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“Mulheres de santo”: gênero e liderança feminina

no candomblé
Jaqueline Sant’Ana Martins dos Santos1

Entrelaçando gênero e religiosidade, este trabalho se propõe a apresentar uma breve


reflexão sobre o papel da mulher e os desafios enfrentados pelas lideranças femininas
no candomblé. Vencendo resistências e preconceitos, o protagonismo das mulheres é
tido como um elemento característico desta religião de matriz africana profundamente
ligada ao culto à natureza e à ancestralidade. Nos terreiros, elas se desdobram em
muitas funções, ora provendo sustento e comandando rituais, ora preparando refeições,
zelando pelos “iniciados no santo” e acolhendo aqueles que precisam de ajuda espiritual.
A despeito do reconhecido pioneirismo e da grande visibilidade das mães de santo na
cultura popular brasileira, o machismo e a desigualdade de gênero são frequentemente
mencionados em entrevistas e estudos acadêmicos focados nas “mulheres de santo”,
tais como os trabalhos de Dani Bastos e Patrícia Birman. Para além da observância de
tabus que atingem as mulheres de forma específica e colocam o corpo feminino em
evidência, como a menstruação, a existência de uma forte divisão sexual de tarefas
executadas nesses espaços de culto, delimitando funções exclusivamente femininas
e outras exclusivamente masculinas, acaba por refletir a forma diferenciada e desigual
com que homens e mulheres participam da sociedade brasileira e nos permite discutir
noções de poder e tradição, elementos muito caros ao campo da religião.
Palavras-chave: Religião; Candomblé; Gênero; Mulheres.

By intertwining gender and religiosity, this paper aims to present a brief reflection on the
role of women and the challenges faced by female leaders in Candomble. Overcoming
resistances and prejudices, the protagonism of women is seen as a typical element of this
religion of African origin, deeply linked to the cult of nature and ancestry. In the terreiros,
they unfold in many functions, sometimes providing sustenance and commanding
rituals, sometimes preparing meals, watching over the “initiates in the saint” and
welcoming those who need spiritual help. In spite of the recognized pioneerism and the
high visibility of the “mothers of saints” (priestesses) in Brazilian popular culture, sexism
and gender inequality are frequently mentioned in interviews and academic studies
focused on “women of the saint”, such as the works of Dani Bastos and Patricia Birman.
Beyond the observance of taboos that hit women specifically and put the female body
in evidence, such as menstruation, the existence of a strong sexual division of tasks
performed in these spaces of worship, defining exclusively female and exclusively male
functions, ends up reflecting the unequal way in which men and women participate in
Brazilian society and allows us to discuss notions of power and tradition, both very dear
in religious studies.
Keywords: Religion; Candomble; Gender; Women.

Neste artigo, pretendemos elaborar uma breve reflexão sobre a liderança


feminina no candomblé, um fenômeno de extrema relevância para o
aprofundamento reflexivo das questões de gênero na sociedade brasileira

1 Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do


Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).
e para o fortalecimento identitário negro. Inicialmente, discutiremos como o
conceito de gênero pode ser utilizado como uma ferramenta de compreensão
das múltiplas dinâmicas do poder, explicitando não somente diferenças, mas
também desigualdades entre homens e mulheres e entre diferentes formas
de exercício desses papéis sociais. Considerando a participação das mulheres
na vida pública das terras iorubás e como essas posições de prestígio foram
reordenadas no Brasil colonial e escravocrata, observaremos o surgimento das
lideranças femininas nas casas de culto de matriz africana. Guiando nossa análise
de volta ao tempo presente, consideraremos alguns aspectos da cosmovisão do
candomblé e a diversidade de representações em torno das mulheres reunidas
nas figuras das yabás, as orixás femininas do panteão nagô, e comentar algumas
questões em torno desse ideário, que engendra tensões, alianças e conflitos no
cotidiano dos terreiros.

