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Linguística e Psicanálise1
Jean-Claude Milner *
RESUMO
ABSTRACT
The work approaches some questions of great importance to the dialogue between
Linguistics and Psychoanalysis, such as: the use of language phenomena in
psychoanalytical theorization, the methodological dif ferences and similarities
between the two f ields of knowledge, the importance of Structural Linguistics to
some of Lacan’ s key formulations, among others.
Passada de olhos
1. A psicanálise e a linguagem
A linguagem, como f enômeno, pode ser encarada de dois pontos de vista: ou bem
se a considera somente como o conjunto das línguas naturais, de tal modo que são
essas últimas – com suas particularidades substanciais ou f ormais – que importam;
ou bem se a considera como um objeto unitário, com suas propriedades gerais
(substanciais ou f ormais).
Convém, contudo, expressar duas reservas. Por um lado, a linguística não é a única
que se ocupa da linguagem e das línguas (a gramática, em especial, subsiste ao
seu lado), e a psicanálise não está sempre se endereçando à linguística para
recolher inf ormações. Por outro lado, não é certo que a linguística tenha de tratar
de todos os f enômenos que são do f oro da linguagem. Sabe-se, particularmente,
que Saussure havia excluído de seu campo tudo o que era do f oro da f ala [parole]
como lugar de emergência do sujeito. Ora, isso é a primeira tese do “ Discurso de
Roma” de Jacques Lacan: se tomamos a f ala no sentido saussuriano, é
precisamente ela que determina o domínio em que se exerce a psicanálise. Temos,
então, que as dimensões da linguagem que mais importam à psicanálise são
justamente aquelas de que a linguística não trata. Na medida em que a linguagem
importa à psicanálise, esta se constitui propriamente nos limites da linguística –
uma vez admitido, contudo, que ao dizer limite, diz-se também contato constante.
Lacan havia f orjado a palavra linguisteria para designar essa relação de
proximidade e de heterogeneidade absoluta (cf. Mais, ainda).
Freud, a partir do estudo do sonho, havia sido levado a aventar que o inconsciente
não conhecia a contradição. Não se deve minimizar o caráter exorbitante que essa
proposição tomava: quando o inconsciente é f undamentalmente definido por Freud
como um conjunto de pensamentos, essa proposição torna, com efeito, a excetuar
os processos primários de uma lei f undamental do pensamento. Era, pois, urgente
estabelecer se acaso não se podia corroborar uma hipótese tão f orte por vias
independentes. Ora, é justamente o que o estudo de Abel permite f azer. Se ele tem
razão, com efeito, a observação da linguagem conf irma, independentemente da
existência da psicanálise, que o princípio da contradição pode não ser sempre
válido no pensamento.
Há aí, é verdade, uma grande parte de ilusão. As línguas ditas antigas não têm
propriedades estruturais que as distingam das línguas modernas; com isso, as
primeiras não revelam nada de específico com relação às segundas. Deste modo, o
f enômeno dos sentidos antitéticos existe, certamente, mas é verdade que os
exemplos de Freud, retomados de K. Abel, são geralmente errôneos, como
sublinhou Émile Benveniste; há, contudo, outros mais garantidos: eles pertencem
tanto às línguas modernas quanto às línguas antigas. O f enômeno não tem,
portanto, nada de especialmente primitivo, e se ele esclarece algo dos processos
inconscientes, não é na medida em que testemunharia um passado da humanidade.
De modo mais geral, os dados no tocante à etimologia podem dar azo à ref lexão
para a psicanálise; só que nem mais, nem menos do que f azem os dados
sincrônicos. Para compreendermos bem a relação que pode, então, se estabelecer
entre os dados de língua e a psicanálise, pode ser útil que pensemos na maneira
pela qual a psicanálise se ampara nas obras literárias ou nas obras de arte. As
grandes f iguras do f reudismo, sabe-se, sempre levaram a sério tais testemunhos.
