma matéria indiferenciada e homogênea, criasse inteiramente a ordem empírica,
precipitado de seu dinamismo construtor. A síntese de recognição no conceito é apenas a
constituição de relações necessárias entre os objetos dados (a legalidade do mundo empírico), pois a
consciência transcendental nada mais faz do que determinar o modo sob o qual as representações
são unidas. Se considerarmos que, na dedução subjetiva (essa doutrina supostamente supercrítica), o
dinamismo construtor do sujeito cria toda a ordem empírica, estaremos concebendo a atividade
transcendental como uma atividade aquém e além do aspecto conceptual ou formal da consciência:
anterior a ele, mas o abrangendo – como se fosse dado à consciência, para que pudesse mover-se
mais livremente, despir-se da armadura categorial. Mas, como se viu, mesmo na dedução subjetiva,
consciência transcendental e categoria são indissolúveis.
A tese do formalismo e a natureza relacional da dedução subjetiva torna-se mais clara, quando
atentamos que a essência da categoria é ser regra. De fato, embora o entendimento possa ser
caracterizado de diversas maneiras (como faculdade de pensar, faculdade de conceitos ou de juízos)
é a caracterização como faculdade de regras que mais se aproxima da essência do entendimento (A
126)1. Regra é “a representação de uma condição universal, segundo a qual certo diverso pode ser
posto” (A 114), ou ainda, a representação de uma condição geral, segundo a qual devemos colocar
uma diversidade de maneira idêntica. Desse modo, as categorias, como regras, determinam apenas o
modo como as representações devem ser unidas, na medida em que condicionam a síntese de
reprodução da imaginação a reproduzir desta maneira e não de outra. Sem uma regra que oriente a
síntese, haveria apenas a associação contingente de representações, mas não a unidade sintética, em
que cada etapa da síntese, orientada pela regra, é etapa de um mesmo processo. Pois entre todo o
campo possível de síntese, a regra, como representação que indica a maneira pela qual o diverso
deve ser posto, limita a síntese a uma possibilidade: dados quatro segmentos de reta, posso
aleatoriamente formar um losango, um quadrado ou colocar os segmentos lado a lado. Mas adotada
uma regra, a regra de construção do quadrado, por exemplo, eu uno os segmentos de modo a fazer
sempre um quadrado e não um losango ou a justaposição dos segmentos.
1
Essa definição do entendimento como faculdade de regras, ainda que apareça na dedução objetiva, não é estranha à
dedução subjetiva; cf. A 105-106.
107
A consciência transcendental, via categoria, é assim a condição da relação entre as
representações, determinando o modo de ligação do diverso sensível. Em outras palavras, como
regra, a categoria contém inscrita em si a maneira pela qual as representações devem ser unidas: as
representações são unidas como causa e efeito, como substância e acidente, etc. Assim, a construção
da ordem empírica não é a construção do dado como dado (a genêse deste), mas a construção de um
sistema de relações (o Ganzes) dos objetos efetiva e previamente dados (como representações), ou
seja, determina-se a forma dos objetos.
Relembremos que a interpretação idealista da Dedução subjetiva não só faz do empírico algo
inteiramente produzida pelo a priori, mas também entende que, na síntese tripla, a síntese inferior
não é acabada e completa em si mesma, mas, como momento abstrato, depende e é produzida pela
síntese superior, de modo que no final teríamos uma síntese única de natureza conceptual, a síntese
de recognição. Por essa interpretação, uma vez substituída ou suprimida a sinopse pela síntese de
apreensão, veríamos que já na própria raiz do dado empírico apreendido pelo sujeito estaria a
atividade sintética conceptual; veríamos assim que o dado seria na verdade feito: construção da
consciência transcendental1.
Mas vimos, no exame da apreensão e da reprodução, que cada etapa de síntese é independente e
completa em si mesma, pois Kant, ao focalizar o processo de construção do conhecimento do dado e
ao centrar a análise nas condições de representação objetiva do dado empírico, mostra apenas o que
é necessário para passar de um nível inferior a outro de maior objetividade. Desse modo, a etapa
inferior não depende da superior nem é por ela produzida, mas é a base a partir da qual se dá o
passo seguinte. Assim, uma vez dado o diverso pela sinopse dos sentidos, a síntese de apreensão dá
a representação do diverso como diverso de uma intuição, apreensão, que, porém, sem a síntese de
reprodução, não dá uma representação inteira; já a síntese de reprodução, se dá a representação
inteira, sem a recognição é vã, pois não fornece um todo (Ganzes). Esse foi o resultado a que
chegamos no exame da síntese de apreensão; então pudemos ver de perto a natureza da relação
entre a apreensão e a reprodução; mas no exame da reprodução, a análise da relação entre esta e a
1
Cf. de Vleesch., op. cit, II, 280-281: “En effet, la synthèse reproductive n’est possible que sous condition de la unité
aperceptive, et la synthèse de l'appréhension, permettant l'entrée des impressions dans le sens interne, entrée par
laquelle est exclusivement déterminé le caractère d'intuition ou de donnée, n'est possible que sous la condition de la
synthèse reproductive. Il est clair que l'intuition (représentation du sens interne ou fait de conscience) n'est possible que
par l'ensemble des fonctions supérieures synthétiques et finalement par l'unité de l'aperception dont la forme est celle du
concept. Dès lors, la forme du concept est la règle à priori qui détermine non seulement l'unité de la diversité intuitive et
sa synthèse reproductive, mais encore toute son existence comme fait de conscience”.
108
recognição permaneceu de algum modo metafórica e exterior, pois dizer que é vã a reprodução sem
a recognição não é dizer muita coisa.
Mas o exame do mecanismo da síntese de recognição nos permite ver agora, de modo mais
adequado e menos metafórico, como é possível haver reprodução sem recognição, contrariamente à
interpretação idealista. O exemplo da produção do número mostrou bem essa possibilidade. Não
há necessidade de repetir a análise, basta que nos lembremos do resultado. Como se viu no
exemplo da produção do número dois, sem o conceito de número que condicione a reprodução, não
é esta impossível, mas sim a produção do número dois, pois nesse caso terei apenas a justaposição
de uma unidade ao lado da outra1. Ao produzir duas unidades, posso me lembrar da primeira (i.e.,
reproduzi-la) como anterior, mas não como precursora da segunda unidade. Ou seja reproduzo,
mas não tenho consciência de que as duas etapas são etapas da mesma atividade que as produziu,
não tenho, enfim, consciência da identidade do ato de síntese(que é justamente o conceito).