Gênero na compreensão do mundo social

Ocupando um espaço central nos principais debates da história recente e alvo


de constantes ataques por parte dos setores mais conservadores da sociedade, o
conceito de gênero pode ser compreendido como um instrumento que nos ajuda
a pensar práticas, discursos e valores que classificam e organizam o mundo social
de forma binária, relacional e estruturante, operando na produção de diferenças
entre pessoas, objetos e atividades com base nas noções de masculino e feminino.
Muitas dessas diferenças são ordenadas socialmente de forma hierarquizada,
criando desigualdades sociais que comprometem o pleno desenvolvimento e a
inclusão de milhares de indivíduos. A (re)produção de desigualdades ligadas ao
gênero não se dá apenas entre homens e mulheres, mas também intragrupos,
ordenando diferentes formas de exercício de masculinidades e feminilidades
– algumas delas sendo coletivamente reconhecidas e prestigiadas, outras
não. Muito do que foi escrito nessa temática ao longo da segunda metade do
século XX diz respeito à separação entre sexo e gênero, delimitando aquilo que
“Mulheres de santo”: gênero e liderança feminina no candomblé

pertenceria ao plano natural, biológico e inato (sexo) e aquilo que estaria ligado a
uma construção social, ou seja, adquirido por meio da cultura e, portanto, passível
de mudanças conforme determinações histórias e contextos locais (gênero).
A historiadora Joan Scott (1989) apresenta o gênero como uma categoria
analítica que ajuda a pensar as relações de poder na sociedade. Para a autora,
gênero se refere à organização social da relação entre os sexos, e seu uso
recente seria derivado de pensadoras feministas norte-americanas que queriam
destacar o caráter fundamentalmente social das distinções com base no sexo,
rejeitando o determinismo biológico e sublinhando o “aspecto relacional das
definições normativas de feminilidade” (SCOTT, 1989, p. 1) e a função estruturante
e organizadora da sociedade que o gênero apresenta. Em uma definição mais
concisa: “Gênero […] é uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais
das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo
esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (SCOTT,
1989, p. 3).

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As construções sociais que incidem sobre os corpos, contudo, não se limitam

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ao gênero, operando também por meio de marcadores como classe e raça.
Não é possível isolar o machismo e a violência de gênero sofrida por essas
mulheres do racismo estrutural, do preconceito religioso e das representações
estereotipadas das mulheres negras em nossa sociedade. Nesse sentido, cabe
pensar a interseccionalidade, ou seja, o entrecruzamento ou articulação de
marcadores sociais de gênero, raça, religiosidade e geração.
Sabe-se que os valores igualitários que moldaram as sociedades burguesas
modernas não eram, de todo, igualitários. Jeni Vaitsman (1994), socióloga e
pesquisadora de gênero e organizações públicas, defende que as mulheres foram
excluídas da concepção de indivíduo moderno no contexto de desenvolvimento
do capitalismo industrial, primeiramente pela “diferenciação institucional entre
distintas atividades sociais, fazendo com que a família perdesse seu caráter de
unidade produtiva voltada para o mercado” (VAITSMAN, 1994, p. 29), e depois
pela hierarquização entre o trabalho produtivo (remunerado), de domínio
masculino, e o trabalho improdutivo (doméstico), de domínio feminino.
A antropóloga Adriana Piscitelli (2008) localiza no final da década de 1990
a emergência de categorias que aludem à multiplicidade de diferenciações
que atravessam o mundo social articuladas ao gênero. Estas categorias de
articulação, ou interseccionalidades, cujos conteúdos se diferenciam bastante de
acordo com a abordagem ou recorte teórico adotado, surgem de uma leitura
crítica de conceitualizações generalistas sobre um padrão “universal”, tais como
aquelas que dizem respeito a uma única “experiência feminina”. Nomes como
Joan Scott, Judith Butler e Marilyn Strathern são citados pela antropóloga como
autoras de textos críticos que já no final da década de 1980 questionavam
as primeiras formulações em torno do conceito de gênero, apontando uma
“universalização do quadro ideológico do poder e das relações de poder
presentes no paradigma ocidental das relações de gênero” e os limites de uso de
noções em torno de “relações de dominação e subordinação, exploração, coerção,
controle e desigualdade” (PISCITELLI, 2008, p. 264). Esta questão, contudo, se
desenvolveu não apenas como um problema teórico, mas também político, já
que tem demandado a visibilidade de outras identidades nos movimentos
feministas, que são agora interpelados por terem criado um sujeito político
feminista universal branco, de classe média e ocidental, excluindo e apagando
a luta de mulheres negras, lésbicas, trabalhadoras, aquelas oriundas de países
de Terceiro Mundo e ex-colônias, orientais etc. Um dos destaques dessa linha de
pensamento é a produção da pesquisadora norte-americana Kimberlé Crenshaw
(2002), que analisa como os chamados “direitos universais” não contemplam
as especificidades de determinados grupos, ignorando vulnerabilidades e
mantendo certas identidades em um local periférico.
A discussão sobre a maneira como se entrecruzam marcadores de diferenciação,
como geração, classe, raça, escolaridade etc., implica uma ênfase aos contextos,
com um apelo à observação do contingente, do nacional e de questões históricas
específicas atreladas à localização e ao desenvolvimento de determinados
grupos sociais. A valorização da experiência, da subjetividade, da agência dos
indivíduos e das vivências pessoais é pauta importante na contemporaneidade
e diz respeito aos processos de subjetivação e criação de identidades, mas
chama atenção também para as oportunidades ou vulnerabilidades de pessoas
e grupos nas estruturas e hierarquias sociais.

Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão,


de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero,
também é verdade que outros fatores relacionados à suas
identidades sociais, tais como classe, casta, raça, cor, etnia, religião,
origem nacional e orientação sexual são ‘diferenças que fazem a
diferença’ na forma como vários grupos de mulheres vivenciam a
discriminação (CRENSHAW, 2002, p. 173).

Sabemos que a produção do conhecimento ocidental obedece a ditames


excludentes e/ou pouco representativos, uma tendência que se repete
inclusive em movimentos sociais dispostos a reivindicar os direitos de grupos
marginalizados, tais como mulheres, negros e LGBTs. Comentando o movimento
feminista, fortemente representado pela clássica imagem das sufragistas
europeias brancas, Sueli Carneiro ressaltou “a insuficiência teórica e prática
política para integrar as diferentes expressões do feminino construídas em
sociedades multirraciais e pluriculturais” (CARNEIRO, 2003, p. 118). Nesse escopo,
um dos exemplos mais óbvios é a reivindicação de “enegrecer o feminismo”, uma
expressão que coloca em xeque a invisibilidade das mulheres negras e de suas
pautas, mesmo no movimento brasileiro de mulheres.

Identidade negra e poder feminino

Segundo a filósofa e educadora Sueli Carneiro, pensar o papel da mulher e


sua representação mítica nos cultos afro-brasileiros “se constitui em importante
elemento no resgate da identidade feminina negra” (CARNEIRO, 2008, p. 117).
“Mulheres de santo”: gênero e liderança feminina no candomblé

Falar de candomblé é refletir sobre uma visão de mundo, uma prática social e
uma disposição simbólica que está intimamente ligada à identidade negra e afro-
brasileira. Em um contexto de afirmação e revisão de identidades periféricas, nos
propomos a pensar as trajetórias excepcionais de mulheres majoritariamente
negras, pouco escolarizadas e pertencentes às camadas mais populares da
sociedade brasileira, notadamente violenta, machista e excludente. Muitas
vezes vítimas de abusos, preconceitos e violências, essas mulheres encontram
no candomblé um espaço de resignificação de uma trajetória de vida pautada
pelo sofrimento e pela privação, material ou simbólica, tal como apontou a
antropóloga Patrícia Birman (1995).
A reflexão sobre a liderança feminina no candomblé e a importância das mães
de santo não é um assunto recente nas ciências sociais: em um pioneiro trabalho,
realizado ainda na primeira metade do século XX, em meio à ditadura varguista,
a antropóloga norte-americana Ruth Landes (2002) descreveu minuciosamente
os desdobramentos do poder religioso feminino na cidade de Salvador (BA).

