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| MITOS DE CRIACAO Marie-Louise von Franz PAULUS re a tet BARN SE SS La ee ee R.A Be Colegao AMOR E PSIQUE © feminino + Aborto — perda e renovagao, E, Pattis + As deusas e a mulher, J. S. Bolen «A feminilidade consciente — entrevistas ‘com Marion Woodman, M. Woodman + Ajoia na ferida, R. E. Rothenberg ~/A'mulher moderna em busca da alma: Guia junguiane do mundo visivel e do mundo invisivel, J. Singer + Aprostitula sagrada, N. Q. Corbett + O medo do feminino, E. Neumann + Os mistérios da mulher, Esther Harding + Variagdes sobre o tema mulher, J. Bonaventure © masculino + Curando a alma masculina, G, Jackson «No meio da vida: Uma perspectiva Jungul- ana, Stein 7 + O pai e a psique, AP. Lima Filho + Os deuses e o homem, J. S. Bolen + Sob a sombra de Satumo, J. Hollis Psicologia e religiao + A doenga que somos nds, J. P. Dourley = Nesia jornada que chamamos vida, J. Hollis + Uma busca interior em psicologia e religiao, J. Hillman Sonhos + Aprendendo com os sonhos, M. R. Galllbach ~ Breve curso sobre 0s sonhos, R. Bosnak + Os sonhos ¢ a cura da alma, J. A. Santord Maturidade e envelhecimento + A passagem do meio, James Hollis, + No meio da vida, M. Stein Contos de fadas ¢ histérias mitolégicas « Aansiedade o formas de lidar com ela nos contos de fadas, V. Kast « A individuagdo nos contos de fada, Marie- Louise von Franz « A interpretagao dos contos de fada, Marie~ Louise von Franz + A psique japonesa: grandes temas e con- tos de fadas japoneses, H. Kawai «A sombra e 0 mal nos conios de fada, M. -L. von Franz + Mitos de criagao, M-L. von Franz + Mitologemas: encarnagdes co mundo invisivel, J. Hollis + 0 Gato, M.-L. von Franz + O que conta 0 conto?, Jette Bonaventure O puer + O livro do Puer, ensaios sobre o arquétipo do Puer Aeternus, J. Hilman + Puer aeternus, M.-L. von Franz Relacionamentos e parcerias + Amar, trair, A. Carotenuto + Eros e phatos, A. Carotenuto + Nao sou mais a mulher com quem vocé se casou, A. B. Filenz + No caminho para as nlipcias, L. S. Leonard + Os parceiros invisiveis: O masculino ¢ 0 feminino, J. A. Sanford + O Projeto Eden — a busca do outro magico, J. Hollis Sombra + Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. Sanford + Os pantanais da alma, J. Hollis + Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann © autoconhecimento e a dimensao social + MeditagGes sobre os 22 arcanos maiores do tard, andnimo + Encontros de psicologia analitica, Maria Elci Spaccaquerche (org.) Psicoterapla, imagens e técnicas psico- terdpicas + Psicoterapia, M.-L. von Franz + Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz + A terapia do jogo de areia, R. Ammann + O mundo secreto dos desenhos: uma abordagem junguiana da cura pela arts, G.M. Furth + No espelho de Psique, Francesco Don- francesco + O abuso do poder na psicoterapia @ na medicina, servigo social, sacerdécio e magistério, A. G. Craig + Ciéncia da alma: uma perspectiva jungui- ana, E. F. Edinger + Saudades do Parafso: perspeciivas psi- or : i + O mistério da Coniuncti ca da individualizagao, E. F. Edinger + Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporénea com criangas: Padrées basicos de intercémbio emocional, Mario Jacoby Corpo e a dimensao fislopsiquica + Dionisio no exilio: Sobre a repressao da ‘emog&o @ do corpo, R. L. Pedraza + Corpo poético: O movimento expressivo em C.G. Jung eR. Laban + Ajoia na ferida ~ 0 corpo expressa as necessidades da psique @ oferece um caminho para a transformagao, R. E. Rothemberg MARIE-LOUISE VON FRANZ MITOS DE CRIACAO PAULUS Ao (CIP) de Catalogagao na Publicagao ( rasileira do Livro, SP, Brasil) Internacional: ee (Camara Brasil ie 1915- ea en Her rego Maria Silvia Mourdo. fi iagéio / Marie-Louise von Franz; t ri Milos de