Vê-se assim a possibilidade de uma reprodução sem recognição. De fato, a síntese de
recognição no conceito não é condição de possibilidade da reprodução, mas da reprodução
necessária dos fenômenos apreendidos: conhecer o objeto é produzir, no diverso da intuição,
unidade sintética; essa unidade só é possível, se a intuição é produzida pela função de síntese
segundo uma regra (a categoria), que torne tanto necessária a priori a reprodução do diverso como
possível um conceito que unifique esse diverso2. Sem a síntese de recognição no conceito não é
impossível a reprodução, a apreensão e por fim o dado empírico como fato de conciência; sem a
recognição no conceito não há apenas a unidade necessária ou o sistema de experiência, e tudo o
que teremos será então agregado ou justaposição de representações, i.e., uma simples reprodução
associativa3
Para haver conhecimento ou sistema de experiência, a reprodução tem de estar
indissoluvelmente ligada à recognição, do mesmo modo que a apreensão, no conhecimento, “ está
indissoluvelmente ligada à reprodução” (A 102). Nesse sentido, as categorias não são um simples
1
Como vai dizer Kant nos Prolegômenos: “ O conceito de doze de nenhum modo está pensado pelo simples fato de eu
pensar essa reunião de sete e de cinco...” (Proleg., § 2). Kant usa a expressão “ reunião” para o que expressei com “
justaposição” . Reunião, i.e., ao ter agora diante de mim cinco unidades, reproduzo as setes unidades que pensei no
instante anterior, sem concebê-las como percusoras, mas meramente anteriores.
2
Cf. A 105.
3
É por esse motivo que Kant, em sua Lógica, concede aos animais a capacidade de comparar representações e
estabelecer entre elas relações de identidade e diferença. Os animais possuem então a capacidade de reprodução
associativa e nesse sentido eles podem conhecer (kennen), mas não reconhecer (erkennen), porque desprovidos da
capacidade de formar conceitos, i.e., não possuem a consciência da unidade do ato de síntese. (Cf. Logik, AK. IX, 65).
Igualmente em uma carta a Marcus Herz de maio de 1789, para mostrar o significado de data dos sentidos que não
tenham relação com a unidade da consciência, Kant coloca-se hipoteticamente na posição dos animais (wenn ich mich
in Gedanken zum Thier mache). Segundo tal hipótese, os data, “como representações em mim, que estivessem ligados
segundo leis empíricas de associação e assim também tivessem influência sobre o sentimento e sobre a nossa faculdade
de desejar (suposto que eu também fosse consciente de cada representação individual, mas não da relação delas com a
unidade da representação de seu objeto por meio da unidade sintética de sua apercepção, [elas] poderiam ainda assim
exercer regularmente seu jogo, sem que com isso conhecesse alguma coisa e conheceria sequer esse meu estado”
(itálico meu; Ak., XI, 52). Esses dois exemplos, o da Lógica e o da carta a Marcus Herz, seguindo uma mesma linha de
raciocínio, permitem ver a possibilidade de haver reprodução sem recognição e associação empírica sem apercepção.
109
aditamento à síntese de imaginação, como se fossem carimbos ou selos, posteriormente apostos a
uma síntese reprodutiva já pronta, para indicar a unidade e a necessidade da síntese. Sem dúvida,
Kant parece às vezes dizer que é necessário primeiro sintetizar o diverso sensível para depois
aplicar o conceito1 a uma síntese já acabada, como se a imaginação construísse previamente um
triângulo para depois a apercepção pura juntar-se à imagem do triângulo e assim intelectualizá-la
(A 124). Mas como mostrou o mecanismo da síntese de recognição, a síntese objetiva é a atividade
da imaginação já condicionada por um conceito, de modo que na construção da unidade das
representações, a aplicação dos conceitos não é posterior à síntese, mas é simultânea. Levar o
diverso apreendido como diverso à unidade é precisamente reproduzi-lo segundo uma categoria.
Nesse sentido, a síntese de apreensão e a de reprodução não são nem podem ser separadas da síntese
de recognição no conceito, já que só mediante essa última etapa é que a reprodução dos fenômenos
apreendidos constitui o sistema de experiência. Mas o fato de que, para a determinação do objeto
dado, as três sínteses tenham de estar indissoluvelmente ligadas não significa que não possa haver
sinopse sem apreensão, apreensão sem reprodução ou reprodução sem recognição. Se a passagem
de um nível inferior para o superior é necessária para a construção do conhecimento dos objetos
dados, resta sempre a possibilidade de uma sinopse sem apreensão, uma apreensão sem reprodução
e, finalmente, uma reprodução sem recognição2. Daí decorre a possibilidade de haver fenômenos
dados independentemente da atividade sintética do sujeito.
Contrariamente à interpretação idealista, segundo a qual a síntese superior, condição das
inferiores, estaria já na raiz do próprio objeto dado, vê-se que o objeto empírico dado na sinopse
não depende, para ser dado, da síntese superior e é mesmo prévio a esta.
1
Cf., p.ex., A 78-79.
2
Daí também a necessidade de distinguir imaginação e apercepção, reprodução e recognição, síntese e unidade de
síntese, contrariamente à interpretação de R.P. Wolff, segundo a qual há uma identidade entre síntese e unidade da
síntese, identidade que Kant tenderia a obscurecer ao distiguir entre imaginação e entendimento ou entre reprodução e
recognição (op. cit., p. 128n).
110
4. O FORMALISMO NA DEDUÇÃO SUBJETIVA
O formalismo foi uma solução constante, na dedução subjetiva, para a questão da validade
objetiva das categorias. Mas resta saber se o formalismo, alvo de severas objeções desde o
aparecimento da Crítica, é compatível com o princípio construtivista da dedução subjetiva, com a
lógica interna da revolução copernicana ou ainda, algo mais inefável, com o espírito do criticismo.
A primeira questão diz respeito à oposição entre forma e matéria: se as três sinteses são formas das
sinteses empíricas, como é possível então que a matéria empírica, embora representação do sujeito e
dada para a consciência transcendental, independa da atividade subjetiva? A segunda questão diz
respeito à oposição entre forma e ato: até que ponto pode o dinamismo construtor do sujeito ser
reduzido a formas estáticas? Como é possível fazer da atividade sintética um sistema de formas
prontas e mortas?
Forma e Matéria
1
Cf. de Vleesch., op. cit, III, 99: “(...) une représentation sans rapport à un denken ou à avoir conscience est
contradictoire.”
2
“ ... le ich denke est analytiquement contenue dans la notion de représentation” (de Vleesch, op. cit, III, 99).
3
A 320. Cf. tb. Logik, Ak.IX, pp 64-65.
112
consciência e representação sem consciência. Já na Antropologia1, Kant considera a sensação como
uma representação sem consciência (como nos animais), o que implica que, embora seja
representação, a sensação não depende da consciência nem é modificação desta2. Por sua vez
a percepção é definida como uma representação acompanhada de consciência, mas da consciência
indeterminada da existência de alguma coisa3, o que implica que um objeto possa ser dado para a
consciência sem que haja a intervenção da categoria. Assim, a contradição de uma matéria empírica
fenomênica (i.e., representação do sujeito) dada independentemente da atividade transcendental da
consciência mostra-se aparente: o fenômeno é minha representação e nesse sentido está em mim e é
relativo a mim; mas daí não se seque que ele seja dado por mim4 Em outras palavras, a parte
empírica dos fenômenos, embora seja representação do sujeito, não tem a consciência
transcendental como condição de possibilidade, já que pode haver representações sem consciência
ou acompanhadas de uma consciência indeterminada. A consciência transcendental é somente
condição da representação determinada.
