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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR


Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – VRPPG
Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Kalina Galvão Cavalcante

O ADOECER NA ESCLEROSE MÚLTIPLA:

ESCUTANDO MULHERES À LUZ DA PSICANÁLISE

The sick in multiple sclerosis:

Women in the light of listening psychoanalysis

Fortaleza – Ceará

2012
KALINA GALVÃO CAVALCANTE

O ADOECER NA ESCLEROSE MÚLTIPLA:

ESCUTANDO MULHERES À LUZ DA PSICANÁLISE

The sick in multiple sclerosis:

Women in the light of listening psychoanalysis

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza
– UNIFOR, como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Orientadora: Profa. Dra. Leônia Cavalcante Teixeira.

Fortaleza – Ceará

2012
_________________________________________________________________________

C376a Cavalcante, Kalina Galvão.


O adoecer na esclerose múltipla: escutando mulheres à luz da psicanálise
= The
sick in multiple sclerosis: women in the light of listening psychoanalysis /
Kalina
Galvão Cavalcante. - 2012.
154 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2012.


“Orientação: Profa. Dra. Leônia Cavalcante Teixeira.”

1. Esclerose múltipla. 2. Subjetividade. 3. Psicanálise. I. Título.

CDU 616.8-004
_________________________________________________________________________
À vida, pela grata possibilidade da experiência vivida.

À minha mãe.
AGRADECIMENTOS

À Deus, que me permite exercer, todos os dias, a tarefa do existir e permitiu essa

experiência em minha vida profissional;

À minha família, principalmente minha mãe, Maria do Socorro – meu exemplo, por

todo amor, pelos momentos de descontração, pelas palavras de encorajamento, incentivo,

confiança e compreensão;

Ao Igor, pelo amor, carinho, incentivo e piadas que me alegraram, e me alegram,

nos momentos de tristeza; que caminhou comigo durante toda essa trajetória e soube

acolher minhas angústias;

À querida professora e orientadora Dra. Leônia Cavalcante Teixeira, que acreditou

no meu trabalho, por toda competência e paciência em me orientar, por compartilhar

reflexões, por dividir seu conhecimento e experiências comigo, por ter possibilitado tantos

diálogos teóricos durante a minha jornada e por me apresentar a Psicanálise de uma forma

singular;

Aos professores Dra. Júlia Sursis Nobre Ferro Bucher-Maluschke, Dr. Rosendo

Freitas de Amorim e Dra. Patrícia Helena Carvalho Holanda, que aceitaram gentilmente

participar da minha banca examinadora, legitimando meu trabalho, trazendo sugestões,

orientações, leituras e críticas que contribuíram para o enriquecimento desta dissertação;


À tia Lourdinha, Paulo e Maria Clara, por terem me acolhido como uma filha/irmã,

pelo carinho, apoio e aconchego;

Aos novos e eternos colegas da UNIFOR, pela acolhida, carinho e amizade; em

especial à Hilda, Ana Rosa, Flávia, Lamartine, Jaiana, Germana, Virgínia e Daniele

Feitosa;

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UNIFOR, em

especial aos do Laboratório de Estudos e Intervenções Psicanalíticas na Clínica e no Social

- LEIPCS, pelas trocas e articulações teóricas nas reuniões de estudo que contribuíram

para a prática e pesquisa em Psicanálise;

À professora Ms. Teresa Cristina Monteiro de Holanda, por me aceitar

carinhosamente como estagiária docente em sua disciplina e por me cativar ainda mais

pela Psicologia da Saúde e Hospitalar;

À Claudia, Armando, Amanda, Armando Filho, Érica e Armando Neto, pelos finais

de semana divertidíssimos e por me acolherem tão bem em terras cearenses;

A todos da Associação Piauiense dos Portadores de Esclerose Múltipla - APPEM,

pela caminhada e saberes de mais de cinco anos, em especial às pacientes que, com suas

palavras, possibilitaram a realização desta pesquisa e a construção de um novo saber;

A todas as pessoas que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização

dessa dissertação.
Vivem em nós inúmeros,

Se penso ou sinto, ignoro.

Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar

Onde se sente ou pensa.

(Fernando Pessoa)
RESUMO

A esclerose múltipla é uma doença neurológica, crônica e parcialmente debilitante, que

afeta adultos jovens e, com maior frequência, mulheres. Pela complexidade que envolve a

patologia, de acometimento súbito, e que poderá envolver sérios prejuízos à vida do

sujeito, indagações foram suscitadas diante da escuta no cotidiano da prática clínica com

essas mulheres, acerca das transfigurações subjetivas que revelam a vulnerabilidade

psíquica e corpórea. A dissertação em questão propõe investigar as implicações subjetivas

diante do processo de adoecimento da mulher com esclerose múltipla, apreendendo as

ressignificações da experiência da corporeidade a partir das implicações do sujeito em seu

sofrimento. O corpo que é objeto da psicanálise ultrapassa o somático e constitui um todo

em funcionamento coerente com a história do sujeito, inserido na linguagem, na memória,

na significação e na representação. Para esse percurso, foram utilizados dois relatos de

casos clínicos que evocaram a teorização, pautada no referencial psicanalítico, sobre

questões do corpo, demarcando a necessidade de uma clínica a partir de uma “outra cena”,

que ultrapasse a dimensão biomédica do fenômeno de adoecimento. Cada sujeito imprime

em seu adoecer as marcas de sua singularidade, na qual se acha presente uma demanda de

reorganização, muitas vezes, restrita ao plano biológico, mas que pode expressar

exigências que incluem planos subjetivos e sociais. Atentamo-nos também para a carência

de políticas de saúde pública, educação e promoção em saúde, que atendam a demanda

para a necessidade de se pensarem novas formas de atuação diante das doenças

degenerativas.

Palavras-chave: Esclerose múltipla. Adoecimento. Subjetividade. Psicanálise. Psicologia

da Saúde.
ABSTRACT

Multiple sclerosis is a neurological disease, chronic and debilitating part, which affects

young adults and, more often women. Due to the complexity surrounding the pathology of

sudden onset, which may involve serious damage to the subject's life, questions were

raised before the hearing in everyday clinical practice with these women, about the

subjective transfigurations that reveal the vulnerability and psychic body. The paper in

question is to investigate the implications on the subjective process of illness of women

with multiple sclerosis, seizing the reinterpretation of the experience of embodiment from

the implications of the subject in his suffering. The body that is the subject of

psychoanalysis beyond the somatic and a functioning whole is consistent with the history

of the subject, inserted in language, memory, meaning and representation. For this route,

we used two case reports that raised the theory, based on psychoanalysis, body issues,

pointing out the need for a clinic from an "other scene", which goes beyond the biomedical

dimensions of the phenomenon of illness . Each subject in his prints ill marks its

uniqueness, which is present in the demand for a reorganization, often restricted to the

biological level, but which can express requirements that include subjective and social

plans. Also reflect the lack of public health policies, education and health promotion, to

meet the demand for the need to think about new ways of acting in front of degenerative

diseases.

Key-words: Multiple sclerosis. Illness. Subjectivity. Psychoanalysis. Psychology of

Health.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................. 12

1 “DIANTE DA DOR DOS OUTROS”: SOBRE A ESCUTA DE MULHERES COM

ESCLEROSE MÚLTIPLA............................................................................................. 27

1.1 Considerações Metodológicas...................................................................................... 27

1.2 Detalhando o Percurso Investigativo: Apresentação dos Relatos Cínicos.................... 36

 O Relato de Lidwina............................................................................................... 37

 O Relato de Cláudia................................................................................................ 54

2 ESCLEROSE MÚLTIPLA: PERSPECTIVAS BIOMÉDICA E PSICANALÍTICA

DO ADOECIMENTO...................................................................................................... 65

2.1 Esclerose Múltipla: Aspectos Biomédicos e Subjetivos do Adoecer........................... 65

2.2 O Corpo Adoecido: Entre a Medicina e a Psicanálise.................................................. 79

 O Saber Médico e o Corpo como Organismo......................................................... 79

 Corpo e Adoecimento em Psicanálise: do Organismo ao Corpo Erógeno.............. 85

3 VICISSITUDES DO ACOMPANHAMENTO CLÍNICO, À LUZ DA

PSICANÁLISE, COM MULHERES PORTADORAS DE ESCLEROSE

MÚLTIPLA...................................................................................................................... 95

3.1 A Relação com a Medicina: Identidade da Doença x Implicação do Sujeito com seu

Sofrimento........................................................................................................................... 96

3.2 História de Vida e História da Doença: Perdas e suas Implicações............................ 102

3.3 O Corpo: Vivência da Descontinuidade..................................................................... 120


DA (DES)CONSTRUÇÃO DA IDADE DE DOENTE AO (RE)POSICIONAMENTO

SUBJETIVO: UMA APOSTA CLÍNICA.................................................................... 123

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 137

ANEXOS.......................................................................................................................... 149

APÊNDICE...................................................................................................................... 153
12

INTRODUÇÃO

Os processos de adoecimento, de uma forma geral, posicionam o sujeito diante da

possibilidade de sua finitude, ameaçando as defesas e os mitos de imortalidade. A doença

sinaliza a mortalidade, a finitude do corpo e a falta de controle sobre este e sua vida,

caracterizando-se por uma situação de fraqueza e dependência. Por ser um acontecimento

inesperado, o processo de adoecimento quebra a linha de continuidade da vida do sujeito,

das funções desempenhadas por ele na família e na sociedade e da previsibilidade aparente

que cada pessoa guarda sobre seu futuro (Kübler-Ross, 2008; Jeammet, Reynaud &

Consoli, 2000).

A esclerose múltipla (EM) é uma doença crônica que afeta o sistema nervoso. Não

é transmissível, é autoimune e potencialmente debilitante, ou seja, às vezes pode impor

restrições cognitivas e motoras ao sujeito acometido. Sua causa ainda não tem uma origem

definida. Tal patologia é mais comum em caucasianos, pessoas do sexo feminino e com

idade entre 15 e 50 anos. Seus principais sintomas são: visão dupla ou embaçada, perda da

visão de um olho, sensação de choque na coluna e no pescoço, dor facial, formigamento

intenso, fadiga, perda da força de alguma parte do corpo, tontura ou vertigem, falta de

equilíbrio motor, dores de cabeça, convulsões, aperto no peito, endurecimento involuntário

dos músculos, fala arrastada, problemas de micção e evacuação e dificuldades sexuais. O

tratamento, utilizado na tentativa de retardar os sintomas e/ou a piora destes, é

medicamentoso, com auxílio de fisioterapia, fonoaudiologia, além do acompanhamento

psicológico (Hill, 2010).

Receber o diagnóstico de uma patologia crônica, tal como a esclerose múltipla,

corresponde a um momento de tensão e desorganização da vida, não só para o enfermo,

mas também para a família. A família, considerada pela ótica sistêmica como um sistema
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aberto, diante do adoecimento de um de seus membros, possibilita apoio mútuo,

compartilhando sentimentos de dor, tolerando as emoções negativas, e apoiando o parente

enfermo, influenciando, assim, comportamentos e ações (Bucher-Maluschke, 2009).

Nesse contexto de crise situacional, por deparar-se rotineiramente com remissão de

exacerbação sintomatológica ou surto seguido de reincidência, a adaptação deve fazer-se

presente como um processo contínuo de reajuste diante de nova condição física e

decorrentes perdas psicológicas, familiares, sociais, além de econômicas e profissionais.

As doenças auto-imunes, em geral, trazem consigo esse momento conflitante na vida de

quem recebe o diagnóstico e na vida dos familiares (Kübler-Ross, 2008; Ávila & Ferreira,

2001).

Por ser a esclerose múltipla uma patologia autoimune de evolução clínica

imprevisível, esses aspectos são determinantes de vários fatores geradores de processos de

sofrimento psíquico, na medida em que esse diagnóstico interfere na construção das metas

de vida, como sonhar com possibilidades de futuro, com a perspectiva de envelhecer a

contento e trazendo, também, o sofrimento da perda da autoimagem corporal (Schilder,

1999).

A prevalência da EM tem considerável variação, mas esta ainda não é conhecida.

Atualmente, as estatísticas apontam uma média de 2,5 milhões de pessoas com a patologia

no mundo. De acordo com Wallim, Kurtzke e Page (2000), a América do Sul é

considerada uma região de baixa prevalência, com taxa menor que 05 casos por 100.000

habitantes, sendo que no Brasil, o índice é de aproximadamente 30 mil pessoas com essa

doença.

No estado do Piauí, a Associação Piauiense dos Portadores de Esclerose Múltipla

(APPEM) tem uma estatística de 37 associados, entretanto, no estado não existe um

controle estatístico preciso relativo a essa patologia. Foi fundada em dezembro de 2004 e
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vem, desde então, desenvolvendo trabalhos de assistência às pessoas com EM, com

enfoque de reinserção social, objetivando conhecer as pessoas que possuem essa patologia

e suas necessidades, divulgar as informações sobre os tratamentos disponíveis, esclarecer

seus direitos, além de aproximá-los uns dos outros estabelecendo uma troca de

experiências (Almeida et al., 2007).

Há cinco anos, trabalho junto à APPEM operacionalizando atividades assistenciais

junto à equipe interdisciplinar formada por médicos, enfermeiros, nutricionistas,

assistentes sociais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e psicólogos. Nesse contexto, uma das

atividades que realizo são visitas domiciliares aos portadores, devido às dificuldades

locomotoras dos mesmos, onde estes e seus familiares, diante um processo sofrente,

geralmente solicitam suporte psicológico que possa auxiliá-los no enfrentamento das

dificuldades e das sucessivas e necessárias adaptações, tanto no âmbito pessoal quanto

familiar.

Diante da escuta clínica feita nesta modalidade de atendimento, o que algumas

portadoras denunciavam em suas falas eram questões relacionadas a aspectos do

enfrentamento do adoecimento, como: a vivência de descontinuidade em relação ao corpo;

as perdas do seu papel na família e na sociedade; a “desconstrução” de metas de vida, com

perspectiva de futuro abalada; perda da autonomia, do desejo sexual; a perspectiva de ser

ou não ser mãe; o medo de sofrer discriminação no trabalho; o confronto com a finitude

pelo adoecimento e suas implicações, como a possibilidade de morte. Estes aspectos

provocando momentos de sofrimento psíquico que precisam ser contextualizados,

ressignificados em um processo no qual é a história do sujeito, e não a história da

patologia, que se sobressai.

Nesse contexto, surgiu a intenção de elaborar tal pesquisa com a finalidade analisar

e discutir o processo da experiência de adoecimento em esclerose múltipla na mulher, a


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partir da escuta clínica à luz da psicanálise. Assim, através das vicissitudes subjetivas

inerentes ao adoecimento elucidadas pelas portadoras, delineou-se uma questão para a

pesquisa: como ocorrem as transfigurações subjetivas da mulher, e do seu corpo, diante do

acometimento pela esclerose múltipla?

A dificuldade em ter um diagnóstico preciso, visto que ainda não há um para tal

patologia, aumenta significativamente o sofrimento dos sujeitos acometidos e de sua

família que, em geral, passam pelas mais variadas especialidades médicas em busca de

uma justificativa para os sintomas. Os impasses causados pela etiologia da patologia levam

os médicos a conceber que algo extrapola seus conhecimentos, colocando-os diante de

algo que os desafia e impõe a necessidade de produzir conhecimentos. Observa-se o

despreparo dos mesmos, a dificuldade em estabelecer diagnósticos e a utilização ineficaz

dos recursos terapêuticos. Tudo isso devido a um modelo que possui poucas ferramentas

para deparar-se com a singularidade do sofrimento do sujeito.

A centralidade da doença no paradigma da medicina ocidental contemporânea

(Camargo Jr., 1997) e a crescente intermediação tecnológica da prática médica atual, têm

propiciado o distanciamento e a alienação do médico da situação de adoecimento do

sujeito. Muitas das dificuldades da atenção àquele que sofre estão baseadas em práticas

que, ao privilegiarem os aspectos técnicos da doença, abandonam a dimensão subjetiva do

adoecer. A racionalidade médica trata o sujeito doente investigando seu corpo

anatomofisiologicamente para o estabelecimento de diagnósticos de doenças e

intervenções terapêuticas, em que todo sintoma clínico é relacionado a uma alteração

morfológica (Camargo Jr., 1997; Uchôa & Camargo Jr., 2010).

Nessa perspectiva, o referencial da clínica médica passou a ser a doença e a lesão,

isto é, o objetivo do médico é identificar a doença e a sua causa. “Basta remover a causa

para que haja a cura da doença” (Guedes, Nogueira & Camargo Jr., 2008, p. 136). Apesar
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dos progressos trazidos por essa perspectiva, entende-se que este modelo trouxe algumas

consequências e impasses para a prática médica ao excluir as dimensões subjetivas do

adoecimento humano, como lidar com pacientes com queixas dificilmente enquadráveis,

caracterizados pela presença de sintomas físicos sem apresentar uma causalidade

explicável por bases empíricas.

Embora haja uma série de definições para os “sintomas vagos e difusos em

biomedicina” (Guedes, Nogueira & Camargo Jr., 2008, p. 136), estes são freqüentemente

caracterizados pela presença de sintomas físicos sem apresentar uma causalidade

explicável por bases empíricas. Destaca-se uma diversidade de nomenclaturas

(somatização, sintomas inexplicáveis, sintomas ou síndromes funcionais) e imprecisão

conceitual em relação a esses tipos de sintoma (sintomas corporais sem causas orgânicas

documentáveis).

Origina-se aí a necessidade de demarcar uma clínica, a partir de uma “outra cena”,

que ultrapasse a dimensão biomédica do fenômeno de adoecimento. Compreender o

paciente como sujeito adoecido implica considerá-lo em todos os seus aspectos, como

também enquanto porta-voz de um conjunto de representações sociais, culturais e agente

de um processo de interação.

Diante dessa necessidade, escolhemos o referencial teórico da psicanálise para

nortear nossas discussões acerca do objeto de estudo do presente trabalho. Contudo, faz-se

necessário enfatizar que este estudo é fruto da minha inserção no campo da psicanálise,

como teoria e clínica, pelo fato ter iniciado minha formação em psicanálise recentemente.

A opção pela psicanálise como suporte teórico-metodológico se deu por tal vertente do

conhecimento possibilitar uma apreensão complexa do fenômeno do adoecimento,

acreditando que essa perspectiva possibilite a discussão do tema de uma maneira fértil.
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Talvez, construindo mais perguntas que oferecendo respostas, o que demarca a

especificidade de uma perspectiva que apreende o humano de um modo não reducionista.

Evidencia-se nos discursos das mulheres acometidas pela esclerose múltipla,

desconforto e angústia em relação ao seu corpo, o sofrimento pela perda da auto-imagem

corporal e do controle sobre o seu esquema corporal (Schilder, 1999). Muitas delas não

sabem como lidar com essa “passividade” que a doença lhes impõe, e como conviver com

essa descontínua relação. O corpo se torna de suma importância neste contexto, pois é a

parte mais tangível da existência humana, por onde primeiro fazemos contato com o

mundo e por onde, a partir da psicanálise, reflete o sujeito na relação com o mundo: corpo

erógeno, inserido na linguagem, na memória, na significação e na representação.

A psicanálise é uma teoria que propõe que os comportamentos, pensamentos,

fantasias, escolhas, sonhos, sintomas, angústia, afetos, e fenômenos da vida cotidiana (atos

falhos, os chistes, os lapsos de memórias) são regidos por desejos inconscientes.

O objeto de estudo da psicanálise é o inconsciente e a maneira de acessá-lo é

através da associação livre, método por excelência criado pro Freud. A originalidade do

conceito da instancia psíquica inconsciente introduzida por Freud deve-se à clínica, lócus

privilegiado de escuta das formações do inconsciente e de intervenção terapêutica.

De acordo com os escritos freudianos (1912a/1996), a psicanálise,

simultaneamente, é:

1. um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por

qualquer outro modo; 2. um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de

distúrbios neuróticos; e 3. uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo destas

linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica (Freud, 1912a/1996

p.253).
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Assim, a psicanálise não é unicamente um procedimento terapêutico. Ela é,

também, uma ciência, aquela do psiquismo, aquela dos processos inconscientes que se

desenrolam não apenas no indivíduo isolado, mas nos grupos e nas instituições.

Desde os primórdios de seus estudos, Freud (1893/1996, 1894/1996, 1905b/1996)

se referiu a uma nova concepção de sujeito e de corpo, trazendo importantes contribuições

à investigação sobre as relações entre as dimensões somáticas e psíquicas, situando o

corpo na mediação destas realidades.

Nas palavras de Volich (2002, p.18):

O corpo é nosso primeiro Universo. Nele somos concebidos, abrigados. A partir dele

existimos. Nele se gestam os enigmas, e nele buscamos as respostas. Interrogar os mistérios do

corpo é tão antigo quanto investigar o mundo que nos cerca. Desde os tempos mais remotos

dedica-se o homem a decifrar tais mistérios, inspirado por imagens oriundas de seu corpo.

A presença do corpo vai muito além da queixa somática, isto é, o corpo se faz

presente também pelo negativo. Dessa forma, o corpo que é objeto da psicanálise

ultrapassa o somático e constitui um todo em funcionamento coerente com a história do

sujeito (Teixeira, 2006a). Freud, ao articular uma teoria da sexualidade, inicia uma

verdadeira revolução na concepção de corpo, revolução esta que, se estruturando a partir

do corpo Soma, corpo biológico, corpo da pura necessidade, vai desembocar na noção de

corpo erógeno, inserido na linguagem, na memória, na significação e na representação, ou

seja, corpo próprio da psicanálise (Freud, 1905a/1996; Lazzarini & Viana, 2006).

Preocupado em estabelecer as diferenças entre o adoecimento orgânico e o

sofrimento histérico, Freud (1894/1996) percebeu que o corpo das histéricas estava

fundado nas representações subjetivas. As manifestações corporais das histéricas, que não

conseguiam referências somente nas organizações anatômicas, fisiológicas e neurológicas,


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permitiram que ele considerasse as relações íntimas entre o organismo e a dinâmica

psíquica do sujeito. Os sintomas histéricos, carregados de significados e marcados pela

história de vida do sujeito, representavam a expressão, por meio do corpo, de um conflito

psíquico inconsciente. Com isso, Freud abre uma ruptura com a medicina da época ao

instituir realidade ao corpo da histérica que, desta forma, foi transformado em paradigma,

ao delinear uma nova leitura sobre a corporeidade (Lazzarini & Viana, 2006).

Assoun (1996) demarca que, a partir da psicanálise, o corpo não pode ser mais

concebido como princípio autógeno, portador de seu sentido próprio; o corporal forma a

materialidade subjacente do psiquismo. O inconsciente não se confunde com o corpo,

como uma espécie de alma, mas como um elo, um lugar de interferência onde as “vozes do

corpo” se misturam aos efeitos significantes.

A conversão é a mutação em corporal da soma de excitação que é liberada de sua repressão e

tem por efeito neutralizá-la (...). É nessa capacidade de conversão que Freud localiza “o fator

característico” da histeria (...). O efeito corporal traduz o destacamento de uma energia oriunda

da tensão representativa. Não é, pois, o corpo que fala, mas, através dele, as representações

recalcadas (Assoun, 1996, p.178-179).

Para Freud (1894/1996), o corpo da histérica, evidenciado pelo fenômeno da

conversão, tende a expressar o psíquico, obedecendo à lei do desejo inconsciente, coerente

com a história do sujeito. O que dá aos processos psíquicos inconscientes uma saída no

corporal é a complacência somática fornecida por um processo normal ou patológico em,

ou relativo à, um órgão do corpo. O autor introduziu a expressão complacência somática

para se referir à escolha da neurose histérica e a escolha do órgão ou do aparelho corporal

sobre o qual se dá a conversão, onde o corpo ou um órgão específico facilitaria a expressão

simbólica do conflito inconsciente.


20

O corpo anunciado pela psicanálise não obedece às leis da distribuição anatômica

dos órgãos e dos sistemas funcionais, objeto de estudo e intervenção da medicina. Ele se

apresenta como palco onde se desenrolam as relações entre o psíquico e o somático. A

teoria evidencia que o somático é habitado por um corpo atravessado pela pulsão e pela

linguagem e que obedece às leis do desejo inconsciente, coerente com a história do sujeito

(Freud, 1893/1996, 1894/1996, 1905b/1996).

Tratar dos diferentes modos de manifestação do corpo, força-nos a traçar uma

etiologia diferencial, onde a história do paciente é decisiva. A psicanálise, através de um

referencial teórico oposto ao modelo biomédico, de outra posição epistemológica, oferece

uma escuta livre de qualquer julgamento ou seleção para que, dessa forma, o sujeito fale.

O fenômeno psicossomático (FPS) tem sido pensado em relação a determinadas

afecções orgânicas que não correspondem aos critérios de avaliação e classificação

estabelecidos pelo discurso médico. São patologias que se manifestam por meio de lesões

orgânicas, cuja causa é indefinida, onde os sintomas apresentam variados níveis de

gravidade, podendo surgir e desaparecer. São, em sua maioria, consideradas doenças

crônicas e seu desenrolar caracteriza-se por crises sucessivas com período de remissão,

chegando, em alguns casos, ao completo desaparecimento da lesão. Por esse ponto de

vista, a esclerose múltipla seria considerada um quadro pathológico que poderia ser

apreendida pelos fenômenos psicossomáticos que acometem o sujeito, visto que está

presente, em suas manifestações, tais características supracitadas (Fonseca, 2007; Jorge,

2004; Ribeiro & Santana, 2003; Valas, 1990).

Na perspectiva psicanalítica, convencionou-se chamar esse tipo de adoecimento de

fenômeno psicossomático, visto que não se trata de uma via metafórica de expressão

sintomática, mas algo que lesiona o corpo.


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No fenômeno psicossomático, o corpo é afetado em sua realidade orgânica e funcional, sendo

tal manifestação capturada por exames clínicos, laboratoriais e imagéticos. Há uma lesão (...).

É, portanto, preciso distinguir que nem todas somatizações são da mesma ordem, já que as

somatizações histéricas não afetam o real do corpo, embora possam paralisá-lo, cegá-lo,

anestesiá-lo. (Teixeira, 2006a, p.26).

O FPS não serve para designar o sujeito, mas, sim, algo que se passa nele, onde a

forma como isso ocorre em cada um é de uma ordem absolutamente particular. É uma

escrita, e essa denominação vem porque é algo que se mostra, que está ao lado da estrutura

do sujeito, ou seja, não é efeito da estrutura, mas também, não está desvinculada dela

(Fonseca, 2007; Valas, 1990).

Lacan (1955-1956/2002) difere o fenômeno psicossomático do sintoma por não ter

estrutura metafórica. Para ele, os FPS são:

(...) fenômenos estruturados de modo bem diferente do que se passa nas neuroses, a saber,

onde há não sei que impressão ou inscrição direta de uma característica, e mesmo, em certos

casos, de um conflito, no que se pode chamar o quadro material que apresenta o sujeito

enquanto ser corpóreo. (Lacan, 1955-1956/2002, p.352).

Em sua teoria, o FPS é trabalhado como uma das manifestações do real. Diferente

do sintoma, que inscrito no registro simbólico revela o desejo inconsciente, o FPS é uma

mostração não passível de ser decifrada pelo significante. Enquanto o sintoma se inscreve

na dimensão da metáfora, o fenômeno inscreve-se fora de qualquer significação,

acarretando lesões com as quais o sujeito não se vê implicado e algo do real faz incidência

direta sobre o corpo (Fonseca, 2007; Jorge, 2004; Lacan, 1955-1956/2002; Ribeiro &

Santana, 2003).
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A escuta no cotidiano da prática clínica com mulheres acometidas pela esclerose

múltipla, foi o ponto de partida para pensar questões acerca das transfigurações subjetivas

que revelam a vulnerabilidade psíquica e corpórea, além de compreender as vicissitudes do

adoecimento. A dissertação propõe tratar essas questões considerando como objetivo geral

investigar, com base no referencial psicanalítico, as implicações subjetivas no processo de

adoecimento em esclerose múltipla na mulher. Como objetivos específicos estabeleceram-

se: discutir os aspectos biomédicos e subjetivos do adoecimento em esclerose múltipla, no

que concerne ao corpo adoecido; analisar as vicissitudes e os efeitos do acompanhamento

clínico com mulheres portadoras de esclerose múltipla; e apreender as ressignificações da

experiência da corporeidade a partir das implicações do sujeito em seu sofrimento.

Essas questões foram abordadas a partir de uma pesquisa em psicanálise,

utilizando-se da construção do relato de dois casos clínicos para tentar apreender os

enunciados que foram reconhecidos pela pesquisadora como expressões significativas.

Na clínica, a escuta tem como base a teoria e a atenção à fala do sujeito. A

experiência com esta é transformada em texto, que identifica e realça marcas no discurso,

posições e sentidos. A escrita do caso vai além de uma apreensão circunstancial e

momentânea, pois envolve uma construção que transforma os registros daquilo que se

apresenta como enigma em um relato, uma narrativa, uma experimentação e teorização de

um campo. O caso revela não só o pesquisado, mas também aquele que escuta e as

sinuosidades do campo que transita: “não seria o caso clínico um entre parênteses,

indicando um encontro interrompido entre alguém que fala e outro que escuta no limite do

fantasma que o suporta e da teoria que o orienta?” (Sousa, 2000, p. 17). O caso não se

confunde com a história, não é biográfico, “é ficção clínica, resultado de uma hipótese

teórica” (Sousa , 2000, p. 19).


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A proposta do estudo foi autorizada pela presidente da Associação Piauiense dos

Portadores de Esclerose Múltipla – APPEM (Anexo I), e apresentada ao Comitê de Ética

em Pesquisa da Universidade de Fortaleza – COÉTICA-UNIFOR, recebendo o parecer de

aprovação (Anexo II). As participantes consentiram em participar do estudo assinando o

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice I) após terem sido repassadas

informações e as garantias éticas. A pesquisa seguiu às exigências éticas e científicas

determinados pelas Resoluções 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da

Saúde e 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia.

Após o cumprimento das prerrogativas da ética em pesquisa, as sessões foram

transcritas para a construção do relato dos casos clínicos. Todos os relatos que, porventura,

poderiam comprometer o anonimato e expor as participantes foram excluídos ou descritos

de maneira a preservar o sigilo. Na apresentação, as pacientes tiveram suas identidades

protegidas por meio de nomes substitutos.

