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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte 2010

Linguística e Psicanálise1

Linguistics and Psychoanalysis

Jean-Claude Milner *

Universidade Paris VII

RESUMO

O trabalho aborda algumas questões centrais à interlocução entre linguística e


psicanálise, tais como: o uso de dados de língua na teorização psicanalítica, as
aproximações e distanciamentos metodológicos entre os dois saberes, a
importância da linguística estrutural para algumas f ormulações-chave de Lacan,
dentre outras.

Palavras-chave: Lingüística, Psicanálise, Freud, Lacan

ABSTRACT

The work approaches some questions of great importance to the dialogue between
Linguistics and Psychoanalysis, such as: the use of language phenomena in
psychoanalytical theorization, the methodological dif ferences and similarities
between the two f ields of knowledge, the importance of Structural Linguistics to
some of Lacan’ s key formulations, among others.

Keywords: Linguistics, Psychoanalysis, Freud, Lacan

Passada de olhos

A questão das relações entre a psicanálise e a linguística é complicada por dois


f atores. Por um lado, essas relações evoluíram; elas f oram, com efeito, tão
prof undamente transformadas pela obra de Jacques Lacan que se pode f alar, a esse
respeito, de corte. Por outro lado, essas relações não teriam como se reduzir a um
único tipo. De f ato, convém distinguir quatro questões: a questão da psicanálise e
de sua relação com um f enômeno que chamamos de linguagem; a questão da
psicanálise e de sua relação com uma ciência que toma como objeto todo ou uma
parte do f enômeno da linguagem, e que convém chamar de linguística; a questão
da ciência linguística e de sua relação com os dados trazidos à luz pela psicanálise –
em resumo: a questão das relações entre a linguística e o inconsciente; a questão
da ciência linguística e de sua relação com a teoria da psicanálise.

1. A psicanálise e a linguagem

A linguagem, como f enômeno, pode ser encarada de dois pontos de vista: ou bem
se a considera somente como o conjunto das línguas naturais, de tal modo que são
essas últimas – com suas particularidades substanciais ou f ormais – que importam;
ou bem se a considera como um objeto unitário, com suas propriedades gerais
(substanciais ou f ormais).

A psicanálise e as línguas particulares

- A psicanálise e a substância das línguas

Essa questão concerne à maneira pela qual o objeto e o domínio da psicanálise


podem ser af etados pela existência de um ou outro dado de língua; assim,
perguntar-se-á em que medida a psicanálise tem de levar em conta em sua prática
e em sua teoria dados tais como a diversidade das línguas, os f enômenos de
tradução, a morfologia, o léxico, a sintaxe de uma língua particular. A literatura
psicanalítica abunda em exemplos em que dados assim revelam-se pertinentes,
tanto nos f reudianos da primeira geração (pode-se citar especialmente Karl
Abraham e Theodor Reik) quanto nos trabalhos mais recentes, marcados pelo
ensino de Jacques Lacan. Geralmente, é sabido que a psicanálise se ampara de
modo decisivo naquilo que se diz na sessão; ora, esse dizer efetua-se em língua e
encontra-se necessariamente estruturado pelas diversas regras de cada língua
particular. Disso naturalmente se deduz que esse ou aquele dado substancial tirado
das línguas como elas são é um dado que a psicanálise, na sua prática ou na sua
teoria, pode e deve levar em conta.

Pode-se notar mais particularmente o seguinte: na medida em que têm uma


substância, as línguas podem dar lugar, num ou noutro ponto, a investimentos
imaginários. No máximo, isso constitui o f undamento daquilo que comumente se
chama de estilo e que, ordinariamente, compete mais ao eu [moi] do que ao
sujeito. No mínimo, pode-se mencionar o vasto conjunto de “ superstições”
linguísticas: em português [en f rançais], por exemplo, o gênero gramatical dos
nomes não deixa de af etar a representação imaginária que um sujeito pode
f ormular a respeito da dif erença dos sexos. Da mesma forma, o f ato de se
denominar “ passivo” as estruturas do tipo “ uma criança é espancada” 2 pode
eventualmente afetar a verbalização desse ou daquele sintoma etc. Desse ponto de
vista, pode-se pensar na maneira pela qual as propriedades materiais dos objetos
do mundo (a anatomia e a f isiologia do corpo humano, por exemplo) se prestam a
investimento. A linguística f az, então, o papel de uma ciência que estabelece as
propriedades materiais de um objeto particular – da mesma f orma que as ciências
anatômica e f isiológica o f azem para o corpo. Ela é, pois, tida como uma disciplina
capaz de f ornecer inf ormações dignas de confiança sobre seu objeto. Pode -se falar,
nesse caso, de uma relação enciclopédica.

Convém, contudo, expressar duas reservas. Por um lado, a linguística não é a única
que se ocupa da linguagem e das línguas (a gramática, em especial, subsiste ao
seu lado), e a psicanálise não está sempre se endereçando à linguística para
recolher inf ormações. Por outro lado, não é certo que a linguística tenha de tratar
de todos os f enômenos que são do f oro da linguagem. Sabe-se, particularmente,
que Saussure havia excluído de seu campo tudo o que era do f oro da f ala [parole]
como lugar de emergência do sujeito. Ora, isso é a primeira tese do “ Discurso de
Roma” de Jacques Lacan: se tomamos a f ala no sentido saussuriano, é
precisamente ela que determina o domínio em que se exerce a psicanálise. Temos,
então, que as dimensões da linguagem que mais importam à psicanálise são
justamente aquelas de que a linguística não trata. Na medida em que a linguagem
importa à psicanálise, esta se constitui propriamente nos limites da linguística –
uma vez admitido, contudo, que ao dizer limite, diz-se também contato constante.
Lacan havia f orjado a palavra linguisteria para designar essa relação de
proximidade e de heterogeneidade absoluta (cf. Mais, ainda).