É possível estabelecer essa diferenciação no interior da própria noção de representação, porque o
cogito kantiano não é substancial, à maneira do cogito cartesiano, que identifica representação e
pensamento. Se o pensamento é substância, então todas as representações do sujeito têm de ser
efetivamente acompanhadas pelo eu penso, na medida em que a representação é apenas modificação
da substância pensante. Nesse caso, a representação, como acidente, tem de estar acompanhada pelo
eu penso e não pode existir sem este (caso contrário, seria um acidente que existiria sem
substância). Apenas se tivermos em mente um cogito substancial é que veremos contradição em
uma representação do sujeito que não dependa da consciência. No entanto, esse substancialismo do
cogito não pode servir de modelo para interpretarmos o cogito kantiano, como demonstra
principalmente a crítica à psicologia racional, na Dialética Transcendental. Porque o eu penso não
é substancial, Kant pode definir a natureza representacional do fenômeno não em termos de
modificações ou determinações do pensamento, mas como modificação da mente (Gemüt)5 (um
termo sem as conotações do cogito) ou então, mais especificamente, como deteminações
(Bestimmungen) do sentido interno (A 102) ou modificação (Modifikation) de nossa sensibilidade (-
A 129). Até aqui nada a obstar contra a tese de que fenômenos, embora representações do sujeito,
1
Anthrop, Ak. VII, 135.
2
Note-se a discrepância terminológica entre a classificação da Dialética (em A 320) e a definição de sensação na
Antropologia (§ 5). Nesta, a sensação é definida como representação sem consciência, ao passo que naquela a sensação
é sub-divisão da representação com consciência (a percepção). Apesar dessa flutuação, há sempre o princípio de
diferenciação entre espécies de representação e a conseqüente impossibilidade de identificar representação e
representação consciente.
3
Cf. A 374; B 207-208; Anthrop., Ak.VII, 144. A percepção é indeterminada, porque não é determinada no tempo pela
categoria.
4
Cf. §5 da Antropologia, (Ak.VII, 135) em que Kant mostra justamente que a contradição entre ter representações e não
ser delas consciente é apenas aparente.
5
A 98; A 99; A 144.
113
não dependem do cogito e como tais podem ser dados independentemente do entendimento, uma
vez que a representação não é definida em termos de modificação do pensamento.
O parágrafo 13 da Dedução não deixa margem à dúvida ao dizer que as categorias “de modo
algum apresentam as condições em que os objetos nos são dados na intuição; por conseguinte,
podem-nos sem dúvida aparecer objetos, que não se relacionem necessariamente com as funções do
entendimento e dos quais este, portanto, não contenha as condições a priori ” (A 109), “(...) pois a
intuição não carece, de modo algum, das funções do entendimento” (A 90-91). É verdade que Kant
parece às vezes oscilar entre a posição do § 13 e a posição segundo a qual sem categoria não pode
sequer ser dado um objeto. Sem afirmar uma ou outra posição, Kant parece ficar no meio termo.
Assim, em A 111, lê-se que, sem a relação à apercepção transcendental, a intuição é “tanto quanto
nada”; já em A 112, Kant escreve que, sem a categoria, as percepções “seriam um jogo cego de
representações, isto é, menos do que um sonho” . Essas passagens quase que chegam a afirmar que
sem a apercepção transcendental não pode haver representação alguma, mas dizer “tanto quanto
nada” ou “menos do que um sonho” não é afirmar que não é nada. No entanto, o que está em jogo
nessas duas passagens não é a impossibilidade da intuição sem conceito, mas sim a impossibilidade
de que a intuição por si só constitua conhecimento. Trata-se simplesmente de que, sem a relação
com a apercepção transcendental, “uma multidão de fenômenos” (Gewühle von Erscheinungen; A
111) seria possível, mas não resultaria daí experiência, “encadeamento segundo leis necessárias e
universais” (A 111) ou “unidade completa e universal, portanto necessária, da consciência do
diverso das percepções” (A 112). Em suma, os fenômenos são possíveis sem a consciência
transcendental (conforme afirmava o parágrafo 13 da Dedução); essa consciência introduz apenas a
ligação segundo leis universais1.
Mas se até aqui Kant afirmou que sem a relação à consciência o fenômeno é “ tanto quanto
nada”, Kant parece depois mudar de posição, passando a afirmar que, “ sem a relação a uma
consciência, pelo menos possível, o fenômeno nunca poderia ser para nós um objeto do
conhecimento, não seria pois, nada para nós e, porque não possui em si mesmo realidade objetiva
alguma e apenas existe no conhecimento, não seria absolutamente nada” (A 120, grifo meu). De “
a intuição não carece, de modo algum, das funções do entendimento”, passando pelo “tanto quanto
nada”, até o “absolutamente nada” do fenômeno sem a consciência: eis, ao que parece, o progresso
de Kant2. Kant vai então definir a natureza representacional do fenômeno não como modificação
da mente ou do sentido interno, mas como determinações do meu eu idêntico (Bestimmungen
meines identischen Selbst; A 129). Afirmação, afinal, de um substancialismo do cogito?
1
Conforme o §14 da Dedução, que afirma que a categoria é condição do objeto de experiência (Objekt der Erfahrung) e
não do objeto dado (do §13).
2
Assim interpreta R. P. Wolff, que vê um desenvolvimento epistemológico (não cronológico) na doutrina de Kant, que
iniciaria com a tese da absoluta independência do fenômeno dado em relação ao entendimento, passaria pelas
afirmações oscilantes de A 111 e A 112 (o “ tanto quanto nada” e o “ menos do que sonho” ) e terminaria com o “
absoluto nada” do fenômeno sem a consciência, em A 120. Cf. Wolff, op. cit,157-159.
114
Identificação da representação com o pensamento e a conseqüente impossibilidade de haver
fenômenos sem a intervenção do entendimento?
Se virmos de perto, o que Kant estabelece mais uma vez em A 120 (passagem acima citada) não
é a impossibilidade de haver fenômeno sem a consciência, mas sim a impossibilidade de haver
objeto do conhecimento (Gegenstand der Erkenntnis) sem a relação com uma consciência possível.
Pois o fenômeno não tem em si mesmo realidade objetiva (objective Realität)1 e, assim, sem a
consciência e fora das condições de possibilidade do conhecimento, não seria absolutamente nada
para nós – enquanto objeto de conhecimento2. Note-se em segundo lugar que se trata da relação do
fenômeno a “ uma consciência pelo menos possível” . Se para ser Gegenstand der Erkenntnis, a
Erscheinung tem de ter uma relação com uma consciência possível, então o fenômeno é em
princípio independente da relação efetiva com a consciência, ao passo que em um cogito substancial
a representação, como modificação de pensamento, ou tem uma relação efetiva com o pensamento
ou então nada é. Assim, longe de afirmar que o objeto dado depende da consciência e de seus
princípios sintéticos, porque esta seria condição da existência do dado como fato da consciência,
Kant estabelece que apenas tem de haver sempre a possibilidade de levar o diverso sensível dado à
unidade da consciência; i.e., estabelece apenas que o eu penso possa sempre sintetizar o objeto dado
segundo as categorias3.