A experiência que tenho com tal temática revela que existe um déficit significativo

de publicações brasileiras nesse campo de conhecimento, principalmente sobre os aspectos

que abordam as questões subjetivas e a atuação do psicólogo. Além disso, considerando-se

as estatísticas que apontam para o aumento da expectativa de vida (longevidade), a

incidência de doenças crônicas e degenerativas tende a aumentar. Esta realidade nos chama

a atenção para a carência de políticas de saúde pública que atendam a esta demanda

crescente e para a necessidade de se pensarem novas formas de atuação diante de doenças

com prognósticos semelhantes (Borges, 2003). Pode-se, assim, contribuir cada vez mais

para o desenvolvimento de pesquisas voltadas para a educação e a promoção em saúde,

sensibilizando os profissionais desta área (Amorim et al., 2007).

Enfatiza-se, também, que esta pesquisa oferece construções teóricas à prática

profissional nesse segmento e na apreensão de um mal-estar que acarreta consequências


24

prejudiciais ao sujeito e sua inserção nos vínculos sociais, como na família, no trabalho, no

lazer, etc.

Acredita-se que a ressignificação que a mulher acometida pela esclerose múltipla

poderá fazer de seu adoecimento através da clínica, tem benefícios quanto ao

redimensionamento subjetivo, especificamente quanto ao curso e evolução dos sintomas,

quanto ao desenvolvimento nas atividades da vida cotidiana, às atividades laborais e

aderência ao tratamento (Balsimelli, 2005).

É importante atentar para o fato de que cada sujeito imprime em seu adoecer as

marcas de sua singularidade. Fica a possibilidade de se configurar o adoecer como uma

situação potencialmente crítica, na qual se acha presente uma demanda de reorganização

muitas vezes aparente restrita ao plano biológico, mas que pode expressar exigências que

incluem os planos subjetivos e sociais do sujeito.

O que a psicanálise faz em relação a qualquer queixa é implicar o sujeito em

sofrimento (doente) em sua doença, através da construção de um discurso sobre seu desejo,

suas fantasias, o acolhimento das formações do inconsciente (sintomas, atos falhos, lapsos

de memória, chistes), a ficção de uma história de vida (diferente da história incitada pela

anamnese), a descentração da queixa focalizada na doença e suas implicações e as

possibilidades de reposicionamento subjetivo do paciente frente às perdas, os lutos, o

confronto com a finitude, etc. (Teixeira, 2006b; Quinet, 2007).

Na construção desse trabalho, iniciamos nosso percurso abordando nossa trajetória

investigativa e metodológica acerca do campo da pesquisa no primeiro capítulo, intitulado

“DIANTE DA DOR DOS OUTROS”1: SOBRE A ESCUTA DE MULHERES COM

1
Em alusão à obra de Susan Sontag “Diante da Dor dos Outros”. Tal obra que permite refletir acerca
da subjetividade individual e das nossas questões morais frente as imagens da guerra. Ao mudar de canal
quando uma imagem desagradável se apresenta, não estamos mudando a realidade, por isso somos levados a
concordar com a autora: as imagens de sofrimento tornaram-se importantes e inevitáveis enquanto pudermos
refletir sobre esses símbolos (Sontag, 2003).
25

ESCLEROSE MÚLTIPLA, foi o espaço onde detalhamos o percurso investigativo e

metodológico utilizado no trabalho, e uma discussão acerca do campo da pesquisa. Nele,

também, apresentamos os achados da pesquisa a partir da apresentação dos relatos dos

casos clínicos acompanhados, reconstruindo ficcionalmente a história das participantes.

Tendo em vista as questões suscitadas, que envolvem as vicissitudes do adoecer, o corpo e

o fenômeno psicossomático, optamos por iniciar o trabalho com os relatos de casos para

nortear o corpo teórico que sustentará o estudo. Este será apresentado no capítulo seguinte.

Intitulado ESCLEROSE MÚLTIPLA: PERSPECTIVAS BIOMÉDICA E

PSICANALÍTICA DO ADOECIMENTO, este capítulo consisti em uma localização de

pesquisas sobre o tema da patologia em questão, assim como discorremos a respeito das

perspectivas de adoecimento que envolve o sujeito contemporâneo e a experiência

corpórea e sua relação com o adoecimento, discutindo questões e impasses entre a

concepção de adoecimento na perspectiva biomédica (Barros, 2002; Camargo Jr., 1997;

Favoreto & Cabral, 2009; Guedes, Nogueira & Camargo Jr., 2006, 2008; Maeda, Pollak &

Martins, 2009; Silva & Rocha, 2008; Uchôa & Camargo Jr., 2010) e psicanalítica (Assoun,

1996; Freud, 1893/1996, 1894/1996, 1905a/1996, 1905b/1996, 1912a/1996, 1912b/1996,

1926/1996; Lacan, 1966, 1955-1956/2002; Lazzarini & Viana, 2006; Nasio, 2009; Quinet,

2003; Teixeira, 2006a, 2006b; Volich, 2002), além de outros autores contemporâneos, na

tentativa de alcançar uma compreensão das vicissitudes subjetivas intrínsecas ao processo

de adoecer que estivesse para além do contexto biomédico, e que levassem em conta as

contribuições dos saberes e práticas sobre a subjetividade, excedendo, assim, a dimensão

orgânica do adoecimento.

No terceiro e último capítulo, articulamos os escritos clínicos dos casos

apresentados anteriormente com as proposições teóricas esboçadas no segundo, destacando

suas relações com os aspectos que nos chamaram atenção, em termos clínicos, nos casos
26

acompanhados, como: construção da corporeidade; aspectos relacionados a família e a

transmissão psíquica transgeracional; transferência à biomedicina, expressa pela

predominância no discurso das pacientes, do linguajar médico, dos medicamentos, e da

opção das mesmas de terem somente um atendimento clínico mensal (de acordo com a

proposta de atendimento da APPEM), mesmo tendo sido a elas sugerido uma outras

frequência nas sessões terapêuticas; a identidade fornecida pelo estatuto de ser doente ou

de ser “portador de”; as relações de perda, luto, morte e finitude, dentre ouros. Este tem

como título VICISSITUDES DO ACOMPANHAMENTO CLÍNICO, À LUZ DA

PSICANÁLISE, COM MULHERES PORTADORAS DE ESCLEROSE MÚLTIPLA, e

nos atentamos às questões das vicissitudes subjetivas no processo de adoecimento, como: a

relação entre a história de vida e história da doença, a percepção de si e da doença, as

queixas da doença e sua contextualização (questões familiares, as fantasias, perdas e lutos,

confronto com a finitude pelo adoecimento, perspectiva de futuro); o corpo, evidenciado

na vivência da descontinuidade; a relação com a medicina. Ressaltamos, no tocante à

identidade da doença, como se dá a implicação do sujeito com seu sofrimento e como se

apreender o adoecimento orgânico, sua construção fantasmática a partir da história do

sujeito.
27

1 “DIANTE DA DOR DOS OUTROS”: SOBRE A ESCUTA DE MULHERES COM

ESCLEROSE MÚLTIPLA

1.1 Considerações Metodológicas

Tendo em vista que o objeto de investigação deste estudo situa-se no campo da

subjetividade e do sofrimento psíquico, a metodologia privilegiada é de caráter qualitativo,

como alternativa de apreender e intervir nas elaborações construídas pelo sujeito. Na

pesquisa qualitativa considera-se uma relação dinâmica entre o mundo objetivo e subjetivo

do sujeito. Os dados adquiridos neste tipo de pesquisa não podem ser traduzidos em

números, visto que, preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado,

deste modo, não se aplica a utilização de técnicas estatísticas (Minayo, 2008).

A proposta desenvolvida nesta pesquisa é utilizar o método de pesquisa clínico-

qualitativa (Turato, 2003), pois se compreende que este método pode abranger uma forma

de apreensão dos sentidos e significados que o sujeito atribui à sua prática cotidiana,

oferecendo condições para a compreensão do conteúdo psíquico.

Turato (2003, 2000) discute sobre uma forma diferenciada de se fazer o método

qualitativo. Quando fala em clínico-qualitativo, parte do já consolidado conhecimento do

método nas ciências sociais associando aos elementos teóricos reconhecidos no método

clínico-psicológico, sendo eles emergidos das investigações resultantes no campo da

prática clínica. Por sua vez, o mesmo autor destaca que a psicanálise apresenta suporte

necessário para subsidiar a pesquisa clínico-qualitativa, seja na delimitação do tema e dos

objetivos, ou na utilização dos instrumentos de investigação, bem como na interpretação

dos resultados da pesquisa (Turato, 2003, 2000). Assim sendo, o campo investigativo da

psicanálise debruça-se sobre a subjetividade e a singularidade, que também não pode ser
28

apreendida pelos métodos científicos positivistas. Portanto, a pesquisa em psicanálise não

causa estranheza ao campo acadêmico, já que seus pressupostos condizem com as

explicações supracitadas sobre uma pesquisa clínico-qualitativa.

Confirmando essa teoria, Sampaio (2006) mostra que a pesquisa psicanalítica é

qualitativa, pois é uma pesquisa do singular, ou seja, ela se considera e se produz a partir

da singularidade do encontro entre pesquisador e pesquisado, sendo que a referência desse

encontro é remetida a um universal, considerado a partir da teoria. Neste sentido, Mezan

(2002, 1993) corrobora propondo que o modelo psicanalítico supõe que o singular, aquilo

que é característico de uma situação tomada em sua unicidade, seja tomado como

expressão do universal e do particular, onde alguns de nós compartilhamos por pertencer a

determinado grupo.

Desta forma é que a psicanálise foi inventada, como conhecimento, quer dizer, é porque um

caso exibe características comuns a todos os sujeitos de uma determinada classe que a teoria

sobre a neurose obsessiva pôde ser reformulada inteiramente a partir do estudo do Homem dos

Ratos, um caso singular, por exemplo. E é porque os obsessivos participam da categoria

universal de humanos que, a partir deste mesmo caso, temos condições de entender melhor a

função paterna e o campo humano das superstições e da relação com a morte (Sampaio, 2006,

p. 249).

Tendo como objeto de estudo o inconsciente (Mezan, 1993), a pesquisa em

psicanálise nasce da insatisfação com o “já sabido”. O que especifica sua legitimidade é a

estrutura própria do desse campo de saber, atravessado pelo seu próprio objeto mediante

sua personificação no sujeito que pensa, escreve e fala.

A relação da psicanálise com a ciência positivista pode ser formulada em termos de

derivação, ou seja, a psicanálise deriva da ciência, mas não se reduz a ela, diferindo no
29

entendimento da noção de sujeito. Portanto, a psicanálise constitui um saber resultante de

“uma operação de ‘subversão’ pelo viés do sujeito”, o sujeito do inconsciente (Elia, 2000,

p. 21). Elia (2000) afirma que a pesquisa em psicanálise é uma dimensão essencial da

práxis analítica. Trata-se de um modo de conceber e de fazer pesquisa que deve ser

diferenciado do modo científico positivista de conceber e fazer pesquisa.

Toda pesquisa em psicanálise é uma pesquisa clínica: qualquer que seja a temática

da pesquisa, qualquer que seja a problemática investigada, faz com que o analista-

pesquisador dirija sua escuta, sua intenção de pesquisa ao que visa saber, a ser verificado

ou refutado (Albert & Elia, 2000; Cancina, 2008; Nasio, 2001). É nesse sentido que Elia

(2000) refere-se a Lacan, quando este, tomando a frase de Picasso, diz, referindo-se à

atividade de pesquisa: “Eu não procuro, eu acho”.

Sustentando tal pensamento, Cancina (2008) discorre que a psicanálise remete, na

constituição de seu campo, à pratica de um discurso constituído pela prática mesma, por

sua clínica e pela teoria necessária e decorrente. Prática, clínica e teoria estão enlaçadas na

constituição de um laço social singular. A autora propõe um enodamento entre teoria,

prática e clínica, onde pressupõe que os laços existentes entre essas três vertentes se

constituem de tal modo que, se uma das ligações se desfaz se soltam todas. A justificação

dessa proposta feita por ela se dá ao pensar que a psicanálise é uma práxis, que ocorre

entre o analista e o analisante, e que essa “prática que se produz na intimidade do ato onde

se exercita este método que Freud considerava que investigava ao mesmo tempo em que

curava” (Cancina, 2008, p. 54). Desse modo, a autora afirma que é a partir dessa prática

que vai se produzir a teoria e a clínica psicanalítica.

Cancina (2008) também ratifica acerca da importância de que o psicanalista se

coloque de dois modos, sendo estes: aquele que produz efeitos, e o que teoriza sobre os

efeitos produzidos. Desse modo, é essencial que o analista teorize acerca dos efeitos que
30

produz para que possa produzi-los. Esta idéia corrobora com a formulação proposta

anteriormente pela autora, pois demonstra a importância do elo existente entre teoria,

prática e clínica.

Portanto, o processo de produção dos conhecimentos adquiridos é estabelecido

através da escuta clínica, a partir do diálogo com o método de investigação psicanalítico.

Trata-se de um método que trabalha através do discurso do sujeito, sendo que, através

deste, o sujeito pode vir a encontrar os significantes que o representam.

A proposta metodológica desta pesquisa em psicanálise se baseia no estudo de caso

clínico (Freud, 1912a/1996, 1912b/1996; Nasio, 2001). Cada caso é acompanhado de

modo singular, através de uma escuta do sofrimento de cada sujeito, considerando que é

sobre sua história que cada um fala. Assim sendo, para que cada caso seja dito como novo,

como inédito, é necessário que, ao longo dessa pesquisa, seja permitida a construção e

reconstrução do conhecimento por parte da pesquisadora, a partir da escrita do caso,

partindo do relato – ficcional – de sessão e, a posteriori, da escrita do caso e sua discussão.

Nesse sentido, para Nasio (2001), o relato escrito do caso clínico constituiria a emergência

de uma terceira forma de subjetivação. Desse modo, faz-se uma construção com base nos

elementos que são reconhecidos no discurso do sujeito e permite-nos inferir sua posição

subjetiva frente à castração, à lei, ao laço social e à morte.

Também Nasio (2001) ressalta aspectos importantes para considerarmos em um

relato de caso clínico – observando que a expressão caso designa para o analista “o

interesse muito particular que ele dedica a um de seus pacientes” (p. 11). Para ele, além de

servir para trocas com colegas em discussões clínicas ou mesmo em supervisão, o caso,

muitas vezes, pode propiciar uma modalidade de escrita.

Ao distinguir caso clínico na medicina e na psicanálise, o autor propõe três funções

de um caso: didática, metafórica e heurística. Na função didática, destaca a particularidade


31

que tem o caso para transmitir a teoria por meio da sensibilização da emoção e da

imaginação do leitor. Na função metafórica, observa que nos célebres casos da psicanálise

(O homem dos ratos, Dora, Schreber, etc.) há uma espécie de imbricação entre a

observação clínica e o conceito que ela ilustra, de maneira que a observação termine por

substituir o conceito, tornando-se metáfora dele. Já a função heurística, que supera as

outras duas, consiste na capacidade de o caso gerar conceitos.

Postulando ser o relato clínico mais a reconstituição ficcional do encontro clínico,

do que propriamente o reflexo fiel do fato concreto, Nasio (2001) atribui ainda outro

aspecto à escrita do analista: o aspecto ficcional. Trata-se sempre de uma história

reformulada, e não de um acontecimento puro. “De uma experiência verdadeira extraímos

uma ficção, e, através dessa ficção, induzimos efeitos reais no leitor. A partir do real,

criamos a ficção, e, com a ficção, recriamos o real” (pp. 17-18).

O termo “caso” se refere ao latim cadere, que quer dizer “cair”. De acordo com

Figueiredo (2004), a construção do caso clínico em psicanálise é o “(re)arranjo dos

elementos do discurso do sujeito que ‘caem’, se depositam com base em nossa inclinação

para colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra” (p.79). A mesma autora afirma que

nunca é demasiado lembrar que o caso não é o sujeito, é uma construção com base nos

elementos que são reconhecidos em seu discurso e permitem-nos inferir sua posição

subjetiva.

Sobre o caso clínico, Freud (1912a/1996, 1912b/1996) destacou a importância da

formulação da questão ocorrer a partir da fala do paciente nas sessões. Ele construiu sua

teoria baseada em seus atendimentos clínicos, porém, não se tratava aqui apenas de uma

mera descrição do caso. Ia além do descritivo, construindo sua teoria a partir da análise e

da interpretação de sua clínica. Ou seja, a partir dos fragmentos de lembranças e


32

associações, aparentemente sem sentido, trazidos pelos pacientes em análise, ia

formulando inferências sobre os não-ditos nesta clínica (Guimarães e Bento, 2008).

De acordo com Vorcaro (2010, 2003), para problematizar o lugar do caso clínico

na pesquisa em psicanálise, é preciso considerar que a importância do caso clínico é a de

permitir recolher nele, inicialmente, a função da literalidade do escrito. A concepção do

clínico sobre um tema de pesquisa reverbera sobre o método com o qual o caso foi

abordado e tratado, produzindo interrogações não apenas relativas à capacidade operatória

da psicanálise para o tema tratado, mas também sobre o sujeito a que tal clínica se dirige.

A função do caso clínico na pesquisa em psicanálise não é demonstrativa nem exemplar.

Mostrando a oposição entre método psicanalítico e método científico, o caso clínico tem por

função problematizar a generalização necessária à teoria, explodindo a imaginarização de

universalidade da teoria sempre avessa à presença do singular surpreendente implicado no

inconsciente (Vorcaro, 2010, p. 17).

O legado dos ensinamentos de Freud nos foi deixado através dos casos clínicos que

ele atendera, logo, “é graças ao sujeito em análise que as teorias vão sendo construídas,

refutadas e reformuladas” (Guimarães e Bento, 2008, p. 96). Deste modo, pode-se dizer

que fazer um estudo de caso clínico numa pesquisa psicanalítica é escrever sobre a clínica.

Então, o caso clínico em psicanálise exprime a singularidade de um sujeito portador de um

sofrimento psíquico e da fala que ele dirige. Assim, a teoria psicanalítica vai se

construindo seguindo o caminho do pathos do paciente, onde o foco da pesquisa deve

incidir sobre o sujeito afetado. Nasio (2001, p. 11-12) define, assim, um caso clínico como

(...) o relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro

com um paciente e respaldar um avanço teórico. Quer se trate do relato de uma sessão, do

desenrolar de uma análise ou da exposição da vida dos sintomas de um analisando, um caso é


33

sempre um texto escrito para ser lido e discutido. Um texto que, através de seu estilo narrativo,

põe em cena uma situação clínica que ilustra uma elaboração teórica. É por essa razão que

podemos considerar o caso como passagem de uma demonstração inteligível a uma mostra

sensível, a imersão de uma idéia no fluxo móvel de um fragmento de vida, e poderemos,

finalmente, concebê-lo como a pintura viva de um pensamento abstrato.

Para tal pesquisa, dois casos clínicos foram acompanhados em atendimentos

clínicos mensais – visto que esse é o modo de intervenção privilegiado pela equipe da

associação e que leva em conta o consentimento das participantes – domiciliares, onde os

mesmos foram gravados e transcritos após cada sessão para, posteriormente, ser construído

o relato do caso clínico.

A presente pesquisa foi autorizada pela presidente da Associação Piauiense dos

Portadores de Esclerose Múltipla (APPEM) (Anexo I) e aprovada pelo Comitê de Ética em

Pesquisa da Universidade de Fortaleza (COÉTICA-UNIFOR), com parecer nº 233/2011

(Anexo II). A mesma seguiu os princípios éticos, determinados pela Resolução 196/96 do

Conselho nacional de Saúde / Ministério da Saúde, que contém as diretrizes e normas

regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, e pela Resolução 016/2000 do

Conselho Federal de Psicologia, que regulamenta a pesquisa em psicologia com seres

humanos, atendendo às exigências éticas e científicas fundamentais para sua realização

(Brasil, 1996; Conselho Federal de Psicologia, 2000).

De acordo com tais resoluções, “é obrigação do responsável pela pesquisa avaliar

os riscos envolvidos, tanto pelos procedimentos, como pela divulgação dos resultados,

com o objetivo de proteger os participantes e os grupos ou comunidades às quais eles

pertençam” (Conselho Federal de Psicologia, 2000, p.02). Em vista disso, considera-se que

esta foi uma pesquisa de risco mínimo, pois seus procedimentos não sujeitam os
34

participantes a riscos maiores do que os encontrados nas suas atividades cotidianas

(Conselho Federal de Psicologia, 2000).

Por se tratar de uma pesquisa clínica com a proposta de acontecer mediante livre

aceitação de atendimento psicológico, em que se tem garantido o sigilo dos dados, a

isenção de custos, como também o direito de desistir a qualquer momento sem nenhum

tipo de prejuízo em sua relação com o pesquisador, com a instituição e com a continuidade

do tratamento mesmo após o término da pesquisa, foi garantido que “os danos seriam

evitados, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos”

(Brasil, 1996, p.03).

Como critério de inclusão para participação desta pesquisa, decidiu-se por

pesquisar apenas mulheres entre 22 e 45 anos, com diagnóstico médico de esclerose

múltipla e que estejam associados à Associação Piauiense dos Portadores de Esclerose

Múltipla. A inclusão dos sujeitos nesse estudo só foi permitida após a leitura, compreensão

e aceitação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE (Apêndice I). Os

sujeitos da pesquisa foram comunicados dos aspectos éticos do estudo, onde é lhes

assegurado o seu bem-estar e sua dignidade, bem como o sigilo e o anonimato, a partir do

momento do seu aceite do TCLE.

A exclusão de participação obedece aos critérios de: mulheres que tenham a

patologia, mas que tenham alguma síndrome grave, depressão aguda, transtorno de

personalidade ou baixa imunidade; que tenham restrição médica para participação na

pesquisa e que demonstrarem desejo de interromper, em qualquer momento da pesquisa,

sua participação na mesma.

Em decorrência do prognóstico da patologia e do estado de evolução clínica em

que as participantes se encontravam, visto que muitas portadoras da associação são

dependentes de cadeira de roda e/ou apresentam dificuldades de locomoção, a pesquisa


35

ocorreu na residência das mesmas, através de visitas domiciliares. As visitas domiciliares

têm a função de avaliar as demandas dos pacientes e de seus familiares em que vem,

estabelecendo um plano de recuperação e/ou reabilitação do sujeito, visando sua

autonomia e independência, por isso é a forma privilegiada pela APPEM de atendimento

aos portadores. O termo atendimento domiciliar é aqui empregado em seu sentido amplo,

compreendendo uma gama de serviços realizados no domicílio e destinados ao suporte

terapêutico do paciente. Segundo Albuquerque (2003), a prática de atendimento aos

sujeitos adoecidos em domicílio já é citada no Velho e no Novo Testamentos e, no século

XIX, organizações de home care (termo americano para assistência domiciliar utilizado,

em geral, por empresas privadas no Brasil) eram formadas por associações de enfermeiras

visitadoras, vinculadas a movimentos filantrópicos. Os programas tinham como foco a

saúde pública e a prevenção de doenças. No início do século XX, as visitas domiciliares

eram feitas por médicos, com limitações de tecnologia e tratamentos.

Jacob Filho (2000) descreve que a perspectiva da assistência domiciliar surge como

uma forma de atuação devidamente organizada para detectar, valorizar e intervir em

concomitância com as necessidades e possibilidades do paciente. O atendimento em

domicílio permite maior contato com a realidade concreta do paciente, havendo a

possibilidade de se observar características da dinâmica familiar que não aparecem nos

atendimentos nas instituições de saúde ou consultórios.

Na atualidade, essa modalidade de assistência agrega a participação sistemática de

diversos profissionais nos cuidados oferecidos ao paciente em sua casa, seja com objetivo

de prevenção de problemas de saúde ou de assistência para doenças já instaladas. Nestes

casos, vão ser assistidos em domicílio pessoas acometidas pelas mais variadas doenças, em

geral crônicas, que impossibilitem ou pelo menos dificultem sua locomoção para o

tratamento em hospitais ou clínicas.


36

A assistência domiciliar está cada vez mais presente no cenário atual da saúde a

partir, e principalmente, da última década do século passado. Isto é devido a diversos

fatores, sendo a redução de custo o principal. Todavia, segundo Loretta (2009), outros

também fatores foram determinantes para o crescimento desta modalidade de atendimento

em saúde no Brasil, como a reintegração do paciente em seu núcleo familiar e de apoio, a

assistência humanizada e integral, a maior aproximação da equipe de saúde com a família,

a maior participação do paciente e de sua família no tratamento, a manutenção do paciente

no núcleo familiar, o aumento da qualidade de vida do sujeito adoecido e de seus

familiares, além deste se tornar um campo de ensino e pesquisa.

Deste modo, partimos do pressuposto de que uma investigação, para se incluir no

campo da psicanálise, não precisa se limitar à situação clínica de consultório, desde que se

preserve as condições da experiência analítica. Portanto, definimos que esta pesquisa é

uma pesquisa em psicanálise por debruçar-se sobre um fenômeno, procurando manter os

dispositivos do método psicanalítico. A este respeito, conforme Violante (2000, p. 117), “o

importante é problematizar o objeto de estudo de tal modo que só a psicanálise possa dar

respostas ou, ao menos, que ela seja imprescindível para a efetivação do estudo”.

1.2 Detalhando o Percurso Investigativo: Apresentação dos Relatos Clínicos

Nesta pesquisa, a escrita dos casos tenta explicitar o momento em que a vivência

do adoecimento se faz presente na fala dos sujeitos, apreendendo as diferentes formas de

expressões do sofrimento psíquico.

Seguindo os critérios éticos estabelecidos e mencionados anteriormente, os relatos

que poderiam comprometer o anonimato e/ou expor os sujeitos nos relatos dos casos

clínicos, foram excluídos ou descritos de maneira a preservar o anonimato e o sigilo. Na


37

apresentação, os sujeitos tiveram suas identidades protegidas por meio de nomes fictícios,

escolhidos com base nas leituras sobre a história da patologia e por figuras públicas que

tem esclerose múltipla que, de alguma forma, ampliam nosso conhecimento sobre a

vivência da doença.

No primeiro caso, o nome atribuído à paciente foi Lidwina. A escolha deste nome

ocorreu em razão do registro mais antigo da história da patologia (Hill, 2010), que

pertence ao esqueleto de uma mulher conhecida como Lidwina Van Schiedam (este

sobrenome significa “sofrer largamente”). Ela viveu na Holanda do século XIV e textos

históricos revelam que era atormentada com uma doença debilitante. A doença de Lidwina

começou pouco após ter tido uma queda aos dezesseis anos de idade. Desde então,

desenvolveu dificuldade a andar, cefaléias e dores. Aos dezenove anos, ambas as pernas

estavam paralisadas e tinha problemas de visão. Durante os trinta e quatro anos seguintes,

sua condição piorou lentamente, apesar de ter períodos aparentes de remissão, até que

faleceu aos cinquenta e três anos de idade. Sua história ficou conhecida como a “estranha

doença da virgem Lidwina”, padroeira dos pobres doentes (Hill, 2010).

Para o segundo caso, Cláudia foi o nome atribuído. Tal escolha se justifica pela

própria descrição da paciente ao se comparar com a atriz e humorista Cláudia Rodrigues:

“um exemplo de determinação e alegria é aquela atriz Cláudia Rodrigues (...). Acho que

somos muito parecidas, somos divertidas, não perdemos o humor por qualquer coisa e a

gente ainda ajuda aqueles portadores mais difíceis”.

 O Relato de Lidwina

Mulher de quarenta e cinco anos, divorciada, classe média, médica cardiologista.

Considera-se calma, comunicativa e receptiva. Mãe de Lucas, de doze anos, filha única de
38

João e Maria. Mora com o pai e o filho. A mãe faleceu em 2000, ano em que foi

diagnosticada. Convive há onze anos com a esclerose múltipla.

Os encontros com Lidwina foram realizados individualmente, na casa da mesma,

sempre no dia em que ela se acha estar mais disposta, devido aos efeitos advindos da

aplicação da medicação. Isso acontece porque antes de ir ao encontro da paciente, é feita,

pela APPEM (Associação Piauiense dos Portadores de Esclerose Múltipla), uma

confirmação da sessão mediante o contato telefônico. O procedimento de atendimento a

paciente, assim como acontece com os outros profissionais inseridos na APPEM, é sempre

realizado uma vez ao mês em data e horário determinados em sessão anterior. As sessões

com Lidwina ocorreram entre os meses de outubro de 2010 a outubro de 2011, totalizando

quinze encontros.

Nos primeiros encontros, percebeu-se sua vontade de falar, principalmente sobre o

possível futuro da doença em sua vida. O filho dela quase sempre estava presente,

questionando, tentando fazer parte dos assuntos relacionados à mãe. Em nenhum momento

a paciente se mostra incomodada pela presença do filho, colocando este momento até

como propício para que ele também pudesse tirar algumas dúvidas que ela não conseguira.

Lidwina mostrava caminhar com dificuldade, com lentidão. Nos momentos que iria pegar

algum objeto ou fazer força com a mão esquerda, não conseguia controlar o braço que

tremia muito. Apresentava as angústias vivenciadas na época do diagnóstico da doença e

as repercussões desta em sua vida.

Sua entrada na associação se deu no ano de 2008, por intermédio de uma amiga que

também tinha a patologia, mas sempre falta às reuniões, como uma forma de resistência.

Nos primeiros encontros, Lidwina discorre sua história de vida com ênfase na

doença, atravessada por mitos e fantasias. Começou a ter os primeiros sintomas, “acho que

foi aparecer em 1998”. Teve uma perda de equilíbrio, relatando que toda vez que andava,
39

tropeçava “do nada, como se estivesse bêbada”. Sentia muita fraqueza muscular, “minhas

pernas pesavam muito, parecia que eu carregava aquelas tornozeleiras de academia de 20

quilos”, mas achava que era por causa do estresse da profissão de médica, pois diz que

sempre dedicou-se muito à sua vida profissional, “acho que até demais. Minha mãe sempre

falava que eu precisava me aquietar mais”.

Contou sobre sua “peregrinação médica”, onde os médicos que vai sempre a

diagnosticavam com isquemia, “esse braço aqui que fica tremendo, achando que poderia

ter surgido provocada pela diabetes”. No ano 2000, conheceu sua atual neurologista,

indicada por uma amiga, e vizinha, que também tinha esclerose múltipla, “e como ela já

tinha experiência com esse tipo de paciente, foi fácil pra ela me diagnosticar”.

Com o diagnóstico, relembrou o quanto abalada ficou, “eu não queria acreditar,

sabe, ‘não, não pode ser, Meu Deus, nessa altura do campeonato’, logo uma doença

dessas”. Envergonhada, com a cabeça inclinada pra baixo e falando em um tom muito

baixo, Lidwina contou que fez “o que muita gente faz pra saber de uma coisa quando não

se sabe muito dela”, referindo-se à procura de informações sobre a doença na internet. “Eu,

como médica, mesmo tando acostumada com doença, gente doente, inválida, essas coisas,

fiquei chocada”.