- A psicanálise e a forma das línguas

Acontece de um ou outro dado de língua permitir propor uma analogia estrutural


que esclareça o f uncionamento de processos inconscientes. Assim, em A
Interpretação dos Sonhos, o termo “ interpretação” (Deutung) compete à f ilologia.
Isso não quer dizer que, aos olhos de Freud, o sonho seja uma língua propriamente
dita, mas que seu f uncionamento é análogo, por certos traços essenciais, ao de
uma língua. É verdade que a relação, aqui, permanece geral; mais tarde a analogia
se torna mais estrita, e até mesmo chega a autorizar um modelo de investigação:
ao f azer f uncionar de maneira quase mecânica um domínio estritamente delimitado
da língua alemã, Freud constrói exaustivamente um conjunto de f ormações do
inconsciente. Assim, as diversas maneiras de refutar a f rase “ eu (um homem), lhe
amo (ele, um homem) 3 ” permitem engendrar as principais f ormas da paranoia;
nessa geração f ormal, Freud se apoia explicitamente numa análise estritamente
gramatical do tipo sujeito-verbo-objeto (“ Observações psicanalíticas sobre a
autobiografia de um caso de paranoia [Dementia paranoides]” ). Encontram-se
procedimentos semelhantes no tocante à f antasia da criança espancada (“ Uma
criança é espancada” ), pela análise da pulsão escópica (que repousa
essencialmente sobre a simetria de língua entre “ observar” e “ ser observado” ;
cf . “ Pulsão e destino das pulsões” ). De f orma mais geral, pode-se assinalar que
essas analogias colocam especialmente em causa duas noções oriundas do estudo
das línguas: a oposição ativo/passivo, por um lado; a noção de f rase, por outro.

Sabe-se o quanto a oposição ativo/passivo tem um papel importante na construção


f reudiana. Tirante os exemplos que citamos, ela f unda um número bastante grande
de conceitos essenciais da teoria. Essa oposição, todavia, se deixa bem definir
apenas em certas tradições gramaticais. Todo uso que pode lhe ser f eito repousa,
pois, em última instância, numa analogia com línguas particulares. Quanto à noção
de f rase, tomada em sua generalidade, parece que ela também f unda analogias
decisivas na teoria f reudiana, especialmente a propósito da f antasia [f antasme].
Reduzir a f antasia à f orma de uma f rase simples do tipo sujeito-verbo-
complemento: tal é o intuito a que a análise deve aparentemente se propor. A
noção de f rase poderia parecer, é verdade, uma f acilidade de exposição sem
consequências. Mas, de f ato, toda noção gramatical, por mais elementar que seja,
estenografa, no tocante às línguas naturais, um conjunto de proposições teóricas
das quais nenhuma é trivial – a noção de f rase não f az exceção. O f ato de a
psicanálise ter podido, sem ser diretamente desmentida pelos dados, impor ao seu
modelo teórico uma coação do tipo “ toda f antasia tem a estrutura de uma f rase”
supõe, pois, uma analogia estrutural profunda.

- As línguas como observatório do inconsciente

Quer se trate de f orma ou de substância, Freud recorre f requentemente aos dados


de língua para garantir a psicanálise, concebida como uma ciência empírica. Com
ef eito, do ponto de vista de Freud (lembremos que ele é contemporâneo de
Mach4 ), todo conceito da psicanálise pode e deve ser considerado como o
estenograma de um certo número de proposições empíricas elementares, tratando
de dados de observação. Mas quais são os dados de observação? Eles são tirados
do sonho, da vida cotidiana, dos casos. Então, a questão se coloca: em que medida
esses dados independem da própria suposição de que a psicanálise é possíve l e
necessária? A resposta é a mais f requentemente clara: os dados empíricos que são
reputados a apoiar a validade da psicanálise são obtidos pela própria prática
analítica.

Mas essa é a situação habitual. Consideremos a f ísica: ela se baseia em


experimentos [expériences]; mas todo experimento é, na realidade, construído, e a
construção de todo experimento supõe uma f ísica mínima. Escapa-se à
circularidade ao estabelecer independências locais: assim, a astronomia é baseada
no telescópio; o telescópio é baseado na ótica – que f az parte da f ísica em geral,
mas não depende da astronomia. Essa independência local def ine o que se pode
chamar de instância do observatório. É claro que Freud procurou incansavelmente
tais observatórios; os dados de língua, entre outros, f ornecem-nos para ele. O
lapso e o chiste são testemunhas disso, mas também os sentidos antitéticos nas
palavras primitivas, tais como descritos pelo linguista e egiptólogo Karl Abel.

Freud, a partir do estudo do sonho, havia sido levado a aventar que o inconsciente
não conhecia a contradição. Não se deve minimizar o caráter exorbitante que essa
proposição tomava: quando o inconsciente é f undamentalmente definido por Freud
como um conjunto de pensamentos, essa proposição torna, com efeito, a excetuar
os processos primários de uma lei f undamental do pensamento. Era, pois, urgente
estabelecer se acaso não se podia corroborar uma hipótese tão f orte por vias
independentes. Ora, é justamente o que o estudo de Abel permite f azer. Se ele tem
razão, com efeito, a observação da linguagem conf irma, independentemente da
existência da psicanálise, que o princípio da contradição pode não ser sempre
válido no pensamento.