O eu penso não é algo já dado previamente como pronto, como uma substância
permanentemente pensante; em resposta a Eberhard, Kant observa que “a Crítica não aceita
absolutamente representações originais ou inatas (anerschafenne oder angeboren); todas em
conjunto, possam pertencer à intuição ou aos conceitos do entendimento, ela as considera como
adquiridas (erworben). Mas há uma aquisição originária (como se expressam os professores de
1
É significativo que Kant use aqui Realität, que diz respeito ao conjunto de caracteres ou determinações internas que
definem a essência do objeto (momento da Qualidade) - o que é, portanto, da ordem do conhecimento. Assim, sem
relação com a consciência, o fenômeno não possui Realität, embora possa existir. E como estamos falando do fenômeno
dado independenemente de sua relação com a consciência ou com as categorias, essa existência atribuída aqui aos
fenômenos não é a existência conferida pela categoria de modalidade, pois a modalidade diz respeito não à efetividade
ou ao conteúdo do juízo, mas unicamente ao valor objetivo da cópula do juízo em relação ao conhecimento a priori e às
leis puras do entendimento. Essa existência do fenômeno, dada independentemente do entendimento, não é, assim, a
existência que é própria da ordem do pensamento. Caso contrário, se a existência do fenômeno fosse exclusivamente a
que é conferida pela categoria de existência, estaríamos como que em face de alguma variante do argumento ontológico,
na medida em que do conceito de existência (e a categoria de existência é, por definição, um conceito puro) ou da
essência do ser ( e a categoria de realidade é, qua categoria, um conceito puro do entendimento) passaríamos para a
existência efetiva desse ser, passagem que é vedada no criticismo. Trata-se simplesmente da existência que tem de ser
conferida ao pensamento pela intuição empírica, pois se não houver um dado empírico, o pensamento, ou melhor, todo
conceito puro, caso não seja contraditório, jazerá para sempre na ordem da pura possibilidade lógica; trata-se, enfim, no
fenômeno dado, da existência, digamos, “efetiva” ( com aspas, pois esse termo – “efetivo” –, é usado impropriamente,
quando usado para designar aquilo que, em contraposição ao pensamento e à atividade da consciência, existe realmente,
não é ideal e, assim, independe do sujeito; pois “efetivo” possui em sua raiz o verbo latino facere, fazer, ou, mais
precisamente, o particípio passado desse verbo, factum, i.e., feito, o que justamente remete a uma atividade e a um
sujeito, remete, em suma, ao que não é dado independentemente da atividade da consciência, mas é produzido).
2
Cf. a carta de Kant a Marcus Herz de 26 de maio de 1789: os data dos sentidos, sem relacão com a experiência
possível ou sem alcançar a unidade da consciência, “ não seriam absolutamente nada para mim, na qualidade de ser que
conhece (als erkennendes Wesen)” . Ak., XI, 52.
3
Na segunda edição, Kant vai dizer : “ O eu penso tem de poder acompanhar (muss begleiten können) todas as
minhas representações” (B132) e não: o eu penso tem de acompanhar (muss begleiten) todas as minhas representações.
115
direito natural) e, conseqüentemente, [há uma aquisição] também daquilo que não existia
previamente, de modo que não pertencia a nenhuma coisa antes de tal ato” 1. Nesse sentido, a
representação eu penso envolve ela própria um processo de construção, na medida em que o eu
penso, veículo de todas as categorias, é apenas possível no processo da síntese do diverso sensível
dado: “(...) a mente (Gemüt) não poderia pensar a priori a sua própria identidade no diverso das
suas representações, se não tivesse diante dos olhos a identidade do seu ato (...)” (A 108) 2. Em
outras palavras, a construção do eu é consecutiva à construção da objetividade ou a construção da
objetividade é consecutiva à construção do eu: “A consciência originária e necessária da identidade
de si mesmo é, portanto, ao mesmo tempo, uma consciência de uma unidade, igualmente necessária,
da síntese de todos os fenômenos segundo conceitos (...)” (A 108)3. Daí resulta que o fenômeno
dado, embora representação do sujeito, seja independente da consciência transcendental e anterior a
esta4, tendo inicialmente apenas uma relação possível com ela; pois a representação é efetivamente
representação da consciência transcendental, somente quando já inscrita na unidade desta, i.e.,
apenas quando já foi sintetizada segundo as categorias. Somente então é possível definir o objeto
empírico, qua representação do sujeito, já não em termos de modificação da “Gemüt ” ou do
sentido interno, mas como determinação do meu eu idêntico.
***
O princípio geral da filosofia crítica de que temos que ver somente com representações de um
sujeito (e não com coisas em si) parecia indicar, à primeira vista, que os fenômenos dados, porque
representações do sujeito, dependiam inteiramente da consciência e tinham os princípios sintéticos
a priori desta como condição de existência enquanto fato da consciência. Desse modo, parecia
forçoso concluir não só que não poderia haver fenômeno sem a atividade sintética conceptual da
consciência, mas também que era impossível atribuir à consciência uma atividade meramente
formal, o que seria estabelecer a possibilidade de uma parte (a empírica) que, embora representação
do sujeito, não dependeria da consciência transcendental, algo aparentemente contraditório.
1
Descoberta, Ak, VIII, 221.
2
Ou, conforme a segunda edição, “ a unidade analítica da apercepção só é possível sob o pressuposto de qualquer
unidade sintética” (B134).
3
Do mesmo modo, a segunda edição diz que a apercepção “ é aquela autoconsciência que, ao produzir a representação
eu penso (...) não pode ser acompanhada de nenhuma outra” (B 132, itálico meu em produzir (hervorbringen)). Ou seja:
a própria representação eu penso não existe previamente à atividade do sujeito, mas é ela mesma produzida. Como
obvserva Riehl, somente a lei da unidade da consciência é a priori, ao passo que a representação, como conseqüência da
lei, é produzida (op. cit, I, 394 n). Conseqüentemente, o fenômeno dado, embora representacional, não pode ser
visto simplesmente como modificação do pensamento, como se dependesse necessariamente deste. A produção da
representação eu penso é a produção não do fenômeno dado, mas da unidade (objetiva) da representação. A
representação eu penso, uma vez que não é pronta nem dada previamente, deve ser continuamente efetivada, sem o que
há certamente representações do sujeito, mas não a unidade delas. (Cf. tb. B. Longuenesse, op. cit, p.68 n).
4
“ A representação que pode ser dada antes de qualquer pensamento chama-se intuição” (B 132, itálico meu).