cage efio Paulus 2008 — (Amor e psique) Titulo original: Creation myths ISBN $70-85.349-2056-8 4. Criagéo 2. Mito - Aspectos psiool6gices |. Titulo. I Série CDD-291.24019 03-0861 tdlogo sistematico: trates aa .ctos psicolégicos 291 24019 1. Mitos de criagao : Aspet Jo AMOR e PSIQUE coordenada por Coleco A gon Bonaventure Dra. Maria Elci Spaccaquerche Titulo original Creation myths © 1972, 1995 Marie-Louise von Franz ISBN 0-87773-528-X Tradugdo Maria Silvia Mouro Revisio Valéria Righe Dias Editoragao Linotec Papel Chamois Fine Dunas 70g/m* Impressao e acabamento pres PAULU: 2° edigdo, 2011 © PAULUS - 2003 __ : - o (Brasil) uz, 229 - 04117-0901 Sao Paul — Franc ste 6879-9627 = Tel, (11) 5087-9700 \wwiw.paulus.com.br « editorial @paulus.com.br ISBN 978-85-349-2056-8 INTRODUGAO A COLECAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: 0 seu préprio espaco interior torna-se um lugar novo de experiéncia. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagdes psicopatologicas As nossas fe- ridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela 6. Deste modo que poderemos reconhecer que estas feridas e estes so- frimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realizacdo de nossa totalidade. Assim a nossa propria vida carrega em sium sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, nao é 0 espiritual que aparece primei- ro, mas 0 psiquico, e depois o espiritual. E a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen- tido, o que significa que a psicologia pode de novo esten- der a mo para a teologia. Esta perspectiva psicolégica nova 6 fruto do esforco para libertar a alma da dominagao da psicopatologia, do espfrito analitico e do psicologismo, para que volte a si mesma, a sua propria originalidade. Ela nasceu de rene xoes durante a pratica psicoterapica, 2 ete Con ea lidade da psicoterapia. renovar o modelo e a fina e da ps He Hee isa ua existéncia cotidiana, nova viséo do homem na s ees Gueey texto cultural, abrindo tempo, e dentro de seu contexto Cu i i entes de nossa existéncia para podermos reen odera alimentar todos aque- ais alma sdes difer : ee alma. : aaae Be caigels a necessidade de inserir m: em todas as atividades humanas. A finalidade da presente colegao ¢ precisamente Toes tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma cores sacerdotes capazes de entender novamente a linguag da alma”, como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure PREFACIO O texto deste volume decorre de palestras apresen- (adas no C. G. Jung Institute, no semestre de inverno de 1961-62, conforme as transcrigdes de Una Thomas. Andrea Dykes preparou um indice que, para esta edicao, foi revi- sado por Austin Delaney. Quero agradecer a Dra. Vivienne Mackrell, por sua ajuda na revisdo desta edigdo, por seu valioso apoio, e a Sra. Allison Kappes, que efetuou a comparacdo com a edi- ¢ao em alem4o e a digitac&io. Quero também agradecer Kendra Crossen da Shambala Publications, por sua pa- ciéneia e cooperagao. Meus agradecimentos também vao para Princeton University Press, pelas citagdes extraidas do Collected Works of C. G. Jung (Bollingen Series XX), traduzidas para o inglés por R. F. C. Hull e editadas por H. Read, M. Fordham, G. Adler e William McGuire, e pelas citagdes tiradas de Aurora Consurgens; A Document Attributed to Thomas Aquinas on the Problem of Opposites in Alchemy, de Marie-Louise von Franz, traduzido para o inglés por R. F.C. Hull e A. S. B. Glover; para Pantheon Books, de Nova York, pelas citagées de Mircea Eliade em The Myth of the Eternal Return (Bollingen Series XLV), 1954; para o Museum of Navajo Ceremonial Art, de Santa Fé, Novo iL s do Navajo Creation ee ea os registros de Mary C. eelwri- ir era ioie anucen, de renee, pelas citagées che obra de cn Arthur