Acrescentemos que Freud promove uma concepção cronológica do inconsciente – o


inconsciente do sujeito é determinado por seu passado individual. Ora, as línguas
são, também elas, resultado de um passado; e as palavras que as constituem têm
notadamente uma longa história, tão esquecida pelos sujeitos falantes quanto
podem ser esquecidos certos episódios de sua inf ância. O processo de f ormação de
palavras pode, portanto, ser suposto a lançar uma luz sobre esse passado, anterior
a toda memória e, hoje, inacessível. As línguas (e especialmente uma língua antiga
como o egípcio) são, então, como que sedimentações geológicas em que se
encontrariam, f ossilizados, os vestígios daquilo que houve. Nesse caso, a descrição
de um dado de língua permite o acesso a um f uncionamento desconhecido,
análogo, ou até mesmo, idêntico ao f uncionamento inconsciente.

Há aí, é verdade, uma grande parte de ilusão. As línguas ditas antigas não têm
propriedades estruturais que as distingam das línguas modernas; com isso, as
primeiras não revelam nada de específico com relação às segundas. Deste modo, o
f enômeno dos sentidos antitéticos existe, certamente, mas é verdade que os
exemplos de Freud, retomados de K. Abel, são geralmente errôneos, como
sublinhou Émile Benveniste; há, contudo, outros mais garantidos: eles pertencem
tanto às línguas modernas quanto às línguas antigas. O f enômeno não tem,
portanto, nada de especialmente primitivo, e se ele esclarece algo dos processos
inconscientes, não é na medida em que testemunharia um passado da humanidade.
De modo mais geral, os dados no tocante à etimologia podem dar azo à ref lexão
para a psicanálise; só que nem mais, nem menos do que f azem os dados
sincrônicos. Para compreendermos bem a relação que pode, então, se estabelecer
entre os dados de língua e a psicanálise, pode ser útil que pensemos na maneira
pela qual a psicanálise se ampara nas obras literárias ou nas obras de arte. As
grandes f iguras do f reudismo, sabe-se, sempre levaram a sério tais testemunhos.
Não era, apesar do que Freud havia dito disso, para desenvolver uma “ psicanálise
aplicada” ; é, no sentido inverso, para tratar tal f aceta de uma obra como uma
análise em ato. Para Freud e para Lacan, o psicanalista não tem de interpretar
Shakespeare ou Molière, ele tem de aceitar que Shakespeare e Molière interpretam.
Da mesma maneira, exatamente, pode acontecer que a língua em si mesma possa,
por uma ou outra de suas singularidades – uma etimologia, um paradoxo
semântico, uma homofonia etc. – interpretar o sujeito f alante; a tomada da análise
consiste somente em ouvir e a f azer ouvir essa interpretação. 5

Assim se explicam, aliás, certas características da intervenção analítica nesse


domínio. Em particular, a f orma na qual a interpretação se desdobra é tipicam ente
a do detalhe. Isso é f ácil de conceber: quem diz interpretação, diz emergência do
sujeito – e sabe-se que a temporalidade dessa emergência é o instante, assim
como a sua espacialidade é o ponto. Se, pois, a obra de arte interpreta, é por
algum detalhe isolável e singular – o movimento do Moisés de Michelangelo, o
drapejado da Sant’ Anna de Leonardo da Vinci, os últimos versos de Booz
adormecido etc. –; e, se a língua interpreta, é também por algum detalhe isolável e
singular. Freud se atém, por exemplo, ao adjetivo unheimlich – dado lexical menor
e não-generalizável – para f azer com que se entenda que, nesse ponto,
ocasionalmente, de maneira contingente, por seu real singular, a língua alemã
interpreta o sujeito f alante (“ O estranho” ). Da mesma maneira, Jacques Lacan se
atém a minúcias da língua f rancesa: o emprego do artigo def inido ou indef inido, a
f orma do pronome atributivo (je le suis e não je la suis), o uso do termo a
patroa6 para designar a esposa, uma ou outra homofonia etc.

É dispensável dizer que a linguística não teria como f uncionar na f orma do detalhe
singular – mesmo se o que acontece é que ela deva razoar sobre indícios ralos. O
contraste entre linguística e psicanálise é aqui, pois, f lagrante.

A psicanálise e a linguagem como fenômeno unitário

Se considerarmos que, para além da diversidade das línguas, existe um objeto


unitário, def inido por propriedades (de substância e de f orma), que chamamos de
linguagem, podemos nos interrogar sobre a relação que esse objeto mantém com o
objeto da psicanálise. Nesse ponto o corte lacaniano é radical: “ A linguagem é a
condição do inconsciente” (“ O aturdito” , p. 490). Dito de outro modo, apenas o
ser f alante é passível de inconsciente.

Poderíamos acreditar que a chave da relação entre psicanálise e linguística reside


nisto. Esta última não é a ciência que constituiu a linguagem como objeto para
além das línguas e que lhe propõe uma representação regrada? Entretanto, não é
nada disso: na medida em que determina de maneira decisiva a existência do
inconsciente, a linguagem não é, aos olhos de Jacques Lacan, o que é apreendido
pela ciência linguística. E se a linguística, como ciência, importa à psicanálise, não é
na medida em que apreenderia o essencial do f enômeno da linguagem.

2. Relação metodológica da psicanálise com a ciência


linguística

Um f ato é surpreendente: enquanto Freud manifesta um interesse pelo conjunto


das ciências ditas humanas; enquanto, por outro lado, ele é levado a se ocupar de
dados de língua e até mesmo a construir, a partir deles, analogias metodológicas
importantes, a linguística como tal não é por ele mencionada. É preciso ser claro: a
psicanálise f reudiana constrói entre o inconsciente e a linguagem uma rede cerrada
de conexões, mas a constrói na mais pura ignorância com relação à linguís tica. É,
aliás, nesse ponto que o corte instituído por Jacques Lacan desencadeou os ef eitos
mais visíveis. Podemos resumi-los assim: a questão das relações entre a
psicanálise e o f enômeno da linguagem se coloca desde os primeiros trabalhos de
Freud; a questão das relações entre a psicanálise e a ciência da linguagem não tem
conteúdo antes de Jacques Lacan.