Ao mesmo tempo em que a vergonha se fazia presente, contava, sorrindo, sobre

como as imagens que surgiam diante da tela lhe tocavam: “eu tava numa aflição (...)

mulheres nuas e homens nus em outdoors, era tão estranho. Eram dois outdoors pra uma

propaganda só, mas um tinha só a cabeça da mulher e o corpo ficava no outro, assim,

como se tivesse uma separação. Ai que eu fico aflita lembrando daquelas coisas”. Por mais

que “pesquisasse”, a paciente, na época, não quis admitir que estava com “aquela doença”,

que poderia “ficar daquele jeito”, não aderindo ao tratamento, ou seja, não tendo uma

mudança de comportamento que correspondesse às recomendações do seu médico, como


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tomar a medicação religiosamente, seguir uma dieta específica e mudar seu estilo de vida,

já que trabalhava com um carga horária elevada. Passados dez anos de diagnóstico, “veio o

primeiro surto mais brabo, eu fiquei louca”. Relatou que se sentiu como se fosse “mesmo

uma coisa muito frágil, sentia uma sensação de impotência tão grande. Foi a prova de fogo

pra mim”.

Diante desse acometimento, Lidwina relatou que passou por momentos de

incerteza, e surpresa, sobre a reação e aceitação de sua família perante essa nova condição.

Disse ter ficado desapontada com a aceitação e o otimismo da família, revelando

necessidade de cuidados e atenção: “parecia que eles não estavam muito surpresos com

minha situação, mas eu preferia que eles ficassem mais preocupados, porque é boa essa

sensação de se sentir importante na vida das outras pessoas”. Entretanto, queria mostrar o

lado da mãe boa, capaz de fazer as mesmas coisas que as outras mães, “que supre as

necessidades do filho, acima de tudo”. Disse que sempre teve o cuidado com o que o filho

iria pensar sobre futuro, como iria cuidar dele, o que ele iria pensar sobre a mãe, sobre a

doença: “não queria que ele tivesse a sensação, ou mesmo só um pensamento de que tinha

uma mãe inválida, que não podia fazer nada por ele”. “Hoje eu tento suprir tudo”,

relatando sobre a viagem que fez com o filho para Buenos Aires.

Em meio às histórias sobre essa viagem, a paciente sempre se referia ao filho como

um garoto inteligente, muito parecido com ela, tendo a mesma garra que ela tinha nos

estudos, desenvolto com a fala e com as pessoas, “não tem um pingo de vergonha em falar

ou de se apresentar em público, na escola ele sempre é o escolhido pra fazer as

apresentações de grupo, de representar a turma”. Contraditoriamente, se mostrava aflita e

insegura, temerosa diante do imprevisível e da incerteza da dependência, “fico com medo

de perder o controle total de mim, do meu corpo, das minhas atividades, eu não me

imagino sendo dependente de uma cadeira de rodas, para mim essa é a pior coisa que essa
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doença pode me trazer”. Além de referenciar outras pessoas com a patologia que estão em

situação mais grave que a sua, a paciente começa a fazer questionamentos sobre

prognósticos e lamentar-se de uma sucessão de lutos, onde alguns nem pudessem vir a

acontecer, principalmente sobre um novo posicionamento que surgia como a referência

para colocar Lidwina na sua nova dinâmica, de médica à paciente: “tudo isso ainda é muito

novo pra mim, apesar da minha profissão de médica, mas isso tá acontecendo comigo,

podia ser eu ali naquela cadeira de rodas, sem falar nem andar, dependendo de gente pra

fazer minhas coisas, até minhas coisas intimas (...) eu não saberia como seguir daqui para

frente, me dá até medo de pensar mais sobre o futuro, até ir ao banheiro está cada vez mais

difícil. É sempre assim?”. Admitiu relutar muito, apesar de já ter aderido ao tratamento,

principalmente em olhar o que, para ela, parecia ser seu futuro.

Em outro dia de sessão, mostrou-se reflexiva, repetindo, várias vezes, “que um dia

a gente deve acabar se acostumando com tanta surpresa na vida”. Questionada sobre essas

surpresas, Lidwina mencionou uma nova postura em relação ao filho, novamente tomando-

o como um filho mais maduro, mais inteligente, que ajudava nos serviços de casa,

mencionando o ex-companheiro pela primeira vez, ao dizer que o filho em nada se parece

com ele.

Lidwina questionava muito sobre as pessoas que tinha visto na APPEM, se aquilo

era uma condição crucial da doença, se ela também iria ficar como elas. Esse é um

pensamento frequente que a paciente diz ter, aparecendo frequentemente em seu discurso.

Relatou que, em decorrência de sua preocupação fantasiosa com seu estado físico ao ver

outras pacientes mais debilitadas que ela, seu lado religioso “aflorou”. Fala da necessidade

que teve em se sustentar em “algo maior”, algo divino, começando a rezar todos os dias,

pedindo para que não ficasse como as pessoas mais debilitadas que viu na associação. Diz

ter fé em Deus, de que vai melhorar cada vez mais, “até porque eu tenho um filho que tá
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praticamente começando a vida agora. O Luquinhas tá com 12 anos, mas já fala em

carreira, em vestibular, e eu pretendo estar presente em todas essas etapas da vida dele,

podendo ajudar em alguma coisa, porque mãe é pra essas coisas”. Nisso, surge um

sentimento de culpa em Lidwina por só querer ter tido um filho, e já o ter com idade

avançada, “e agora deu no que deu”.

Retoma as lembranças das pessoas mais seriamente acometidas, quando relata

sobre desconfortos na sua vida profissional por causa da doença, ficando receosa em sair

de casa, chegando a ligar para o trabalho informando que faltará. Reclama muito da

“tremedeira do braço”, principalmente quando vai digitar as receitas para os pacientes,

“meu braço começa a tremer e os pacientes ficam olhando pra mim”.

Com o passar das sessões, Lidwina já não questiona, ou menciona, tanto sobre o

futuro da doença. Falou, mencionando, pela segunda vez, o ex-marido, sobre a relação do

filho com a família dele, sobre a relação dela com o ex-marido, pois ambos tinham saído

de casa a pouco tempo. Diz deixar o filho sair com o pai, porque é uma forma dos dois não

perderem o contato, além disso, faz questão de o pai ensinar português ao filho, já que é

professor, mencionando também as notas baixas que o filho tirou na matéria. Remetendo à

comparação feita pela paciente anteriormente, novamente Lidwina enfatiza a semelhança

dela com o filho, dizendo que ele quer fazer Direito numa instituição pública.

Questionada sobre a relação do filho com o pai, a paciente diz que eles “até que se

dão bem”, e logo enfatizou o seu relacionamento bom com o filho, o quanto estão mais

próximos desde que se separou do ex-marido. Diz que quando ele era pequeno, sempre deu

muito carinho pro filho e fazia de tudo por ele: “acho que ele foi um presente de Deus pra

mim, nasceu sadio, saudável, inteligente, sem nenhum defeito, graças a Deus, e eu tenho

que preservar isso”. Disse que o ex-companheiro sempre foi muito distante, embora “ele
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diga hoje em dia que quando o neném tava doente era ele que botava o neném no colo

porque eu não conseguia, mas só”.

A paciente conta outros exemplos que o pai de seu filho não a ajudou, por exemplo,

“levar o neném pra vacinar, nunca levou”, enfatizando que o marido sempre dava alguma

desculpa para nunca poder realizar atividades de cuidado com o filho. Mais uma vez,

Lidwina demarca seu relacionamento com o filho, como sendo “muito estável”, de muita

confiança, dizendo que o filho só gosta de viajar com ela, “porque ele diz que eu já

conheço tudo, já sei me virar. Eu digo ‘não, se preocupe não, porque enquanto sua mãe

tiver viável, não se preocupe não que a gente vai viajar””, falando que já prometeu a ele

uma viagem para a Disney quando completar quinze anos.

Conta que se separou do companheiro há, mais ou menos, seis anos. Relatou

sempre achar que foi um relacionamento conturbado, com muitas discussões e brigas.

Revelou o posicionamento da mãe, que nunca gostou muito de seu ex-companheiro,

principalmente devido ao “vício horrível da bebida”. Relata que “perdeu as contas” de

quantas vezes o ex-companheiro chegou em casa, na madrugada, bêbado. Sempre teve

esperanças de que quando casassem e tivessem filhos, ele iria parar. Conta que a “gota

d’água” aconteceu quando ele chegou, no domingo a noite, falando alto, quebrando alguns

ornamentos da casa e falando mal com seu pai. “Meu pai disse logo pra mim pra eu

resolver logo isso porque não tava dando mais certo”.

Relembrando tais passagens, Lidwina começa a fazer associações entre episódios

estressores e o aparecimento dos surtos e de sua separação: “não sei se pode ter alguma

coisa a ver, mas acho que das muitas vezes que eu discutia com ele, eu sempre tinha uma

piora do meu quadro, sabe, acho que a gente se separou também por causa das minhas

crises. Não sei se ele entendia, ou não queria suportar aquilo”. Nesse momento, a paciente

relata que o ex-marido pediu, recentemente, para voltarem a morar juntos. Relata que
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chegou a ficar “balançada”, mas tudo por causa do filho, questionando se o melhor para ele

era ter os pais juntos novamente por perto, já que o ex-marido tinha parado de beber

frequentemente.

Questionada se o filho sabia e sobre o que ele pensava, Lidwina disse que ele não

gostou muito da idéia. “Hoje mesmo a gente tava conversando sobre o pai dele, mas não

sobre ele querer voltar pra cá, e ele tava chateado, dizendo que o pai não cumpre as coisas

que promete”. Chateada, disse que essa não é a primeira vez que ele faz isso com o filho,

já houveram outras vezes onde esse episódio também aconteceu.

Revela que seu medo sobre isso tudo é em relação ao seu pai. A paciente diz não

saber como esse vai reagir, tendo, também, dúvidas sobre estar fazendo a coisa certa, não

sabendo se faz bem para o seu filho, para ela ou para o seu pai. Quando fala na

possibilidade de voltar a viver com o ex-marido, Lidwina mostra-se ansiosa, chegando a

criar expectativas sobre os relacionamentos atuais do ex-marido, “eu tenho quase certeza

que ele não está com outra pessoa”. Ao mesmo tempo, receia-se de ele queira voltar por

comodismo, já que foi o mesmo que propôs essa volta. Diz não ser mais “boba como era”,

tanto que colocou algumas condições para o ex-marido voltar, comparando a contratos pré-

nupciais, como, por exemplo, o mesmo não beber durante a semana. “Ai eu quero ver se

ele aguenta”. Em meio a medos e expectativas, diz estar com uma “auto-estima elevada”,

sustentando isso no fato do ex-marido saber de suas condições físicas, da doença, das

limitações, do ressentimento do pai dela, do filho dos dois, e, mesmo com tudo isso, ainda

estar disposto a retomar o casamento.

Após sete meses de atendimento, em sessões posteriores, a marca da doença se

fazia cada vez menos presente. Lidwina conta que o filho, na época de sua separação, não

chegava nem a perguntava sobre a ausência do pai, “ele nem sentiu falta, de tamanha que

era a ausência do pai em casa. Ele nunca perguntava pra mim, ele nunca perguntou ‘mãe
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cadê o papai?’, nunca, nunca, nunca”. Apesar disso, conta que acha que o filho gosta

quando o pai vem ensinar o dever de casa pra ele, mas é apenas pela dificuldade que ele

tem em tirar uma nota boa pra escola, e a paciente diz contribuir para o relacionamento dos

dois, relatando um diálogo que teve recentemente com ele: “eu sempre digo, ‘meu filho,

tem que ser mais amigo, é seu pai’, e ele fica ‘ah mãe, mas ele me deixou quando era

pequeno’, eu digo ‘sim, foi uma burrada que ele deu, agora tá pagando pela burrada que

fez’, Deus é que vai se encarregar de abrir os olhos do seu pai, de fazer vê onde foi que ele

errou, em que momento ele errou, pra vir atrás do filho dele, de ver como ele tá, perguntar

como ele tá”. Conta que o filho não gosta de conversar sobre isso, mudando logo de

assunto com ela.

Lidwina relata que não gostava, e nunca gostou, dos amigos de seu ex-marido. Diz

que ele nunca respeitou nem “meu estado de resguardo, o neném, nem meu estado quando

a mamãe faleceu”, contado o episódio de um surto onde teve que ficar internada durante

três dias, e que o ex-marido não gostava de vê-la, aparecendo esporadicamente na janela

do quarto com o filho no colo. Conta que era sua mãe que estava com ela ajudando o

tempo todo. Depois que ele fez a proposta de voltarem a morar juntos, e Lidwina teve que

passar pelo mesmo procedimento de internação, conta que o ex-marido já se fez presente,

mas durante apenas alguns minutos de um dia de internação. Logo mostra-se arrependida

de falar sobre o assunto, “não vale a pena eu ficar pensando nisso, remoendo”. Logo

voltando a mencionar a tentativa de reconciliação com o ex-marido, disse ter conversado

com o filho sobre a situação, pois o ex-marido estava a pressionando, cada vez mais, por

uma resposta. Em seu discurso, parece notória sua vontade de voltar ao convívio com o ex,

mesmo tendo a reprovação do filho: “ele disse pra mim ‘mamãe, eu sei que a volta do

papai pode ser boa, mas ele já fez muitas coisas ruins, mentiu muito’, eu disse pra ele ‘meu

filho, ele não mentia o tempo todo, às vezes vocês combinavam umas coisas e não davam
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certo praquele dia, mas depois vocês acabavam fazendo o combinado’”, falando de um

episódio onde eles combinaram de ir ao circo, mas o pai teve que trabalhar até tarde e

acabou esquecendo o combinado. Lidwina impressionava-se com a atitude e o discurso do

filho, como ele “ficava toda hora com uma resposta na ponta da língua, ele dizia ‘sim mãe,

isso pode até ser, mas teve outras vezes que ele prometia e não cumpria, chegou em casa

várias vezes foi bêbado, e vem dizer que a senhora não lembra dele bêbado brigando com

o vovó’”. A paciente conta que ficou sem reação ao ouvir o filho, argumentando que não

se lembrava desse episódio.

Em outra sessão, Lidwina começa falando sobre as lembranças que, ultimamente,

tinha de sua infância. Disse que se lembra de tudo dessa época, e enfatiza várias vezes que

essa foi “a fase mais feliz da minha vida”. Lembra de pequenos brinquedos e costumes da

época, mencionando retratos de monóculos, “sentada na cadeira com uma boneca e tudo.

Foi uma fase fantástica da minha vida foi a minha infância”.

Conta que não recorda exatamente de tudo, a maioria de suas lembranças vinha do

que sua mãe lhe contava. Falou sobre a época em que morou em Teresina, ainda quando

criança, pois nasceu e morou por alguns anos em Belém, no Pará. Lembrou que tinha uma

vida calma e tranquila, morava com os pais e com uma tia paterna, “eu era doida por essa

tia, pena que ela já faleceu”. Descrevia tudo como algo fantástico, algo que simbolizava a

melhor experiência da sua vida, repetindo frequentemente: “foi uma fase fantástica da

minha vida”.

Lembra que, em Belém, morava com os pais em um apartamento, numa vila na

Cidade Velha. Conta que ia pra porta da rua, ficava passeando e brincando com um senhor,

que morava no apartamento abaixo do dela, mas não recorda o nome dele, apenas o nome

da esposa. Sorrindo, conta que todos os dias, no período da tarde, ficavam na porta do

prédio onde morava, “ele pegava uma cigarra pra mim, só pra eu ver, uma cigarra do pé de
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manga que tinha bem na frente, ai ele pedia pra eu imitar a cigarra, eu ficava imitando a

cigarra. Ai ele me pedia pra ver minha bonecas, ai eu pegava e pedia pra mamãe ‘mamãe,

joga fulana’, chegava no final do dia e eu tava cheia de boneca lá em baixo”.

Lembrou do colégio em que estudava, onde ficava perto desse apartamento, “que

foi também um colégio que eu achei fantástico. Acho que eu vou morrer me lembrando

desse colégio”, pois conta que era sozinha, por ser filha única, e não ter com quem brincar.

Quando ia pra escola, achava o paraíso porque sabia que lá haviam muitos colegas pra

brincar, tanto que relatou nunca ter dificuldade ou algum problema pra ir ao colégio, “para

mim era o paraíso e minha felicidade”, conta emocionada sobre a fase em Belém.

Nisso, recorda-se de uma viagem recente que fez á cidade natal, passando cinco

dias. Lembra dos nomes de bairros, dos costumes, elogia a cidade que está desenvolvida e

bonita. Descreve com clareza sua saudade do gosto que a cidade traz, mencionando uma

sorveteria muito tradicional, principalmente o sorvete de ingá e biribá. Trouxe “várias

coisas de lá pra matar a saudade”, como um pé de jasmim, relembrando o local de seu

apartamento que era cercado por pés de jasmim. Em meio às lembranças, aspectos da

patologia se fizeram presentes por alguns instantes, relatando a “chatice de ter que andar

pra cima e pra baixo com essas seringas”.

Relatou também sobre o período em que tiveram que morar definitivamente em

Teresina. De forma confusa e sem ter certeza da ordem dos acontecimentos, conta que o

pai era bancário, e que a empresa ficava remanejando seus funcionários para outros

estados. Dentre as opções que seu pai tinha, escolheu morar em Teresina, pois era da

cidade e sua família residia lá. Conta que sua mãe insistiu pra que seu pai fosse para o

Maranhão e que, hoje em dia, “ele morre de arrependimento”.

Lidwina narra que usa a ordem cronológica das escolas em que estudou para

lembrar-se de sua infância. Conta que tinha doze anos quando, o seu pai foi transferido pra
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São Luis, passando pouco tempo lá e retornando para Teresina. “Ai começou, eu acho que

foi na minha adolescência, que eu comecei a ficar assim, decepcionada, preocupada com

tudo”, menciona isso por causa das novas obrigações que tinha na época, como o

vestibular. Conta que ficava com medo de não passar e decepcionar seus pais: “porque

todo mundo me dizia que ‘ah, uma filha única estudar desse jeito não é todo dia que a

gente vê’, e eu já via isso como uma cobrança, então, pra mim, eu me sentia na obrigação

de passar no vestibular e isso era uma preocupação pra mim”. A paciente relata que na

primeira vez que tentou, não passou, mas no segundo semestre da mesma época, foi para

São Luis e conseguiu, tendo que morar seis meses na cidade. Trancou o curso para poder

transferir e voltar para Teresina, passando mais seis meses longe da universidade, “ai foi

quando meu pai me botou pra fazer concurso e, ai, já veio mais essa responsabilidade”.

Diz que teve sorte, pois passou logo no primeiro concurso, que foi para uma instância

federal.

Retomando a fase da adolescência, lembra do último colégio em que estudou em

Teresina, achando que foi nele onde começaram suas cobranças, “eu ficava naquela

cobrança comigo mesmo”, relando que foi a partir dessa época que se tornou uma pessoa

rígida com os estudos, principalmente durante a época das disciplinas práticas do curso.

Questionada sobre a escolha de sua profissão, Lidwina diz que sempre gostou de

medicina, “quando eu era menina, pequenininha, que eu via nas novelas, aquelas atrizes

doutoras e achava lindo aquilo, principalmente porque no tempo que eu era menina não

tinha muitas médicas, a gente via mais em televisão”. Nessa recordação, a paciente lembra

exatamente da novela em que havia a personagem médica, bem como a trilha sonora e os

nomes dos atores e personagens. “Desde ai meu interesse foi crescendo, minha vontade de

ser médica, ‘eu vou ser médica, eu vou ser médica, eu vou ser médica’”.
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Nisso, Lidwina retoma a época em que cursou seis meses do curso em São Luiz,

contando que não conseguia concentrar-se nas aulas, “eu não conseguia nada, até espinha

começou a estourar no meu rosto, era um estresse terrível”. Lembrou que o pai alugou um

apartamento pra ela ficar e que isso gerou uma discussão entre ele e sua mãe: “minha mãe

dizia, ‘não, eu não vou deixar minha filhinha só num apartamento não em São Luis’, ela

não me deixava ir de jeito nenhum, ficou aquela superproteção em cima de mim”. Pedi-lhe

para falar sobre isso, relatou que sempre teve a superproteção da mãe, “ela sempre foi

super protetora, sempre foi, sempre foi. Eu adolescente, grande, adulta, já formada, a

mamãe era desse jeito. Às vezes eu tava de plantão e ela mandava uma marmita, era uma

vasilha de inox que ficava dentro de uma de isopor pra conservar, com meu almoço, lá pro

meu trabalho”. Isso me remeteu a imagem da mãe que Lidwina é hoje com seu filho, em

seus relatos de suprir todas as necessidades.

Na sessão seguinte, retomou lembranças de sua mãe, principalmente da doença e

do óbito dela: “quando ela faleceu, eu fiquei perdida, foi em 2000, meu filhinho tinha

apenas um ano”. Conta que sua vida parecia que tinha acabado, sentia que não tinha mais

laço algum com seu passado, expressando não ver sentido em “cortar tudo aquilo”. Ainda

relata que tal episódio ocorreu no momento em que estava em fase de separação com o ex-

marido, com constantes discussões, enfatizando esse momento como o estopim de sua

doença: “eu acho que isso foi o início pra desencadear tudo isso, essa doença. Eu me senti

muito perdida nessa fase”.

Sobre a doença de sua mãe, Lidwina não soube contar com exatidão a data em que

sua mãe adoeceu, ficando em dúvida nos anos de 1997 e 1998. Devido às diabetes e uma

hipertensão crônica, diagnosticadas após um exame pré-operatório de catarata, a mãe da

paciente ficou um ano e dois meses fazendo diálise, tendo como primeiro sintoma uma

disfunção na marcha. Esse fato relatado por Lidwina me remeteu ao primeiro sintoma
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descrito por ela no começo das sessões, quando reclamava e apresentava, notoriamente,

dificuldade em caminhar, devido à esclerose múltipla. “Ai nisso ela foi definhando, mas

ela era assim, viva, ela não era assim de amofinar não. Foi desse jeito, terrível pra mim, e

não desejo isso pra ninguém. Apegada com a mamãe do jeito que eu era... Enquanto isso,

eu tava naquela situação com meu marido, né”.

É significante ressaltar uma relação familiar peculiar que aparece na fala de

Lidwina. Dos doze tios maternos que tinha, todos vieram a óbito devido a complicações

provocadas pela diabetes, inclusive a mãe da paciente. Apenas quatro tias ainda são vivas,

sendo duas delas, diabéticas. Lidwina também é diabética. “Mas é assim mesmo. Isso é

uma característica mesmo da família, sabe, exatamente”.

Diante dessas perdas relatas pela paciente, pedi-lhe para ela falar sobre como ela, e

a família, encaram o momento da morte e do adoecimento, como vivencia e sente diante

do processo de luto. Prontamente, Lidwina responde que eles a encaram como uma coisa

natural, principalmente a família de sua mãe, “acho que pelo fato de não ter tanto contato,

mas eles sempre passaram essa impressão de não ficar toda hora perguntando como tá”.

Sobre seus avós, Lidwina falou pouco, pois eles morreram pouco tempo depois que ela

tinha seis anos, tendo pouco contato. Mas lembrou o fato, que sua progenitora lhe contou,

de seu avô materno falecer no ano que ela nasceu, por causa da diabetes.

A paciente ainda conta que, antes do falecimento de sua progenitora, também

vivenciou a perda de sua tia paterna, com quem morou durante sua infância. Apesar de dez

anos de um acontecimento para o outro, Lidwina fala, muito emotiva, sobre as perdas que

passou ao longo de sua vida. “Começaram daí essas perdas, depois foi a perda da minha

mãe, a separação, o divórcio, e não sei se tô nadando em águas calmas, mas tô muito

tranquila, tentando cortar tudo que estressa, tudo que me preocupa”.


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Novamente, retoma a história vivida com o ex-marido, relatando as perdas durante

todo esse processo. Ao relatar como o conheceu, começa, a partir de sua história depois de

formada, já trabalhando no emprego federal para o qual fez concurso, numa época em que

não tinha mais “obrigação com nada, obrigação no sentido de estudar, de exercer minha

profissão”. Nessa época, por volta de 1997, sua mãe teve que ficar internada numa clínica

cardiológica, foi quando o dono de lá a viu e convidou-a para trabalhar lá, aonde trabalha

até hoje. Conta, também, que nessa época fez sua primeira viagem pra a Europa, “porque

eu tinha loucura pra conhecer. Eu falei ‘mãe a senhora tem que conhecer, é tão lindo,

porque se a senhora morrer agora – eu dizia brincado pra ela – se a senhora morrer agora, a

senhora não pode falar que nunca foi pra Europa. Ai levei minha mãe”. Conta que, na volta

dessa viagem, conheceu o ex-marido, que era irmão de uma enfermeira da clínica.

Casaram-se em 1998, em 1999 tiveram o filho, “agora vai fazer seis anos que eu tô

separada, que eu tô divorciada mesmo”.

Lidwina também relatou que, no começo do casamento, era “tudo muito tranquilo,

um mar de rosas, se bem que desde o início do namoro que eu sempre fui assim um pouco

insegura em relação a ele. Eu não sei porque eu era insegura desde quando eu era menina,

que eu fiquei nessa insegurança”. Também ilustra sua insegurança em relação ao trabalho,

quando, já depois de formada, pensava que iria “ficar mais tranquila”, mas diz sempre

sentir insegurança, de passar o remédio errado para os pacientes e acabar matando um,

“tanto que eu ia pegar o plantão, mas eu ia com uma réca de caderno na mão pra ver ali,

pra ficar estudando”.

Diante de “promessas e juras de amor”, durante a lua-de-mel, a paciente conta que

já o notava diferente. Foi quando começou o problema com a bebida, passando a noite na

rua. Lidwina conta toda sua lamentação e que não acreditava que isso poderia estar

acontecendo com ela, “ainda bem que nunca teve agressão física, mas a pior agressão era
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essa, era a falta de consideração, que eu acho muito pior”. Relata que quando o filho

nasceu, o casal mudou-se para a cada dos pais da paciente.

Nas sessões seguintes, a paciente declarou gostar de falar dessas situações que

passou na vida, principalmente sobre o ex-marido, pois, para ela, as sessões são como uma

forma de desabafar: “Eu sempre digo pro neném, ‘filho conversa com um psicólogo, você

vai simplesmente desabafar, conversar sobre o que você tá sentindo, pra tirar alguma coisa

de dentro da sua cabeça, o que tá lhe preocupando, o que tá lhe chateando’”.

Nesse período, o filho de Lidwina que, no começo das sessões estava presente, já

não estava mais junto à mãe. Agora sua presença se fazia na fala da paciente, em meio à

preocupações com o futuro dele em relação às escolhas profissionais. Tal fato sugere uma

mudança na relação terapêutica, já que a paciente não precisava mais da presença do filho

na realidade, mas ele podia, e ela suportava isso, representá-lo, fantasiá-lo. Isso denuncia,

também, o fato importante da mudança do endereçamento da fala da paciente para a

terapeuta e não para alguém da família que pudesse testemunhar seu sofrimento. Uma

mudança na relação transferencial.

Em outra sessão, Lidwina relatou que se considera outra pessoa, “eu já me ajudei

pra caramba”. Menciona fatos, como o casamento, que hoje diz ver de uma forma

diferente: “eu achava que era uma obrigação que ele tinha de casar comigo, mas ai eu

fiquei pensando ‘poxa, mas por quê? Eu num pedi favor pra ninguém’. Mas eu segui”.

Apesar disso, ainda mostra rancor por parte do ex-marido, por este nunca ter dito “’por

favor vem, vamos voltar’. Mas já foi embora. Eu não queria, mas já que quis, tudo bem,

vou partir pra outra”. Reforça, mais uma vez, sua sustentação com o sagrado, pedindo pra

seguir sempre adiante, “eu tô indo, com Deus aqui comigo e tô muito bem”.

Contou que, na época de sua separação, não teve nenhuma tentativa de

reconciliação, mas, prontamente, lembra de um episodio, após um ano de divorciados, que


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o ex-marido tentou voltar, mas sem sucesso, pois disse que o mesmo não mudara.

Questionei-a se essa atual possibilidade de volta não tivesse sucesso, Lidwina respondeu

enfaticamente que mudaria muito, pois ela não era mais a mesma. Na tentativa anterior, se

colou como boba e com “os dois pés na frente”, mas agora “eu tô sempre com um pé atrás

e nunca iludida”.

Disse estar se “livrando de preocupações”, que quer sempre estar bem, focada no

futuro de seu filho, “quero recomeçar minha vida, já que Deus me deu essa oportunidade

de recomeçar de uma forma diferente”, referindo-se à esclerose múltipla. “Tô chutando

tudo quanto era problema, tudo quanto foi de causa de problema, de preocupação, que

possa agravar o meu. Eu quero pensar daqui pra frente. E só”.

Lidwina sugeriu, mediante a justificativa de se ver impossibilitada de continuar o

processo terapêutico, devido a uma viagem de férias longa duração (três meses) de férias

com o filho e pai. Na qualidade de terapeuta, acolhi o pedido de suspensão do processo,

tendo feito contato sucessivos com no período previsto para o retorno da paciente.

Lidwina, nesse momento, diz, durante contato telefônico, não ser possível continuar as

sessões alegando ter sido uma pausa muito longa. É interessante ressaltar que a decisão de

viajar foi de Lidwina e que, talvez o recuo frente às mudanças que as intervenções

terapêuticas vinham possibilitado a sua vida, ilustre o processo de resistência próprio à

situação terapêutica, assim entendida pelo viés da psicanálise. Como a mesma diz: “Tô

chutando tudo quanto era problema, tudo quanto foi de causa de problema, de

preocupação, que possa agravar o meu. Eu quero pensar daqui pra frente. E só”.

Lembro das situações ligadas à perda e ao luto sendo problemáticas à paciente, o

que me deixa frente a um paradoxo dela ter demandado uma quebra no processo

terapêutico, onde ficou sem uma elaboração frente a este luto, já que a mesma se negou a

retomar as sessões. Haveria ai lugar para uma demanda de análise? Será que as
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possibilidades construídas pelo processo da escuta e intervenções terapêuticas já não eram

suficientes para Lidwina?

Atualmente, ela ainda é acompanhada mensalmente pela equipe da APPEM. Vai às

palestras, confraternizações e outros eventos promovidos pela instituição, sempre

acompanhada do filho e do pai.

 O Relato de Cláudia

O segundo caso acompanhado é de uma mulher de trinta e três anos, casada, de

classe média alta, aposentada por invalidez, mora com o esposo e um casal de filhos,

convive há treze anos com esclerose múltipla e diz aceitar a doença completamente, apesar

de “sentir dor vinte e quatro horas por dia”.