Grimble, A Pattern of Islands, Lee H. Schuman, de Nova Iorque, pelas citagoes Sa ae The Sacred Scriptures of the Japanese, de or eed 1952; e para Doubleday, pelas citagées extrat ae main ducao de Isobel Hutchinson para Festens Gave Eagle’s Gift), de Knud Rasmussen, 1932. México, pelas cttagoe Capitulo 1 O MITO DE CRIACAO Neste livro, tentarei interpretar os motivos que ocor- rom freqiientemente nos mitos de criagdéo. Os mitos de criagdo pertencem a uma classe diferente dos outros mi- los — por exemplo, os mitos dos herdéis ou os contos de fudas — pois, quando sao narrados sempre existe uma . certa solenidade que lhes confere uma importancia cen- (ral; eles transmitem um estado de Aanimo que deixa im- plicita a mensagem de que o que esta sendo dito refere-se aos padrées basicos da existéncia, a algo mais do que o que esta contido nos outros mitos. Portanto, pode-se di- ver que, no que tange aos sentimentos e ao tom emocional que os acompanha, os mitos de criagdo sAo os mais pro- fundos e importantes de todos. Em muitas religides pri- mitivas, narrar 0 mito de criacdo estabelece um ensina- mento essencial no rito de iniciagéo. O mito 6 contado para os jovens iniciados como a parte mais importante da tra- digéo tribal. De muitas outras maneiras também, como veremos mais adiante, os mitos de criacéo referem-se aos problemas mais bdsicos da vida humana, pois dizem res- peito ao significado final, nao s6 de nossa prépria exis- (éncia, mas da existéncia do cosmo inteiro. Como a origem da natureza e da existéncia humana 6 para nés um completo mistério, o inconsciente produziu muitos modelos desse evento. A mesma coisa acontece 9 onde quer que a mente humana se aproxime dos limites do desconhecido. Se, por exemplo, vocé olhar os mapas da antigtiidade, vera que a Grécia aparece mais 0u menos no centro do mapa mas, nas bordas, as coisas tornam-se um pouco distorcidas: a parte superior da Iugoslavia in- clina-se para o alto da Italia e, em seguida, no final de uma regiao conhecida, aparece simplesmente um dese- nho do urdboro, a serpente que come 0 proprio rabo e que, nos mapas antigos, representa 0 oceano. A guisa de deco- ragao, nos cantos dos mapas sao colocadas figuras de ani- mais ou monstros, ou dos quatro ventos. Na Idade Média, a area do mundo conhecido era sempre mostrada no cen- tro, cercada por simbolos abrangentes e, 4s vezes, inclu- sive figuras demoniacas, 0s quatro ventos sopravam na diregao do centro, na forma de cabecga com bocas que so- pravam ou algo semelhante. Esses mapas demonstram ad oculos que, onde quer que a realidade conhecida aca- be, ou seja, quando tocamos a fimbria do desconhecido, af projetamos uma imagem arquetipica. # o mesmo que acontece nos grdficos astronédmicos medievais. Na Idade Média, as pessoas desenhavam to- das as constelagdes que conheciam e, fora delas, 0 cosmo era rodeado pela serpente zodiacal, aquela na qual esta- yam todos os signos do zodiaco; além dela, estendia-se 0 desconhecido. Novamente temos a serpente que morde a prépria cauda, 0 motivo do urdboro, pois esse era o limite do conhecimento consciente do homem de entao. No pe- riodo final da antigiiidade, os primérdios da quimica mos- tram que as pessoas também tinham um certo conheci- mento dos elementos e um limitado conhecimento técni- co, mas, quando era atingido o fim dos fatos conhecidos, eles novamente projetavam essa imagem arquetipica, 0 simbolo do uréboro, para caracterizar a matéria desco- nhecida. Na alquimia, era 0 simbolo da prima materia, ou seja, da matéria original do mundo. A maior parte das indagagoes sobre a origem e a subs- tancia do nosso cosmo ainda nao tiveram resposta; apesar 10 ; lo progresso dos instrumentos técnicos, continuam existindo Pes es desconhecidos. Ha modelos