A peculiaridade da posição de Freud 7

A indif erença de Freud com relação à linguística é paradoxal. Afinal, ele é


contemporâneo da maior eflorescência da ciência linguística europeia: pensemos
em Saussure, Meillet, Trubetskoy, Jakobson etc. Pode-se admitir que, antes de
1914, Freud havia podido ignorar o que se passava com a linguística na França e na
Suíça e que era bem pouco conhecido; pode-se admitir, em seguida, que as
rupturas causadas pela guerra tenham-no desviado do que se passava f ora dos
meios de língua alemã, e particularmente em Praga e em Paris. Mas, levando em
conta tudo isso, não é menos verdade que a linguística alemã, sob a f orma da
gramática comparada, havia conhecido um desenvolvimento f ulgurante no f im do
século XIX e no início do século XX. Ora, vendo por esse lado, a gramática
comparada cruza interesses que sabemos bem vivos em Freud: a arqueologia, a
antropologia, o método da conjectura baseado na letra etc. Tudo isso se escrevia
em línguas acessíveis a Freud. Tudo isso concernia a línguas que Freud dominav a
ou com as quais ele podia f acilmente se f amiliarizar. Mas não: nem uma referência;
Freud prefere remeter a marginais (Abel) ou a uma f ilologia ultrapassada (o
dicionário de Grimm). Não nos cabe propor uma explicação. Deve-se supor que a
gramática comparada indo-europeia repelia Freud porque ela construía a imagem
de uma humanidade antiga em que o judaísmo não tinha nenhum quinhão? É
verdade que certos ideólogos fizeram-no, por essa razão mesma, desempenhar o
pior dos papéis, e isso bem antes de 1933. Freud podia sabê-lo. Acaso se deve,
então, admitir que, ao se recusar a ter acesso à linguística pelas vias da gramática
comparada indo-europeia, ele recusava ao mesmo tempo toda a linguística, quer se
ocupasse ou não da gramática comparada? Acaso se deve colocar em causa o f ato
de que a gramática comparada é uma ciência alemã, mas uma ciência bem pouco
austríaca? O que quer que seja, o f ato aí está: a linguagem importa continuamente
para a psicanálise f reudiana de língua alemã e o ideal da ciência é tido como meta,
mas a linguística como ciência da linguagem não existe.

Essa situação não sof reu grandes modificações no movimento psicanalítico


internacional depois que a psicanálise anglo-saxã o encabeçou. Pode-se, por certo,
citar um grande número de estudos clínicos em que os f enômenos de linguagem
são tidos como pertinentes (os trabalhos de Robert Fliess merecem uma menção
especial a esse respeito), mas eles manifestam, em geral, uma profunda ignorância
da problemática da ciência linguística.

Na psicanálise de língua f rancesa um papel particular foi desempenhado por Éduard


Pichon, membro f undador da Sociedade f rancesa de psicanálise e autor, junto com
o gramático Jacques Damourette, do monumental Des mots à la pensée. Por
maiores que sejam os méritos desta obra, pode-se, contudo, detectar aí uma
interpretação estranha do inconsciente f reudiano, utilizado para pensar o
“ sentimento linguístico” , inclusive na sua versão nacional (sabe-se que Éduard
Pichon era maurrassiano8 ) – por isso essa relação entre a psicanálise e a ciência da
linguagem consiste mais provavelmente num f racasso. Há, contudo, uma exceção:
o tratamento da negação em francês, que recorre a uma noção mais bem avaliada
do inconsciente e que não deixa de ter valor no que concerne à própria língua (Des
mot à la pensée, t. VI, capts. IV e V).
Lacan e a linguística

Não se trata, aqui, do que f oi descrito mais acima como relação enciclopédica.
Certamente ela existe: f requentemente acontece de, para descrever ou interpretar
dados de língua, Jacques Lacan se amparar nas inf ormações que a ciência da
linguagem f ornece, assim como se ampara em qualquer ciência que seja – a f ísica,
a zoologia, a antropologia etc. –, para esclarecer o que é do f oro de sua
competência particular. Mas, se é verdade que, sob esse aspecto, Lacan e seus
alunos mostram-se mais atentos que Freud às f ormas modernas da ciência da
linguagem, é preciso acrescentar, também, que eles se viram como podem: a
tradição gramatical, a f ilologia clássica, a descrição de Damourette e Pichon, tudo
isso serve tanto e tão f requentemente quanto Jakobson. Pode-se até mesmo ir
mais longe: se nos atemos à relação enciclopédica, é pr eciso assinalar a
impossibilidade radical em que a ciência linguística se encontra de responder
inteiramente às necessidades da psicanálise.

- A insuficiência empírica da linguística

Com ef eito, os jogos de língua (chiste, lapso etc.) a que a psicanálise dá atenção
são constituídos a partir da linguagem e das suas estruturas. De f ato, não é
impossível que a linguística adiante ao seu tema [sujet] algumas proposições
descritivas; mas é duvidoso que essas proposições eventuais esclareçam muito a
psicanálise. E isso por três razões: antes de mais nada, esses jogos só interessam à
psicanálise na medida em que marcam a emergência de um sujeito – somente daí
nascem os ef eitos de sentido que eles operam –, porém a linguística não pode
apreender nada de uma tal emergência. Segunda razão, enxertada na primeira:
tanto o lapso quanto o chiste são – direta ou indiretamente – possibilitados por
colisões homofônicas (cf. “ O aturdito” ). Porém, essas colisões são contingentes;
além do mais, elas concernem à f orma fônica, a qual é, ela mesma, amplamente
contingente. Sem dúvida, é essa contingência redobrada que adéqua os jogos de
língua a assinalar a emergência, ela mesma contingente, de um sujeito. Mas, ao
mesmo tempo, a ciência linguística não tem nada de específ ico a dizer.