Os encontros com Cláudia também foram realizados individualmente, na casa da

mesma, e aconteceram de acordo sua disposição física por causa das medicações, pois

relata sentir um mal-estar muito grande, “uma fraqueza”, após cada aplicação intravenosa

dos imunomoduladores, que visam reduzir a inflamação das sequelas no sistema nervoso.

As sessões com Cláudia ocorreram entre os meses de março a dezembro de 2011,

totalizando 10 sessões.

Em suas falas, nunca menciona a patologia como algo ruim, pois através dela, pode

ajudar outras pessoas na mesma situação. Desde os primeiros encontros, Cláudia sempre se

mostrou disponível e alegre. Foi uma das primeiras pessoas no Estado do Piauí a ter

esclerose múltipla, ajudando a construir a Associação Piauiense dos Portadores de

Esclerose Múltipla – APPEM.

Casou-se muito cedo, foi embora pra Fortaleza com o marido, porque este

trabalhava na cidade na época e, assim que aqui chegou, começou a sentir “umas coisas
55

estranhas”. Começou a sentir dormência nas pernas, nos braços, ia aos médicos, no clínico

geral, em tudo, e eles diziam que esses sintomas eram causados pelo estresse. Na época,

Cláudia fazia duas faculdades, tinha uma filha pequena, recém nascida. Ela diz: “e pra

onde eu corria o diagnóstico era estresse, estresse, estresse, estresse. Não resolvia nada”.

Ela entrou de férias, viajou com o marido e voltou pior. Voltou completamente

tonta, completamente dormente, o corpo inteiro, a língua dormente. Não conseguia ficar

em pé direito, não tinha equilíbrio. Indicaram a Cláudia que ela fosse ao neurologista.

Começou a fazer os exames, tirou o liquor, o sangue, fez exame de visão, ressonância.

Enfatizou que todos esses procedimentos foram feitos há quatorze anos atrás, numa época

em que “era uma luta pra chegar a uma diagnóstico. Hoje em dia as pessoas tão mais

informadas, tem mais acesso, tem mais máquinas de ressonância”. Foi então que o médico

lhe deu o diagnóstico.

Assustada, conta com revolta sobre a maneira como o médico se comportou, dando

o diagnóstico de “uma maneira muito grosseira. Ele era muito grosso”. Cláudia relatou que

a mãe pediu que a filha voltasse para Teresina. Foi quando as duas foram em outro

médico, que é seu médico até hoje. Começou uma maratona de internações, várias

internações, chegando a internar-se oito vezes em um ano. Na época, conta, tinha vinte e

um anos. “Eu vinha de Fortaleza direto pra me internar, porque o médico dizia ‘acredite,

que nós vamos parar essa doença’. Eu não tava sentindo nada, mas eu vinha me internar.

Passava um semana aqui internada, voltava pra Fortaleza, passava vinte e oito dias lá e

voltava pra me internar de novo. Foi durante um ano eu fiz isso”.

Disse acreditar muito que sua estabilidade em relação a doença foi por conta de

“trabalhar muito o psicológico”, já que fez vários anos de terapia. Relatou que, no começo,

foi muito difícil receber um diagnóstico como este, principalmente da forma como foi
56

diagnosticada, “o médico que me deu o diagnóstico era um cavalo batizado, deu a notícia

da maneira mais grosseira que podia dar”.

Questionada a falar mais sobre o momento do diagnóstico, pois percebi que fala

com muita frieza e voracidade sobre tal episódio, Cláudia diz ter imaginado: “minha vida

acabou. O médico só me disse o seguinte: ‘é uma doença crônica, que não tem cura,

degenerativa, que daqui a um ano você vai morrer, quase. Você é novinha assim,

bonitinha, mas daqui há um ano, mais ou menos, você já vai tá toda paralisada em uma

cadeira de rodas, entendeu’”.

Procurando maneiras de lidar com a situação, Cláudia conta que descobriu uma

associação de portadores de esclerose múltipla em Fortaleza, mas acabou ficando

desiludida pela falta de informação das pessoas. “Só fui a uma reunião lá, e no dia que eu

sentei lá, eu fui com o meu marido, e a mulher que tava do meu lado: ‘ai e seu marido

veio? Mas é porque é sua primeira reunião, porque na próxima ele já não vem mais. Meu

marido me largou, nenhum marido não aguenta’. Eu fui embora da reunião morrendo de

chorar”.

Relata que, pouco tempo depois desse episódio, quando via alguém com cadeira de

rodas, pensava que era alguém com esclerose múltipla e dizia: “olha, daqui a um ano eu

vou tá daquele jeito, eu não vou ver minha filha crescer, eu não posso ter mais filhos”.

Medos, fantasias e lutos que Cláudia vivenciava, mas que ainda eram incertos em seu

futuro. A paciente admite que hoje ainda tem medo, mas tenta controlar tirando o melhor

das coisas, fazendo disso uma missão de vida, tentando “ajudar da melhor forma possível

as pessoas que tem a doença. Eu acho que isso é uma forma de retribuição que eu tento

fazer, perante Deus, por eu ainda estar desse jeito com tanto tempo de doença. Eu acho que

eu tenho mais é que agradecer, do que eu ficar me queixando”. Além disso, acredita que a

família foi, e é, seu suporte principal nesse processo. Mas na época do diagnóstico, se
57

sentia incomodada, contando que todos queriam saber o que era, como era, “fica todo

mundo com pena, fica todo mundo olhando pra você com aquela cara de pena. Até hoje

eles tentam me proteger de tudo”.

É marcante nos discursos de Cláudia, sua fé, como seu ponto de sustentação. “Eu

nunca perdi a fé em Deus, eu nunca deixei de acreditar, sempre pedi forças, sempre”. Além

desse, a paciente fala de sua relação com o marido como mais um ponto de sustentação.

Na época do diagnóstico, ficou com muito medo de como ele iria encarar, relatando que

foi muito difícil no começo. Eles tinham se casado muito jovens, quando várias pessoas já

diziam ser contra, que não iria dar certo. Ela reforça que isso nunca abalou a relação entre

os dois, “quando à doença chegou, também nunca abalou, ele nunca saiu do meu lado, eu

nunca reclamei de alguma coisa pra ele dizer ‘Ave Maria, não aguento mais essa doença’.

Isso eu nunca ouvi dele, nunca. Ele sempre tá do meu lado, graças a Deus”.

Começou seu tratamento em Fortaleza, mas o Estado do Ceará ainda não distribuía

o Interferon, medicamento utilizado no tratamento da esclerose múltipla para reduzir os

surtos e estabilizar a doença ao longo dos tempos, apesar de não ser a cura. Para receber o

remédio que vinha de Teresina, a mãe recebia a medicação no Piauí e mandava pra

Fortaleza. Como é uma medicação refrigerada, a mãe sempre tinha o cuidado de enviar a

medicação através de uma pessoa conhecida da família, para mandar em um isopor com

gelo. Cláudia tinha que ir até o aeroporto esperar a medicação para tomar, pois não podia

ficar muito tempo fora da geladeira, senão estragava. “Sempre foi muito difícil, mas eu fui

tentando. Fiz o estado do Ceará me fornecer a medicação, que, na época não era

distribuída. Hoje em dia todo mundo lá recebe porque eu entrei na justiça contra o governo

do Estado. Entrei na justiça e, na época que eu entrei na justiça, que eu consegui o Rebif,

eu tive alergia do Rebif. Ai tive que tomar o Copaxone, não tinha o Copaxone. Entrei na

justiça de novo pra tomar o Copaxone. Então, assim, sempre fui atrás mesmo dos meus
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direitos, das minhas coias pra poder melhorar, de tudo, tudo que eu tinha direito”. Ressalto

que Interferon, Rebif e Copaxone são tratamentos medicamentosos que visam reduzir a

atividade inflamatória e a agressão à mielina, com diminuição dos surtos, em intensidade e

freqüência, contribuindo assim na redução do ganho de incapacidade ao longo dos anos.

Falando sobre as medicações, Cláudia conta que esse – o Copaxone – é o remédio

que está se adaptando melhor, pois todos os outros que já tentou teve algum tipo de reação,

sempre tinha alguma coisa que a fizesse ter que parar de tomar. Ela começa a tomar, tá

tudo indo bem, quando por volta de dois ou três meses, aparecem algumas alergias que

fazem com que a medicação seja suspensa.

Nesse processo de não adaptação às medicações, houve épocas em que passou

alguns anos sem tomar medicamento algum. Fazia uma pulsoterapia – que significa a

administração de altas doses de medicamentos (para a esclerose múltipla se utiliza

corticóides) por curtos períodos de tempo na corrente sanguínea – por ano, pois não se

adaptava a nenhuma medicação. Relata que começava a tomar uma medicação, tinha todos

os efeitos colaterais necessários que tem no começo para a adaptação do organismo, como

febre e dor no corpo. Quando o organismo já estava adaptando-se, começava a aparecer

manchas vermelhas no seu corpo todo, que coçavam muito. Ficava toda cheia de alergia

depois já de dois, três meses tomando a medicação, daí ter que suspender.

A última vez que teve um surto, ainda morava em Fortaleza, já na época de sua

mudança para Teresina. Para Cláudia, foi o único surto que a deixou uma sequela maior, e

que já faz sete anos desde que aconteceu. Ainda hoje tem uma sequela, uma mancha na

medula, que tem, mais ou menos, o tamanho de um limão. Ela irradia a sensação de dor

nas duas pernas da paciente: “As minhas duas pernas são normais, não adianta eu fazer

fisioterapia, não adianta eu fazer nada, nem tomar remédio não passa, nenhum remédio

passa, nem morfina”. A convivência com a dor já dura quatro anos e meio. A paciente já
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fez várias intervenções no hospital, “vou pro centro cirúrgico, o médico bota um catéter na

minha coluna, pra ficar irradiando morfina direto na minha medula. As três ultimas vezes

que eu fiz isso não adiantou. Não passa mais, nem com morfina”.

Cláudia relata sobre os dias em que a dor se torna insuportável: “eu não consigo me

levantar da cama. Tem dias que eu me levanto e consigo dirigir, tem dias que eu não me

levanto. É é o maior tipo de dor que o ser humano pode suportar. Não adianta eu fazer

nada, não adianta eu tomar nada porque não passa, eu tomo seis medicamentos por dia, pra

tentar fazer com que o cérebro não perceba que ele tá recebendo esse impulso da dor”.

Revela que, atualmente, a dor é pior do que a doença em si, pois a sente todos os dias, toda

hora, e que não passa com nada, “mas eu não me entrego”, diz ela.

Enfatiza que não se entrega de forma alguma. Levanta todo dia, quando pode, deixa

os filhos no colégio, dirige. Conta que já se sentiu muito impotente com a dor,

“principalmente quando você quer fazer uma coisa que você não consegue, principalmente

quando você se propõe a fazer uma coisa naquele dia e você não tem condição de levantar,

principalmente quando seu filho tem uma apresentação no colégio e você não consegue

ir”. Apesar do sofrimento, diz não ficar limitada, principalmente quando viaja com a

família. Viaja e faz tudo o que lhe está ao alcance, “tava no meio do dia e eu tinha que

voltar pro hotel sozinha pra eles continuarem o passeio, porque eu não tava conseguindo.

Então é uma coisa ruim, você tem que tentar ir levando, você tem que aceitar. É muito

difícil, é, mas eu acho que tem coisa pior. Então eu penso sempre assim, ‘podia ser pior’”.

Falando sobre as viagens, fala sobre a reação dos filhos em relação à patologia. No

colégio dos filhos todo mundo já sabe da doença, os diretores e professores. O proprietário

da instituição, quando era vivo, acompanhou de perto por muito tempo a situação de

Cláudia, porque ele era amigo de sua mãe. A filha de Claudia acompanhou tudo. Hoje,

com quinze anos, ela é mais preocupada, “‘mãe tá sentindo isso?’, ‘mãe tu quer isso?’,
60

‘mãe fica ai que eu vou pegar pra ti’, mãe não levanta’”. O filho, que só tem seis anos,

ainda não entende, não sabe o que é, mas a filha sim, “e eu acho que ela já se envolveu até

demais”. Cláudia conta que os filhos nunca reclamaram, nunca disseram uma queixa sobre

a doença, a filha apenas perguntou uma vez por que a mãe tinha essa doença. Essa foi a

única pergunta que ela fez sobre essa doença.

Por conta disso, mãe e filha estão numa relação muito interligada. A paciente assim

expressa: “tanto é que tudo dela é comigo, ela disse que a pessoa mais especial que ela

conhece no mundo sou eu, ele me chama de melhor amiga, ela me leva para aonde for”.

Cláudia se sente orgulhosa por achar que a filha a vê com orgulho, por eu enfrentar tudo

isso, por passar por tudo isso.

Relembrando o momento do diagnóstico, já em Teresina, Cláudia relata que

sempre dizia que “não nasci pra ser mãe de um filho só, eu quero ter, pelo menos, outro

filho, porque eu queria ter três, mas pelo menos dois eu vou ter”. Os médicos sempre a

aconselhavam a não engravidar, pois não sabiam dos riscos que poderiam causar. Segundo

ela: “Ele dizia ‘você é louca’, a coisa que ele sempre dizia pra mim: ‘time que tá ganhando

não se mexe. Você tá tão direitinho, tá tudo tão no lugar, não mexa, não mexa, não vá

entrar nessa, a gente não sabe, eu não tenho nenhuma paciente que engravidou, eu nunca

acompanhei ninguém’”. Cláudia conta que parou de tomar os remédios, as injeções, fez

todos os seus exames de sangue, estavam todos bem próximos das taxas de normalidade, e

decidiu engravidar, por sua conta e risco, sem o seu médico saber. Só disse a ele quando já

tava no segundo mês de gravidez. Ligou e disse por telefone, pois não teve coragem de

dizer na frente dele. “Minha gravidez foi muito difícil, mas valeu a pena. Você tem que

passar e tem que se adaptar”.

Conta que sentia muita dor, entrava em trabalho de parto toda hora, tomou Inibina

– medicamento utilizado na inibição do trabalho de parto prematuro – durante toda sua


61

gravidez, internou-se por volta de três vezes para tomar Inibina na veia. Relata que ia pro

meu médico toda segunda e sexta-feira pra ver se estava tudo bem com o bebê e saber se

ele não iria nascer no final de semana. O bebê nasceu de oito meses, seu médico disse para

não avisar a ninguém sobre o nascimento, pois não se sabia como ele iria nascer, “ele pode

ir pra incubadora, ele não pode receber muita visita, ele pode nascer com uma imunidade

muito baixa”. Surpreendentemente para o médico, o bebê de Cláudia não precisou de nada,

não foi pra incubadora, veio “todo perfeitinho”. Conta que não podia amamentá-lo, mas o

amamentou durante cinco meses. Observa-se aqui durante todo o relato da paciente, seu

desejo em relação à maternidade, à realização do desejo de ser mãe.

Por conta do imprevisível e do novo, conta que passavam muitas fantasias em sua

cabeça, fazia ultra-sons constantemente pra ver se o feto estava bem, contava os dedos,

fazia morfológica. “Eu acho que em toda gravidez a mãe já fica nessa ansiedade né, e a

minha então, eu ainda fiquei muito mais. Era todo tempo me questionando, eu dizia ‘meu

Deus se nascer uma criança doente, como é que vai ser’, era o que me preocupava muito.

Mas graças a Deus, Deus foi muito bom, muito perfeito”.

Questionada sobre a importância que essa gestação teve na sua vida, Cláudia vê

essa experiência como algo positivo em sua vida, melhorando até sua relação com a

doença. “Eu não sei se é porque a natureza é tão perfeita, né? O corpo se organiza de um

jeito, se adapta de um jeito que fica tudo direitinho”. É interessante como o desejo de

Cláudia vai além das recomendações médicas. Ela foi orientada a não ter filhos, mas teve.

Observa-se aqui um modo ambivalente de lidar com a patologia. Ao mesmo tempo em que

ela se enclausura na identidade de portadora da esclerose múltipla, Cláudia desafia a

doença no momento em que não segue as orientações médicas. Tal desafio se amplia para

a medicina, para os médicos e suas prescrições, já que seu discurso sobre si mostra-se
62

entrecruzado e, muitas vezes, se constrói, pelo discurso da medicina, descrevendo

medicações e seus protocolos clínicos, por exemplo.

A paciente também atribui tal êxito ao fato de estar adaptada, de se conhecer

melhor, de ter o discernimento do que pode, do que não pode. Remete-se, então, às pessoas

que tem esclerose múltipla, mas que “ainda são muito leigas, que não sabem quando é que

tá tendo um surto, que não sabem que atitude deve tomar na hora de um surto. Tem muita

gente que liga pra mim ‘acordei sem andar, será o quê que eu tô tendo?’, eu digo ‘gente,

você tá num surto, tem que correr pra tomar uma medicação, tem que tomar uma

medicação na veia, tem que fazer uma pulsoterapia”. Nesse momento, a fala de Cláudia

anuncia um lugar ocupado por ela, o de “professora”, a partir da identidade de portadora da

esclerose múltipla, no momento em que ajuda outros pacientes. É um lugar de

reconhecimento no social, isto é, ela tem uma posição frente a si mesma e aos outros,

solidificando a identidade “portadora de esclerose múltipla”, podendo se achar “tão

expert” no assunto, tal como uma especialista, que pode transmitir conhecimentos aos

outros, ajudar. Vale, mais uma vez, pontuar o aspecto que a identidade de portadora

confere à Claudia, evidenciando sua relação com o diagnóstico e suas repercussões na

vida. A transferência de Claudia se dá com a biomedicina, e os saberes e práticas médicas

podem lhe oferecer como significantes e como sentidos para sua vida.

Conta que são nesses momentos em que agradece a Deus por tudo que colocou em

sua vida, até a doença, que serviu como uma forma de ajudar outras pessoas, “um exemplo

de determinação e alegria é aquela atriz Cláudia Rodrigues, ela é tão engraçada e passa

uma mensagem tão legal sobre a esclerose. Acho que somos muito parecidas, somos

divertidas, não perdemos o humor por qualquer coisa e a gente ainda ajuda aqueles

portadores mais difíceis”.


63

Na sua família não há nenhum histórico de doenças crônicas, degenerativas,

diabetes ou câncer. Cláudia conta, sorrindo, que acha que é a primeira da família a ter uma

doença mais grave do que uma dengue.

Reflexiva, diante dos acontecimentos de sua vida, elenca algumas perdas que foram

cruciais no processo de adoecimento. Conta que, na época do diagnóstico, estava fazendo

duas faculdades, ao mesmo tempo em que foi a única aluna de nutrição a ser chamada pra

trabalhar em uma rede de hospitais de numa entidade de serviço social autônomo, de

direito privado e sem fins lucrativos, tendo que abrir mão de tudo isso. Caracterizava sua

vida como uma correria, trabalhava no hospital, assistia aulas na faculdade, assistia aula de

informática. “Primeira coisa que você vai pra um hospital daquele, era tratar pessoas que

estavam do jeito que eu poderia estar”. Deixou de ir para o trabalho, mesmo que tivesse

sido uma conquista ímpar em sua vida, não podia ir.

Conta que havia dias que não aguentava assistir aula. Sua faculdade era no turno da

tarde, e tinha que ir dirigindo. O marido não podia deixá-la, pois trabalhava o dia todo, não

tinha ninguém para acompanhá-la: “não tinha minha mãe, não tinha minha sogra, não tinha

ninguém”. Em Fortaleza era só ela e o marido. Havia dias que parava o carro no

estacionamento da faculdade e lá ficava, porque não tinha condição de descer. Esperava

meia hora, quarenta minutos pra poder voltar pra sua residência, sem assistir aula: “isso me

deixou muito triste, me formei mas não pude exercer minha profissão”. Com sua fé

inabalável, acha que Deus foi tão perfeito com ela, que hoje em dia já é aposentada, como

se uma “coisa compensa a outra, eu tive essa sorte, de ter o meu salário, de tudo”.

Lamenta por não poder ajudar mais ainda as pessoas, principalmente algumas

pessoas da APPEM, onde “tem muita gente que não tem aposentadoria de nada, tem gente

que não consegue nem metade de um salário mínimo. Então eu consegui, apesar de todas

as perdas, mas eu consegui”.


64

Cláudia fala sobre seu corpo, que “não me entrego, é todo tempo fazendo

massagem, fazendo isso, fazendo aquilo, porque eu tenho medo de engordar”. Toma vários

remédios muito fortes, seis remédios por dia, fora a injeção. Todos esses remédios fazem-

na reter líquido, mas “vou tentando compensar, até porque eu sempre fui muito

perfeccionista em relação ao meu corpo, em relação a beleza, mas numa hora dessas você

pára e diz ‘gente isso não é nada, eu quero tá viva, eu quero tá caminhando’, numa hora

dessas você pára pra pensar o quê que vale a pena, eu tá bonitinha, magrinha, mas uma

cadeira de rodas, ou eu tá gordinha, mas caminhando. Eu acho que eu já tô no lucro,

porque tem gente mais gordinha do que eu, tem gente que reclama de cólica, mas eu sofro

muito mais e sou muito maior do que isso”.

Cláudia justificou a interrupção do processo terapêutico por “não ter mais tempo”

devido a sua nova posição de vice-presidente da APPEM. Ainda como justificativa, alegou

não precisar mais dos atendimentos terapêuticos pois, como havia dito, “trabalhei muito o

psicológico, fiz vários anos de terapia”.

Ela continua na APPEM recebendo acompanhamento mensal. Em outubro de 2011,

foi eleita a vice-presidente da associação. Tomando, ainda, para si um lugar de

reconhecimento como portadora, é solicitada para dar uma palestra aos novos associados,

ou seja, àquelas pessoas que foram recém-diagnosticadas. Claudia parece ter organizado

sua vida pela doença, as limitações que tem parecem servir como “exemplo de vida” aos

outros, aqueles que ainda não chegaram “ao ponto dela”, ao seu nível em lidar com a

doença e suas implicações no cotidiano, no projeto de vida. Daí pode-se observar o sentido

organizador do sofrimento.
65

2 ESCLEROSE MÚLTIPLA: PERSPECTIVAS BIOMÉDICA E PSICANALÍTICA

DO ADOECIMENTO

2.1 Esclerose Múltipla: Aspectos Biomédicos e Subjetivos do Adoecer

A esclerose múltipla (EM) é uma das doenças mais comuns do Sistema Nervoso

Central (SNC) em adultos jovens. De causa ainda desconhecida, foi registrada pela

primeira vez em 1822 por Sir Augustus D’Este que, aparentemente, tinha a doença. Mas

foi descrita somente em 1868, pelo neurologista francês Jean Martin Charcot, que, ao

realizar a necropsia de um ex-paciente, encontrou áreas endurecidas disseminadas ao longo

do SNC, denominando-a de "esclerose em placas". Ele enfatizou que a esclerose é uma

entidade clinicopatológica distinta das outras lesões, e se manifestam clinicamente com

períodos de exacerbação e remissão, com participação predominante de mielina,

especialmente do nervo óptico e da medula espinhal (Moreira et al., 2002).

É caracterizada também como doença desmielinizante, pois lesa a mielina (capa

que reveste o neurônio), prejudicando a neurotransmissão (Silvia et al, 2009). A perda de

mielina (desmielinização) interfere na transmissão dos impulsos e isto produz os diversos

sintomas da doença. Os neurotransmissores sofrem dano irreversível em conseqüência do

processo inflamatório, o que contribui para a invalidez. Os pontos onde se perde mielina

aparecem em diferentes momentos e zonas do cérebro e da medula espinhal. Literalmente,

a expressão esclerose múltipla, significa episódios que se repetem várias vezes (Fragoso &

Peres, 2007).

Para confirmação de um diagnóstico definitivo, os ataques precisam envolver

diferentes áreas do SNC, prolongarem-se por mais de 24 horas e estar separados por um

período de pelo menos um mês (Costa et al, 2005). É efetuado um detalhado exame
66

neurológico para a confirmação dos sintomas a fim de que sejam descartadas outras

causas. Uma história confiável do paciente ajuda a definir os surtos episódicos. Confiável

não só no sentido biomédico da historicidade de exames e consultas, mas, paralelamente,

no sentido subjetivo dos momentos em que os sintomas e surtos se fazem presentes. O

sujeito, quando doente, passa a ser tratado não como tal, mas sim como aquele que carrega

uma determinada patologia. O estigma de doente e paciente, principalmente no sentido de

sua própria passividade frente ás perspectivas existenciais, faz com que haja uma

necessidade de reformulação de seus valores e de suas relações interpessoais (Angerami-

Camon, 2002).

A complexidade desta patologia depende das zonas afetadas no SNC. Em cada

sujeito ela se manifesta sintomaticamente diferente, podendo a maioria deles

experimentarem mais de um sintoma, piorando com a presença de calor (Fragoso & Peres,

2007). Estes ainda podem ser difíceis para serem descritos, inclusive pelos familiares, ou

pelos cuidadores da pessoa com a doença, que não os notam, e também podem passar

despercebidos no trabalho e nas atividades sociais, porém diminuem a qualidade de vida

claramente.

Na maioria dos cometidos pela esclerose múltipla, a doença provoca uma série de

crises, cujos sintomas podem ser discretos ou intensos e que aparecem e desaparecem. Isso

faz com que o sujeito se recupere parcial ou totalmente das dificuldades resultantes desses.

Os mesmos vão e vêm de maneira inexplicável e isso é uma característica específica da

EM que não ocorre em outros tipos de doenças do sistema nervoso (Barreto et al, 2009;

Pereira, 2009).

Alterações cognitivas são evidenciadas em cerca de 60% dos pacientes de esclerose

múltipla, que podem interferir drasticamente no cotidiano. A memória é a função mais

lesada nos pacientes, provocando dificuldades na aquisição de novas informações e na


67

recuperação de informações processadas anteriormente. (Feinstein, 2004). Funções

cognitivas podem ser comprometidas como concentração, discernimento ou raciocínio,

porém, raramente, há deterioração da função intelectual. Tal problema pode afetar a

qualidade de vida desses sujeitos, na medida em que têm possibilidade reduzida de terem

um emprego estável, com danos em atividades sociais e apresentarem dificuldades na

realização de atividades domésticas, tornando-se dependentes, sentindo-se incapaz

(Kesslring & Klement, 2001; Pereira, 2009).

A EM pode evoluir de diferentes maneiras, podendo apresentar-se através de quatro

formas de evolução. A forma remitente-recorrente (EMRR) começa com um quadro de

recorrência e remissão; evolui em surtos bem individualizados que deixam ou não

sequelas, não havendo progressão dos déficits entre os surtos; os ataques podem durar de

24 horas até alguns meses. A forma secundariamente progressiva (EMSP) se caracteriza

por uma fase precedente de recorrências e remissões seguida de progressão dos déficits,

piora de forma acelerada com ampla variedade de comprometimentos funcionais. A forma

primariamente progressiva (EMPP) se caracteriza desde o início por doença progressiva

evoluindo com ocasionais estabilizações e discretos períodos de melhora, não tendo

períodos definidos de ataque e recuperação. A forma progressiva-recorrente (EMPR) se

caracteriza, desde o início, por doença progressiva, porém intercalada por surtos

claramente objetivos, com ou sem recuperação total; os sintomas continuam constantes,

sem remissão (Lublin & Reingold, 1996; Hill, 2010).

Não existe cura para a esclerose múltipla, no entanto, muito pode ser feito para

ajudar as pessoas acometidas pela doença a serem independentes e a terem uma vida

confortável e produtiva, já que a saúde e o bem-estar desses sujeitos sofrem grande

impacto, interferindo significativamente em sua qualidade de vida. Tal conceito refere-se a

indicadores objetivos e subjetivos de felicidade e satisfação. A natureza subjetiva da


68

qualidade de vida faz com que existam várias formas de definição que se referem à

satisfação individual, satisfação das necessidades, habilidade para exercer funções,

realização de planos e gerenciamento (Ribeiro, 2001).

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), ela é definida como “a

percepção do indivíduo sobre sua posição na vida, no contexto da cultura e no sistema de

valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, preocupações e

desejos” (WHOQOL, 1995). O termo é uma expressão contemporânea, usual, carregada de

significados e expectativas, porém cercada de indefinições. A menção de que qualidade de

vida abrange uma ampla variação, desde as questões macro sociais até o mundo particular

dos sujeitos, constitui-se num dos vários aspectos da referida indefinição.

Em sua pesquisa realizada com pacientes com esclerose múltipla, Morales et al.

(2007) avaliou-se a qualidade de vida destes, revelando que todos os participantes

percebem o impacto negativo da doença em suas vidas, sendo mais pronunciado e

prejudicado no aspecto físico do que nos domínios psicossociais. Tal impacto pode ser

conseqüência, principalmente, da incapacidade causada pela doença. O fato de se descobrir

com uma doença neurológica crônica, evolutiva, de curso imprevisível, gradualmente

incapacitante e até o momento sem cura, pode repercutir de forma contundente na vida dos

pacientes.

O tratamento aplicado à EM ainda não é capaz de prevenir a ocorrência da doença,

não há cura e ainda não foi descoberto o meio de restaurar a mielina danificada ou as

funções perdidas, sendo o seu enfoque principal o controle dos sintomas, reduzindo

significativamente a freqüência e a intensidade dos surtos, além de adiar o surgimento de

incapacidades físicas e diminuem as lesões cerebrais (Hill, 2010).

Paralelamente ao tratamento medicamentoso, outras terapias devem ser realizadas,

como a fisioterapia, que auxilia no aumento da força, flexibilidade e equilíbrio; a terapia


69

ocupacional, que ajudam os pacientes a descobrirem alternativas de mudar seu ambiente a

fim de reduzir o impacto da fadiga; a fonoaudiologia, que ajuda aqueles pacientes com

problemas na fala ou na deglutição; a psicologia - assim como os profissionais da saúde

mental - que ajudam a “reorganizar” aspectos da vida do sujeito e de seus familiares,

devido às mudanças repentinas nos papeis sociais, elaboração dos lutos, bem como

depressão, preocupações com o emprego e, mais comumente na EM, dificuldades no

desempenho sexual (Hill, 2010).

Em decorrência da patologia podem-se associar vários transtornos psiquiátricos,

atacando principalmente o humor, personalidade, comportamento e cognição (Feinstein,

2007). Em 1992, durante a Conferência Internacional de Esclerose Múltipla, houve um

consenso de que pacientes com a doença são mais vulneráveis a transtornos psiquiátricos.

Estudos mostram que 2/3 dos pacientes apresentam transtornos neuropsiquiátricos durante

a evolução patológica (Fazzito, Jordy & Tilbery, 2009).