arquetipicos e projecées da ciéncia moderna que discutirei mais adiante, mas conti nuamos sendo confrontados por fatos completamente int: = Kuntes e por teorias contraditérias. Outras civilizagoes ndo foram menos ingénuas que nés, pois também catrart no b raco do desconhecimento e, quando confrontadas por a mistério, projetaram simbolos mitolégicos dos canie: ie oulras coisas, nasceram os mitos de criacdo. a Li. a explicar 0 que significa uma projecdo, gostaria at amar sua aten¢ao para a defini¢do de projecdo apre- sentada por Jung. HA inimeras evidéncias atestandoy © processo da projecao nao foi realmente compreendide, ¢ ue sempre da margem a toda espécie de equivocos de interpretagao. Ao final de Ti, icologi i nia divin e Tipos Psicoldgicos, Jung diz em Projecéo signi, ca a expulsdo de um contetido subjetivo para um objeto; é 0 oposto de introjecdo. Nesse senti- do, é um projeto de dissimilacgao (v. assimilagao) por meee do qual um contetido subjetivo se torna alienado 0 sujetto e, por assim dizer, é incorporado ao objeto. O sujeito se livra de contetidos dolorosos, inconipattvets ao projeta-los, assim como de valores positivos que, por um Ono ou outro — por exemplo, a autodepreciagéo — lhe sao inacessiveis. [Agora, a sentenga que é impor- tante para nos] A projecao resulta da identidade ar- caica entre sujeito e objeto, mas sé 6 corretamente cha- mada dessa maneira quando a necessidade de dissol- ver a identidade com.o objeto j4 se manifestou. Ess: necessidade aparece quando a identidade se Pn i fator de perturbagao, quer dizer, quando a auséncia di contetido projetado é um obstdculo a adaptagdo, eo te. colhimento para dentro do sujeito se tornou désejauel? “G. G. Jung, Collected Works (Pri ba , aI neeton, NJ: Princeton Uni 69), vol. 6, § 783. [digo em portugués, Obras Completas « Zee on 11 As vezes, usamos o termo projegao quando falamos das sociedades primitivas, para dizer que seus mitos e deuses so projecdes de imagens arquetipicas. Isso causa confusdo porque, na sociedade em que esses deuses ainda estado psicologicamente vivos, nado se tornou manifesta a necessidade da retirada da projecdo. Portanto, ainda pre- valece um estado de identidade arcaica. E sé porque nds nao acreditamos, por exemplo, nos deuses da tribo Shilluk do alto Nilo que podemos falar agora de projecdo; mas essa 6 uma aplicacio indireta do termo. Freqiientemente discutimos com os etnélogos que dizem que isso nao é 86 uma projecdo, pois eles viveram com esses povos primiti- vos e, para eles, os deuses séo uma realidade viva; por isso, ndo se pode simplesmente dizer que “nao passam de projecdo”. Esses cientistas apenas entenderam de forma equivocada como usamos 0 termo projecdo. HA ainda um outro motivo pelo qual pretendo conti- nuar comentando este ponto, mas primeiro quero me de- ter na expressdo identidade arcaica, que Jung usa e de- fine no mesmo livro: Uso o termo identidade para denotar uma conformi- dade psicoldgica. E sempre um fendmeno inconscien- te, uma vez que a conformidade consciente envolve- ria necessariamente a consciéncia de duas coisas dis- semelhantes e, em consegiiéncia, uma separacdo en- tre sujeito e objeto, em cujo caso a identidade ja teria sido abolida. A identidade psicoldégica pressupde que é inconsciente. E uma caractertstica da mentalidade primitiva ea base real da participation mystique, que nada mais é do que vestigios da indiferenciagdo en- tre sujeito e objeto e, por conseguinte, do estado in- consciente primordial. E também uma caracteristica do estado mental vigente no intcio do primeiro ano de vida e, finalmente, do inconsciente do adulto civi- lizado, que, na medida em que nao se tornow um con- tetido da consciéncia, continua num estado perma- 12 nente de identidade com objetos... Nao