116
Mas então se viu que Kant faz uma distinção na própria noção de representação, em oposição à
identificação pré-crítica, de natureza cartesiana, entre representação e pensamento. Embora relativa
a um sujeito, a representação não é necessariamente representação do eu penso. A própria unidade
sintética da consciência, vimos, não é algo previamente dado ou sempre presente nas representações
do sujeito, explícita ou implicitamente, mas é ela própria uma representação construída no processo
de síntese do diverso dado. A construção do eu é consecutiva à síntese do diverso sensível, sem o
que há fenômenos (“uma multidão de fenômenos encheria nossa alma”), mas não a sua unidade.
Desse modo, a consciência transcendental é condição não para que a representação seja dada, mas é
unicamente condição da conexão das representações segundo relações determinadas, i.e., leis
necessárias e universais, que são os conceitos puros do entendimento. Em oposição ao idealismo
construtor absoluto dos epígonos, no idealismo kantiano a consciência é construção formal do
fenômeno e nesse sentido pressupõe um dado, que é efetivamente dado e não construído. Sujeito e
objeto são faces opostas do mesmo processo, apenas quando o objeto empírico dado foi
determinado categorialmente.
Forma e Ato
A dedução subjetiva, por centrar sua análise na atividade de síntese, evidencia, mais do que
qualquer outra parte da Crítica, o dinamismo do sujeito que constrói a objetividade. Desse modo,
a solução formalista é, à primeira vista, exterior à dedução subjetiva e ao problema crítico e, em
vez de resolver o problema, parece antes evitá- lo1. Se o fundamento da dedução subjetiva está no
princípio construtivista, não é a redução da atividade do pensamento a formas (os conceitos puros)
incompatível com esse princípio? Não são as categorias formas estáticas, recipientes vazios nos
quais, por um processo de subsunção, é colocada e ordenada a matéria empírica? Como poderiam
fórmulas de caráter estático e abstrato explicar a genêse do objeto ?2 Ao enfatizar então o caráter
formal da síntese de recognição, não ficaremos na periferia do sistema crítico? Não estaremos
transformando o criticismo num edifício regular e rígido como um columbário romano? Afinal,
talvez tenha sido injusto o descontentamento de Kant para com Schlosser, que chamou o sistema
kantiano de manufatura de formas (Formgebungsmanufaktur)3.
Mais coerente com o espírito da revolução copernicana, da qual Kant teria se desviado com o
formalismo, parece ser não a constatação e classificação mecânica das formas do pensamento, mas
1
Cf. de Vleesch., op. cit, III, 287-296
2
Lachièze-Rey, L' Idéalisme Kantien, 3.
3
De Vleesch, op. cit., III, 288 e Vaih., op. cit., II, 64.
117
a referência ao princípio das formas: o ato que as produz1. De acordo com essa interpretação, a
categoria não seria uma forma dada e acabada, mas o produto final de uma atividade originária, que
produziria a forma à medida que produziria o diverso e sua unidade. A forma seria então como que
o precipitado de uma atividade, de modo que o formalismo daria lugar a um dinamismo construtor.
Tal interpretação das categorias parece seguir pelo menos o espírito da filosofia kantiana, uma vez
que o próprio Kant compara a origem do sistema das categorias à epigênese biológica, segundo a
qual forças vitais produzem formas orgânicas.
No entanto, essa interpretação só faz sentido se nos basearmos numa oposição irredutível entre
ato e forma; se concebermos uma atividade amorfa como causa eficiente de uma forma, termo final
do ato e distinto dele. Só então faz sentido opor o dinamismo de um ato criador a formas estáticas,
rígidas e mortas (recipientes vazios)2. Mas essa oposição irredutível entre ato e forma não ocorre
no criticismo, como mostra justamente a definição da categoria como regra. Pois então os conceitos
puros do pensamento, já não podem ser vistos nem como formas vazias e abstratas, recipientes onde
se coloca mecanicamente a matéria, nem como meros conteúdos de consciência, imagens ou
simulacros dos objetos representados; mas, qua regras, as categorias têm de ser concebidas como
modos determinados de produzir coisas3. Nesse sentido, a categoria não é produto de um ato, mas
justamente forma do ato, de modo que a oposição entre forma estática e ato não só não é necessária,
mas também não explica a essência do dinamismo construtor kantiano. Pensemos, por exemplo, na
regra do jogo de xadrez que diz: o bispo movimenta-se no tabuleiro diagonalmente, sem limite de
casas. Essa regra, na medida em que caracteriza e determina o movimento do bispo, em oposição ao
movimento de outras peças do xadrez, é a forma do ato.
Essa comparação é, porém, imperfeita para exemplificar a natureza da categoria como forma do
ato, pois posso muito bem imaginar outro movimento possível para o bispo: uma criança que ignora
as regras do xadrez pode empurrar o bispo no tabuleiro arbitrariamente ou pode até mesmo inventar
uma nova regra de movimento para o bispo, como movê-lo diagonalmente, mas sempre uma casa
de cada vez. Aí é então possível pensar que o ato (o movimento) difere da forma, é prévio a ela e a
fundamenta, porque ele pode revestir-se de diferentes formas ou mesmo de forma alguma. Mas a
categoria, diferentemente da regra do xadrez, é uma regra necessária de síntese (é uma lei), i.e., os
atos transcendentais da consciência objetivante não podem ser outros que os expressos pelas
1
Cf. de Vleesch, op. cit, III, 288: “Si le constructivisme est la vraie tendance que Kant a introduite dans la philosophie,
et qu'il a leguée aux romantiques, il s'est tourné trop fréquement vers cette hiérarchisation du savoir qui résulte de
l'imposition de formes de plus en plus abstraites (...) parce que lui-même était encore trop enraciné dans la tradition”.
Assim, ao rejeitar a bagagem do racionalismo formal que obscurece o princípio construtivista da dedução kantiana,
Fichte teria procedido em sua própria dedução com mais rigor do que Kant (de Vleesch, id. idid., 288 e 295).
2
Sobre esse ponto, cf. B.Rousset, op. cit., 391-395
3
Ou seja, a categoria contém inscrita em si um modo de ligar. Desse fato, resulta a possibilidade da passagem da
dedução metafísica para a transcendental, i.e., a passagem da forma dos juízos para a forma da atividade de síntese do
diverso sensível.
118
categoria1. Não me é dado escolher com quais regras posso sintetizar o diverso sensível de modo
necessário.
A categoria, qua regra, não deriva, pois, da formalização de atividades prévias nem é a sua
natureza determinada pela natureza da atividade; se assim fosse, a forma teria de ser remetida ao
seu princípio constitutivo, o ato que a produz. Mas na atividade sintética objetivante, forma e ato
recobrem-se necessariamente, e a forma, ao determinar a natureza da atividade, longe de ser forma
rígida e estática, produto de uma atividade em si amorfa, é a forma do ato2.