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Segundo a autora, eram as mulheres do candomblé que canalizavam a vida

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do povo, um contraponto muito interessante àquilo que se entende, até os
dias de hoje, como o habitual no que diz respeito aos papéis de gênero e aos
espaços ocupados pelos sujeitos sociais, com o espaço doméstico associado ao
feminino e o espaço público, ao masculino. Essa divisão sexual do trabalho faz
muito sentido quando falamos da burguesia urbana e das classes remediadas
do passado brasileiro, mas não necessariamente das classes populares, sejam
elas urbanas ou rurais, e da população negra em geral. Quem sempre teve de
trabalhar para conseguir seu sustento e manteve a unidade familiar como uma
fonte de produção de bens de consumo conseguiu manter uma mobilidade
única nos espaços públicos.
Em artigo, a socióloga Teresinha Bernardo (2005) destacou alguns fatores que
permitiram a proeminência das mulheres negras no comando dos terreiros de
candomblé. Segundo a pesquisadora, enquanto os homens negros se concentraram
nas fazendas, se dedicando ao trabalho braçal e ao cultivo agrícola, as mulheres
conseguiram se adequar às mudanças sociais e econômicas do período colonial
ocupando funções domésticas e comerciais diversificadas nos centros urbanos,
com uma espécie de “livre trânsito” entre a casa e a rua que auxiliou sua circulação
no espaço público, garantindo a possibilidade de preparar suas oferendas aos
orixás e depositá-las nas ruas. O trabalho como escravas de ganho, por exemplo,
com a venda de frutas, verduras e quitutes em tabuleiros nas feiras livres e nas ruas
das principais cidades do país, possibilitou que algumas mulheres transitassem
pelo epicentro das trocas materiais e simbólicas da sociedade escravocrata,
propiciando uma experiência de comércio diferenciada da dos homens negros.
Essa função permitiu o acúmulo de certo capital monetário, que foi utilizado
na aquisição de cartas de alforria e no estabelecimento de pequenos negócios
locais que garantiam o sustento de muitas famílias libertas, que se encontravam
profundamente vinculadas à figura da mãe provedora.
Esse cenário de importância nas trocas não é inédito e evoca a liberdade
de circulação e o destaque nos negócios obtidos pelas mulheres iorubás,
uma tradição que se adaptou e continuou no Brasil. Bernardo (2005) destaca
a relevância do lugar social ocupado pelas mulheres iorubás para o exercício
de um poder essencial para a vida e ressalta não somente as trocas de bens
de consumo, como também de bens simbólicos nesses espaços – a circulação
de notícias, o estreitamento das relações sociais, as negociações familiares. O
deslocamento entre o espaço doméstico e o espaço público e a participação
feminina na tomada de decisões políticas já era uma realidade nas cidades
iorubás no século XVIII, quando data a fundação de duas associações femininas
extremamente importantes – as sociedades Ialodê (“senhora encarregada dos
negócios públicos”, em tradução do iorubá), de administração e participação
política, e Gueledé, ligada ao misticismo dos rituais de fecundidade, fertilidade
e ao simbolismo feminino. No Brasil, o estabelecimento das primeiras casas
de culto de matriz africana passa por esses aspectos políticos, econômicos e
históricos, como veremos a seguir.
As origens da liderança feminina nos terreiros brasileiros

No Brasil, a fundação da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô
Oká) é considerada um marco institucional do candomblé. O Terreiro da Casa
Branca foi fundado em Salvador (BA) na década de 1830 com a mudança
de endereço do Terreiro da Barroquinha, fundado por lideranças femininas
nagôs vindas das cidades de Oyó e Ketu. Trazidas para o Brasil na condição
de escravas, as princesas Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô comandavam os rituais
em engenhos de cana-de-açúcar e tiveram de mudar seu endereço de culto
por temerem a perseguição das autoridades da época, consolidando a Casa
Branca nas terras do Engenho Velho do Rio Vermelho de Baixo, arrendadas por
Iyá Nassô (MORIM, 2014). O nome do terreiro faz referência a essa fundadora,
que atendia por uma alcunha que não corresponde a um nome próprio, mas
sim a um importante título de sacerdotisa do império iorubá de Oyó, o qual
durou até 1835 e se situava na África Ocidental, onde atualmente temos o
sudoeste da Nigéria e do Benim.
A partir dessa matriz, nomeada Patrimônio Histórico do Brasil em 1984
(SERRA, 2008), foram criados outros terreiros de prestígio, como o Terreiro do
Gantois (Ilê Iyá Omi Axé Yámassê)2 e o Ilê Axé Opô Afonjá3, que tiveram suas
fundadoras iniciadas na Casa Branca e preservaram uma tradição de liderança
feminina no comando das casas de culto. A transmissão desses postos se dá ora
pelo jogo de búzios, ora por laços consanguíneos, conforme a tradição das casas.
Contudo, a despeito de dissidências familiares ou disputas legais, a evocação de
certa descendência matrilinear se mantém.
Em entrevista realizada pela professora e pesquisadora da UFBA Agnes Mariano
em 2001, a famosa Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi comenta a preponderância das
lideranças femininas nos terreiros mais antigos e tradicionais da Bahia:

Isso se deve às pioneiras do candomblé no Brasil, três mulheres


“Mulheres de santo”: gênero e liderança feminina no candomblé

que depois da libertação tiveram condições de abrir uma casa para


culto aos orixás. Elas é que formaram a primeira casa que se tem
conhecimento da nação iorubá no Brasil, que seria a Casa Branca.
Então, essa casa foi crescendo, fazendo muitos filhos e ficaram
essas três senhoras como responsáveis. Daí vem o valor feminino,
porque essa casa tinha a característica de não iniciar homens. Se
não iniciava homens e todos eram do gênero feminino, é lógico
que não podia ter homem na direção. Então, a casa foi crescendo e
sempre quando a coisa cresce, às vezes acontece um racha, não é?
Foi o que houve na ocasião de Maria Júlia, a senhora que fundou o
Gantois. Quando fundaram o Gantois, a característica também era a

2 Fundado por Maria Júlia da Conceição Nazaré em 1849. O Terreiro do Gantois nasceu a após a morte da mãe de santo
Iyá Marcelina, que comandava o Terreiro da Casa Branca. Com a morte da Ialorixá, suas duas filhas, Maria Júlia da Concei-
ção e Maria Júlia Figueiredo, disputaram a chefia do candomblé. A liderança da casa coube à Maria Júlia Figueiredo, já
que esta era a substituta legal. Com esta decisão, Maria Júlia da Conceição afasta-se do terreiro com alguns dissidentes
e funda o Terreiro do Gantois.

3 Um grupo dissidente do Terreiro da Casa Branca, comandado por Eugênia Anna dos Santos, fundou em 1910 o
Terreiro Kêtu do Axé Opô Afonjá, numa roça adquirida no bairro de São Gonçalo do Retiro.

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de não ter homem como líder, como pai de santo da casa. […] Depois

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do Gantois, aconteceu com Mãe Aninha, que fundou essa casa (o
Ilê Axé Opô Afonjá) e que também seguiu essa mesma norma,
que homem não seria líder da casa de Xangô, que é aqui o São
Gonçalo. Aqui também se iniciam homens, mas homens iniciados
aqui ou no Gantois já sabem que não podem ser pais de santo na
casa de origem. Mas como essas duas casas iniciam homens e sabe-
se que todo mundo, depois de determinado tempo, quando está
completamente pronto para o orixá, poderá assumir uma liderança,
alguns desses homens fundaram as suas casas, tanto do Gantois
quanto do São Gonçalo. Não é proibido ser pai de santo, mas dentro
dessas casas, na liderança, somente mulheres (MARIANO, 2001).