Terceira razão: a linguística aborda a questão da linguagem de um ponto de vista


empírico. Ela não pode, pois, deixar de colocar a questão da linguagem como
perceptível. Sem dúvida, ela sempre é obrigada a concluir que a linguagem não é
integralmente perceptível. Em particular, ela deve dar lugar a uma grandeza que
escapa à percepção: ela geralmente a concebe como signif icação. Dito de outro
modo, para pensar a relação que, na linguagem como objeto perceptível, o
perceptível e o mais-além da percepção mantêm, a linguística recorre ao conceito
de signo. Ora, a psicanálise mantém uma relação toda outra com a questão do
perceptível; em particular, os conceitos de signo e de signif icação, na sua def inição
corrente, não lhe convêm. Jacques Lacan tematizou essa linha divisória, usando o
termo sentido, para determinar o que é, por si só, importante para a psicanálise e
que se manif esta como “ desvanecimento de signif icações” (“ O aturdito” ). Lacan
pode, pois, aventar, ao mesmo tempo, que “ a linguagem é a condição do
inconsciente” (“ O aturdito” , p. 490) e que “ a linguística [...] não abre nenhum
caminho para a análise” (“ O aturdito” , p. 491). Além do mais, a relação se
inverte: por menos que ela se depare com dados em que equívocos, homofonias,
homossemias são pertinentes, é a linguística que deve usar procedimentos
emprestados da análise f reudiana. Um domínio f avorito para tais importações: a
poética. Aqui os trabalhos de Jakobson devem ser novamente citados: armado que
ele está de seu saber de linguista, não hesita em recorrer, quando se trata de
analisar um poema, às técnicas desenvolvidas por Freud para a análise do lapso, do
chiste ou do esquecimento de palavra (cf. em especial a análise do esquecimento
do nome Signorelli, na Psicopatologia da vida quotidiana). É verdade que Jakobson
tinha um predecessor e um modelo: Saussure, confrontado à antiga poesia latina,
havia acreditado reconhecer aí anagramas; ilusória, caso se trate de uma hipótese
histórica, a descoberta ganha uma outra roupagem, esclarecendo-se, quando a
aproximamos do deslocamento e da condensação, ou até mesmo do recalque –
que, diga-se de passagem, Saussure provavelmente não conhecia (cf.
STAROBINSKI, Jean (1971/1974). As palavras sob as palavras. São Paulo:
Perspectiva).

- O papel teórico decisivo da linguística estrutural

Mas isso não af eta a importância decisiva que, por outro lado, a possibilidade da
ciência linguística ganha, pois essa importância não está ligada a resultados
empíricos, e sim a decisões teóricas. A esse respeito, uma única f orma de
linguística importou verdadeiramente: a linguística estrutural, representada pela
tradição saussuriana e singularmente por Roman Jakobson. Não se trata somente
da amizade pessoal que ligava Jakobson a Lacan, nem sequer da conjuntura
histórica dos anos de 1960 – em que se desenvolve o que se chamava de
estruturalismo. A jogada é mais decisiva: ela concerne à divisão entre duas
concepções do inconsciente. Poderíamos retomar, nesse ponto, a oposição que
dividiu por muito tempo a teoria f ísica da luz: o inconsciente se deixa pensar de
maneira corpuscular e mecânica, ou ele deve de ser pensado de maneira
ondulatória e dinâmica?

A segunda posição é constantemente recorrente, e f oi recuperada particularmente


por Gilles Deleuze e Félix Guatarri sob o nome de teoria dos f luxos. Inversamente,
a novidade da doutrina f reudiana – continuamente mantida e acentuada por
Jacques Lacan – promove uma concepção corpuscular do inconsciente. Mas uma
nova questão, então, se coloca: o corpúsculo de que se trata no inconsciente deve
ser pensado nos moldes dos corpúsculos cuja existência se pode reconhecer na
natureza? Freud parece ter acreditado nisso durante muito tempo. Em particular,
ele havia procurado do lado do neurônio e de seu quantum de carga o modelo de
uma teoria científ ica da psicologia (cf . Entwurf einer Psychologie 9 e o cap. VII da
Interpretação dos sonhos). Aos olhos de Lacan, essa empreitada f racassou:
certamente é preciso reter, de Freud, o seu partido exclusivamente pelo
corpuscular, mas é preciso que se proponha um outro modelo de inteligibilidade dos
corpúsculos. É que, depois de Freud, algo se deu: a saber, o nascimento de uma
linguística científ ica, que chega a descrever as línguas baseando-se unicamente
numa teoria da distintividade. Nessa teoria não se diz mais que, em f rancês, /b/ é
sonoro e que, por essa razão, é distinto de /p/; diz-se, inversamente, que /b/ é
distinto de /p/ e que, somente por essa razão, ele pode ser dito sonoro. Em poucas
palavras, afirma-se que existe uma dif erença pura que precede as propriedades. A
consequência decisiva pode ser expressa assim: antes de Saussure são as
propriedades que f undam as dif erenças (e as semelhanças); depois de Saussure é a
dif erença que f unda as propriedades, e não há estatuto possível para a
semelhança. Ora, essa teoria da distintividade pode ser generalizada em uma teoria
dos corpúsculos, que não deverá nada à substância física.