Todas essas análises conduzem à natureza própria do idealismo crítico como idealismo formal,
análise das condições objetivas ou seja
5. CONCLUSÃO
A filosofia crítica estabelece uma separação radical entre puro e empírico, forma e matéria. Essa
distinção não é, porém, acidental, como se fosse possível abandoná-la em razão de doutrinas mais
profundas ou essenciais do criticismo; como se Kant, preso à tradição que combatia, não tivesse
conseguido, senão em alguns momentos, seguir com coerência a lógica interna da revolução
1
Que a atividade transcendental de determinação do múltiplo não possa ter outros modos que os da categoria é algo
que não se pode explicar. Como diz Kant, não podemos “apresentar uma razão da peculiaridade do nosso entendimento
em realizar a unidade da apercepção a priori apenas mediante as categorias e exatamente dessa espécie e desse
número, tal como não podemos dizer por que temos precisamente essas funções dos juízos e não outras, ou por que o
tempo e o espaço são as únicas formas de nossa intuição possível” (B 145-146; itálico meu. Cf. tb. Prolegômenos, § 36,
318). Tal explicação, como escreve Kant numa carta de 1789 dirigida a Marcos Herz, é inteiramente impossível,
porque, “ teríamos de ter, além do mais, um modo de intuição outro do que nos é próprio e outro entendimento com o
qual pudéssemos comparar nosso entendimento, cada um dos quais apresentasse determinadamente as coisas em si: mas
podemos julgar todo entendimento somente por nosso entendimento e assim também toda intuição somente pela nossa.”
Assim, “ uma tal investigação está inteiramente fora dos limites da razão humana” . Mas, acrescenta Kant, não é de
modo algum necessário responder a essa questão, pois nosso conhecimento das coisas é o conhecimento da experiência,
que é possível somente sob aquelas condições, de maneira que todo outro conceito das coisas (que não são de tal modo
condicionadas) seria vazio e não serviria para nenhum conhecimento (carta de 26 de maio de 1789, Ak. XI, 51-52). Cf.
tb. R.P. Wolff, op. cit, pp. 130-131.
2
Se a síntese a priori de recognição no conceito é simplesmente a forma da recognição empírica, não é porque a
matéria empírica é colocada em formas vazias, aqui na forma de causalidade, ali, na de substância, como se fizéssemos
entrar as representações e as coisas numa rocha de compartimentos múltiplos (como diz de Vleesch, op. cit., III, 287).
Inversamente, a recognição a priori é forma da empírica, porque é uma atividade real (a síntese reprodutiva da
imaginação), que, condicionada por uma categoria, sintetiza a matéria empírica dada de acordo com uma modalidadede
de ação (naturalmente, “modalidade” não se refere aqui às categorias de modalidade, mas sim ao que é comum a todas
as categorias: modos determinados de unificar o diverso sensivel); pois a categoria, qua regra, contém inscrita em si um
modo determinado de atividade. Se nos lembrarmos de que formal é o que estabelece relações, a atividade formal (a
síntese de recognição no conceito) é uma atividade de unir o diverso dado através de uma modalidade determinada,
atividade que introduz assim um sistema de relações determinadas nos objetos empíricos. Resta observar: a imaginação,
fundamento da síntese em geral, é uma função cega da alma (A 78), e, por essa razão, precisa de conceitos que
determinem direção e sentido à sua atividade. Em outras palavras, sem os conceitos puros, a atividade de síntese é um
mero tatear – um movimento, cuja resultante tende a ser nula, i.e., tende a ser não-movimento. Assim, se à primeira
vista os conceitos puros constituíam uma armadura, que, indissoluvelmente colada à consciência transcendental, parecia
limitar e impedir o livre movimento do sujeito, agora se vê que eles são justamente os fatores que possibilitam e
efetivam o dinamismo subjetivo que constrói a objetividade.
119
compernicana; como se “a letra kantiana, tanto quanto a aristotélica, matasse o espírito”1 do
criticismo. O projeto kantiano é essencialmente crítico. Segundo o próprio Kant, o criticismo nasceu
das antinomias da razão pura. Referindo-se a elas, diz Kant: “o ano de 69 deu-me uma grande luz”
2
; já numa carta a Garve, Kant escreve: “o ponto do qual parti... a antinomia da razão pura”; e
também: “Foi a antinomia o que primeiro me despertou do sono dogmático” 3. Assim, em virtude da
crise da metafísica dogmática, fonte de contradições insuperáveis no seio da própria razão, faz-se
necessário, antes de tratar do próprio objeto, estabelecer o que é objetividade, determinar os
critérios que permitem julgar o que é objetivo e, então, até que ponto pode-se conhecer
objetivamente.
Da questão crítica da objetividade ou pretensão objetiva de nossas representações (i.e., modos de
conhecimento), nasce então a necessidade de distiguir, tanto no domínio prático como no teórico, “
a parte empírica da parte racional e que se anteponha à Física propriamente dita (empírica) uma
Metafísica da Natureza e à Antropologia prática uma Metafísica dos Costumes, que deveria ser
cuidadosamente depurada de todos os elementos empíricos, para se chegar a saber de quanto é
capaz em ambos os casos a razão pura e de que fontes ela tira seu ensino a priori” 4. Assim, o
problema da objetividade de nossas representações, o projeto crítico de determinar o limite de nosso
conhecimento e o método de separação entre o a priori e o empírico implicam-se necessariamente.
O criticismo, ao separar o a priori e o empírico e ao colocar em evidência o elemento puro (em
virtude da questão do limite do nosso conhecimento), acabou por deixar em segundo plano a
relação entre o puro e o empírico. Tendo em vista a crítica à metafísica e o que se pode conhecer
além do campo da experiência, Kant lançou de algum modo sombra sobre a relação efetiva entre o
transcendental e o empírico. Kant, aliás, como nota Riehl5, tinha consciência dessa questão, tanto
que ao se dirigir a Reinhold e aos demais amigos “hipercríticos”, recomendava que se investigasse,
para completar o projeto crítico, não acima ou além dos princípios críticos já estabelecidos6, mas
sim abaixo, dos princípios para o elemento material ou empírico. Há uma passagem do Opus
Postumum em que Kant, usando uma linguagem fichteana, mostra de maneira exemplar o
significado da investigação hipercrítica de ir acima dos princípios críticos: “Se se transgride o limite
da filosofia transcendental, então o pretendido princípio se torna transcendente, i.e., o objeto torna-
se uma não-coisa (Unding), e o seu conceito contradiz-se a si próprio, pois transgride a linha
limítrofe de todo saber: a palavra pronunciada é sem sentido. Ora, aqui devemos nos lembrar que
1
Segundo Kant (em seu Esclarecimento sobre a Doutrina da Ciência de Fichte), é o que afirma o autor de uma resenha
aparecida na Erlangische Litteraturzeitung, uma vez que quem quiser entender a Crítica, diz o resenhista, tem primeiro
de assumir o ponto de vista de Beck ou de Fichte (Ak., XII, 370 - 371).