Não era, apesar do que Freud havia dito disso, para desenvolver uma “ psicanálise
aplicada” ; é, no sentido inverso, para tratar tal f aceta de uma obra como uma
análise em ato. Para Freud e para Lacan, o psicanalista não tem de interpretar
Shakespeare ou Molière, ele tem de aceitar que Shakespeare e Molière interpretam.
Da mesma maneira, exatamente, pode acontecer que a língua em si mesma possa,
por uma ou outra de suas singularidades – uma etimologia, um paradoxo
semântico, uma homofonia etc. – interpretar o sujeito f alante; a tomada da análise
consiste somente em ouvir e a f azer ouvir essa interpretação. 5
É dispensável dizer que a linguística não teria como f uncionar na f orma do detalhe
singular – mesmo se o que acontece é que ela deva razoar sobre indícios ralos. O
contraste entre linguística e psicanálise é aqui, pois, f lagrante.
Não se trata, aqui, do que f oi descrito mais acima como relação enciclopédica.
Certamente ela existe: f requentemente acontece de, para descrever ou interpretar
dados de língua, Jacques Lacan se amparar nas inf ormações que a ciência da
linguagem f ornece, assim como se ampara em qualquer ciência que seja – a f ísica,
a zoologia, a antropologia etc. –, para esclarecer o que é do f oro de sua
competência particular. Mas, se é verdade que, sob esse aspecto, Lacan e seus
alunos mostram-se mais atentos que Freud às f ormas modernas da ciência da
linguagem, é preciso acrescentar, também, que eles se viram como podem: a
tradição gramatical, a f ilologia clássica, a descrição de Damourette e Pichon, tudo
isso serve tanto e tão f requentemente quanto Jakobson. Pode-se até mesmo ir
mais longe: se nos atemos à relação enciclopédica, é pr eciso assinalar a
impossibilidade radical em que a ciência linguística se encontra de responder
inteiramente às necessidades da psicanálise.
Com ef eito, os jogos de língua (chiste, lapso etc.) a que a psicanálise dá atenção
são constituídos a partir da linguagem e das suas estruturas. De f ato, não é
impossível que a linguística adiante ao seu tema [sujet] algumas proposições
descritivas; mas é duvidoso que essas proposições eventuais esclareçam muito a
psicanálise. E isso por três razões: antes de mais nada, esses jogos só interessam à
psicanálise na medida em que marcam a emergência de um sujeito – somente daí
nascem os ef eitos de sentido que eles operam –, porém a linguística não pode
apreender nada de uma tal emergência. Segunda razão, enxertada na primeira:
tanto o lapso quanto o chiste são – direta ou indiretamente – possibilitados por
colisões homofônicas (cf. “ O aturdito” ). Porém, essas colisões são contingentes;
além do mais, elas concernem à f orma fônica, a qual é, ela mesma, amplamente
contingente. Sem dúvida, é essa contingência redobrada que adéqua os jogos de
língua a assinalar a emergência, ela mesma contingente, de um sujeito. Mas, ao
mesmo tempo, a ciência linguística não tem nada de específ ico a dizer.
Mas isso não af eta a importância decisiva que, por outro lado, a possibilidade da
ciência linguística ganha, pois essa importância não está ligada a resultados
empíricos, e sim a decisões teóricas. A esse respeito, uma única f orma de
linguística importou verdadeiramente: a linguística estrutural, representada pela
tradição saussuriana e singularmente por Roman Jakobson. Não se trata somente
da amizade pessoal que ligava Jakobson a Lacan, nem sequer da conjuntura
histórica dos anos de 1960 – em que se desenvolve o que se chamava de
estruturalismo. A jogada é mais decisiva: ela concerne à divisão entre duas
concepções do inconsciente. Poderíamos retomar, nesse ponto, a oposição que
dividiu por muito tempo a teoria f ísica da luz: o inconsciente se deixa pensar de
maneira corpuscular e mecânica, ou ele deve de ser pensado de maneira
ondulatória e dinâmica?