Em consonância com esse depoimento, Birman (1995) afirma que “o


candomblé tradicional da Bahia sempre atribuiu à família da mãe de santo um
papel crucial – é através das relações de descendência por linha materna que
este reproduz a sua principal liderança” (p. 176). As mulheres são responsáveis
pela tradição e pela ortodoxia religiosa do candomblé, e é justamente daí que
elas extraem reconhecimento, respeito e prestígio, ainda que inseridas em uma
realidade opressora.
Teresinha Bernardo (2005) trabalha com o conceito de matrifocalidade, que
diz respeito a uma organização familiar ou doméstica centrada na figura da mãe e
marcada pelo reconhecimento da autoridade feminina, com mulheres e crianças
matrilateralmente relacionadas. Os homens, quando presentes, cumprem um
papel “flutuante”. Para essa autora, a matrifocalidade vivida pela mulher negra
no candomblé não seria “encarada como sofrida, pesada; pelo contrário, acentua
sua autonomia, traz satisfação” (BERNARDO, 2005, p. 11), isso porque aqui a
mulher também seria vista como uma reprodutora, mas em uma dimensão muito
mais ampla, abarcando as esferas do material e do simbólico e superando, de
modo voluntário, questões aparentemente irreconciliáveis. Aqui, elas seriam de
fato livres para serem mães, experimentando uma maternidade plena, diferente
daquela que envolvia suas antepassadas e os filhos das sinhás, crianças brancas
nutridas e cuidadas enquanto seus próprios filhos negros eram explorados e
mantidos afastados4.
A mulher negra tem que contar apenas consigo mesma, tanto no Brasil como
na África, “e isso se combinava com a sua eminência no candomblé para dar um
tom matriarcal à vida familiar entre os pobres. Era um desejável equilíbrio, supunha,
para o rude domínio dos homens em toda a vida latina” (LANDES, 2002, p. 119). A
valorização do trabalho feminino no candomblé redimensiona o papel da mulher
tanto em uma esfera mística quanto no sentido social, de modo que o candomblé
acaba se configurando não apenas como uma possibilidade que a mulher negra
tem para realizar-se religiosamente, mas também política e socialmente.

4 Esta situação histórica se arrasta, com atualizações, desde o período colonial escravocrata até a atualidade, visto que
milhares de mulheres negras mantêm posições em casas abastadas como babás ou empregadas domésticas e pouco
convivem com seus próprios filhos. As mulheres são a ampla maioria entre os empregados domésticos, representando
96,5% de um total de 634 mil em 2014. Entre elas, as negras são a maioria, registrando salários menores e condições de
trabalho mais precárias, além de uma predominância na posição de chefes de família (Cf. UOL, 2015).
O feminino no candomblé

Para além das trajetórias de luta e resistência das mulheres negras da


diáspora africana e de fatores históricos que permitiram a manutenção das
lideranças femininas nos terreiros ao longo dos anos, cabe pensarmos também
nos elementos míticos do candomblé que sustentam costumes e práticas.
Com exceção de Olodumaré e Exu, entidades quase que unânimes, a maioria
dos orixás cultuados no Brasil é desconhecida na terra iorubá. Originalmente
compreendidos na África como ancestrais divinizados, forças puras que tiveram
uma existência terrena e que diferem de família para família e de cidade para
cidade, no Brasil os orixás foram ordenados em um único e diversificado panteão,
cultuados em diferentes festas e rituais.
Mitos e lendas que remontam tempos imemoriais apresentam alguns dos
orixás como divindades “femininas”, ainda que em suas histórias elas apresentem
diversos comportamentos disruptivos em relação ao ideal de feminilidade
ocidental, especialmente atrelado a elementos como passividade, domesticidade
e obediência. Deusas guerreiras, mães fortes, mulheres sensuais e temíveis,
dotadas de imenso poder, mantenedoras da vida e controladoras da destruição,
essas orixás femininas, também chamadas de yabás (“mães rainhas”, em iorubá),
combinam as imagens de virgem, esposa, mãe, amante e anciã e representam
uma pluralidade de formas de ser mulher que passa longe da negação da força
ou a recusa do poder, englobando “defeitos”, “virtudes” e contradições muito
humanas. No pensamento iorubá, a sensualidade pode existir lado a lado com
a doçura, assim como a agressividade e a força. No Brasil, a Festa das Yabás
acontece geralmente no mês de dezembro, em louvação a seis poderosas orixás
femininas, responsáveis pelo equilíbrio da terra e da vida: Iemanjá, Oxum, Iansã,
Obá, Nanã e Ewá (Figura 1).
Neste artigo, defendo que é justamente esta miscelânea de representações
“Mulheres de santo”: gênero e liderança feminina no candomblé

em torno das construções de gênero o que garante um quadro mais amplo de


papéis femininos, especialmente quando colocamos a representação mítica da
mulher no candomblé lado a lado com outras religiões ocidentais, tais como o
catolicismo ou o protestantismo cristão. No candomblé, assim como em outras
religiões de matriz africana, polarizações absolutas e estáticas tais como bem
versus mal, positivo versus negativo, masculino versus feminino ou luz versus
trevas não fazem sentido. Aspectos aparentemente opostos coexistem e não se
anulam, entrelaçando-se em uma constante busca por equilíbrio e garantindo
uma multiplicidade bastante complexa.