Alterações de humor como euforia, depressão e estado de apatia são conhecidas

desde suas primeiras descrições pelos sujeitos com a doença, tanto após o diagnóstico

quanto no decorrer do tratamento. A depressão é um dos sintomas subjetivos que mais

frequentemente encontra-se na EM, embora estudos sobre tal sintoma ainda sejam escassos

e sua prevalência não determinada, sendo, provavelmente, multifatorial. Por um lado, o

funcionamento psicológico dos sintomas da depressão, encontrando no medo e na

frustração da incapacidade e na imprevisibilidade do curso da doença. Por outro lado a

causa biológica, orgânica, relacionada com a possível desconexão a nível cortical nas áreas

de projeção do sistema límbico (Mendes et al., 2003; Kesslring & Klement, 2001).

Por vezes, o sintoma depressivo nos sujeitos com EM podem aparecer mascarados

pelos próprios sintomas da doença, como perturbação no sono, disfunção sexual, insônia,
70

falta de apetite e dificuldades de memória e concentração, perdas de peso e falta de

interesse em atividades que costumavam ser prazerosas (Feinstein, 2004).

No que diz respeito aos fatores ambientais da etiologia da EM, alguns estudos

sugerem existir correlação entre a distribuição geográfica e o clima, especialmente em

regiões de baixa temperatura e condições climáticas úmidas, enfatizando, assim, a maior

prevalência da enfermidade em países de clima frio e localizados no hemisfério norte

(Fragoso & Peres, 2007; Moreira et al., 2002). O Brasil é uma área de baixa prevalência

para a EM, uma vez considerada sua grande extensão territorial.

Na região sudeste do país, a prevalência é de cerca de 15 casos por 100.000

habitantes, no entanto, como ocorre na cidade do Recife, a taxa é de 1,36 casos por

100.000 habitantes. Em outros estados do nordeste, como a Bahia, estudos realizados

mostraram que os cursos epidemiológicos da doença variam de acordo com a área

geográfica, como se pode observar nos diferentes estados do Brasil. Assim, enquanto

estima-se uma prevalência de, apenas, 5% para a região nordeste, a prevalência nas regiões

sul e sudeste variam entre 15% a 18% (Finkelsztejn et al., 2009; Silvia et al., 2009;

Cardoso et al., 2006).

As repercussões da EM vão além da esfera biológica. Pela abrangência de zonas do

sistema nervoso que são afetadas pela ocorrência da doença, esta é uma patologia que traz

impactos sociais, econômicos e subjetivos importantes. O acometimento pela esclerose

múltipla, assim como em todo processo de adoecimento, é permeado por componentes de

fragilidade, já que a doença traz consigo situações de dependência e insegurança. Pode ser

visto como uma situação de limitação, cujo enfrentamento dependerá de condições

afetivas, emocionais e sociais do sujeito.

O primeiro contato do paciente com a EM pode ser “mutilante” do ponto de vista

subjetivo: uma doença incurável, crônica e progressiva. O sujeito quando diagnosticado


71

com tal patologia está justamente num período que se revela crucial para o

desenvolvimento pessoal, reprodutivo, profissional e/ou acadêmico, se depara com uma

série de limitações impostas pela doença. Para Kantor (2004), existem outras situações

com que o paciente sinta-se frustrado e desmotivado pela EM: a notícia do diagnóstico,

que gera incertezas diante do futuro; os surtos, que podem ser seguidos de internação após

longos períodos de estabilidade; os efeitos colaterais das medicações; as inseguranças,

principalmente ao desempenho profissional; as sequelas motoras, gerando incapacidade e

dependência; os desconfortos físicos das dores e fraquezas musculares; as falhas de

memória; as sensações de fadiga; os sentimentos de exclusão por sentir-se diferente dos

demais; dentre outros.

Em concordância com Balsimelli (2005), a esclerose múltipla é uma doença

psicologicamente desafiadora do modo como se apresenta: os surtos podem aparecer e

desaparecer ou aparecer e permanecer. Por causa disso, um dos sentimentos mais comuns é

a ansiedade, desde a busca do diagnóstico, que ainda não tem um exame específico para

detectar, até o lidar cotidianamente com os “imprevistos” da doença. Outro sintoma é a

depressão, que pode estar vinculada às perdas ocorridas ao longo do processo de

adoecimento em função da patologia.

Os processos de adoecimento, de uma forma geral, colocam o sujeito diante da

possibilidade de sua finitude, ameaçando as defesas e os mitos de imortalidade. A doença

sinaliza a mortalidade deste, a finitude do corpo e a falta de controle sobre este e sua vida,

caracterizando-se por uma situação de fraqueza e dependência. Por ser um acontecimento

inesperado, o processo de adoecimento, primordialmente na esclerose múltipla, quebra a

linha de continuidade da vida do sujeito, das funções desempenhadas por ele na família e

na sociedade e da previsibilidade aparente que cada pessoa guarda sobre seu futuro

(Kübler-Ross, 2008; Jeammet, Reynaud & Consoli, 2000).


72

Nos estudos de fenômenos ligados á saúde e à doença, é fundamental a abordagem

das perdas e do processo de luto. As perdas e sua elaboração fazem parte do cotidiano, já

que são vividas em todos os momentos da vida do sujeito. São consideradas “pequenas

mortes” as fases do desenvolvimento, as separações amorosas, bem como mudanças de

casa e de emprego. As “mortes simbólicas” podem ser caracterizadas pelo matrimônio ou

pelo nascimento de um filho, já que o sujeito perde algo “conhecido”, como o papel de

solteiro e de filho, para viver o “desconhecido” de ser cônjuge ou pai. Essas situações têm

analogia com a morte, podendo despertar, assim, angústia, medo, solidão, como também

carregar elementos de sofrimento, dor e tristeza (Kovács, 2003).

No momento do adoecimento em esclerose múltipla, as perdas já começam

caracterizadas no próprio significado da denominação da doença, entendida como o

endurecimento e deterioração da mielina dos neurônios localizados em múltiplos lugares

do sistema nervoso. Descritas por Kovács (2003), as perdas decorrentes de doença são

formas de mortes simbólicas, a morte de si como uma pessoa ativa, profissional, genitora,

amante, cônjuge, parceira, vivida de maneira consciente.

Para alguns sujeitos, a condição que a doença impõe é devastadora e pode culminar

em um processo de luto ou melancolia devido à eminência das perdas. Segundo Freud

(1915/1996), “o luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de

alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como os pais, a liberdade ou o

ideal de alguém, e assim por diante” (p.275). Ele afasta o sujeito de suas atitudes normais

para com a vida, mas sabe-se que este afastamento não é patológico sendo, normalmente,

superado após certo tempo.

O sofrimento põe o sujeito frente às suas impotências, seus limites e à decadência

corporal, expondo-o à perspectiva da morte e antecipando mecanismos de defesas e

estratégias de enfrentamento que excedem a dimensão do organismo (Teixeira, 2006b).


73

Um desses mecanismos pode ser apresentado pelo processo regressivo, marcado por um

retorno do sujeito às vivências primitivas da constituição psíquica, ou seja, de expressão

mais simples ou mais infantil. A regressão é mobilizada por uma reação de proteção do

sujeito frente uma agressão, doença ou qualquer outro sofrimento.

A regressão é uma noção de uso muito freqüente em psicanálise tendo seus

desdobramentos para a psicologia contemporânea, sendo concebida, a maioria das vezes,

como um retorno a formas anteriores do desenvolvimento do pensamento, das relações de

objeto e da estruturação do comportamento. Ela pode aparecer num sistema de defesa

contra uma frustração usando um retorno inconsciente para um momento de

desenvolvimento menos frustrante. É um modo de aliviar a ansiedade escapando do

pensamento realístico para comportamentos que, em anos anteriores, reduziram a

ansiedade. Trata se, por exemplo, do sujeito doente que adota uma postura infantil frente à

enfermidade, tornando-se dependente e necessitando de atenção, como no tempo em que

se encontrava no colo aconchegante da mãe (Fred, 1900/1996).

A presença da regressão pode ser suscitada pelas condições próprias do

adoecimento, principalmente, a exemplo da esclerose múltipla, quando este se encontra em

uma fase de maior dependência do meio externo por não ter autonomia sobre a

coordenação de seus movimentos, no qual esse sujeito recebe cuidados básicos de higiene,

alimentação e medicação.

Durante o processo de adaptação à patologia, alguns portadores passam por um

período de tristeza e recorrem a explicações para a enfermidade. Mesmo às vezes

indefinido, supõe-se sempre que o sofrimento tenha uma causa, esteja ligado à uma

experiência, à um acontecimento que feriu, abalando o equilíbrio biopsicossocial. Muitas

vezes, os sujeitos se questionam se estão sendo punidos por algo de errado que fizeram no

passado, sendo freqüente o sentimento de culpa (Kantor, 2004). Alguns se sentem


74

castigadas e merecedoras desse castigo, outros se sentem injustiçados por estarem sendo

castigadas.

Freud (1930/1996) afirma que o sentimento de culpa associa-se a renúncia às

satisfações pulsionais e se origina do medo. Para ele, a culpa pode provir do medo da

autoridade, ou do medo do supereu; neste caso, além da renúncia às satisfações pulsionais,

exige punição, pois “a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do

supereu” (p. 95). Ele ainda coloca, como uma das possíveis fontes de sofrimento humano,

o poder superior das forças naturais, “que podem voltar-se contra nós com forças

esmagadoras e impiedosas” (p.85), como acontece nos casos de adoecimento: “cada um de

nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do

mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na

realidade” (p. 89).

A culpa também pode ser considerada como um mecanismo defensivo usado pelo

sujeito frente aos sentimentos, de raiva, revolta, ressentimento, despertados pela condição

de doente. Nesses casos, o sujeito desloca a raiva numa tentativa de aplacar a angústia e a

revolta trazidas pela sua condição atual (Kantor, 2004).

De acordo com Kübler-Ross (2008), no caso de uma doença crônica, o sofrimento

e a aceitação estão ligados à própria permanência da patologia, que pode evoluir

lentamente. Este processo pode ser mais doloroso para as mulheres, visto que são as mais

afetadas pela patologia e por esta ser típica de mulheres jovens, a questão relacionada à

gravidez é sempre um capítulo de especial interesse, pois o projeto de ter filhos e de

constituir família é ainda extremamente valorizado na sociedade atual.

Culturalmente, as mulheres constituem-se como mães ao longo da vida, sendo a

maternidade uma experiência de continuidade, repetição e de realização de um plano

idealizado desde os primórdios do gênero feminino (Teixeira, Parente & Boris, 2009). A
75

história natural da doença deve motivar as mulheres a constituírem sua prole o quanto

antes possível. Doenças auto-imunes como a esclerose múltipla tendem a melhorar durante

a gravidez em virtude das alterações imunológicas que esta proporciona, não alterando,

também, o índice de progressão da doença. Tanto durante o pré-natal quanto no parto e no

puerpério, a mulher com esclerose deve submeter-se a terapêuticas medicamentosas

específicas para não afetar o bebê (Fernandes et al., 2007).

Fisiologicamente, considera-se que as alterações que as doenças crônicas provocam

comprometem a sexualidade das mulheres. Além disso, como citado anteriormente, a EM

é um tipo de doença que tem maior incidência em adultos jovens. Nesses sujeitos é

considerado ainda os efeitos psicológicos decorrentes da comprovação do diagnóstico,

acompanhados da conotação cultural de dor, sofrimento e morte, provocando alteração no

relacionamento sexual e familiar (Lopes, 1993).

Naturalmente, o surgimento de uma doença crônica é um evento traumático na vida

de qualquer sujeito, seja pelo estigma, seja pelos tratamentos, ou mesmo pelas limitações

da medicina em uma área onde ainda há muito a ser descoberto. É um fato que estimula

uma complexa rede de condições que modificam a dinâmica de vida do sujeito, desde sua

rotina diária até sua estrutura conjugal e familiar (Duarte, 2001). A família também

vivencia as mudanças estabelecidas pelo desenvolvimento da doença. É comum que os

familiares mais próximos e os cuidadores sofram com a nova e dura realidade, tendo que

adaptar-se às condições do sujeito doente, principalmente quando este for o “provedor” da

família, havendo mudanças dos papeis domésticos e da dinâmica familiar.

Frankel (1994) corrobora quando nos diz respeito ao funcionamento psicossocial,

onde muitas famílias, embora sofram com a doença, conseguem se superar e lidar bem

com o paciente e as condições da esclerose múltipla.


76

Os membros da família podem compreender o quanto devem ajudar a pessoa com esclerose

múltipla, eles podem sentir-se oprimidos pela sua dependência e podem ficar preocupados com

o futuro, no que diz respeito às questões financeiras, e exaustos pelos requisitos de assistência

de seu membro familiar (Frankel, 1994, p.545).

É imprescindível a participação da família quando um de seus membros adoece,

isto porque o adoecimento interfere no equilíbrio do sistema familiar. As mudanças, de um

modo geral, são propiciadoras de crises, e em casos de adoecimento, tais crises advêm

principalmente do estresse gerado pela quebra na rotina familiar, das redistribuições

repentinas e forçadas dos papéis familiares, do aumento de custos, das inseguranças, das

culpas, enfim, das exacerbações e atualizações de crises antigas e de sentimentos antes não

manifestados (Borges, 2003).

A família, a partir do adoecimento de um dos seus membros, precisa se reorganizar

para receber o familiar doente e prestar-lhe apoio. Há uma mudança na hierarquia familiar,

com uma redistribuição de funções e responsabilidades. No contexto familiar, o sujeito

acometido pela doença crônica é um sub-sistema e o seu cuidado não se restringe à prática

clínica, mas todas as mudanças e mecanismos de adaptação às suas novas condições. A

família como um todo enfrenta a mudança ocorrida. Portanto, o processo de ajudar o

paciente articula-se com o conjunto em que ele se insere, o sistema familiar (Bucher-

Maluschke, 2009).

Walsh e McGoldrick (1998, citado por Borges, 2003) afirmam que o choque de

uma perda ou do diagnóstico de uma doença, quando atinge uma família, faz exigências

urgentes, ou seja, uma nova organização deve ser estabelecida e vai se refletir na

identidade, na dinâmica e nos objetivos dessa família, talvez até mesmo de forma

irreversível. Questões como essas são geradoras de grande angústia, sendo este um afeto

que constantemente se faz presente. A angústia surge, dentro de uma visão freudiana
77

(1926/1996), como uma reação a um estado de perigo que pode levar à vivência de

desamparo. Tal situação é denominada de situação traumática. A angústia funcionaria não

só como uma reação à perda, mas também como um sinal quando uma situação de perigo,

ou seja, a possibilidade da perda ameaçasse a se instaurar, também na expectativa de um

trauma ou a repetição do mesmo em forma atenuada. Trata-se de uma referência ao perigo

real mediante o qual o sujeito pode ter uma ação motora ou uma grande inibição causada

pela angústia (Freud, 1926/1996).

A angústia mediante a situação traumática do adoecimento afeta, assim como o

sujeito doente, os familiares e cuidadores que também precisam de cuidados e ajuda, como

o auxílio dos profissionais de saúde, mantendo a família mais informada sobre a evolução

clínica da doença.

O papel da família se torna fundamental, e a comunicação eficiente entre os membros irá

aumentar a capacidade de um trabalho conjunto, e de lidar com os desafios de viver com uma

doença crônica. Vale ressaltar que parte dos sintomas da esclerose múltipla é invisível, como

fadiga, neurite ótica e dor, havendo dificuldade dos familiares entenderem o que ocorre com o

portador (Balsimelli, 2005, p.150).

Nem sempre as famílias conseguem compreender o que ocorre com o sujeito

acometido, pois a variedade e a ocorrência dos sintomas causa constantes mudanças em

sua rotina de vida. Por ser uma doença crônica e potencialmente incapacitante, a EM exige

sempre uma forma de adaptação por parte do portador e daqueles que convivem com o

mesmo, ou seja, dependendo da gravidade e da evolução do quadro patológico, o doente

pode não ter outra opção além de ajustar-se e adequar-se às condições impostas pela

doença, ou buscar saída na a ideação suicida. Pesquisas européias mostram que tal

pensamento está presente em até 30% dos pacientes, relacionado com a presença e
78

severidade da depressão e isolamento social. A taxa de suicídio entre os que possuem EM

mostra-se 7 vezes maior do que a da população em geral e do que na maioria das doenças

neurológicas (Feinstein, 2004).

A adaptação e, principalmente, a aceitação a uma doença crônica como a esclerose

múltipla não é fácil, isso se deve ao seu curso clínico onde, na maioria das vezes, é

variável e incerto. Assim, o sujeito pode estar convivendo bem com a EM até que um surto

mais forte mude seu quadro sintomático e, conseqüentemente, exija maior adaptação à sua

nova condição física e às perdas que poderão decorrer como as econômicas, as familiares,

as profissionais, as sociais e as psicológicas, principalmente auto-estima, autoconfiança,

autonomia e auto-imagem (Haussen, 2004).

Desta forma, compreender o paciente como sujeito adoecido implica considerá-lo

em todos os seus aspectos, não somente biológicos e psíquicos, mas também enquanto

porta-voz de um conjunto de representações sociais, culturais e agente de um processo de

interação.

A centralidade da doença no paradigma da medicina ocidental contemporânea e a

crescente intermediação tecnológica da prática médica atual, têm propiciado o

distanciamento e a alienação do médico da situação de adoecimento do sujeito. Muitas das

dificuldades da atenção àquele que sofre estão baseadas em práticas que, ao privilegiarem

os aspectos técnicos da doença, abandonam a dimensão subjetiva do adoecer.


79

2.2 O Corpo Adoecido: Entre a Medicina e a Psicanálise

 O Saber Médico e o Corpo como Organismo

Num passado ainda recente, a doença era frequentemente definida como "ausência

de saúde", sendo a saúde definida como "ausência de doença" - definições que não eram

esclarecedoras. Algumas autoridades encararam a doença e a saúde como estados de

desconforto físico ou de bem-estar. Infelizmente, perspectivas redutoras como estas

levaram os investigadores e os profissionais de saúde a descurar os componentes

emocionais e sociais da saúde e da doença. Definições mais flexíveis, quer de saúde quer

de doença, consideram múltiplos aspectos causais da doença e da manutenção da saúde,

tais como fatores psicológicos, sociais e biológicos.

Categoria operacional, o termo “racionalidade médica” foi criado por Madel Luz.

Uma racionalidade médica é um conjunto integrado e estruturado de práticas e saberes

composto de cinco dimensões interligadas: uma morfologia humana (anatomia, na

biomedicina), uma dinâmica vital (fisiologia), um sistema de diagnose, um sistema

terapêutico e uma doutrina médica (explicativa do que é a doença ou adoecimento, sua

origem ou causa, sua evolução ou cura), todos embasados em uma sexta dimensão

implícita ou explícita: uma cosmologia. Através dessa delimitação, precisa e específica,

pode-se distinguir entre sistemas médicos complexos como a biomedicina ou a medicina

tradicional chinesa e terapias ou métodos diagnósticos isolados ou fragmentados (Luz,

1995).

A racionalidade médica trata o sujeito doente investigando seu corpo

anatomofisiologicamente para o estabelecimento de diagnósticos de doenças e

intervenções terapêuticas, em que todo sintoma clínico é relacionado a uma alteração


80

morfológica. Mas embora a Medicina Ocidental Contemporânea (Camargo Jr., 1997), ou

Biomedicina, tente se adequar ao modelo preconizado pela ciência, o médico em sua

prática clínica não consegue cumprir este ensejo, pois a subjetividade apresenta-se em

vários momentos: na sua experiência, nas interpretações dos exames, ao tomar decisões e

julgamentos.

A opção pela denominação de Biomedicina deve-se ao fato de esta refletir a

vinculação desta racionalidade com o conhecimento produzido por disciplinas científicas

do campo da Biologia (Camargo Jr., 1997).

O modelo biomédico tradicional baseia-se, em grande parte, numa visão cartesiana

do mundo e considera que a doença consiste numa avaria temporária ou permanente do

funcionamento de um componente ou da relação entre componentes. Curar a doença

equivalia, nesta perspectiva, à reparação da máquina (Barros, 2002). O referencial da

clínica médica passa a ser a doença e a lesão, isto é, o objetivo do médico é identificar a

doença e a sua causa. Basta remover a causa para que haja a cura da doença. Doença e

lesão estabelecem uma relação de co-dependência, uma necessita da outra para existir

(Guedes, Nogueira e Camargo Jr., 2006).

De acordo com Camargo Jr. (1997), a racionalidade biomédica pode ser resumida

em três preposições:

(...) dirige-se à produção de discursos com validade universal, propondo modelos e leis de

aplicação geral, não se ocupando de casos individuais: caráter generalizante; os modelos

aludidos tendem a naturalizar as máquinas produzidas pela tecnologia humana, passando o

“Universo” a ser visto como uma gigantesca máquina, subordinada a princípios de causalidade

linear tradutíveis em mecanismos: caráter mecanicista; a abordagem teórica e experimental

adotada para a elucidação das “leis gerais” do funcionamento da “máquina universal”

pressupõe o isolamento de parte, tendo como pressuposto que o funcionamento do todo é

necessariamente dado pela soma das partes: caráter analítico (p.4).


81

Esse modelo, que teve seu auge em meados dos anos 70, permitiu enormes

progressos na teoria e na investigação, reorientando a prática e a investigação médicas: a

ênfase anterior, no princípio de que todos os sistemas corporais funcionavam como um

todo, foi substituída pela tendência a reduzir os sistemas a pequenas partes, podendo cada

uma delas ser considerada separadamente; simultaneamente, o indivíduo, com as suas

características particulares e idiossincráticas, deixou de ser o centro da atenção médica,

sendo substituído pelas características universais de cada doença; e finalmente, um forte

materialismo substitui a tendência anterior de considerar significativos os fatores não

ambientais (morais, sociais, psicológicos comportamentais) (Barros, 2002).

O modelo biomédico teve tanto sucesso que, no final da década de 70, nos Estados

Unidos, rareavam os sujeitos com menos de 75 anos, cuja morte fosse devida a doenças

infecciosas (Barros, 2002). Contudo, este modelo negligencia a autonomia conceitual e as

representações que os sujeitos fazem sobre o seu estado de saúde. É o caso, por exemplo,

das avaliações subjetivas sobre os sintomas, das interpretações ou das significações sobre

as causas e as evoluções de uma determinada doença, da implementação e da modificação

de estilos de vida ou da decisão em aderir às recomendações feitas pelo médico.

Esta atividade conceitual tem uma influência marcante na evolução do estado de

saúde. Com efeito, diversas investigações empíricas têm demonstrado que as significações

pessoais estão na base do bem-estar psicológico e na facilitação dos processos de

promoção da saúde, assim como nos de reabilitação (Barros, 2002).

Nesse sentido, Silva e Rocha (2008) sublinham um engano presente no pensar

biomédico que reside no fato de supor que todo sujeito, para preservar a vida, está disposto

a submeter-se aos desígnios do profissional da saúde para continuar bem vivendo. Um

engano, que ainda se faz muito presente nas práticas de saúde, pois não leva em
82

consideração os aspectos e determinantes que vão além do registro puramente biológico:

“é nesse degrau qualitativo que a medicina tropeça repetitivamente, a despeito de todos os

avanços alcançados pela tecnologia médica” (p.71).

Como seria de esperar, a omissão que o modelo biomédico faz da autonomia

conceitual do sujeito - ou seja, que este não seria capaz, ou não tivesse responsabilidade de

“produzir” uma patologia - é consistente com as definições de saúde e doença com ele

conotadas: a saúde é concebida como sendo a ausência de doença e esta é conceitualizada

considerando exclusivamente as perturbações que se processam na dimensão física da

pessoa (Barros, 2002).

O médico, senhor da vida e da morte, investe-se de uma condição mítica a julgar os

mortais, seu discurso prende-se a uma prática clínica centrada entre o olhar médico e o

órgão em mau funcionamento, assim, aponta Silva e Rocha (2008), há uma inconsciência

na forma dos médicos exercerem a medicina. Os autores dão o exemplo do próprio avanço

tecnológico da saúde que abre, cada vez mais, espaço para uma “medicina do órgão”, onde

o próprio sujeito adoentado é capaz de fazer exames e receber tratamento de maneira até

independente do médico. Além disso, a “ótica restritiva do especialismo não permite ao

médico entender a vida como um processo que escoa por fendas diversas até um oceano de

complexidade fugida ao seu olhar minimalista” (p.77).

O olhar focado na especificidade do órgão, sem articular uma visada mais ampla, enfocando

processos indissociáveis e intrinsecamente presentes na esfera da vida humana, acarreta-lhe um

custo crítico, na maioria das vezes menosprezado, mas nunca deixando de produzir sérias

conseqüências, tanto em termos de interferências decisivas no projeto médico de cura quanto

em relação à forma do paciente aderir ao tratamento e influir no seu resultado” (Silva &

Rocha, 2008, p. 77).


83

Entende-se, assim, que a subjetividade do adoecimento, isto é, a complexidade e a

singularidade do sofrimento humano, e mais ainda, a sua dimensão fenomenológica,

experiencial, nunca chegou a ser objeto das ciências biomédicas, uma vez que o modelo da

medicina ocidental é herdeiro da racionalidade científica moderna.

A busca de uma racionalidade, de uma objetivação como possibilidade de produção

de verdades, acrescenta mais certeza à exploração científica da doença do paciente. Nesta

perspectiva, a medicina que toma como base a evidência não representa uma revolução

paradigmática, mas a ratificação de uma tendência que tem suas raízes nos séculos

passados: substituição da subjetividade pela objetividade técnica (Uchôa & Camargo Jr.,

2010). Além do desafio da investigação diagnóstica e do tratamento, a análise sócio-

emocional deve estar presente no atendimento médico, a fim de se enxergar o paciente

como um sujeito biopsicossocial.

A ciência, sob a visão positivista, contaminou a prática médica com um

pensamento racional e reducionista, garantindo a objetividade e a neutralidade da atitude

médica em relação ao paciente (Maeda, Pollak & Martins, 2009).

Favoreto e Cabral (2009) afirmam que a atenção realizada pelos médicos em uma

prática clínica centrada apenas na racionalidade biomédica não tem demonstrado

efetividade, sobretudo no que tange à atenção aos portadores de doenças crônicas. Neste

sentido, as intervenções tradicionais na clínica, como o diagnóstico realizado com base em

uma anamnese restrita à coleta de sinais e sintomas das doenças e sob uma perspectiva da

terapêutica restrita à prescrição de fármacos, têm dificultado a compreensão dos problemas

e significados envolvidos no processo de adoecimento, assim como a adesão dos pacientes

aos programas terapêuticos oferecidos.

O médico deve compreender a linguagem da dor, da angústia, do medo e do

sofrimento, para que possa falar a “língua” de seus pacientes. O predomínio do conceito
84

organicista no processo saúde-doença leva o médico a utilizar ferramentas organicistas

para atuar na resolução de problemas. Falta construir, na graduação em saúde, um

aprendizado que propicie mais ao aluno a prática integrada dos recursos organicistas e

humanísticos (Maeda, Pollak & Martins, 2009).

Nessa perspectiva, passou-se a pensar a doença como localizada no corpo humano,

inserindo a anatomia na prática médica. Assim, o referencial da clínica médica passou a

ser a doença e a lesão, isto é, o objetivo do médico é identificar a doença e a sua causa.

“Basta remover a causa para que haja a cura da doença” (Guedes, Nogueira & Camargo

Jr., 2008, p. 136). Apesar dos progressos trazidos por essa perspectiva, entende-se que o

modelo biomédico, baseado exclusivamente no objetivismo, trouxe algumas

conseqüências e impasses para a prática médica ao excluir as dimensões subjetivas do

adoecimento humano, como lidar com pacientes com queixas dificilmente enquadráveis

neste modelo.

Embora haja uma série de definições para os “sintomas vagos e difusos em

biomedicina” (Guedes, Nogueira & Camargo Jr., 2008, p. 136), estes são freqüentemente

caracterizados pela presença de sintomas físicos sem apresentar uma causalidade

explicável por bases empíricas. Destaca-se uma diversidade de nomenclaturas

(somatização, sintomas inexplicáveis, sintomas ou síndromes funcionais) e imprecisão

conceitual em relação a esses tipos de sintoma (sintomas corporais sem causas orgânicas

documentáveis). Observa-se o despreparo dos médicos, a dificuldade em estabelecer

diagnósticos e a utilização ineficaz de recursos terapêuticos. Tudo isso devido a um

modelo que possui poucas ferramentas para deparar-se com a singularidade do sofrimento

do sujeito e, sobretudo, com a sua dimensão experiencial (Guedes, Nogueira & Camargo

Jr., 2008).
85

 Corpo e Adoecimento em Psicanálise: Do Organismo ao Corpo Erógeno

Desde os primórdios de seus estudos, Freud (1893/1996, 1894/1996, 1905b/1996)

se referiu a uma nova concepção de sujeito e de corpo, trazendo importantes contribuições

à investigação sobre as relações entre as dimensões somáticas e psíquicas, situando o

corpo na mediação destas realidades.

A psicanálise, através de um referencial teórico oposto ao modelo biomédico, de

outra posição epistemológica, oferece uma escuta livre de qualquer julgamento ou seleção

para que, dessa forma, o sujeito fale. O psicanalista deve assumir, e dar conta, daquilo que

é banido do corpo pela ciência, que ao corpo retorna como fenômeno, para, assim,

autorizar o paciente em sua posição de sujeito, sujeito que caminha em busca de novas

formas de ressignificação, de implicação e reconhecimento de si (Lacan, 1966).

Pensar no adoecer orgânico a partir da psicanálise implica considerar corpo e

psiquismo como uma unidade (psicossoma), bem como a etiologia multifatorial das

patologias. Nessa perspectiva, o corpo como não distinto do psiquismo.

Segundo Fernandes (2002), quando a psicanálise se vê enredada com o adoecer do

corpo, a tendência é realizar uma ampliação de seu campo clínico. Ocorre, segundo a

autora, que, na atualidade, a presença do corpo na psicanálise vai muito além da queixa

somática, isto é, o corpo se faz presente também pelo negativo. Dessa forma, o corpo que é

objeto da psicanálise ultrapassa o somático e constitui um todo em funcionamento coerente

com a história do sujeito. O corpo em psicanálise é, ao mesmo tempo, marginal e

fronteiriço, fundador e constitutivo, bem como encoberto e descoberto. É sob todas estas

formas que o corpo marca presença (Lazzarini & Viana, 2006).