Tal é a doutrina do “ Discurso de Roma” . Ao nos ampararmos na linguística


estrutural (apresentada como uma verdadeira revolução do pensamento científico),
podemos enunciar as características de todo corpúsculo não-físico, quer articule a
língua no sentido estrito, quer articule um processo inconsciente. Consideraremos,
a partir de então, que esse corpúsculo é uma entidade negativa, opositiva e
relativa. Em poucas palavras, Lacan ordena a teoria do inconsciente, assim como
Freud, segundo a instância do Um; mas, dif erentemente de Freud, ele dispõe, com
a linguística estrutural, de uma nova metodologia de construção dessa instância.
Além do mais, a linguística não se limita a constituir teoricamente e empiricamente
um tal Um; ela permite, também, construir uma mecânica dos corpúsculos, tão
precisa e tão rigorosa em sua ordem quanto a mecânica física. Saussure havia
estabelecido que os corpúsculos linguísticos entravam em dois tipos de relações: o
sintagma (os corpúsculos linguísticos contrastam uns com os outros numa cadeia
de posições sucessivas) e o paradigma (os corpúsculos se opõem uns aos outros e
se excluem mutuamente numa dada posição). Jakobson generalizou a doutrina ao
estabelecer que um conjunto de f enômenos – reagrupados com base na metonímia
– dependia da relação de sintagma; e que um conjunto de f enômenos –
reagrupados com base na metáfora – dependia da relação de paradigma. Dispõe-
se, assim, de uma teoria geral dos tipos de relação possíveis que se estabelecem
entre corpúsculos não-físicos – teoria da qual Jacques Lacan constrói uma
representação f ormalizada (“ A instância da letra no inconsciente ou a razão desde
Freud” ).

Em poucas palavras, nessa teoria corpuscular generalizada as relações entre


corpúsculos não-físicos se chamam metáfora e metonímia, e não teria como haver
nela outras relações que não essas; uma vez que a causalidade é uma relação, ela
só pode ser pensada, entre corpúsculos não-físicos, como uma ou outra dessas
duas relações – daí a teoria lacaniana da causalidade metonímica. Assim se constrói
uma f orma nova de causalidade, que se pode nomear de modo geral como uma
causalidade estrutural, e que escapa simultaneamente da causalidade mecanicista
do choque (única f orma de causalidade reconhecida em A interpretação dos
sonhos) e da causalidade global da termodinâmica. Aqui a ciência linguística, em
sua versão estruturalista, permite novamente estabelecer a legitimidade e a
f ecundidade de um novo conceito. Ao menos na condição de, para lhe desenvolver
a potencialidade, ir além daquilo que ela enuncia explicitamente: com relação a isso
a posição de Jacques Lacan não consiste em se inspirar na linguística estrutural; ela
consiste, antes mesmo, em levar a sério o desenho científ ico desta última e em
submetê-la à exigência máxima de literalização, que, aos olhos de Lacan, define a
ciência moderna. De f ato, se é verdade que a linguística estrutural operou uma
revolução do pensamento científ ico, essa revolução só pode ser percebida se não
nos f iarmos às apresentações propostas pelos próprios linguistas.

- O conceito de significante

Numa f órmula que se tornou célebre, Lacan sustentou que o inconsciente era
estruturado como uma linguagem. Para poder dizer isso é preciso supor que se
dispõe de uma def inição geral e não-vaga do que é ou não é uma linguagem. Uma
linguagem, diremos, então, é um conjunto em que (i) a metáfora e a metonímia
são possíveis como leis de composição interna, e (ii) em que apenas a metáfora e a
metonímia são possíveis. A noção de linguagem revela-se, pois, como sendo um
caso particular de uma noção mais geral. A questão se coloca: como nomear essa
noção geral?

Conhece-se a solução dos estruturalistas: a noção geral se def ine como estrutura.
Lacan jamais admitiu essa solução, que tem o def eito de acentuar as totalidades
(nesse sentido, Lacan é certamente um anti-estruturalista convicto); o nome que
ele propôs para designar o modo de existência específico daquilo que tem as
propriedades de uma linguagem (sem depender necessariamente da linguagem)
acentua não a totalidade, mas o elemento: é o signif icante.

É, pois, signif icante aquilo que não tem existência e propriedades senão por
oposição, relação e negação. Daí a proposição “ o signif icante representa o sujeito
para um outro signif icante” – a def inição estrita do signif icante repousa, aí, na
expressão “ representar para” , estenograma de uma existência opositiva, relativa
e negativa. O termo signif icante vem evidentemente de Saussure, mas não sem
uma modif icação profunda: são abandonados o horizonte do signo e, ao mesmo
tempo, a oposição ativo/passivo que modelava o casal signif icante/significado.
Como assinala seu próprio nome, o signif icante é essencialmente ação.

- Evolução do modelo

No dispositivo posto em prática a partir do “ Discurso de Roma” , a posição da


linguística é, pois, clara: ela permite e justif ica uma nova teoria do Um e da
causalidade. Porém, esse dispositivo não pode se manter, particularmente por uma
razão: a própria linguística mudou. Ela permanece corpuscular, mas não mais
propõe uma doutrina original do corpúsculo. O elemento linguístico, a partir de
então, existe como um ser positivo ordinário, e não como um tanto de relações
opositivas. Retornamos à conf iguração clássica: as propriedades precedem a
distinção; não é mais verdade que, na língua, só haja dif erenças. De um ponto de
vista histórico, essa mudança de modelo f oi marcada por Chomsky.