- O conceito de significante
Numa f órmula que se tornou célebre, Lacan sustentou que o inconsciente era
estruturado como uma linguagem. Para poder dizer isso é preciso supor que se
dispõe de uma def inição geral e não-vaga do que é ou não é uma linguagem. Uma
linguagem, diremos, então, é um conjunto em que (i) a metáfora e a metonímia
são possíveis como leis de composição interna, e (ii) em que apenas a metáfora e a
metonímia são possíveis. A noção de linguagem revela-se, pois, como sendo um
caso particular de uma noção mais geral. A questão se coloca: como nomear essa
noção geral?
Conhece-se a solução dos estruturalistas: a noção geral se def ine como estrutura.
Lacan jamais admitiu essa solução, que tem o def eito de acentuar as totalidades
(nesse sentido, Lacan é certamente um anti-estruturalista convicto); o nome que
ele propôs para designar o modo de existência específico daquilo que tem as
propriedades de uma linguagem (sem depender necessariamente da linguagem)
acentua não a totalidade, mas o elemento: é o signif icante.
É, pois, signif icante aquilo que não tem existência e propriedades senão por
oposição, relação e negação. Daí a proposição “ o signif icante representa o sujeito
para um outro signif icante” – a def inição estrita do signif icante repousa, aí, na
expressão “ representar para” , estenograma de uma existência opositiva, relativa
e negativa. O termo signif icante vem evidentemente de Saussure, mas não sem
uma modif icação profunda: são abandonados o horizonte do signo e, ao mesmo
tempo, a oposição ativo/passivo que modelava o casal signif icante/significado.
Como assinala seu próprio nome, o signif icante é essencialmente ação.
- Evolução do modelo
Uma vez estabelecido que a psicanálise é possível, e uma vez estabelecido que os
dados de línguas estão em intersecção com os dados da psicanálise, pode -se
aprender algo de novo no tocante ao f uncionamento da linguagem, partindo dos
dados da psicanálise? Nesse caso, a psicanálise não depende da linguística. É bem
mais a linguística que poderia eventualmente ter de levar em conta dados trazidos
à luz pela psicanálise. Esse movimento seria análogo àquele por meio do qual Freud
não se limita a buscar confirmações independentes nos dados da antropologia ou
da história das religiões, e sim propõe hipóteses originais nesses domínios.
Sabe-se, com efeito, que a psicanálise passa pelo exercício da f ala; sabe-se,
também, que a linguística exclui de seu objeto as marcas da emergência subjetiva,
isto é, justamente esse conjunto que, depois de Saussure, se resume sob o nome
de f ala. Não é menos verdade que os dados de que ela trata apresentam-se a ela,
em última instância, como palavras 11 proferidas por sujeitos. Resumindo, a f ala
constitui a matéria daquilo que ela manipula; os dados que o linguista encontra e
os dados que o analista encontra têm, portanto, a mesma substância.
Que o linguista deva, nesses dados, operar uma f iltragem para salvaguardar as
exigências de regularidade, de repetibilidade, de reprodutibilidade, sem o que
nenhuma ciência é possível, isso é certo; que o linguista possa operar essa
f iltragem, sem deformação excessiva de seu próprio objeto, é uma questão que ele
não pode deixar de se f azer. Ele deve tanto mais f azê-la a si, que só é linguista na
medida exata em que é, ele próprio, um sujeito f alante. Em certos casos –
especialmente quando estuda sua própria língua – esse voltar-se sobre si lhe é, por
exemplo, constantemente imposto; mas, de toda f orma, mesmo supondo que
estude uma língua que não seja a sua, ele não pode estudá-la sem f azê-la sua, por
pouco que seja. Estabelece-se, pois, sempre uma coincidência entre o observador e
o observado; isso não deixa de criar uma estrutura paradoxal. A linguística tem de
suportar esse paradoxo; mas a psicanálise encontra um paradoxo aparentado, visto
que apenas um ser af etado por um inconsciente pode ser analista. Porém,
dif erentemente da linguística, ela não se limita a subjugá-lo: ela o trata empírica e
teoricamente. Resta estabelecer se a ciência linguística pode entender, nesse
ponto, o discurso analítico.
Referências bibliográficas