Na visão psicanalítica de Nasio (2009), o corpo é um organismo vivo, reprodutor e

perceptível; é o corpo pulsional, das pulsões da vida que nos ligam ao mundo, bem como
86

das pulsões de morte que nos separam de tudo que ameaça nossa integridade; é uma forma,

uma silhueta, um protótipo universal de todos os objetos criados pelo homem; é o símbolo

do inconsciente, sua vitrine. “Seja organismo, força, forma ou símbolo, o corpo continua

sendo o indispensável substrato de todo sentimento de si” (Nasio, 2009, p.122).

Nas palavras de Volich (2002, p.18):

O corpo é nosso primeiro Universo. Nele somos concebidos, abrigados. A partir dele

existimos. Nele se gestam os enigmas, e nele buscamos as respostas. Interrogar os mistérios do

corpo é tão antigo quanto investigar o mundo que nos cerca. Desde os tempos mais remotos

dedica-se o homem a decifrar tais mistérios, inspirado por imagens oriundas de seu corpo.

A presença do corpo vai muito além da queixa somática, isto é, o corpo se faz

presente também pelo negativo. Dessa forma, o corpo que é objeto da psicanálise

ultrapassa o somático e constitui um todo em funcionamento coerente com a história do

sujeito (Teixeira, 2006a). Freud, ao articular uma teoria da sexualidade, inicia uma

verdadeira revolução na concepção de corpo, revolução esta que, se estruturando a partir

do corpo Soma, corpo biológico, corpo da pura necessidade, vai desembocar na noção de

corpo erógeno, inserido na linguagem, na memória, na significação e na representação, ou

seja, corpo próprio da psicanálise (Freud, 1905a/1996; Lazzarini & Viana, 2006).

Preocupado em estabelecer as diferenças entre o adoecimento orgânico e o

sofrimento histérico, Freud (1894/1996) percebeu que o corpo das histéricas estava

fundado nas representações subjetivas. As manifestações corporais das histéricas, que não

conseguiam referências somente nas organizações anatômicas, fisiológicas e neurológicas,

permitiram que ele considerasse as relações íntimas entre o organismo e a dinâmica

psíquica do sujeito. Os sintomas histéricos, carregados de significados e marcados pela

história de vida do sujeito, representavam a expressão, por meio do corpo, de um conflito


87

psíquico inconsciente. O discurso freudiano passou a afirmar que o corpo na histeria não

poderia mais ser confundido com o corpo da medicina e da anatomia, nem ser regulado por

seus estatutos. Com isso, Freud abre uma ruptura com a medicina da época ao instituir

realidade ao corpo da histérica que, desta forma, foi transformado em paradigma, ao

delinear uma nova leitura sobre a corporeidade (Lazzarini & Viana, 2006).

Assoun (1996) demarca que, a partir da psicanálise, o corpo não pode ser mais

concebido como princípio autógeno, portador de seu sentido próprio; o corporal forma a

materialidade subjacente do psiquismo. O inconsciente não se confunde com o corpo,

como uma espécie de alma, mas como um elo, um lugar de interferência onde as “vozes do

corpo” se misturam aos efeitos significantes.

Freud sempre deu ao corpo um lugar de extrema importância, e jamais evitou o

corpo. A clínica freudiana inaugural da psicanálise, a das histéricas, era uma clínica

eminentemente do corpo. O sintoma histérico é a prova mais cabal de que, em psicanálise,

o corpo importa de saída. Nos Estudos sobre a histeria, Freud (1894/1996) afirmava que o

corpo da histérica só poderia ser definido se fosse considerada não somente a anatomia (as

paralisias, as afasias), mas a condição da representação corporal presente no imaginário

social. Freud percebe que a fala das histéricas afeta o seu corpo. O que elas mostram é algo

de si, em seu corpo, pela via do sintoma.

A histérica nos designa a entrada do corpo na experiência analítica. O que ela

mostra é sua alma, visível em seu corpo pelo sintoma. É ele que “faz dialogar a alma e o

corpo”, “o corpo é o medium do sintoma” (Assoun, 1996, p.178). O que sobressai desse

diálogo é a idéia da presença de um conflito inconsciente que remete a um desejo de

ordem sexual.

A conversão é a mutação em corporal da soma de excitação que é liberada de sua repressão e

tem por efeito neutralizá-la (...). É nessa capacidade de conversão que Freud localiza “o fator
88

característico” da histeria (...). O efeito corporal traduz o destacamento de uma energia oriunda

da tensão representativa. Não é, pois, o corpo que fala, mas, através dele, as representações

recalcadas (Assoun, 1996, p.178-179).

Para Freud (1894/1996), o corpo da histérica, evidenciado pelo fenômeno da

conversão, tende a expressar o psíquico, obedecendo à lei do desejo inconsciente, coerente

com a história do sujeito. O que dá aos processos psíquicos inconscientes uma saída no

corporal é a complacência somática fornecida por um processo normal ou patológico em,

ou relativo à, um órgão do corpo. O autor introduziu a expressão complacência somática

para se referir à escolha da neurose histérica e a escolha do órgão ou do aparelho corporal

sobre o qual se dá a conversão, onde o corpo ou um órgão específico facilitaria a expressão

simbólica do conflito inconsciente.

Ao defender a noção de que o corpo da histérica era algo mais do que o corpo

puramente biológico, Freud (1894/1996) percebia que este representava as angústias e

repressões nascidas na relação do corpo com o seu meio cultural. Surgia, então, uma nova

percepção sobre a corporeidade, a de um corpo capaz de representar e expressar os

conflitos e os sentidos nascidos da sua relação social. Um corpo constituído no diálogo

entre o psíquico e o somático, ou seja, que nem é apenas psique e nem unicamente soma,

mas que se encontra na interface dessas realidades e que se inscreve na história de vida de

cada sujeito. Como se pode perceber, o corpo como território sitiado pelo organismo, por

sua estrutura biológica, colonizado pelo saber médico e desencarnado do psiquismo, perde,

decisivamente, lugar no pensamento freudiano.

Com esta leitura, foi sendo construída uma metapsicologia do corpo em Freud.

Assoun (1996) considera que o conceito fundamental da explicação metapsicológica

freudiana é a pulsão (Trieb). O ambiente intra e extra-uterino fornece, constantemente,

informações sensoriais ao organismo que, através delas, organiza suas ações voltadas à
89

sobrevivência e à interação com o meio ambiente. No entanto, além dos estímulos físicos,

o organismo também recebe quantidades de excitação provenientes do interior do corpo:

os estímulos pulsionais (Leo & Vilhena, 2010). Freud é bastante claro quando afirma que

as pulsões encontram-se na origem de toda a atividade psíquica, estando permanentemente

em atividade, buscando inscrever-se no psíquico. Definindo a “matéria-prima” (Volich,

2002, p.145) do parelho psíquico, as pulsões, Freud (1915/1996) as coloca como

(...) um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante

psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente [psiquismo],

como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua

ligação com o corpo (p.142).

Ao enunciar o conceito de pulsão nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,

Freud (1905a/1996) o concebe como algo fundamental que ancora o psiquismo no corpo,

isto é, o registro psíquico não seria apenas algo da ordem da idealidade, mas movido pelas

pulsões.

Desde seus primeiros escritos, Freud (1895/1996) concebe o aparelho psíquico

como resultante da necessidade do organismo em lidar com as exigências e excitações,

provenientes tanto de seu interior como do mundo externo. Sempre considerou que as

experiências corporais constituíam as fontes a partir das quais se formam as funções e

instâncias do psiquismo. No corpo do bebê, através do contato com o próprio corpo e o

corpo do outro, estruturam-se as primeiras formas de organização do aparelho psíquico.

A passagem do útero da mãe para o mundo externo coloca o bebê em confronto

com suas necessidades fisiológicas, onde antes eram satisfeitas automaticamente pelo

próprio corpo materno. Ele se vê necessitado do outro para satisfazer tais necessidades

(Volich, 2002). Para diminuir ou eliminar esse desprazer provocado por essa experiência
90

de desamparo, é necessária uma ação específica para obter satisfação. Após a satisfação da

fome pelo seio materno, por exemplo, o bebê faz a repetição dos movimentos se sucção

com os lábios, mesmo dormindo, o que indica um registro de memória, uma lembrança do

alívio propiciado por uma ação específica. “Caracteriza-se assim a passagem da

necessidade corporal para a alucinação primitiva, uma experiência marcada pelo prazer,

que inaugura a experiência erógena do corpo. Essa mesma dinâmica funda o aparelho

psíquico” (Volich, 2002, p.145).

O fato do bebê nascer desprovido de condições básicas de sobreviver por si mesmo,

faz com que ele necessite de alguém que o acolha e que dele cuide. Esta prematuridade

exige um trabalho de cuidados realizados pelo outro, a mãe, que acolhe o bebê oferecendo-

lhe os instrumentos vitais que lhe faltam.

O narcisismo também interessa à problemática do corpo em psicanálise. A

concepção do narcisismo em Freud (1914/1996) corresponde a uma etapa na assunção do

corpo próprio. Se o corpo pulsional remete a uma dispersão da pulsão, o corpo narcísico se

refere a uma unidade do corpo realizada pela presença significativa do outro.

Nessa etapa narcísica, o auto-erotismo se mostra como um estado anárquico da

sexualidade no qual as pulsões procuram satisfação no próprio corpo, uma satisfação não

unificada, desarticulada em relação às demais satisfações, uma satisfação local. Não se

trata de um corpo considerado um todo, sendo tomado como objeto de investimento

libidinal, mas partes de um corpo vivido como fragmentado, sem unidade. Não há no auto-

erotismo uma representação do corpo como uma unidade. O que nele falta é o eu,

representação complexa que o eu faz de si mesmo (Freud, 1914/1996).

No auto-erotismo não há ainda um eu, o que há é pulsão satisfazendo-se auto

eroticamente no próprio corpo. Freud (1914/1996) chamou de narcisismo primário o

momento em que a criança toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher
91

objetos exteriores. Este estado corresponderia à crença da criança na onipotência de seus

pensamentos, essa formação particular, cuja imagem é dotada de todas as perfeições

recebeu de Freud o nome de eu-ideal. Para Freud (1914/1996) o eu-ideal é o efeito do

discurso dos pais, efeito de um discurso apaixonado que abandona qualquer forma de

consciência crítica para produzir uma imagem idealizada. O ideal do eu é constituído

fundamentalmente por exigências externas ao indivíduo, particularmente por postulados

éticos transmitidos pelos pais, exigência estas às quais o sujeito terá como norma

satisfazer. Veiculadas pela linguagem, essas leis operam a mediação entre o eu e o outro

(Freud, 1914/1996).

O narcisismo secundário resulta de um retorno ao eu dos investimentos feitos sobre

os objetos externos. A libido, que anteriormente investia o eu, narcisismo primário, passa a

investir objetos externos. Entre o narcisismo primário e o narcisismo secundário, ambos se

caracterizando por um investimento do eu, há um investimento da libido em objetos

externos ao eu (Freud, 1914/1996).

O corpo da dimensão da alteridade, corpo do narcisismo secundário, implica,

assim, num redimensionamento daquele corpo narcísico primeiro. Freud (1914/1996) nos

mostra que o eu possui uma natureza dupla, uma espécie de assimetria que vai se constituir

na presença do outro, isto é, a unificação do corpo pelo olhar do outro seria constitutivo do

eu. Esse olhar seria um olhar idealizante dos pais, na medida em que o narcisismo deles

vai ficar evidenciado diante de seu filho, pois os pais esperam que esta criança possa ser e

fazer todas as coisas que eles mesmos, pais, não puderam realizar (Freud, 1914/1996).

O corpo anunciado pela psicanálise não obedece às leis da distribuição anatômica

dos órgãos e dos sistemas funcionais, objeto de estudo e intervenção da medicina. Ele se

apresenta como palco onde se desenrolam as relações entre o psíquico e o somático. A

teoria evidencia que o somático é habitado por um corpo atravessado pela pulsão e pela
92

linguagem e que obedece às leis do desejo inconsciente, coerente com a história do sujeito

(Freud, 1893/1996, 1894/1996, 1905b/1996).

Tratar dos diferentes modos de manifestação do corpo, força-nos a traçar uma

etiologia diferencial, onde a história do paciente é decisiva. A psicanálise, através de um

referencial teórico oposto ao modelo biomédico, de outra posição epistemológica, oferece

uma escuta livre de qualquer julgamento ou seleção para que, dessa forma, o sujeito fale.

O fenômeno psicossomático (FPS) tem sido pensado em relação a determinadas

afecções orgânicas que não correspondem aos critérios de avaliação e classificação

estabelecidos pelo discurso médico. São patologias que se manifestam por meio de lesões

orgânicas, cuja causa é indefinida, onde os sintomas apresentam variados níveis de

gravidade, podendo surgir e desaparecer. São, em sua maioria, consideradas doenças

crônicas e seu desenrolar caracteriza-se por crises sucessivas com período de remissão,

chegando, em alguns casos, ao completo desaparecimento da lesão. Por esse ponto de

vista, a esclerose múltipla seria considerada um quadro pathológico que poderia ser

apreendida pelos fenômenos psicossomáticos que acometem o sujeito, visto que está

presente, em suas manifestações, tais características supracitadas (Fonseca, 2007; Jorge,

2004; Mello Filho & Burd, 2010; Ribeiro & Santana, 2003; Valas, 1990).

Na perspectiva psicanalítica, convencionou-se chamar esse tipo de adoecimento de

fenômeno psicossomático, visto que não se trata de uma via metafórica de expressão

sintomática, mas algo que lesiona o corpo.

No fenômeno psicossomático, o corpo é afetado em sua realidade orgânica e funcional, sendo

tal manifestação capturada por exames clínicos, laboratoriais e imagéticos. Há uma lesão (...).

É, portanto, preciso distinguir que nem todas somatizações são da mesma ordem, já que as

somatizações histéricas não afetam o real do corpo, embora possam paralisá-lo, cegá-lo,

anestesiá-lo. (Teixeira, 2006a, p.26).


93

O FPS não serve para designar o sujeito, mas, sim, algo que se passa nele, onde a

forma como isso ocorre em cada um é de uma ordem absolutamente particular. É uma

escrita, e essa denominação vem porque é algo que se mostra, que está ao lado da estrutura

do sujeito, ou seja, não é efeito da estrutura, mas também, não está desvinculada dela

(Fonseca, 2007; Valas, 1990).

Lacan (1955-1956/2002) difere o fenômeno psicossomático do sintoma por não ter

estrutura metafórica. Para ele, os FPS são

(...) fenômenos estruturados de modo bem diferente do que se passa nas neuroses, a saber,

onde há não sei que impressão ou inscrição direta de uma característica, e mesmo, em certos

casos, de um conflito, no que se pode chamar o quadro material que apresenta o sujeito

enquanto ser corpóreo. (Lacan, 1955-1956/2002, p.352).

Em sua teoria, o FPS é trabalhado como uma das manifestações do real. Diferente

do sintoma, que inscrito no registro simbólico revela o desejo inconsciente, o FPS é uma

mostração não passível de ser decifrada pelo significante. Enquanto o sintoma se inscreve

na dimensão da metáfora, o fenômeno inscreve-se fora de qualquer significação,

acarretando lesões com as quais o sujeito não se vê implicado e algo do real faz incidência

direta sobre o corpo (Fonseca, 2007; Jorge, 2004; Lacan, 1955-1956/2002; Ribeiro &

Santana, 2003).

Marty (1993) demarcar os FPS como uma espécie de transbordamento do aparelho

psíquico que atinge o aparelho somático. Corroborando, McDougall (1996) afirma que,

nas afecções psicossomática, o dano físico é bem real e resulta de um processo

inconsciente, estando ligado “aos FPS tudo aquilo que atinge a saúde ou a integridade

física quando os fatores psicológicos desempenham algum papel” (p.22). Essas aparições
94

somáticas vão coincidir, na maioria das vezes, com acontecimentos que ultrapassam a

capacidade de tolerância habitual do sujeito, e ocorrem quando não é possível expressar a

dificuldade de outra forma, por exemplo através da palavra. A lesão do corpo do sujeito

seria um signo, uma marca, uma inscrição, não se convertendo em sintoma.


95

3 VICISSITUDES DO ACOMPANHAMENTO CLÍNICO, À LUZ DA

PSICANÁLISE, COM MULHERES PORTADORAS DE ESCLEROSE MÚLTIPLA

No sentido de manter coerência com nossos objetivos e com a metodologia

proposta, articularemos os escritos clínicos dos casos com as proposições teóricas

apresentadas anteriormente, destacando, dentre outros aspectos: a construção da

corporeidade, a transmissão psíquica transgeracional, a transferência à biomedicina, as

relações de perda, luto, morte e finitude, etc.

A construção teórica da psicanálise sobre o adoecimento tem como ponto de

partida a clínica. É na escuta que as vicissitudes sobre este processo emergem e

possibilitam repensar a posição do sujeito que padece. O processo de adoecimento,

compreendido como experiência que subjetiva o orgânico, leva em consideração aspectos

plurais que devem ser contextualizados na história de vida do sujeito. Abordando o

sofrimento encarnado no corpo através do adoecimento, a psicanálise amplia o campo

clínico e avança no campo teórico.

A experiência clínica com pacientes crônicos nos defronta com sujeitos que

experimentam, em seu próprio corpo, perdas concretas e permanentes, marcas que deverão

carregar por toda vida. O adoecimento, seja abrupto ou insidioso, confronta o sujeito a uma

realidade corpórea que lhe é desconhecida. No caso das pacientes com esclerose múltipla,

as crises são caracterizadas por episódios de exacerbação sintomatológica seguida de

reincidência, o que podem condenar as pacientes a sequelas físicas, gerando reclusão,

afastando-as de suas atividades, do convívio social e afetivo, etc.

Entretanto, para além da imagem, a dimensão subjetiva se faz presente, na qual o

adoecimento adquire, pela palavra, um valor específico. É nesse contexto clínico que

trazemos nossa colaboração no sentido de investigar a função que o adoecimento tem para
96

o sujeito. O ponto de partida é a palavra, na relação transferencial, pela qual o sujeito

revela sua versão sintomática, na construção de um corpo capaz de representar e expressar

os conflitos e os sentidos nascidos da sua relação social, inscrito na história de vida de

cada sujeito (Fernandes, 2002).

3.1 A Relação com a Medicina: Identidade da Doença x Implicação do Sujeito com

seu Sofrimento

A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas

vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença. Embora todos

prefiram usar somente o bom passaporte, mais cedo ou mais tarde cada um de nós será

obrigado, pelo menos por um curto período, a identificar-se como cidadão do outro país

(Sontag, 2007, p. 4).

Para Sontag (2007), estar doente significa ganhar uma nova cidadania, um atestado

de exclusão. É ganhar uma outra subjetividade, uma identidade em um mundo em que

existem dois grupos: o reino dos sãos e o reino dos doentes (p. 11). Para ela, a doença

tende a ser vista não apenas como uma entidade física, biológica, mas principalmente

como figura de linguagem, como metáfora. Ela se torna um tabu, não apenas por trazer em

si uma imagem da morte, mas ocasionando também o surgimento de um feixe de

representações.

As metáforas das doenças, as quais indicam ser o caráter do enfermo a causa

destas, constroem de uma forma banal, uma nova e conturbada identidade no ser doente, a

partir de uma ruptura ontológica vivida por este. Para superar a crise de se estar doente,

Sontag (2007) afirma:


97

Meu ponto de vista é que a doença não é uma metáfora e que a maneira mais honesta de

encará-la – e a mais saudável de ficar doente – é aquela que esteja mais depurada de

pensamentos metafóricos, que seja mais resistente a tais pensamentos (p. 8-9).

Para alguns autores, não é a dor, nem as perdas ou o mal-estar que a doença

provoca no sujeito que constituem o verdadeiro sofrimento durante esse processo, mas sim

a ameaça à identidade pessoal (Gameiro, 1999).

Goffman (1988) considera que as sociedades instituem, geralmente, uma série de

categorias entre as pessoas, estabelecendo diferenças que envolvem, por exemplo, o

gênero, a cor da pele, a cor dos cabelos, a altura, a religião, a classe social, entre outras.

Portanto, qualquer sujeito que não possua as qualificações previstas por cada sociedade ou

que não esteja no lugar pré-determinado por ela, torna-se problemática ou socialmente

marcada. Daqui resulta o termo estigma, tal como é entendido e definido por este autor e

onde se acredita que é possível enquadrar as pessoas com determinadas patologias, dentre

elas a esclerose múltipla.

O autor diferencia, então, três tipos de estigma: a) “abominações do corpo” ou

deformidades físicas; b) culpas de carácter individual, como por exemplo: o distúrbio

mental, a prisão, o vício, o alcoolismo, a homossexualidade, o desemprego, etc.; c)

estigmas tribais de raça, nação e religião (Goffman, 1988, p. 32).

No que diz respeito ao comprometimento físico, os sinais corporais conotativos da

diferença da "normalidade" são particularmente visíveis: em braço que treme, uma perna

que falta, um caminhar irregular, o uso de uma cadeira de rodas – sinais referidos pelas

pacientes. Mas estes fatos e estas evidências do estigma podem levar ao engano de se

pensar que sua natureza é meramente física, não o sendo. Pelo contrário, um estigma, que

pode ser físico, é também moral e é sempre uma marca socialmente imposta. Assim, um

sujeito com problemas físicos não é portador nato de um estigma, apenas possui um corpo
98

com uma "diferença física" numa sociedade que não o aceita como normal, ou a vê como

um problema (Goffman, 1988).

A representação dos sujeitos é carregada das noções da sociedade sobre a imagem

do doente, assim como Goffman (1988) evidenciou, a pessoa estigmatizada é enquadrada

em categorias, a depender do quanto o estigma pode ser notado e o quanto este é

enfatizado pelos outros.

Opera-se aí, fundamentalmente, a incapacidade que os sujeitos têm de ocupar, ao

menos por um instante, o lugar dos enfermos. Elias (2001) imagina que isso seja de algum

modo compreensível, pois faltaria a esses sujeitos algo importante para a construção de

uma relação de identificação com o seu outro.

Há uma dificuldade de imaginar que um dia o corpo poderá ser palco de alguma

degradação:

Não é fácil imaginar que nosso próprio corpo, tão cheio de frescor e muitas vezes de sensações

agradáveis, pode ficar vagaroso, cansado e desajeitado. Não podemos imaginá-lo e, no fundo,

não o queremos. Dito de outra maneira, a identificação com os velhos e com os moribundos

compreensivelmente coloca dificuldades especiais para as pessoas de outras faixas etárias.

Consciente ou inconscientemente, elas resistem à ideia de seu próprio envelhecimento e morte

tanto quanto possível. (Elias, 2001, p.80)

Todos os grupos sociais e sociedades construíram ideias específicas e rituais

correspondentes sobre o adoecimento e morte, que se tornam um dos aspectos do processo

de socialização: ideias e ritos comuns unem pessoas e grupos. A doença e seus significados

constituem parte de uma problemática relacionada à estrutura dos grupos e do tipo

específico de coerção a que os indivíduos estão expostos (Elias, 2001).


99

Atualmente há uma tendência à crença na imortalidade. Comparada a outros

momentos históricos, a expectativa de vida tornou-se mais elevada, através dos avanços da

medicina, da prevenção e do tratamento das doenças. A vida tornou-se mais previsível,

exigindo maior grau de antecipação e de autocontrole. Não é a própria morte que desperta

temor, mas a imagem antecipada da morte, em função do adoecimento, na consciência dos

vivos. O determinante na relação com a morte não é o processo biológico em si, mas a

ideia que se tem de vida, de morte e da atitude associada a elas (Elias, 2001).

Assumindo a sua condição de doente, isto é, adotando o papel de enfermo, o sujeito

passa a não ser mais considerado responsável pelo seu estado e fica legitimamente isento

das obrigações sociais normais, desde que procure ajuda competente e coopere com o

tratamento indicado. A enfermidade, portanto, não é meramente um estado de sofrimento,

mas também uma realidade social (Alves, 1993).

Pôde-se observar, nos dois relatos clínicos, o reconhecimento das pacientes como

“ser doente”, “portadora”. Observou-se, na vivência com essas pacientes, que a própria

estrutura do discurso médico, e das instituições por ele regidas, sustenta essa identificação.

A busca pelo reconhecimento junto ao médico implica algum tipo de adoecimento, pois,

embora ele tenha em vista a cura, ou o alívio do mal-estar, seu interesse está voltado para a

doença, ou seja, ela é seu objeto de pesquisa. O sujeito se faz passar nas brechas do

adoecimento.

Pode-se estabelecer entre paciente e médico um vínculo de satisfações mútuas que

conduza à manutenção de uma doença transformada em campo de trocas não percebidas.

Nesse caso, caberá ao médico escutar, traduzir e alcançar sua resposta íntima, senão para

trabalhá-la em direção à cura, pelo menos para não transformá-la em apoio à doença.

Deve-se considerar que embora os caminhos da formação médica conduzam à objetividade

do visível, não serão, por certo, os psicanalistas os únicos habilitados a entender que a
100

doença física pode ser um campo privilegiado para a presentificação de conflitos arcaicos.

E nem deve ser tido como próprio do clínico o desconhecimento de regressões de maior ou

menor intensidade, dependências de maior ou menor amplitude, transferências positivas ou

negativas, já que tudo isto faz parte do adoecer (Teixeira, 2002).

Mais ainda, é necessário que o médico aceite que também ele mantém expectativas

inconscientes no exercício de sua função, o que o obriga à reflexão constante sobre suas

posições perante seu paciente. Se a transferência é um elemento poderoso no âmbito de

qualquer tratamento, lhe é inerente o risco da produção de efeitos iatrogênicos. Espera-se,

portanto, do médico que, renunciando a qualquer pretensão onipotente, faça de si mesmo

objeto de observação, sujeitando-se à evidência de que, em qualquer relação humana,

existe outra dimensão para além do que é dado a ver (Teixeira, 2002).

No caso de Cláudia, observamos sua nova posição frente à condição de ter

esclerose múltipla. A mesma se colocou no lugar de suposto saber, ajudando outras

pessoas que também foram diagnosticadas com a patologia. Uma tentativa de desenvolver

novas possibilidades para enfrentar a realidade instalada em sua vida.

A paciente admite que hoje ainda tem medo, mas tenta controlar tirando o melhor

das coisas, fazendo disso uma missão de vida, tentando “ajudar da melhor forma possível

as pessoas que tem a doença. Eu acho que isso é uma forma de retribuição que eu tento

fazer, perante Deus, por eu ainda estar desse jeito com tanto tempo de doença. Eu acho

que eu tenho mais é que agradecer, do que eu ficar me queixando” (Cláudia).

No trecho apresentado, fica demarcada sua capacidade e compromisso para com o

outro, de sua responsabilidade em assumir a doença e em não passar para os outros a

responsabilidade pela mesma, o que sem dúvida são novas expressões desse sujeito que é
101

capaz de produzir novos sentidos subjetivos associados a todos os momentos de sua

doença, inclusive à forma de viver a dor.

A interpretação que as pessoas elaboram para uma dada experiência de

enfermidade é o resultado dos diferentes meios pelos quais elas adquirem seus

conhecimentos médicos. Tais conhecimentos são diferentes entre as pessoas, por serem

originados em situações determinadas. Pôde-se observar que o conhecimento médico das

pacientes tem sempre uma história particular, pois este se constituiu de e por experiências

diversas das mesmas na sua condição de portadora.

Cada vez mais os saberes sobre o corpo são marcados por uma crescente influência

do olhar científico, e graças a isso a possibilidade de explicações fantasiosas ou

metafísicas estaria sendo afastada e deixada em segundo plano. Enfim, parece haver maior

controle técnico e científico acerca da velhice e da morte, na sociedade contemporânea, do

que havia, por exemplo, há duzentos anos (Elias, 2001, p.86-96). No entanto, diz Elias, o

aumento do saber e das possibilidades de controle sobre a doença, a velhice e a morte não

superou completamente a limitação humana em relação à natureza. Por mais adiada que

seja, a morte, por exemplo, ela não foi ainda abolida.

Os homens, lamenta Elias (2001), ainda estão presos às dificuldades de

compreensão do mundo. Ele foca sua atenção nos médicos: seriam eles, em face do papel

que representam na sociedade, responsáveis pela problematização do caráter humano das

escolhas e ações dos sujeitos sociais. Aos médicos caberia colocar em questão

dogmatismos, naturalismos, inclusive superando a própria tendência da medicina em

focar-se prioritariamente nos aspectos biológicos da vida.


102

3.2 História de Vida e História da Doença: Perdas e suas Implicações

A experiência individual do adoecimento representa a forma como o sujeito

responde ao acometimento da doença em seu meio social. A compreensão individual está

associada ao conjunto de crenças e valores relativos à vivência de enfermidade. Alves

(1993) a situa enquanto realidade construída por processos significativos, compartilhados

intersubjetivamente. A participação de fatores socioculturais, e, sobretudo, individuais e

psicológicos é significativa, mas ainda carente de estudos mais consistentes.

É oportuno frisar o desafio lançado ao conhecimento médico por patologias da

modernidade (distúrbios psicossomáticos). A busca de compreensão do que se encontra

para além do sofrimento físico nos levou ao estudo das vicissitudes subjetivas do sujeito

durante seu adoecimento e ao interesse por uma escuta mais atenta dessa experiência.

Ampliou-se, então, o foco de atenção sobre eles, para verificar como buscam lidar suas

questões na doença. Os contextos da família, do trabalho, das relações interpessoais, e as

implicações das perdas, passaram a ocupar lugar subjacente aos relatos pessoais na

contemporaneidade.

Essas perspectivas determinaram a estruturação do conhecimento teórico e prático

de doenças como a esclerose múltipla. Embora o modelo biomédico tenha se centrado na

doença, seu universo de investigação clínica incluiu os sujeitos para quem o diagnóstico

incerto, do início da incidência, deixou a marca de morte iminente. A estratégia de

acompanhamento revelou tanto aspectos clínicos quanto sociais, assim como individuais e

coletivos.

Tanto Lidwina quanto Cláudia tinham conhecimento do prognóstico após o

diagnóstico da doença, trazendo à tona lembranças dos acontecimentos e da realidade, com

base na enfermidade. Com base nos escritos sobre as histórias de vida, foram construídas
103

narrativas de doença das pacientes. Pudemos observar que os relatos evidenciaram que elas

apresentavam ora narrativa sobre doença, ora narrativa como doença, utilizando-se deste

recurso como forma de transformar os acontecimentos e criar um mundo da doença.

Muitas vezes, reconstruindo suas histórias de vida, na tentativa de explicar e entender a

enfermidade.

A partir do relato dos casos, podemos construir algumas indagações sobre a história

de vida de cada uma das pacientes. Nos relatos clínicos apresentados anteriormente,

podemos observar que as pacientes relatam suas histórias de vida no momento em que

foram diagnosticadas com esclerose múltipla, ou seja, a doença tomando o lugar de ponto

de partida da vida de cada uma.