2
Reflex. nº. 5037; citada por B. Rousset, op. cit, 30.
3
Ak., XII, 257-258. Não é, pois, por acaso que a Dissertação tenha começado com a antinomia do simples e do todo.
4
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, in Os Pensadores, trad. Paulo Quintela; ed. Abril, SãoPaulo, 1980.
5
Op. cit, I, 13.
6
Reinhold, por exemplo, sobre a sua Teoria da Faculdade de Representação, escreve em uma carta a Kant, de 14 de
junho de 1789; “ eu considero [a Teoria da Faculdade de Representação] como as próprias premissas de sua [i.e., de
Kant] teoria da faculdade de representação e a chave para a Crítica da Razão Pura (Ak., XI, 60).
120
diante de nós temos o espírito (Geist) finito, não o infinito. O espírito finito é aquele que não se
torna ativo senão pela passividade (Leiden); somente pelos limites (Schranken) ele alcança o
absoluto; somente na medida em que recebe matéria, ele age e produz (bildet). Tal espírito vai
então ligar, ao impulso (Trieb) para a forma ou para o absoluto, um impulso para a matéria ou para
os limites, na medida em que estes últimos são as condições sem as quais ele não poderia ter o
primeiro impulso nem satisfazê-lo. Até que ponto possam coexistir no mesmo ser duas tendências
tão contrapostas, é um problema que certamente pode colocar em dificuldades os metafísicos, mas
não os filósofos transcendentais. Este de forma alguma se propõe a explicar a possibilidade das
coisas, mas contenta-se em estabelecer os conhecimentos, a partir dos quais se concebe a
possibilidade da possibilidade da experiência (die Möglichkeit der Möglichkeit der Erfahrung). E
visto que a experiência tampouco é possível sem aquela contraposição como sem a sua unidade
absoluta, então ele, com perfeita justificação, coloca ambos os conceitos como condições
igualmente necessárias da experiência, sem se preocupar ademais com a sua possibilidade de
unificação (Vereinbarkeit)” 1. Assim, quando, para alcançar um princípio único e não dualista, que
unifique as oposições, se vai acima dos princípios críticos, estabelecidos em vista da “possibilidade
da possibilidade da experiência”, abandona-se então o domínio transcendental e crítico e ingressa-se
na metafísica.
Já sabemos tanto o destino da admoestração de Kant a Reinhold e amigos “ hipercríticos” como
o desfecho da história. Diante da separação crítica entre o elemento a priori e empírico, forma e
matéria; diante da enfâse crítica no conhecimento puro e o conseqüente obscurecimento dos fatores
materiais, os pós-kantianos, ao invés de estabelecerem a passagem de cima para baixo (dos
elementos ideais para os materiais), foram acima dos princípios críticos; então, a partir de um
princípio único derivaram toda a ordem empírica2. Desse modo, quando os epígonos, em relacão
aos princípios críticos, fizeram do caminho para cima e para baixo um só e mesmo caminho,
acabaram por derivar mesmo as determinações empíricas específicas do transcendental e da
atividade de sujeito. Nas palavras um tanto duras de Riehl: “o descuido [por parte de Kant], ou
1
Opus Postumum, Reicke XXXI, 366; cit. por Vaihinger, op. cit, II, 68.
2
Cf. de Vleesch.; “ S'il [Kant] avait rejeté ce bagage non éliminé du rationalime formaliste, tel Fichte, il aurait pris un
pont de départ absolument unique (et non dualiste) et n'aurait pas cherché une solution quelconque du coté de la
subsomption. Il aurait saisi comme Leitmotiv que représentation et objet ne s'exliquent qu'à condition de dessiner la
courbe de l'acte de penser qui préside à leur construction.” (itálico meu; op. cit., III, 288). Cf. tb., no mesmo sentido,
Rubens R. Torres, O Espírito e a Letra, pp. 90-91, em que o autor afirma (é verdade que na forma de pergunta e de
hipótese, mas trata-se da mera letra, ou melhor, da mera forma de pergunta) que seria a intenção de Fichte reestabelecer
“o kantismo em sua verdade mais autêntica, pondo em evidência o pensamento que, para além da obra, dá à obra seu
sentido. Se assim fosse [e Rubens Torres mostrará que assim é], a filosofia de Fichte poderia ser caracterizada, a partir
de sua intenção, como a investigação de uma espécie de condição transcendental de possibilidade da própria filosofia
transcendental”. A doutrina da imaginação, que daria a Fichte a via de acesso para essa investigação, “deverá liberar o
idealismo transcendental de toda ambigüidade, eliminando qualquer recurso à receptividade e à noção de uma coisa em
si para explicar o dado. Se as condições de possibilidade da experiência são condições de possibilidade dos objetos é
porque 'toda realidade – entende-se, para nós, pois não há outro modo de entendê-lo em um sistema de filosofia
transcendental – é produzida pela imaginação”. “Com isso o idealismo transcendental (...) afirma resolutamente sua
verdade, mais próxima do espírito da descoberta crítica que a própria letra de Kant: ‘A natureza inteira é um produto da
imaginação’ ”.
121
melhor a pequena consideração para com o fator material do conhecimento ao lado do fator ideal
propiciou a posterior monstruosidade de afastar inteiramente o primeiro fator. Um Fichte pôde
acreditar ter superado Kant, quando, porém, apenas elevou desmesuradamente o erro deste”1. Mas
então, mais do que elevar um erro à potência infinita, o filósofo hipercrítico transgrediu os limites
da filosofia transcendental, abandonou o caminho crítico e ingressou na metafísica.
Nesse sentido, a dedução subjetiva é paradigmática. Se um Kemp Smith a considerava uma
doutrina pós- ou supercrítica em meio a camadas pré-críticas ou críticas da Dedução
Transcendental, o nosso exame da dedução subjetiva mostrou que a decomposição do dinamismo
construtor em dois vetores (três sínteses e desdobramento em cada uma delas em síntese empírica e
síntese a priori) possui um significado diferente do que lhe atribui a interpretação idealista. A
dedução subjetiva, em vez de mostrar a genêse do objeto empírico dado a partir da atividade a
priori, mostra a construção da representação objetiva a partir do dado. Em primeiro lugar, na
relação das sínteses inferiores com a superior, a síntese de recognição no conceito, viu-se que cada
etapa de síntese é completa em si mesma e não depende da superior. Em segundo lugar, na relação
entre a síntese a priori e a empírica,viu-se que a síntese a priori é mera forma da empírica. Desse
modo, não se pode ver na dedução subjetiva a afirmação de um idealismo construtor absoluto, em
que a apercepção pura seria condição do empírico e das sínteses inferiores e, em última análise,
também da intuição sensível e do objeto empírico. O dado empírico da sinopse, ao invés de ser o
termo final ou ponto de chegada do dinamismo construtor, é o ponto de partida do processo de
construção da objetividade do dado. Nesse processo, então, o termo final não é o dado empírico,
mas a representação objetiva completa do dado (o Ganzes de representações comparadas e
ligadas)2. Trata-se, enfim, não da construção da representação do todo (a ordem empírica),
processo em que vários átomos de representação, como partes, são unidos para formar o objeto
empírico, mas trata-se da contrução do todo da representação, processo em que o dado empírico,
qua representação, é submetida a várias etapas de determinação até a sua objetivação completa.