Consequentemente, a linguística não pode mais garantir a doutrina corpuscular do


inconsciente, a qual deve se desenvolver de maneira autônoma e encontrar em si
mesma os seus f undamentos próprios. Isso justifica a necessidade de uma lógica
do signif icante, que é autonomizada a partir de 1967, isto é, exatamente no
momento em que a linguística cessava de ser inteiramente saussuriana 10 . Esse
movimento vê sua consumação no seminário Mais, ainda, no qual Lacan propõe os
elementos de uma doutrina do signif icante inteiramente autônoma, isto é, uma
teoria da dif erença como tal, anterior a toda propriedade. Nessa ocasião, a ciência
linguística é evocada mais uma vez, só que para estabelecer que, legítima em sua
ordem, ela não teria mais como legitimar o que quer que seja da doutrina do
signif icante. Pelo mesmo movimento compreendemos que, uma vez baseada nos
seus próprios f undamentos, a noção de signif icante tem como efeito justamente
não apreender o que, na linguagem, o distingue eventualmente do signif icante em
geral. A questão se coloca, então: é possível, é legítimo pensar a dif erença da
linguagem com relação ao signif icante? No mesmo seminário Mais, ainda, o
conceito de lalíngua é justamente destinado a pensar o que f az com que a
linguagem (encarnada em cada língua singular) não seja esgotada pelo signif icante
(conjunto das propriedades mínimas de uma linguagem).

3. A ciência da linguagem modificada pela psicanálise?

Uma vez estabelecido que a psicanálise é possível, e uma vez estabelecido que os
dados de línguas estão em intersecção com os dados da psicanálise, pode -se
aprender algo de novo no tocante ao f uncionamento da linguagem, partindo dos
dados da psicanálise? Nesse caso, a psicanálise não depende da linguística. É bem
mais a linguística que poderia eventualmente ter de levar em conta dados trazidos
à luz pela psicanálise. Esse movimento seria análogo àquele por meio do qual Freud
não se limita a buscar confirmações independentes nos dados da antropologia ou
da história das religiões, e sim propõe hipóteses originais nesses domínios.

No que concerne à linguagem, as tentativas interessantes não são demasiado


numerosas. Elas concernem essencialmente a dois temas. Por um lado, o grande
f oneticista Fónagy, f ortemente inf luenciado por Sándor Ferenczi, tentou articular a
teoria f reudiana das pulsões e a teoria linguística da f orma f ônica (cf. em especial
“ Les bases pulsionelles de la phonation” , in La Vive Voix). Pode-se citar, antes
dele, Edward Sapir (cf . em especial “ A study in phonetic symbolism” , artigo de
1929, recuperado em Selected Writings, University of Calif ornia Press, 1963), cuja
relação com a psicanálise é certa, mas menos precisa e explícita. Por outro lado,
certos psicanalistas f oram levados a examinar a ontogênese da linguagem: tirante
o próprio Freud (observação do Fort-Da em “ Além do princípio do prazer” ),
devemos citar, sobretudo, René Spitz.

O problema é que as relações de “ importação” jamais f uncionam f acilmente.


Quaisquer que sejam os méritos dos trabalhos citados, é preciso confessar que a
relação entre dados atinentes à linguagem e dados atinentes aos processos
inconscientes permanece conjectural.

Em todo caso, um mal-entendido deve ser dissipado: é verdade que os processos


linguísticos escapam largamente à consciência do sujeito f alante, mas, para
descrever esse estatuto “ não-consciente” , não é nem necessário, nem desejável
recorrer ao conceito f reudiano de inconsciente. Em particular, pode-se definir a
taref a da ciência da linguagem assim: tornar explícitos os procedimentos que o
sujeito f alante emprega sem ter consciência. Porém, essa explicitação não toma a
f orma de uma interpretação, ela não tem de levar em conta recalques, resistências,
transf erências etc. Em poucas palavras, não há inconsciente linguístico, pelo menos
se tomamos “ inconsciente” e “ linguístico” num sentido preciso.

4. Relação epistemológica entre ciência da linguagem e


psicanálise

A psicanálise, tomada em sua f orma essencial, coloca em causa a constituição


histórica e lógica da ciência moderna. Mais exatamente, ela se propõe a construir a
ciência de um objeto aparentemente tão exorbitante àquilo que a ciência moderna
pode tratar, que ela deve f orçar esta última a seus limites extremos – talvez
mesmo para f ora de seus limites. Por isso mesmo ela transforma em problema
aquilo que, para o conjunto das ciências, era uma solução: o ideal da ciência. Ela
intima, pois, todos os discursos que se autorizam desse ideal a se interrogarem a
respeito da sua validade. A linguística, na medida em que se pretende uma ciência,
vê-se, pois, af etada. Mas, no seu caso, a intimação geral se redobra numa
intimação particular.

Sabe-se, com efeito, que a psicanálise passa pelo exercício da f ala; sabe-se,
também, que a linguística exclui de seu objeto as marcas da emergência subjetiva,
isto é, justamente esse conjunto que, depois de Saussure, se resume sob o nome
de f ala. Não é menos verdade que os dados de que ela trata apresentam-se a ela,
em última instância, como palavras 11 proferidas por sujeitos. Resumindo, a f ala
constitui a matéria daquilo que ela manipula; os dados que o linguista encontra e
os dados que o analista encontra têm, portanto, a mesma substância.