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Figura 1: Representação das yabás Iansã, Iemanjá, Obá, Oxum e Nanã

Papéis de gênero nos terreiros

A liderança feminina em terreiros e casas de culto de matriz africana destaca


a importância da mulher e sua força nesses espaços, onde se desdobram em
mil funções, ora provendo sustento, “cortando para Exu”5 e comandando rituais,
ora dando conselhos e acolhendo aqueles que precisam de ajuda espiritual.
Contudo, os terreiros de candomblé, ainda que marginalizados por uma
considerável camada da população, fazem parte da nossa sociedade e, assim
como qualquer outra instituição, são atravessados por questões estruturantes,
reproduzindo desigualdades e hierarquizações das mais diversas ordens, que
muitas vezes acabam sendo naturalizadas e deixadas em segundo plano. No
que diz respeito ao gênero como uma categoria de análise social, vale ressaltar
que os valores patriarcais da nossa cultura acabam deturpando uma série de
preceitos religiosos, segregando e marginalizando muitas funções femininas nos
terreiros segundo uma ótica machista. No livro Matriarcado e fé, a pesquisadora
Dani Bastos (2014) destaca como muitas vezes é difícil encontrar respostas que
justifiquem as interdições que as mulheres sofrem para além do “homem pode,
mulher não pode”.
A maior parte dos empecilhos para as atividades femininas está relacionada
com o tabu da menstruação e das relações sexuais, aspectos que interferem na
preservação do corpo limpo, um requisito para determinados rituais e cerimônias
festivas que marca o domínio das vontades carnais e o respeito pelo axé e pelo

5 O “corte” diz respeito ao sacrifício ritual de determinados animais, tais como galos, bodes ou cabritos.
orixá, que deve ser seguido por todos, homens ou mulheres, mas que recai
socialmente sobre as mulheres por meio da intensa vigilância sobre seu corpo e
sua sexualidade.
A divisão das funções do terreiro de acordo com o gênero, por exemplo, é uma
realidade que se aproxima da tradicional divisão sexual do trabalho ocidental,
segundo a qual as mulheres majoritariamente se ocupam do trabalho doméstico
e os homens ocupam posições de maior prestígio no espaço público. Ainda que
os ensinamentos do candomblé tragam em si uma ideia de complementaridade
de papéis, e não do predomínio de um gênero sobre o outro, muitas “mulheres
de santo” denunciam situações de opressão, com desmandos de pais de santo
e exploração dos papéis a serem executados dentro das casas de culto. Em
depoimento, Mãe Fátima de Oxum, Ialôrixá de Recife (PE), afirma que “o papel
da mulher no candomblé não é só a cozinha” (BASTOS, 2014, p. 111).
Seguindo as reflexões críticas de Patrícia Birman (1995) sobre Candomblés da
Bahia, estudo de maior destaque de Édison Carneiro, é possível admitir o pleno
funcionamento de um terreiro formado somente por mulheres e com ogãs6
“eemprestados” de outros terreiros, mas um terreiro formado apenas por homens
jamais gozaria de legitimidade e reconhecimento público. Para além do sentido de
complementaridade, “resultante da concepção que norteia a organização religiosa
como família” (BIRMAN, 1995, p. 178), existe a inegável necessidade de mulheres
que se comprometam com o trabalho no interior dos terreiros, cuidando dos
aspectos domésticos e da organização cotidiana dessas casas de culto – nenhum
terreiro se sustenta sem mulheres para cuidar das tarefas que soam “degradantes”
aos homens do local, tais como a limpeza, a organização e a cozinha.
Nesta religião de matriz africana, a centralidade da comida, muitas vezes
utilizada como oferenda aos orixás e de suma importância nas festas religiosas,
por exemplo, concentra essa aparente contradição entre valorização e desdém
“Mulheres de santo”: gênero e liderança feminina no candomblé

das atividades exclusivamente femininas, sendo entendida como um privilégio


no candomblé e uma função “menor” no mundo laico. O preparo dos alimentos
tem uma função sagrada, ritual e simbólica, que alimenta corpo e espírito e opera
como moeda de troca entre humanos e orixás, os ancestrais divinizados ligados a
elementos da natureza.
A Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, em entrevista, diz o seguinte:

Podemos dizer que o candomblé, na atualidade, não é uma


crença, uma religião só de negros, nem só de mulheres. Os orixás
são simbolizados pelas forças naturais, que são os fenômenos da
natureza, e são coisas que não têm sexo. O vento tem sexo? Qual
é o sexo do vento? Apesar de simbolizar o orixá chamado Iansã, o
espiritual não tem sexo, não tem raça, nada disso (MARIANO, 2001).