Nos primeiros encontros, percebeu-se sua vontade de falar, principalmente sobre o

possível futuro da doença em sua vida (...) discorre sua história de vida com ênfase na

doença, atravessada por mitos e fantasias (Lidwina). No caso de Lidwina, pudemos

observar que no começo das sessões havia uma necessidade dela falar sobre suas angústias

e dúvidas em relação à patologia. Nos primeiros meses, os assuntos abordados pela

paciente se dirigiam apenas a questões fantasmáticas, como o medo que sentia por achar

que a doença também poderia atingir o filho ou pela apreensão em pensar na possibilidade

de ficar mais debilitada.

Nesse percurso de indagações biomédicas pelas pacientes, questões como um novo

posicionamento frente o convívio familiar se fez presente, como a flexibilização de papel.

Frente a essa nova condição de vida decorrente do adoece, pudemos observar no relato de

Lidwina, que a mesma sentiu a necessidade de estar apoiada pelos familiares, e se

apresentou desapontada com o comportamento dos mesmos: “parecia que eles não

estavam muito surpresos com minha situação, mas eu preferia que eles ficassem mais
104

preocupados, porque é boa essa sensação de se sentir importante na vida das outras

pessoas”.

Aqui, Lidwina toma uma posição que não estava acostuma a ter, a de enferma.

Concomitantemente a essa posição, temos a característica regressiva do adoecimento, ao

percebermos a preferência da paciente em ter seus familiares mais preocupados,

colocando-a, assim, numa posição que a remete a sua vivência em idade inferior.

Nos escritos de Freud (1914/1996), a regressão se caracteriza por um processo

psíquico em que o ego recua, fugindo de situações conflitivas atuais, para um estágio

anterior. Considerada em sentido tópico, a regressão se dá ao longo de uma sucessão de

sistemas psíquicos que a excitação percorre normalmente segundo determinada direção.

No seu sentido temporal, a regressão supõe uma sucessão genética e designa o retorno do

sujeito a etapas ultrapassadas do seu desenvolvimento (fases libidinais, relações de objeto,

identificações, etc.). A regressão pode aparecer num sistema de defesa contra uma

frustração usando um retorno inconsciente para época de desenvolvimento menos

frustrante.

A presença da regressão pode ser despertada pelas condições próprias do

adoecimento. A exemplo da esclerose múltipla, esse processo é suscitado quando o sujeito

se encontra em uma fase de maior dependência do meio externo (cuidadores) por não ter

autonomia sobre seu corpo, sobre a coordenação de seus movimentos, recebendo cuidados

básicos de higiene, alimentação e medicação.

Em relação à Cláudia, desde o início das nossas sessões, a mesma não quis trazer

para o centro da narrativa posicionamentos relacionados à sua história de vida, aos seus

problemas cotidianos que estão aquém da esclerose múltipla. Sempre iniciava perguntando

se deveria me contar sobre toda sua vida ou apenas a parte que dizia respeito da doença.

Comecei a me indagar se esta era uma posição onde ela indicava que sua vida vai além
105

desse posicionamento de “mulher esclerosada”. A partir de então, pude observar dois tipos

de movimentos durante nossas conversas nas sessões: relatos longos e empolados de

Cláudia sobre sua vivência com a patologia, as dificuldades que teve a partir do ponto que

foi diagnosticada e o modo como as superou; e relatos monossilábicos e desinteressados

sobre assuntos relacionados ao dia-a-dia, a sua família, seu passado, sempre atendendo a

pedidos meus de falar sobre isto, e dando-me às vezes a impressão de que a conversa a

violentava.

Apesar de falar sobre eventos difíceis que passou por causa da doença, o modo

como alinhava esses eventos nos lembra a descrição feita por Gergen (1999) das “sagas

heroicas”. Para o autor, estas narrativas seguem fases progressivas e regressivas, onde a

pessoa descreve dificuldades que teve, acompanhadas por vitórias, seguidas por mais

dificuldades e por mais vitórias. Começou a sofrer com os primeiros sintomas muito nova,

em outra cidade e com uma filha recém-nascida, mas teve todo o apoio do esposos e da

mãe. Sofreu com a notícia de um diagnóstico que pra ela soou como uma sentença de

morte, mas conseguiu estabilizar a doença. Teve muitas perdas durante os primeiros anos

com a doença – faculdade, autonomia, empregos – mas superou e conseguiu diretos legais

em relação aos tratamentos. Sente dor vinte e quatro horas por dias que não passa “nem

com morfina”, mas não deixa de fazer suas tarefas diárias e ajudar outras pessoas que

também tem esclerose múltipla, mais ainda como vice-presidente da APPEM.

Gergen (1999) nos fala que uma narrativa, para ganhar inteligibilidade, precisar ter

um ponto final, que geralmente é carregado de valor, sendo algo desejado ou indesejado. A

impressão que tive nas sessões é que Cláudia gostou de ter encerrado em seu auge, em seu

ponto final, em sua conquista por um posto de confiança e responsabilidade para ela e para

os outros portadores. Essa pode ser uma forma de compreender os silêncios de Cláudia

frente às minhas questões sobre sua infância, sua vida pessoal e familiar. Em nossas
106

sessões, os temas infância e relações familiares aparecem apenas de modo esporádico

quando a instigo a falar sobre o assunto.

Não estamos preparados para o adoecimento, vivemos como se fôssemos eternos e

por isso, quando enfrentamos a interrupção do projeto de vida, vemo-nos como diante da

ameaça do não ser, que é a fonte da angústia normal que caracteriza o ser humano e nos

sentimos como que estando em um beco sem saídas (Scheeffer, 1976).

Ter um projeto de vida, nascer com um propósito mesmo ainda que desconhecido

para sua vida, é uma capacidade do sujeito de projetar-se para um futuro e fazer com que

se sinta no controle de sua vida. Surge então, a expectativa em relação ao sentimento de

estar vivo (Moffatt, 1982), principalmente quando este sujeito é acometido por um

adoecimento.

Observamos tanto nos discursos de Cláudia como no de Lidwina, o temor diante do

imprevisível e da incerteza da dependência:

(...) “fico com medo de perder o controle total de mim, do meu corpo, das minhas

atividades, eu não me imagino sendo dependente de uma cadeira de rodas, para mim essa

é a pior coisa que essa doença pode me trazer” (Lidwina).

(...) “olha, daqui a um ano eu vou tá daquele jeito, eu não vou ver minha filha

crescer, eu não posso ter mais filhos” (Cláudia).

Medos, fantasias e lutos que essas pacientes vivenciaram e que ainda eram incertos

em seu futuro. O projeto de vida do homem está no futuro e quando esse projetar-se é

interrompido, o homem se vê diante de uma realidade da qual não se permite conceber,

que é a perda de controle sobre sua própria vida (Moffatt, 1982). O adoecer propicia-nos

momentos de reflexão a respeito de nossa impotência mediante a própria vida.


107

O adoecimento gera conflitos psíquicos emocionais que acionam mecanismos

psicológicos múltiplos. Alguns desses conflitos podem ser caracterizados pela vivência da

perda da condição de pessoa (despersonalização), podendo levar o paciente à crise que tem

a ver com o sentir-se invadido por uma vivência de paralisação da continuidade do

processo de viver (Moffatt, 1982). Nessa condição,

A história [e os projetos desse paciente] perde a continuidade e se fraciona, e o paciente

fica sem saber como perceber sua nova situação (como codificá-la) e sem saber como

atuar, pois suas estratégias não se adaptam às novas circunstancias [...] o homem fez o

verdadeiro salto qualitativo na sua evolução com relação aos animais, quando concebeu

a antecipação (imaginou os presentes que virão) e, deste modo, pôde constituir

sucessões de presentes percebidos como uma seriação continua. Portanto, começou a

planificar-se a si mesmo e a perceber-se em movimento para adiante (p.13-17).

O sujeito se concebe em sua vida, inclusive através de seus projetos, através do que

ele pensa acerca de si e do que espera em relação ao seu futuro. O fato de termos um

projeto em nossas vidas se torna uma força motriz que nos lança para frente e nos motiva a

alcançar até mesmo o inalcançável. Ele se reinventa a cada dia, se lançando ao

desconhecido, embora gere uma angústia de incerteza (Moffatt, 1982).

Na condição de adoecimento, principalmente quando este se refere a uma doença

crônica e degenerativa, o movimento de se lançar para uma perspectiva de futuro perde sua

força. Essa experiência propicia a vivência do trauma que traz com ele uma perda de

sentido, paralisação e desorganização corporal, uma vez que essa imagem é fragmentada

pelo trauma (Kerbauy, 2002).

O diagnóstico da esclerose múltipla evidencia a fragilidade da condição humana.

Tal fato pode ser compreendido levando-se me conta que a descoberta de uma patologia
108

crônica mostra ao portador que sua existência pode estar ameaçada, eliminando a fantasia

de onipotência frente à morte.

Tanto nos discursos de Lidwina quanto nos de Cláudia, podemos observar a

fragilidade do momento do diagnóstico frente à possibilidade da finitude.

Passados dez anos de diagnóstico, “veio o primeiro surto mais brabo, eu fiquei

louca”. Relatou que se sentiu como se fosse “mesmo uma coisa muito frágil, sentia uma

sensação de impotência tão grande. Foi a prova de fogo pra mim” (Lidwina).

Cláudia diz ter imaginado: “minha vida acabou. O médico só me disse o seguinte:

‘é uma doença crônica, que não tem cura, degenerativa, que daqui a um ano você vai

morrer, quase. Você é novinha assim, bonitinha, mas daqui há um ano, mais ou menos,

você já vai tá toda paralisada em uma cadeira de rodas, entendeu’” (Cláudia).

As alterações emocionais influenciam de modo negativo a qualidade de vida das

pessoas com esclerose múltipla. Sendo uma recorrência o fato de que o sujeito com tal

patologia está susceptível a alterações emocionais ao longo de todo o percurso da doença,

devido à imprevisibilidade de défices inerentes à mesma, é no período anterior, e pós, ao

diagnóstico (repleto de incertezas, medos e ansiedade) que tem início o sofrimento

psicológico. Ainda que descrita há mais de um século, as dificuldades em estabelecer um

diagnóstico exato são quase as mesmas (Mimoso, 2007).

Os exames complementares afiguram-se como auxílio prestimoso, mas nem sempre

conclusivo, pelo que o diagnóstico tardio/difícil referido pelas participantes continua a ser

baseado, sobretudo, na história clínica e no exame neurológico que documente a

ocorrência de múltiplas lesões no tempo e em diferentes localizações do sistema nervoso

central (Mimoso, 2007). Este tempo decorrente desde a presença dos primeiros sintomas
109

até ao diagnóstico afigura-se longo, frustrante e confuso, pois, durante a espera, o sujeito

constrói diversas fantasias, favorecidas pelas diversas consultas realizadas com

profissionais de saúde que não lhe dão as certezas que querem ouvir, o que pode levar a

sentimentos de impotência e perda de controle, tanto para o sujeito acometido como para

os familiares (Courts, Newton, & McNeal, 2005).

Para alguns, a condição que a doença lhes impõe no momento do diagnóstico é

devastadora, e pode culminar em um processo de luto devido à eminência das perdas,

afastando o sujeito de suas atitudes normais. Verifica-se que, em qualquer processo de

perda, o primeiro movimento é o de introjeção do objeto amado perdido, mecanismo que

empresta vida ao objeto, vitaliza o amor que se foi. O que se observa, segundo Freud

(1915/1996), é que nos processos de luto normal tal introjeção é rápida, transitória, e o

psiquismo se vê obrigado nas exigências do teste de realidade. A introjeção de um objeto

morto é produtora de muita angústia, pois, ao convocá-lo a fim de não se separar dele,

invoca-se, ao mesmo tempo, uma angústia avassaladora.

Diante da esclerose múltipla, o medo da perda dos movimentos, do controle

corporal é uma das características principais relatadas pelas portadoras durante o seu

processo de diagnóstico. Não somente a esclerose múltipla, mas outras doenças e

situações, acarretam dificuldades e perdas dos movimentos do corpo, muitas vezes

tornando impossível ao sujeito a realização de ações como andar, falar, ir ao banheiro,

mastigar, tocar uma pessoa, etc. Na esclerose, a condição da perda dos movimentos não é

definitiva para todos aqueles diagnosticados.

Como pudemos observar, a menção desse tipo de perda é uma dentre as diversas

perdas vividas por esses sujeitos.


110

(...) “veio o primeiro surto mais brabo, eu fiquei louca”. Relatou que se sentiu

como se fosse “mesmo uma coisa muito frágil, sentia uma sensação de impotência tão

grande. Foi a prova de fogo pra mim”. (...) “fico com medo de perder o controle total de

mim, do meu corpo, das minhas atividades” (Lidwina).

(...), quando via alguém com cadeira de rodas, pensava que era alguém com

esclerose múltipla e dizia: “olha, daqui a um ano eu vou tá daquele jeito, eu não vou ver

minha filha crescer, eu não posso ter mais filhos” (Cláudia).

Além da perda, ou da possibilidade da perda dos movimentos advindos do

prognóstico, a autonomia perdida também é marcante nos discursos das pacientes, como

também a capacidade de desenvolver atividades simples, de se sentir útil, de se encontrar

em novas dimensões de sua vida, de não permitir que a doença lhe vença, de ser capaz de

se situar ativamente frente ao outro. A exemplo de Cláudia, o incômodo trazido por esse

aspecto fica mais evidente quando este interfere em suas atividades no papel de mãe.

Conta que já se sentiu muito impotente com a dor, “principalmente quando você

quer fazer uma coisa que você não consegue, principalmente quando você se propõe a

fazer uma coisa naquele dia e você não tem condição de levantar, principalmente quando

seu filho tem uma apresentação no colégio e você não consegue ir” (Cláudia).

Relatou que se sentiu como se fosse “mesmo uma coisa muito frágil, sentia uma

sensação de impotência tão grande” (Lidwina).

Conforme já apontado neste trabalho, Kovács (2003) destaca que uma situação de

doença pode acarretar perdas consideradas como mortes simbólicas, em que há perdas de

partes de si e a perda do outro. Na situação vivida por Lidwina e Cláudia, a pera de si


111

acontece pela perda de seus papéis desejados, e antes desempenhados – como uma pessoa

ativa, profissional, genitora, amante, cônjuge, parceira – , situação presente em diversos

relatos e situações de suas vidas.

A perda do outro se torna evidente na ausência, e/ou diminuição, do contato com

pessoas que faziam parte do seu círculo de relações interpessoais. Nos relatos de Lidwina,

fica evidente a relação com os pacientes e amigos de trabalho, pelos desconfortos trazidos

pela doença. Em decorrência da nova condição instalada com o advento da esclerose

múltipla, foi percebido no discurso de Lidwina um incomodo perante sua ocupação

profissional.

Retoma as lembranças das pessoas mais seriamente acometidas, quando relata

sobre desconfortos na sua vida profissional por causa da doença, ficando receosa em sair

de casa, chegando a ligar para o trabalho informando que faltará. Reclama muito da

“tremedeira do braço”, principalmente quando vai digitar as receitas para os pacientes,

“meu braço começa a tremer e os pacientes ficam olhando pra mim” (Lidwina).

No caso de Cláudia, a patologia suscitou como um impedimento até da mesma

exercer uma profissão, sendo, hoje, aposentada por invalidez:

(...) estava fazendo duas faculdades, ao mesmo tempo em que foi a única aluna de

nutrição a ser chamada pra trabalhar em uma rede de hospitais de numa entidade de

serviço social autônomo, de direito privado e sem fins lucrativos, tendo que abrir mão de

tudo isso. Caracterizava sua vida como uma correria, trabalhava no hospital, assistia

aulas na faculdade, assistia aula de informática. “Primeira coisa que você vai pra um

hospital daquele, era tratar pessoas que estavam do jeito que eu poderia estar”. Deixou
112

de ir para o trabalho, mesmo que tivesse sido uma conquista ímpar em sua vida, não

podia ir (Cláudia).

As terapêuticas do tratamento da patologia, invasivas e potencialmente disruptivas,

levaram essas pacientes a deixarem temporariamente os seus trabalhos (Lidwina) e retardar

seus estudos (Cláudia), a fim de se dedicarem ao tratamento.

Outro exemplo da perda do outro, é a relação de Lidwina com o ex-marido, quando

a mesma levanta a hipótese da separação ter ocorrido devido à patologia: “acho que a

gente se separou também por causa das minhas crises. Não sei se ele não entendia, ou não

queria suportar aquilo” (Lidwina). Além da dimensão emocional, a dimensão social do

luto é percebida por meio da diminuição do contato e da interação (Franco, 2002).

A dimensão social do luto também se faz presente na perda de si, como a exemplo

dos papéis que, principalmente as mulheres, vivenciam em seu cotidiano (Franco, 2002).

Um discurso importante em nossa sociedade fala sobre os papéis sociais de gênero. Com

este discurso, espera-se que mulheres adultas se casem e tenham filhos, e quando isto não

ocorre, muitas mulheres descrevem-se fracassadas. Esta descrição parece ajudar a construir

uma história de Lidwina, não como uma mulher fracassada por não ter filhos, mas descrita

diversas vezes como uma mãe que tenta suprir um possível fracasso diante do

acometimento por uma doença crônica.

A possibilidade de não estar viva para cuidar dos filhos se fez uma preocupação

presente na narrativa de Lidwina. Aqui, o foco esteve no receio de não conseguir

desempenhar adequadamente o seu papel de mãe o que, portanto, indica uma disrupção na

identidade feminina.
113

(...) queria mostrar o lado da mãe boa, capaz de fazer as mesmas coisas que as

outras mães, “que supre as necessidades do filho, acima de tudo”. Disse que sempre teve

o cuidado com o que o filho iria pensar sobre futuro, como iria cuidar dele, o que ele iria

pensar sobre a mãe, sobre a doença: “não queria que ele tivesse a sensação, ou mesmo só

um pensamento de que tinha uma mãe inválida, que não podia fazer nada por ele”. “Hoje

eu tento suprir tudo” (Lidwina).

Nos relatos de Cláudia, o lugar afetivo de mãe também é muito presente. Em seu

discurso, emergiu o valor atribuído à maternidade, a qual é considerada uma condição que

traz a possibilidade de realização plena enquanto mulher, a tal ponto que o desejo de ser

mãe sobrepõe-se aos medos e fantasias em relação à transmissão, agravamento e das

consequências de ser portadora da esclerose múltipla.

(...) “não nasci pra ser mãe de um filho só, eu quero ter, pelo menos, outro filho,

porque eu queria ter três, mas pelo menos dois eu vou ter”. Os médicos sempre a

aconselhavam a não engravidar, pois não sabiam dos riscos que poderiam causar (...)

Cláudia conta que parou de tomar os remédios, as injeções, fez todos os seus exames de

sangue, estavam todos bem próximos das taxas de normalidade, e decidiu engravidar, por

sua conta e risco, sem o seu médico saber. Só disse a ele quando já estava no segundo mês

de gravidez. Ligou e disse por telefone, pois não teve coragem de dizer na frente dele.

“Minha gravidez foi muito difícil, mas valeu a pena. Você tem que passar e tem que se

adaptar (...) Relata que ia pro meu médico toda segunda e sexta-feira pra ver se estava

tudo bem com o bebê e saber se ele não iria nascer no final de semana. O bebê nasceu de

oito meses, seu médico disse para não avisar a ninguém sobre o nascimento, pois não se

sabia como ele iria nascer” (Cláudia).


114

Os significados atribuídos à gravidez estão relacionados com a realização de um

desejo que possibilita um resgate da identidade como mulher na sociedade. Ademais,

enfrentar o desafio de ser mãe na condição de ter uma doença degenerativa pode

representar um anúncio à sociedade de que é “normal”, pois é capaz de cumprir com o

papel de mulher.

A gravidez é um período caracterizado não unicamente por um processo biológico

natural, mas é uma representação ideológica que proporciona uma imagem total da

mulher-mãe, cuja incorporação faz com que a deseje, para que possa exercer a sua real

função na sociedade (Ruggiero, 2000, p.8).

Poder gerar um filho representa para a mulher com esclerose múltipla uma

condição de normalidade, o que lhe confere um fator que a doença lhe roubou. Manter a

atividade reprodutiva é uma forma de enfrentar os danos sociais, culturais e mesmo

psicológicos decorrentes do adoecimento (Ruggiero, 2000).

A decisão de ter um filho está condicionada por múltiplos fatores nem sempre

racionais e, provavelmente, diferentes de indivíduo para indivíduo. Deve-se saber que

também a esclerose múltipla, com as suas implicações físicas e subjetivas, pode

influenciar, tanto positiva quanto negativamente, na decisão de ter um filho. A

incapacidade que pode ser produzida pela doença e a mentalidade do incapacitado perante

as suas limitações pode ser um obstáculo na decisão sobre a possível maternidade, embora,

se possa reagir assumindo a maternidade e provar assim a própria feminilidade, negada a

nível social (Schering, 2009).

Ser mãe e estar diagnosticada com uma doença sem cura engendra uma árdua e

constante necessidade de conciliação. Nesse sentido, algumas pesquisas investigaram


115

estratégias utilizadas pelas mulheres com diagnóstico de doenças degenerativas para lidar

com a situação da patologia na relação com seus filhos (Billhult & Segesten, 2003). Os

resultados apontaram para a necessidade da mulher conciliar entre o fato de ser necessária

e, talvez, não estar presente (morte); conciliar entre precisar ser forte e permitir-se estar

doente; por último, conciliar entre dizer a verdade e proteger seus filhos da verdade.

No processo de superação do sofrimento, pacientes e seus cuidadores recorrem à

religiosidade. Embasados nesse tema, muitos pacientes conferem à doença uma punição

divina, recorrem à religiosidade para obter outras explicações sobre as causas da doença,

ou buscam a cura por uma intervenção sobrenatural. Contudo, esse tema apareceu tanto

nos discursos de Lidwina quanto nos de Cláudia.

Desde que nascemos, estamos frente a uma realidade que nos é apresentada,

compreendendo linguagem, símbolos, valores, personagens, conceitos, etc. A religião

influencia a atribuição de significados às questões com as quais o sujeito se depara ao

longo da vida. Religião compreendida aqui como um universo de símbolos e mitos

presentes na cultura, que trazem referências para a atribuição de diferentes significados a

vida do sujeito.

“Eu nunca perdi a fé em Deus, eu nunca deixei de acreditar, sempre pedi forças,

sempre” (Cláudia).

(...) em decorrência de sua preocupação fantasiosa com seu estado físico ao ver

outras pacientes mais debilitadas que ela, seu lado religioso “aflorou”. Fala da

necessidade que teve em se sustentar em “algo maior”, algo divino, começando a rezar

todos os dias (...) Diz ter fé em Deus, de que vai melhorar cada vez mais (Lidwina).
116

A relação delas com o sagrado não tem, nem houve menção, de intermediários

(padres, pastores ou sacerdotes). Na verdade, Deus era um confidente de seus sofrimentos,

e pediam em suas preces não a cura, mas alívio para a dor e força para que as mesmas

pudessem lidar com o sofrimento de uma maneira mais branda e que não causasse tanto

sofrimento. Sobre isso, González Rey (2005) faz as seguintes ponderações:

O momento de sofrimento se configura subjetivamente pelos sistemas de relações do

paciente, bem como pela intervenção de seus recursos subjetivos. A produção de

sentidos subjetivos dependerá da emotividade e dos processos simbólicos que o

paciente possa desenvolver quanto a sua doença e à sua vida em geral (González Rey,

2005, p. 134).

Desta forma, vemos as pacientes produzirem sentidos subjetivos a partir de uma

história de vida e de uma emocionalidade sadia quando decidiram enfrentar positivamente

e não se sentir coagidas frente às incertezas e sofrimentos advindos do seu tratamento e

combate à doença.

A espiritualidade tem assumido um papel importante, dado o reconhecimento cada

vez mais notório do seu papel na compreensão de atitudes, comportamentos e crenças dos

sujeitos. Ela permite o desenvolvimento de um sentimento de integridade, encontrando um

sentido para a vida, lidando com os acontecimentos negativos e, ainda, rever e interpretar

acontecimentos através da atribuição de significados (Pereira, 2009).

A importância da espiritualidade no contexto da saúde reporta-se á preocupação

crescente em compreender o homem em sua totalidade, onde alguns estudos já apontam

sua influência na saúde física e mental do sujeito. Em relação a doença crônica, a

espiritualidade é uma das estratégias utilizadas pelos enfermos como forma de lidar com as

condições crônicas que podem advir (Pereira, 2009).


117

Integra-se, também, nesta investigação sobre a escuta do adoecimento, uma

vinculação transgeracional. Questões que tocam aspectos fundamentais como a

transmissão psíquica transgeracional, o lugar do corpo na transmissão e a repetição como

manifestação de um conteúdo velado. Questões estas que se apresentaram, e se impuseram,

como uma necessidade de discussão.

O adoecer faz parte da natureza humana e o seu processo apresenta fatores tanto

determinantes como condicionantes que se entrelaçam. Os fatores genéticos, biológicos e

fisiológicos, tanto quanto os ambientais e psicológicos, fazem parte desse complexo

processo. Por isso, enfatiza-se o processo de adoecimento ressaltando o trabalho de

transmissão psíquica geracional na família como fator influente e complementar da

dinâmica intrapsíquica do sujeito (Filgueiras et al, 2007; Correa, 2000).

Com base em estudos de famílias acometidas pelo adoecimento, o adoecimento, do

ponto de vista psíquico, possui uma dimensão psíquica hereditária, mesmo que não haja

predisposição genética no grupo. O desenvolvimento de doenças é favorecido quando se

considera, além da herança psíquica, a existência de certas particularidades da

psicodinâmica familiar que comprometem a condição de saúde dos membros. Isto nos leva

a pensar que certas condições psíquicas da família podem ser caracterizadas como fatores

de risco para o adoecimento (Filgueiras et al, 2007; Kaës et al, 2001).

Entre os diversos e complexos fatores psíquicos que podem contribuir para o

processo de adoecimento, ressalta-se o trabalho da transmissão psíquica como um caminho

possível para a predisposição e para o desenvolvimento de doenças no grupo familiar.

Considera-se que o adoecimento pode ser fruto de uma ligação inconsciente com um traço

parental ou ancestral adoecido ou desvitalizado libidinalmente, estando ou não o sujeito

sob a influência das predisposições biológicas e genéticas (Filgueiras et al, 2007).


118

A genealogia de uma família é construída a partir da continuidade da corrente de

gerações, sendo a hereditariedade psíquica mantida através das ligações afetivas e

inconscientes que são estabelecidas entre seus membros. Nesse quadro, o inconsciente

de cada sujeito leva a marca, na sua estrutura e nos seus conteúdos, do inconsciente de

outro (Kaës et al, 2001, p.14).

Em casos de famílias que apresentam uma pluralidade de somatizações, sejam de

crise graves ou crônicas, por exemplo, o início e a evolução desses adoecimentos devem

ser observados a partir de acontecimentos marcantes da história familiar recente (Freud,

1892/1997). A transmissão havia sido nomeada por Freud, primeiramente, como herança,

contágio, transferência, repetição e identificação, ao longo de sua obra.

Nos relatos de Lidwina, observa-se uma repetição de patologias e sintomas ao

longo da história de sua família materna. Ressalta-se ainda que há uma relação familiar

peculiar, onde todos os seus doze tios maternos, até mesmo a mãe da paciente, vieram a

óbito devido complicações provocadas pela diabetes. Lidwina também é diabética, assim

como duas de suas quatro tias que ainda estão vivas.

Devido às diabetes e uma hipertensão crônica, diagnosticadas após um exame pré-

operatório de catarata, a mãe da paciente ficou um ano e dois meses fazendo diálise,

tendo como primeiro sintoma uma disfunção na marcha. Esse fato relatado por Lidwina

me remeteu ao primeiro sintoma descrito por ela no começo das sessões, quando

reclamava e apresentava, notoriamente, dificuldade em caminhar, devido à esclerose

múltipla (Lidwina).

No processo de escuta clínica, as falas dos sujeitos são influenciadas por ideias

construídas por histórias contadas sobre doenças e mortes. Dessa forma, alguém se
119

inscreve como herdeiro e se apresenta como catalizador dessas ideias, na identificação a

parentes doentes como modo de inserção em uma linhagem ou em uma ordem familiar,

estando afinado com um material integrador ou destruidor. Desse modo, presume-se que a

transmissão psíquica e a relação intersubjetiva da família podem suscitar o adoecimento. E

a doença seria a ligação entre família e a herança alimentada por mitos e fantasias,

amalgamadas por fantasmas que impregnaram as zonas de passagem e de contato,

provocando um contínuo desinvestimento libidinal dos vínculos e o apagamento do

reconhecimento da alteridade entre os membros (Correa, 2000).

Um movimento que merece destaque é a posição que o filho de Lidwina ocupa,

deslocando-se do lugar de filho para o de pai, de cuidador. A ausência de uma figura

paterna mais presente possibilitou-o experimentar uma série de papéis e ações. Cada um

pode ser alternadamente objeto de identificação. A relação vertical entre mãe e filho havia

sido substituída, dentro do possível, pela dimensão horizontal da relação mãe e

pai/cuidador. A experiência vivenciada pelo filho de Lidwina produzir a identificação

horizontal, secundária à identificação vertical representada pelos ideais das figuras

parentais (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2011).

O filho pode vir a ser um substituto para a figura parental pela reversão de passivo

para ativo, pela elaboração e sublimação na fantasia e no jogo, na tentativa da criança de

buscar soluções adaptativas para os conflitos. Em relação às identificações verticais,

algumas vão representar o projeto materno, enquanto outras o paterno, além de que cada

filho será marcado pela árvore genealógica de uma forma diferente, pois cada um receberá

de forma pessoal o que lhe foi transmitido (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2011).
120

3.3 O Corpo: Vivência da Descontinuidade

O corpo é múltiplo e plural, não se restringindo a um único registro. O mesmo

ocorre também com as formas de subjetivação, inscritas que seriam essas em diversas

corporeidades. Teríamos, assim, diferentes territórios corporais, que se articulariam sempre

com diversas formas de subjetivação (Birman, 2001).

O corpo é, atualmente, cada vez mais concebido como objeto, quer seja pela

cultura, quer seja pelo discurso médico. Porém, todas as formas pelas quais um indivíduo

experiencia e conceitua seu próprio corpo são englobadas em sua imagem corporal.

Por, na maioria das vezes, deixar sua marca visível no corpo, a patologia remete a

essas mulheres uma situação da perda. Além disso, o corpo está intimamente relacionado à

questão da identidade, alvo de múltiplas e profundas significações pessoais, alterando a

imagem corporal destas mulheres, como também sua autoimagem.