Que o linguista deva, nesses dados, operar uma f iltragem para salvaguardar as
exigências de regularidade, de repetibilidade, de reprodutibilidade, sem o que
nenhuma ciência é possível, isso é certo; que o linguista possa operar essa
f iltragem, sem deformação excessiva de seu próprio objeto, é uma questão que ele
não pode deixar de se f azer. Ele deve tanto mais f azê-la a si, que só é linguista na
medida exata em que é, ele próprio, um sujeito f alante. Em certos casos –
especialmente quando estuda sua própria língua – esse voltar-se sobre si lhe é, por
exemplo, constantemente imposto; mas, de toda f orma, mesmo supondo que
estude uma língua que não seja a sua, ele não pode estudá-la sem f azê-la sua, por
pouco que seja. Estabelece-se, pois, sempre uma coincidência entre o observador e
o observado; isso não deixa de criar uma estrutura paradoxal. A linguística tem de
suportar esse paradoxo; mas a psicanálise encontra um paradoxo aparentado, visto
que apenas um ser af etado por um inconsciente pode ser analista. Porém,
dif erentemente da linguística, ela não se limita a subjugá-lo: ela o trata empírica e
teoricamente. Resta estabelecer se a ciência linguística pode entender, nesse
ponto, o discurso analítico.

Referências bibliográficas

A leitura das obras maiores de Freud e de Lacan é evidentemente indispensável.


Pode-se citar, mais particularmente, em Freud: o capítulo VI de A interpretação dos
sonhos (Edição Standard Brasileira [ESB] - vol. IV. Rio de Janeiro: IMAGO, 1987);
“ Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia
(Dementia paranoides)” (ESB - v. XII); “ Além do princípio do prazer” (ESB - v.
XVIII); “ As signif icações antitéticas das palavras primitivas” (ESB - v. XI); “ Uma
criança é espancada” (ESB – vol. XVII); “ A pulsão e suas vicissitudes” (ESB - v.
XIV); “ O estranho” (ESB – vol. XVII); A psicopatologia da vida quotidiana (ESB –
v. VI). Em Lacan, praticamente não há texto que não toque uma ou outra das
questões decisivas. O texto f undador, conhecido pelo nome de “ Discurso de
Roma” e intitulado “ Função e campo da f ala e da linguagem” encontra-se nos
Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. Lá também encontraremos “ A
instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” e “ De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose” . Os Escritos não teriam como
ser inteiramente compreendidos se a eles não acrescentássemos “ O aturdito” , in
Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 e Mais, ainda. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.

ARRIVÉ, M. (1986/1994) Linguística e psicanálise. São Paulo:


EDUSP. [ Links ]

BENVENISTE, É. (1966/1988) “ Observações sobre a f unção da linguagem na


descoberta f reudiana” , in Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes/Ed.
da Unicamp. [ Links ]

FÓNAGY, I. (1983/1991) La vive voix. Paris: Payot. [ Links ]

JAKOBSON, R. (1963) Essais de linguistique générale. Paris: Minuit. [ Links ]

_________. (1973) Questions de poétique. Paris: Seuil. [ Links ]

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MILNER, J.-C. (1978) L’ amour de la langue. Paris: Seuil. [ Links ]

_________. (1985) “ Sens opposés et noms indiscernables: K. Abel comme refoulé


d’ É. Benveniste” , in AUROUX, S. (1985) La linguistique fantastique. Paris: Clims-
Denoël. [ Links ]
1
Publicado originalmente nas versões online e em papel da Encylopædia
Universalis. [cf . Corpus, Paris: Encylopædia Universalis France S. A., n. 13, pp.
858-62, 1992]. Paulo Sérgio de Souza Jr., Mestrando em Linguística do Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas; membro do grupo
SEMASOMa e do centro interno de pesquisa Outrarte (IEL-Unicamp). E-
mail: contra_sujeito@yahoo.com.br
2
Em Freud, ein Kind wird geschlagen. Também há aí, seria interessante ressaltar,
uma possibilidade de leitura para além de ein Kind ist geschlagen (“ un enfant est
battu” , uma criança é espancada): “ un enf ant se f ait battre” (uma criança se f az
espancar). (N. do T.)
3
A construção je l’ aime é ambígua quanto ao gênero do complemento do verbo
‘ amar’ . Por isso, então, a explicação entre parênteses lui, un homme – “ ele, um
homem” – não é pleonástica; e também por isso optei aqui pelo uso de lhe,
garantindo a ambiguidade em jogo na sentença. (N. do T.)
4
Ernst Mach [1838-1916], f ísico e teórico das ciências. (N. do T.)
5
Eis aqui, propriamente, uma singularidade garantida pela língua f rancesa e
utilizada pelo autor em entendre et f aire entendre, que dá margem às seguintes
traduções: entender e f azer entender; ouvir e f azer entender; entender e f azer
ouvir; ouvir e f azer ouvir. (N. do T.)
6
La bourgeoise, literalmente ‘ a burguesa’ . (N. do T.)
7
Étrangeté: ‘ estranheza’ , ‘ singularidade’ . (N. do T.)
8
Cf . Houaiss: Charles Maurras, escritor e político f rancês [1868-1952] cuja
concepção de nacionalismo f oi precursora de algumas ideias do f ascismo. (N. do T.)
9
Projeto de uma psicologia. (N. do T.)
10
Ano do início do seminário La logique du f antasme [A lógica da f antasia], de
Jacques Lacan. Vale lembrar, ao considerarmos o contexto de quebra com a
tradição saussuriana na Linguística mencionado por J.-C. Milner, que dez anos
antes havia ocorrido o lançamento da obra-chave Syntactic Structures (The Hague:
Mouton & Co.), da autoria de Noam Chomsky. (N. do T.)
11
propos, ‘ palavras’ ou ‘ intenções’ . (N. do T.)
*
Ex-aluno da Escola Normal Superior, é prof essor de linguística na Universidade
Paris VII. Foi membro da antiga École f reudienne de Paris e é autor, entre outros,
de A obra clara (Jorge Zahar, 1996) e Os nomes indistintos (Companhia de Freud,
2006).

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