6 A tradução do termo ogã, de origem bantu, é “chefe”, mas este cargo diz respeito a um homem que não incorpora
nenhuma entidade, ficando responsável pelo canto e pelo toque dos atabaques para que os orixás possam dançar.

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A compreensão de elementos da natureza de forma sexuada, contudo, é

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uma realidade. E ainda que não se possa afirmar que o candomblé seja uma
religião só de mulheres ou só de negros, é necessário sublinhar a fundamental
importância do trabalho feminino, não só como líderes ou fundadoras das casas
de santo, mas também naqueles cargos responsáveis pela manutenção cotidiana
desses locais. Landes já havia percebido esse papel aparentemente secundário
dos homens no candomblé, em suas primeiras observações ao Terreiro da Casa
Branca, afirmando que “os homens, embora desejados e necessários, eram
principalmente espectadores” (LANDES, 2002, p. 88).

Conclusão

Partindo do pressuposto de que o cânone da história foi escrito e respaldado


por homens brancos que atendem aos interesses das classes hegemônicas,
podemos entender como a ocupação dos mais altos postos hierárquicos dos
terreiros de candomblé muitas vezes é compreendida por pesquisadores e
estudiosos como o exato “oposto” da realidade cotidiana da nossa sociedade,
em que a exclusão da mulher negra em espaços de prestígio da sociedade se
configura como uma inegável verdade histórica.
A despeito da forte divisão de tarefas a serem executadas de acordo com
o gênero, como funções exclusivamente femininas e outras masculinas, o
protagonismo das mulheres surge como um elemento característico do candomblé.
Isso se deve, em grande parte, à matrifocalidade, dando importância à figura da
mãe e das mulheres como geradoras e cuidadoras da vida, além de guardiãs da
ancestralidade, do segredo (o awó, em iorubá) e do conhecimento. A cultura iorubá
é intimamente ligada à noção de família numerosa, que engloba antepassados e
viventes e ressalta a força da linhagem e a potência do devir de cada ser. Trata-se
de um conhecimento que se legitima pelo seu poder místico e dinâmico, aliado a
saberes ancestrais passados de geração em geração, de pais e mães de santo para
seus “filhos” por meio da tradição oral, das histórias mitológicas e dos segredos, que
são revelados conforme os iniciados avançam na hierarquia dos terreiros.
O candomblé exalta e coloca em posições de liderança e prestígio as pessoas
que ocupam os espaços mais incômodos e malvistos da sociedade brasileira
– aqueles que não são masculinos, brancos, cristãos, com grandes titulações e
rendas. Ao falarmos das mulheres de santo, damos visibilidade a grandes figuras
que são bem-sucedidas não apenas na criação de novos “filhos de santo”, mas
também pelo seu papel na gerência cotidiana das casas de culto e pela projeção
conquistada na vida pública do país, liderando movimentos pela liberdade
religiosa e dando visibilidade ao candomblé. A despeito de todo o preconceito,
toda a resistência e toda a intolerância, elas são lideranças fortes, que preservam
saberes e costumes tradicionais, denunciam violências e muitas vezes tomam
a dianteira em movimentos pelo reconhecimento do candomblé e pela defesa
da diversidade religiosa como um todo. Longe de encerrar nossas principais
questões, concluo que, no esforço de pensar uma identidade feminina e negra
como algo reconhecidamente poderoso e forte, nos deparamos com alguns dos
muitos desafios históricos enfrentados pelas mulheres brasileiras que foram e
continuam sendo ressignificados no cotidiano. Nossa luta continua.

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58 • Jaqueline Sant’anna Martins dos Santos

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