Diversos fatores podem influenciar e alterar a imagem corporal de uma pessoa,

dentre os quais se pode destacar o surgimento de doenças. O diagnóstico da esclerose

múltipla ainda permanece estigmatizante e desperta o medo do desconhecido, da morte.

Essa doença, seu percurso sintomatológico e seu tratamento, geram um comprometimento

físico, emocional e social.

O momento pré-diagnóstico não diz respeito apenas ao momento de suspeita da

doença, mas abrange também o tipo de relação estabelecida por essas mulheres com o

próprio corpo ao longo de sua existência (Rossi & Santos, 2003). O corpo ideal feminino

tem, hoje, como modelo um corpo esbelto, magro, sem imperfeição, com leveza de

movimentos e sempre jovem (Marzano-Parisoli, 2004).

Cláudia colocou o cuidado que tem com o próprio corpo. Nunca o deixou de ter,

porém, devido aos comportamentos pautados no tratamento e indispensáveis a sua saúde, o


121

olhar e o cuidado com corpo se fazem mais indispensáveis, existindo o medo de

complicações.

(...) “não me entrego, é todo tempo fazendo massagem, fazendo isso, fazendo

aquilo, porque eu tenho medo de engordar”. Toma vários remédios muito fortes, seis

remédios por dia, fora a injeção. Todos esses remédios fazem-na reter líquido, mas “vou

tentando compensar, até porque eu sempre fui muito perfeccionista em relação ao meu

corpo, em relação à beleza, mas numa hora dessas você para e diz ‘gente isso não é nada,

eu quero tá viva, eu quero tá caminhando’, numa hora dessas você para pra pensar o quê

que vale a pena, eu tá bonitinha, magrinha, mas uma cadeira de rodas, ou eu tá gordinha,

mas caminhando (Cláudia).

A medicina mapeia e especializa a doença no corpo, contudo, a transformação

deste em matéria moldável não acarretará, necessariamente, na dicotomia cartesiana corpo-

mente, nem em uma total objetificação anatômica, pois o indivíduo como sujeito social

está imerso em sua corporeidade.

Este limiar, no qual o indivíduo ousa se transformar fisicamente, expurgar um mal

físico, ou negar um corpo que adoece, não pode ser entendido apenas como uma

manipulação do biológico, mas como atribuições culturais e experienciais. E,

simultaneamente à influência do pensamento biomédico sobre o modo pelo qual se deve

tratar o corpo e as doenças, há um limite para esta determinação. Este limite é o que prende

o sujeito a sua história, ao seu tempo, as suas experiências. É neste tempo ontológico, tanto

transcorrido no processo biológico como histórico, que o sujeito se localiza no limiar de

suas qualidades como sujeito e objeto, e que o prende a sua condição de ser dotado não

apenas de um corpo, mas de corporeidade (Greiner, 2006).


122

Em relação ao corpo, Cláudia também menciona uma dor nas pernas que dura vinte

e quatro horas, resultado da última vez que teve um surto.

“As minhas duas pernas são normais, não adianta eu fazer fisioterapia, não

adianta eu fazer nada, nem tomar remédio não passa, nenhum remédio passa, nem

morfina” A convivência com a dor já dura quatro anos e meio. A paciente já fez várias

intervenções no hospital, “vou pro centro cirúrgico, o médico bota um cateter na minha

coluna, pra ficar irradiando morfina direto na minha medula. As três ultimas vezes que eu

fiz isso não adiantou. Não passa mais, nem com morfina” (Cláudia).

Quando se fala em dor, a tendência é associá-la a um fenômeno neurofisiológico.

Admite-se, cada vez mais, que existam componentes psíquicos e sociais, na forma como se

sente e se vivencia a dor. Esta concepção, no entanto, implica a dor como uma experiência

corporal prévia, à qual se agregam significados psíquicos e culturais. Assim sendo, o social

constitui o corpo como realidade, a partir do significado que a ele é atribuído pela

coletividade. O corpo é “feito”, “produzido” em cultura e em sociedade (Greiner, 2006).

Nasio (2008) afirma não tratar das perturbações psicológicas que a dor acarreta, ou

seja, das repercussões da dor, mas “do fator psíquico que intervém na gênese de toda dor

corporal” (p. 69). De modo análogo à ocorrência psíquica, o social apresenta-se na

constituição do corpo, ali onde a dor se produz e se manifesta, mediante formas culturais.

Toda lesão dolorosa, na visão do autor, será percebida como uma lesão e uma dor

externa, porque o próprio corpo é percebido pelo eu como um invólucro que nos contém e

nos carrega, ou seja, como uma periferia ora externa (pele, mucosas), ora interna (órgãos

internos). Assim, toda lesão corporal será vivida pelo sujeito sofredor como uma ruptura

fronteiriça, exterior ao próprio eu (Nasio, 2008).


123

DA (DES)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE DOENTE AO

(RE)POSICIONAMENTO SUBJETIVO: UMA APOSTA CLÍNICA

A temática da pesquisa em questão trouxe indagações que foram suscitadas no

cotidiano da prática clínica, no contexto analítico, cujo objetivo foi investigar como

ocorrem as transformações subjetivas da mulher diante do seu acometimento pela

esclerose múltipla.

O uso do método clínico-qualitativo (Turato, 2003) da pesquisa mostrou-se

bastante adequado aos propósitos desta, porque pôde dar conta de tomar o discurso das

pacientes diante de sua experiência com o adoecimento, onde a perspectiva de dar voz ao

sujeito possibilitou uma forma peculiar de compreensão da subjetividade. Toda pesquisa

em psicanálise é uma pesquisa clínica, fazendo com que o analista-pesquisador dirija sua

escuta ao que se visa saber, pois o processo de produção dos conhecimentos adquiridos é

estabelecida através da escuta clínica (Albert & Elia, 2000; Cancina, 2008; Nasio, 2001).

A pesquisa em psicanálise abre espaço para a elaboração de uma obra inspirada

pela vivência clínica de alguns anos e implica em trabalhar conceitos teóricos, articular

ideias e passagens clínicas. Assim, não é uma área que pesquisa apenas “fatos”, apesar

destes ensinarem muito ao analista, mas que estes fatos estão materializados numa pessoa,

como que “engastados” nela (Mezan, 1998).

Para nossa construção do conhecimento, foram acompanhados dois casos clínicos,

onde foram gravados e posteriormente transcritos a cada término de sessão para a

construção do relato de caso clínico. Demarcando ser o relato clínico mais a reconstituição

ficcional do encontro clínico do que propriamente o reflexo fiel do fato concreto, Nasio

(2001) atribui o aspecto ficcional à escrita do analista-pesquisador, o qual seguimos dentro

dessa dissertação. Trata-se de uma história reformulada, e não de um acontecimento puro,


124

onde extraímos uma ficção de uma experiência verdadeira, real, se tratando da história do

doente e não o histórico da doença.

Abriu-se a possibilidade de se ouvirem os sujeitos, de desviar a atenção dos

achados clínicos patológicos para o acompanhamento do sofrimento em uma dimensão

subjetiva à vivência do adoecimento, onde as narrativas escritas e aqui desveladas sobre o

sujeito padecido, e não sobre a doença, seguiram uma ordem de surgimento dos temas,

conforme iam aparecendo nas sessões.

Seguindo os relatos dos casos clínicos, norteamos nosso referencial teórico, onde

fazemos uma reflexão acerca de algumas questões que envolvem o sujeito contemporâneo

a partir de uma compreensão biomédica e psicanalítica, enfatizando a experiência corpórea

de sua relação com o adoecimento.

O modelo biomédico é imposto como um saber sobre a doença e sobre o corpo. Vê

este como uma máquina complexa, com partes que se inter-relacionam, obedecendo a leis

natural e psicologicamente perfeitas. A forma imprecisa como este modelo lida com os

aspectos do adoecimento que escapam ao objetivismo da racionalidade científica moderna

é uma questão que merece ser problematizada no âmbito da Psicologia, sobretudo porque

concerne a sua prática cotidiana deparar com o sofrimento e com a singularidade humana

(Koifman, 2001;).

A medicina ocidental contemporânea é hoje denominada, por muitos autores, de

biomedicina, dada sua estreita vinculação com disciplinas oriundas das ciências biológicas.

O referencial da clínica médica encontra-se na correlação entre doença e lesão. O médico

tem como objetivo identificar a doença e sua causa, e entende que, ao remover a causa,

ocorre a cura da doença (Guedes, Nogueira & Camargo Jr., 2006, 2008). A díade doença-

lesão aparece tão fortemente nas representações do saber médico que se estabeleceu um

conjunto de proposições implícitas norteadoras à prática do médico, denominado por


125

Camargo Jr. (2003) de “teoria das doenças”. Segundo esse autor, as doenças são vistas

como coisas, com existência concreta, fixa e imutável, e se expressam através de um

conjunto de sinais e sintomas que são manifestações de lesões, e que, por sua vez, devem

ser buscadas no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta.

Não parece haver espaço, portanto, dentro dessa estrutura, para as questões sociais,

psicológicas e para as dimensões comportamentais das doenças.

O método clínico tradicional, que consiste em o médico ouvir o paciente apresentar

seus sintomas e sua evolução e, posteriormente, investigar seus sinais físicos, tem sido

relegado em detrimento da tecnologia diagnóstica. Isso resulta num afastamento do

método subjetivo de diagnóstico - que envolveria a subjetividade dos sintomas do paciente

e a interpretação dos sinais físicos por parte do médico - e na ênfase em métodos objetivos.

Desse modo, o levantamento e a mensuração dos fenômenos patológicos podem ser

identificados através de recursos como tomografias, exames de sangue, radiografias, entre

outros (Helman, 2003).

A partir disso, um sofrimento somente é tido como legítimo quando apresenta uma

concretude em regularidades orgânicas classificáveis a partir de critérios anatômicos,

fisiológicos, celulares e biomoleculares. Desse modo, aquilo que possui legitimidade para

o paciente não corresponde ao que é legítimo para o médico. O primeiro remete a suas

sensações subjetivas, e o segundo transforma esse discurso em patologia inserida numa

nosologia médica (Helman, 2003).

Paradoxalmente, ignora-se aquilo que deveria ser a categoria central que nortearia a

prática médica: o médico, em última instância, deveria trabalhar sabendo que lida com um

paciente que sofre e que esta experiência envolve uma série de questões que escapam da

dimensão biológica, pois se referem a questões psicológicas, culturais e sociais. É

frequente encontrarmos referências à necessidade de uma abordagem biopsicossocial, mas


126

ainda existe uma total primazia do campo biológico sobre os demais. Assim, a medicina

que se constitui a partir desse paradigma, é uma medicina do corpo tomado como

orgânico, das lesões e das doenças (Guedes, Nogueira & Camargo Jr., 2006, 2008;

Helman, 2003; Koifman, 2001).

Enquanto o corpo biológico obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e

dos sistemas funcionais, constituindo um todo em funcionamento, isto é um organismo, o

corpo psicanalítico obedece às leis do desejo inconsciente constituindo um todo em

funcionamento coerente com a história do sujeito. Birman (2005) chama a atenção para o

discurso naturalista da medicina que legitima as práticas de medicalização do espaço

social, silenciando as dimensões simbólica, ética e política do processo saúde-doença.

Segundo o autor, a saúde se inscreve num corpo que é simbólico, marcado pela linguagem,

pelos códigos culturais, o que impede sua representação como uma máquina regida por

processos bioquímicos e imunológicos.

Deve-se reconhecer que quando a psicanálise se vê enredada com o adoecer do

corpo, a tendência é realizar uma ampliação de seu campo clínico, resultando,

necessariamente, em uma ampliação de seu campo teórico. No entanto, se a ampliação do

campo teórico permitiu a inclusão do corpo, esse corpo de que trata a psicanálise num

momento inicial é, prioritariamente, o corpo doente. O corpo se faz presente pelo negativo,

constituindo um todo em funcionamento coerente com a história do sujeito (Fernandes,

2002).

Desde os escritos pré-psicanalíticos, já é possível ver Freud subvertendo o corpo

biológico. A concepção freudiana do corpo inaugura uma modalidade corporal diferente

daquela que vigorava em sua época. Freud (1893/1996, 1894/1996) postula, desde o início

de seu trabalho, um corpo erotizado, erogenizado, que é também auto erótico e pulsional.

Ele fazia isto por meio de seus estudos sobre a histeria. É nos sintomas histéricos que se
127

pôde observar o surgimento de uma nova forma de se olhar para o corpo, diferente da

vigente até então.

A questão do corpo foi circunscrita orginalmente por Freud (1905a/1996) mediante

o conceito de pulsão, definida como sendo o “conceito-limite” entre o somático e o

psíquico. O corpo pulsional não se reduz seja ao corpo simbólico (representado), seja ao

corpo biológico, sem, no entanto, excluí-los. Digamos que a complexidade da questão não

comporta apenas as categorias anteriormente pensadas através de uma lógica reducionista

e excludente (corpo-simbólico ou corpo-biológico), orientando-nos para uma síntese que

se expressa no conceito de “corpo pulsional”. Se o corpo pulsional remete a uma dispersão

da pulsão, o corpo narcísico se refere a uma unidade do corpo realizada pela presença

significativa do outro (Freud, 1914/1996).

O corpo, na sua concretude material, e vital é solicitado nas novas formas de

adoecimento. O organismo vem à tona nas sintomatologias denotando a derrocada da

dimensão erógena do corpo. Não é à toa que a incidência dos fenômenos psicossomáticos

(FPS) crescem a cada dia, denunciando a situação de um corpo que volta à condição de

organismo, apontando para os sintomas como marcadamente desencorpados, tendo em

vista a especificidade erógena e pulsional com que Freud e Lacan delimitaram o corpo

para a psicanálise (Fonseca, 2007; Mello Filho & Burd, 2010, Teixeira, 2006a; Valas,

1990).

Os FPS constituem uma expressão significativa da clínica psicológica na

atualidade, mostrando as facetas dos modos de subjetivação postos em cena do sofrimento

subjetivo. Ele expõe modos de expressão do sofrimento psíquico no corpo organismo, por

alterações funcionais ou lesionais (Teixeira, 2006a).

O psicanalista deve intervir e dar conta daquilo que é esquecido do corpo pelas

ciências médicas, que ao corpo retorna como fenômeno, para demarcar o paciente em sua
128

posição de sujeito que caminha em busca de novas formas de ressignificação, de

implicação e reconhecimento de si (Lacan, 1966).

Discutir o corpo, a partir das considerações psicanalíticas, é assumir uma posição

de não-dualismo, pois ela o percebe mergulhado em uma dinamicidade e em uma

complexidade não discerníveis, elegendo-o como fundamental na constituição subjetiva e

social do humano. Por meio de seu corpo, de suas relações e das sensações que o atingem,

o sujeito delimita a sua história de vida, a sua singularidade.

A prática clínica voltada para o arcabouço psicanalítico (re)posiciona o lugar do

sujeito que padece. A (re)construção envolve reconhecer os ditos, ainda velados, do sujeito

que sofre, e também (re)ver a demanda que é lançada pelo saber biomédico em busca de

respostas e soluções. Por isso, destacamos a importância da interlocução entre a

psicanálise e a medicina para se lograr êxito na abordagem do adoecimento no âmbito das

doenças degenerativas, ressaltando que tal objetivo somente será alcançado a partir da

delimitação clara entre seus os campos epistemológicos. O presente estudo buscou

estabelecer essa delimitação, bem como contribuir para o entendimento da articulação

subjetiva do adoecimento físico, que determina para o paciente as vicissitudes de seu

sofrimento.

As primeiras narrativas sobre a esclerose múltipla, com base nas falas das minhas

pacientes, estavam fragmentadas apenas no contexto biomédico vigente, só então o espaço

concedido à pesquisa e às descobertas deste campo médico foi invadido pela voz daqueles

que começaram a expor o sofrimento físico e psicológico. Afinal, trata-se de um

acometimento com reflexos sociais que suscitava reações, evocando atitudes, crenças,

valores pertinentes aos sujeitos adoecidos. Portanto, é preciso reunir esforços numa busca

de entendimento da realidade da doença - o que, consequentemente, ultrapassa o limite das

disciplinas médicas.
129

Além das questões relacionadas ao adoecimento orgânico e sua relação com a

corporeidade, outras questões suscitaram ao longo da escuta clínica com as pacientes do

estudo. Questões relacionadas à história de vida entrelaçada com a doença, enfatizando

aspectos como a família, seus relacionamentos afetivos e a transmissão psíquica

transgeracional; a perca dos papeis sociais – papel de mãe, cuidadora, profissional, esposa

– que deu lugar a um novo reposicionamento desses sujeitos enquanto enferma; as

questões de morte e luto frente à possibilidade de finitude; além das implicações desses

sujeitos com seu adoecimento, enraizado nas relações com a medicina.

A doença, particularmente uma doença degenerativa como a esclerose múltipla,

provoca no sujeito que padece sentimentos de incerteza, insegurança e medo, que se

traduzem nas suas emoções, nas relações interpessoais e profissionais e mesmo na sua vida

futura. Esta continua a revelar-se uma doença muito temida, não só por se tratar de uma

patologia ameaçadora da vida do indivíduo, rodeada de complexidade, mitos e crenças,

mas também porque o processo terapêutico passa muitas vezes por procedimentos com

repercussões na autoimagem, na autoestima, estilos de vida, bem-estar físico, como tal na

qualidade de vida (Ribeiro, 2001).

Observamos nos discursos das pacientes, o temor diante do imprevisível, da

incerteza da dependência e da possibilidade de finitude. O movimento de se lançar para

uma perspectiva de futuro perde sua força, propiciando a vivência de um trauma que

suscita perda de sentido, paralisação e desorganização corporal (Kerbauy, 2002). Para elas,

a doença alterou seu estado de “normalidade” anterior ao adoecimento, que lhe permitia ter

uma margem maior de autonomia, fazer as coisas sem depender dos outros ou sem estar

impossibilitada diante da dor ou da dificuldade de locomoção, continuar lutando por uma

sonhada perspectiva de envelhecer a contento, etc.


130

Os significados da doença representaram mudanças na norma de vida. Para as

pacientes, a experiência de adoecimento significou alteração de sua normalidade e a

necessidade da constituição de novas formas de conviver com as limitações impostas pela

patologia, ocorrendo mudanças importantes em suas vidas para adaptar-se à nova situação,

exigindo a constituição de um novo modo de identificação.

Nos discursos enraizados nos parâmetros da biomedicina, as pacientes assumiram

uma condição de doente, adotando o papel de enfermo. Assim, a enfermidade, portanto,

torna-se não somente um estado de sofrimento, mas também uma realidade social.

Observamos dentro nos discursos, a evocação de uma mudança no comportamento,

em relação ao seu (re)posicionamento para com as outras pessoas. Como forma de lidar

com a nova situação que o adoecimento impõe, identificam-se com uma posição de

suposto saber, tomando o lugar de professora, cuidadora, auxiliadora de outras pessoas que

estão diagnosticadas com a esclerose múltipla e não tem muito conhecimento sobre a

doença, como um modo de superação. Outra colocação identitária evocada nos discursos

foi a questão da feminilidade. O foco esteve no receio de não conseguir desempenhar

adequadamente o seu papel de mãe, como também na necessidade de se perceber nesse

papel ultrapassando as recomendações médicas, na vivência de desejar engravidar e ser

mãe.

A identidade é composta por uma configuração de elementos identitários ligados

aos grupos aos quais participa um indivíduo; uma combinatória de elementos que ele

mobiliza em função das circunstâncias. Trata-se então de gerir essa diversidade sem se ser

dividido por ela. Num processo biográfico movente, o indivíduo deve recompor

permanentemente a sua identidade (Alves, 1993; Goffman, 1988).

O impacto de uma doença cujo estigma social repercute em incertezas quanto ao

prognóstico leva as pessoas a refletirem sobre a finitude humana, tanto a própria quanto a
131

do outro. Enquanto percebe-se saudável, as relações interpessoais são, muitas vezes,

banalizadas e tidas como estáveis e certas, como pode acontecer entre os membros de uma

família. Diante da possibilidade da perda, as relações passam a ser pensadas e, muitas

vezes, revisadas no sentido de reaproximação e de ver o outro além de si mesmo, nas

formas que podem contribuir para o seu bem estar. Isto pôde ser identificado nos discursos

sobre as relações entre as pacientes e seus maridos e filhos.

Nessa investigação sobre a escuta do adoecimento, integrou-se a temática da

vinculação transgeracional, onde, nos casos relatados, pudemos observar a repetição de

patologias e sintomas que evocaram uma discussão de questões que dizem respeito à

transmissão psíquica transgeracional, o lugar do corpo nessa transmissão e a repetição

como manifestação de um conteúdo velado. O trabalho da transmissão psíquica diante do

adoecimento mostra-se como um caminho possível para a predisposição e para o

desenvolvimento de doenças no grupo familiar (Filgueiras et al, 2007).

Não se trata apenas de passar conteúdos, mas de estabelecer uma cadeia que marca

lugares. Isto é, uma continuidade que não se dá só num eixo vertical da geração antiga para

a mais nova, mas no plano horizontal, já que pudemos observar a ocorrência na posição

ocupada pelo(a) filho(a) frente à mãe, para o qual a experiência seria transmitida e

compartilhada.

Assim, entendemos que a família é um sistema interligado e que cada um de seus

membros tem influência sobre o outro, sendo que o adoecimento de um dos integrantes,

neste caso da mãe/esposa, tem reflexos no comportamento e no estado emocional e até

biológico dos demais.

O estudo e a compreensão da experiência e das transformações subjetivas do

adoecimento levaram-nos a refletir sobre a atuação profissional, principalmente diante da

clínica psicológica, visto que, ao construir uma nova visão sobre o (re)posicionamento do
132

sujeito sofrente, passa-se a encarar a doença como uma experiência que envolve o contexto

psíquico e social e cultural, e não apenas como um conjunto de sinais e sintomas

biologicamente definidos e observados; vale dizer, como um processo subjetivo no qual a

cultura se destaca.

A inclusão da dimensão subjetiva no cuidado é uma necessidade atual para que o

profissional da área da saúde estabeleça uma relação efetiva com seus pacientes. Há que se

substituir um cuidado centrado na doença para um cuidado centrado no sujeito. O

profissional da área da saúde ainda apresenta atitudes normativas e prescritivas, havendo a

necessidade de se ampliar o conceito de cuidar com vistas à obtenção da promoção da

saúde sem, no entanto, recair na dicotomia preventivo/curativo, integral/fragmentado e

atender as necessidades do sujeito (Sfez, 1995).

Destacamos a importância da interlocução entre a psicanálise e a medicina para se

lograr êxito na abordagem do adoecimento, ressaltando que tal objetivo somente será

alcançado a partir da delimitação clara entre seus campos epistemológicos. A presente

dissertação buscou estabelecer essa delimitação, bem como contribuir para o entendimento

da articulação subjetiva do adoecer físico, que determina para o paciente as vicissitudes de

seu sofrimento.

Enquanto campo de conhecimento, a psicanálise tem contribuído também para

explicar fenômenos que ocorrem fora do espaço da situação dual de análise, voltando-se

para o cotidiano da sociedade em geral. Birman (1994, p.7) desenvolve esse pensamento,

ressaltando a possibilidade do “estabelecimento de um diálogo interdisciplinar da

psicanálise com algumas das ciências humanas.” A interlocução pode ser fecunda,

operando-se nas fronteiras da psicanálise com outros saberes que abordam temáticas

comuns e similares, saindo do isolamento para o diálogo.


133

Esta incursão da psicanálise para além das fronteiras tradicionais de seu campo, de

acordo com Birman (1994), só faz sentido se o movimento de saída for acompanhado, em

contrapartida, de um movimento de retorno. Reconhece, assim, o limite epistemológico

que define um campo e a possibilidade de aumento da consistência do mesmo a partir do

regresso de outros campos. Acrescenta que estas explorações possibilitam o aparecimento

do novo e inédito:

É o problema escolhido pelos diferentes saberes que será o canal para o diálogo entre as

disciplinas, enquanto essas impõem a construção de problemáticas pela mediação de seus

conceitos específicos. Com isso, pode-se realizar a produção de conhecimento, a constituição

de positividades inéditas e elaboração de novos conceitos (Birman, 1994, p. 9).

Pode-se assim, permitir a convivência da diversidade, na pluralidade de posições

teórico-clínicas e sociais que constituem o campo. É o fenômeno do sujeito o problema

comum entre as diversas disciplinas. A partir da clínica psicanalítica, cria-se um

dispositivo para dar conta de certas necessidades de natureza individual. Pode-se utilizar,

também, da psicanálise como um dispositivo a serviço do sujeito coletivo. De modo que,

nesse âmbito possa-se refletir sobre as negações, recusas e recalques inerentes e

subjacentes às doenças crônicas degenerativas, possibilitando o registro do que se teme e

se oculta (Birman, 1994).

Especificamente no campo da psicologia da saúde, a postura de ampliar o foco da

atenção quando se planeja e se reflete sobre uma ação de intervenção implica sustentar a

postura do olhar da clínica ampliada, incluindo dados contextuais e que vão além do

paciente e de sua doença e ou sua queixa. Quando se concorda com este olhar se está

concomitantemente aceitando a realidade biomédica como multifacetada e complexa.


134

Nesse sentido, ressalta-se que proceder à revisão e compreensão de parâmetros de

atuação sob o olhar da complexidade implica necessariamente, para o profissional,

significar e adaptar sua prática a fim de propiciar uma escuta contextualizada, cujo

pressuposto, segundo Moré (2006), respalda-se na necessidade de compreender o contexto

como um campo de possibilidades de sentido e significação das nossas práticas, e escuta

como a capacidade de considerar o outro “na sua alteridade, independente do lugar” (p.22).

Assim, desenvolver a posição de escuta contextualizada, que considera e pensa os

sujeitos em contextos (Moré, 2006), permite o desenvolvimento da postura da clínica

ampliada, entendida como uma leitura da realidade que implica, necessariamente, a

presença de saberes que vão além daqueles que guiam tradicionalmente a formação do

psicólogo e a busca constante do protagonismo de todos os envolvidos numa situação de

intervenção.

Feuerwerker e Cecílio (2007) apontam a relevância dos profissionais de saúde

ampliarem suas capacidades de diálogo com as diversas compreensões de saúde e doença.

A psicologia insere-se nesse meio como mediadora dessa nova relação, buscando dirigir os

olhares para a compreensão do universo subjetivo do sujeito em adoecimento.

A importância da intervenção psicológica em trabalhos de atenção à saúde,

enfocando o papel do psicólogo como agente transformador e potencializador de ações que

buscam saúde para aqueles em sofrimento psíquico, enfatiza a necessidade de uma equipe

integrada para oferecer assistência integral à pessoa, principalmente àqueles que padecem

com as doenças crônicas degenerativas, como a esclerose múltipla, e que há carência

acerta de um conhecimento mais amplo de tal patologia, ainda mistificada.

As atividades desenvolvidas dentro da Associação Piauiense dos Portadores de

Esclerose Múltipla (APPEM), possibilita reconhecer a complexidade de todos os aspectos

envolvidos na reabilitação integral e na busca pela qualidade de vida das pessoas com essa
135

doença. No decorrer de toda execução das atividades propostas, a equipe, principalmente o

psicólogo, é colocada em importante posição de agente educador e modificador. Em cada

palestra, cada visita domiciliar, cada grupo, o cuidado com a escolha do tema e a forma

que é repassada aos portadores e seus familiares, visa que os mesmos ganhem

responsabilidades de mudança dentro de sua nova condição de doente.

O objetivo das considerações sobre a prática clínica é auxiliar no campo da

intervenção psicológica no contexto da saúde através da possibilidade concreta de gerar

condições para todos os envolvidos no problema-queixa, que contemplem a superação do

olhar centrado na doença, através do desenvolvimento da postura da clínica ampliada;

como também na busca de uma escuta contextualizada, na promoção da saúde tanto na

instituição enraizada no modelo biomédico como fora e além dela.

Uma interlocução como a que se propõe neste estudo é necessária, no sentido de

conhecer as contribuições e possibilidades das interfaces dos campos envolvidos, quanto

para a comunidade científica que passa a ter acesso a um banco de informações

disponíveis e com os conteúdos articulados entre si. A procura é por ligações entre os

pensadores do objeto em estudo que possam ser compartilhadas, com a expectativa de se

deparar com uma diversidade de percursos e caminhos que permitam a possibilidade de

diálogo e interlocução favorável à construção de uma epistemologia sobre o assunto,

podendo, daí, advirem novas soluções para esta demanda.

Tais soluções também podem vir mediante o processo de educação em saúde. Ao

longo do tempo, a educação em saúde trouxe em sua prática uma maior influência das

ações médicas, focalizada apenas na parte doente se esquecendo da ideia que o indivíduo é

um todo, precisando ser atendida e mudada para uma perspectiva para uma área temática

integrando a ciência social e as ciências da saúde envolvendo profissionais com formações

distintas, num trabalho interdisciplinar, complementar e cooperativo. Educação em saúde


136

pressupõe uma combinação de oportunidades que favoreçam a manutenção da saúde e sua

promoção, não entendida somente como transmissão de conteúdos, mas também como a

adoção de práticas educativas que busquem a autonomia dos sujeitos na condução de sua

vida (Figueiredo, 2003).

Hoje as ações educativas em saúde constituem-se em um dos instrumentos

utilizados pelos profissionais da saúde, num contexto abrangente tanto no processo de

trabalho individual e coletivo, cuja preocupação vai do corpo individual ao controle da

doença entendida como fenômeno coletivo (Figueiredo, 2003).

A construção do conhecimento, em relação à promoção da saúde, é um processo

que precisa ser realizado de forma constante tendo a participação individual e coletiva, na

esfera familiar, no grupo de trabalho, nos grupos sociais, nas comunidades ou até mesmo

nas organizações sociais (Figueiredo, 2003).

Outras intervenções poderiam surgir no campo da assistência social, na

possibilidade de criar oportunidades, e promover espaços institucionais, onde os sujeitos

acometidos pelas doenças degenerativas tenham seu direito de trabalho. Com a garantia

resguardada de tratamento e de uma aposentadoria, muitas vezes esses sujeitos, por

estarem incapacitados devido a patologia, perdem a oportunidade de ter reconhecimento

social. Nesse sentido, as ações de assistência social, poderiam trabalhar no sentido de

proporcionar espaços de reconhecimento que exclua a identidade de invalidez.


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149

ANEXOS
150

ANEXO I
Autorização da Associação Piauiense dos Portadores de Esclerose Múltipla (APPEM)
151

ANEXO II
Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza
(COÉTICA-UNIFOR)
152

ANEXO III
Declaração revisão ortográfica e gramatical.
153

APÊNDICE
154

APÊNDICE I
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

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