Assim, os intérpretes supercríticos da dedução subjetiva, ao colocar a apercepção transcendental
como condição de possibilidade do próprio dado, põem de cabeça para baixo o processo de
construção da objetividade.
A dedução subjetiva, na medida em que afirma a independência e anterioridade do dado
empírico, permanece fiel à questão crítica fundamental da validade objetiva de nossas
representações ou modos de conhecimento. Como notamos no início deste trabalho, a questão
essencial da Dedução Transcendental é saber “como poderão ter validade objetiva as condições
1
Riehl, op. cit, I, 13.
2
Cf. B. Rousset, op. cit, 349-350. Esse intérprete resume com precisão a análise de Kant na dedução subjetiva: “(...)
estamos na presença de várias análises regressivas particulares, que vão dos produtos às suas condições, no interior de
uma análise geral genética, que é a descrição do movimento progressivo que leva do dado ao produto, da percepção à
ciência. Não se tem, aí, um caminho que leva ao idealismo absoluto: é, antes, o inverso, já que a anterioridade e
independência do dado não são colocados em questão”.
122
subjetivas do pensamento, isto é, como poderão propocionar as condições de possibilidade de todo
o conhecimento dos objetos; pois não há dúvida de que possam ser dados fenômenos na intuição
sem as funções do entendimento” (A 89-90). Ou seja, o problema da validade objetiva dos conceitos
puros do pensamento tem como contrapartida o fato de eles não serem condicões da possibilidade
da existência dos fenômenos. É a independência do dado em relação ao conceito que dá sentido à
questão da relação entre representação e objeto.
Essa premissa fundamental do problema da dedução transcendental é formulada já na conhecida
carta de Kant a Marcus Herz, de 1772, em que Kant faz um balanço dos resultados da Dissertação
de 1770. Kant aí escreve que o problema essencial, negligenciado pelos filósofos (“a chave de todo
o segredo da metafísica”) era saber “sobre que fundamento repousa a relação entre o que se chama
representação em nós e o objeto”. A dificuldade em compreender o fundamento da relação da
“representação em nós” com o objeto não se dá no caso das representações sensíveis (aqui o objeto
é causa das representações) nem no caso em que a própria representação funda ou produz o objeto.
Todo o problema consiste, portanto, em compreender como representações intelectuais, que “se
assentam na nossa atividade interna” podem concordar “com os objetos que, porém, não são
produzidos por ela?”1. Ou seja, a relação dos conceitos puros com os objetos somente se põe e se
justifica como problema a ser resolvido ou como segredo a ser revelado sob a condição de que a
existência dos objetos não é posta por uma atividade subjetiva, mas, como independente desta, é
exterior a ela. Em termos críticos, trata-se da existência de uma coisa que é dada como fenômeno.
Não há dúvida de que a Crítica irá compreender em termos inteiramente diversos a relação da
representação com o seu objeto ou com as coisas. Na carta a Herz, o fundamento da relação entre
representação e objeto é compreendido em termos estritamente causais: ou o objeto seria causa da
representação ou a representação causa do objeto. Já na Crítica da razão pura, a Dedução
Transcendental fala da concordância não mais em termos causais, mas em condições de
possibilidade. Contudo, tanto na carta a Herz como na Crítica, o problema fundamental da validade
objetiva das representações intelectuais está inseparavelmente ligado à independência da existência
do objeto em relação à atividade intelectual e aos modos a priori de intuição. É preciso aqui
lembrar que a distinção entre fenômeno e coisa em si mesma não é a distinção entre duas classes de
seres, fenômeno de um lado e coisa em si do outro, mas distinção de dois modos de consideração do
mesmo objeto (o objeto considerado como fenômeno, isto é, sujeito ás condições a priori da
sensibilidade, e este mesmo objeto pensado com abstração das condições sensíveis, isto é,
considerado em si mesmo).
Vimos que a dedução subjetiva responde à questão, ao mostrar que, embora o fenômeno seja
dado independentemente da categoria, a categoria é válida objetivamente, porque o dado só pode
ser conhecido com a intervenção da categoria, na medida em que a atividade sintética categorial
1
Carta a Marcus Herz, in Textos Pré-Críticos, p.234.
123
produz a legalidade (ou o esquema a priori da experiência) dos fenômenos dados. Em outras
palavras, embora a representação (no caso, o conceito) “não produza o objeto quanto à existência”,
ela é contudo representação determinante a priori em relação ao objeto, pois apenas mediante ela é
possível algo como objeto (A 92-93).
No entanto, o hysteron próteron da interpretação supercrítica, ao colocar a categoria na raiz do
próprio fenômeno dado, acaba por suprimir a questão crítica fundamental da validade objetiva de
nossas representações. Pois se o eu ou o ato de pensar é condição para que possa nascer o próprio
fenômeno, o problema já não é saber como nossos conceitos puros intelectuais possam se referir
aos objetos, mas sim como eles podem deixar de ser objetivos. Uma vez que não poderia haver
objeto sem o conceito intelectual, como seria possível que o ato de pensar, que põe o objeto como
extraposição de sua atividade, não se refira ao objeto que ele mesmo produziu? Seria algo tão
possível como pensarmos uma causa sem efeito1. Deste modo se deixa de lado a questão critíca
fundamental da validade objetiva de nossos conceitos puros, e o problema passa a ser precisamente
o inverso: como um conceito poderia não ser objetivo? O problema já não é, enfim, a objetividade,
mas o problema cartesiano da não-objetividade2.
Assim, quando vê na dedução subjetiva não tanto o desenho acabado, mas antes o esboço da
curva do ato de pensar que preside à construção da representação e do objeto, a interpretação
supercrítica transgride os limites da filosofia transcendental, abandona a questão crítica e volta de
algum modo ao ponto de partida pré-crítico. Uma história que, aliás, não nos é estranha.
1
Cf. de Vleesch, op. cit, III, p.294. Para esse intérprete, o “movimento natural da revolução copernicana” leva a
considerar a objetividade como relação imanente ao pensamento, extraposição da atividade do eu. Kant, preso à
tradição formalista, não teria seguido esse movimento natural, ao passo que Fichte seria, nessa questão, “plus franc et
plus loyal”, pois “l’ objectivité conserve chez lui toute son immanence. Objet, contenu, sont des moments de l'acte de
penser même” .
2
Cf. de Vleesch. (op. cit, III, 294): “C’est-à-dire que nous devons faire retour en quelque sorte à la position cartésienne:
l'objectif n`est pas paradoxal. L`erreur, l’ illusion, le non-objectif, voilà le problème” .
124