se trata de uma equagao, mas de uma semelhanga a priori gue nunca foi objeto da consciéncia.? Portanto, devemos presumir que, nos estAgios rela- livamente iniciais de nosso desenvolvimento, nao havia diferenga entre nossa psique inconsciente e 0 mundo ex- lerno; esses campos estavam num estado de completa ixualdade, quer dizer, de identidade arcaica. Entao, ocor- reram certos processos psiquicos misteriosos, certas mu- lagdes, que perturbaram a paz dessa identidade e nos for- garam a recolher determinadas representagoes, consta- lando dessa maneira que eram fatos internos, nao extarnos I'm vista disso repomos a idéia sobre os fatos externos com uma nova “projegao”, da qual ainda nfo enxergamos 0 aspecto subjetivo. : Como se verA quando estudarmos alguns mitos de criagdéo, as vezes nos é revelado com muita clareza que cles representam processos inconscientes e pré-conscien- les que descrevem, nao apenas a origem do nosso cosmo. mas a origem da percepgdo consciente que o homem tem do mundo. Isso significa que, antes de me tornar cons- ciente do mundo como um todo, ou de uma parte do ano biente que me cerca, acontecem muitas coisas no meu in- consciente. Os processos pré-conscientes que se desenro- lam num ser humano, antes que sua consciéncia o inun- de, podemos observa-los nos sonhos e em material do in- consciente; os analistas est&o em posicdo de ver, as vezes com uma quinzena de antecedéncia, ou até antes, que agora esta se aproximando uma nova forma de conscién- cia mas que 0 sujeito ainda nao o concebe conscientemen- te. E como a anunciagéo de um processo na consciéncia que aparece no sonho, mas ainda nao se configurou den- tro dos parametros da realidade. Duas semanas mais adiante o sonhador poder vir e dizer: “Agora eu entendo, ® Ibid., §§ 741-42. 13 Agora eu me dei conta de uma certa coisa”, mas 0 analista no sonho que esse novo plano de entendimento, que essa subita constatagdo, estava sendo preparada ja ha algum tempo nos processos pré-conscientes. Apresento este comentario, agora, como uma declaragao a priori mas espero poder demonstra-la de maneira convincente quan- do estivermos examinando os mitos de criagdo. O que nao podemos mais conceber é que tais proces- sos também devem refletir a origem de nosso mundo cés- mico externo. Isso se atribui ao fato de a nossa antiga identidade ter sido perturbada e de outras projecées no- representar modelos cientificos “objetivos” do mundo ex- terno. Os novos modelos desalojaram os antigos e, com isso, entendemos que esses eram projegdes. Na forma de um desenho, o processo da projecaéo transcorre basicamente como o diagrama abaixo: sujeito objeto A > C : S B arquétipo campo da consciéncia segundo arquétipo A, o ser humano ou Eu no centro de seu campo de consciéncia, olha para um objeto, estando ele como sujei- to. Quando existe uma projecao original, significa que um arquétipo foi constelado no inconsciente, B. O sujeito con- templa o objeto, C, e nao consegue entendé-lo, o que ele 6, afinal! Entao tem uma idéia e concebe 0 objeto como isto e aquilo, mas nado esta consciente do fato de que o arqué- tipo, B, foi constelado em seu inconsciente e lhe transmi- 14 tiu o modelo da idéia a partir da qual ele reconhece C; ele 86 vé que o objeto coincide com sua idéia. E isso que cons- titui o processo da cognigéo como um todo. Bem, esse modo de apercepgao esta certo desde que funcione. Se, por exemplo, digo que Fulano me parece um génio, e se ele continuamente se comporta como tal, sem nunca fazer nada que contradiga minha opiniao, entao nin- guém jamais me convencera de que ele nado é um génio. Mas se ele um dia se comportar como um perfeito idiota (que é 0 fator da perturbagao), entdo eu direi: “Ora, ora, de onde foi que eu tirei a idéia de que este sujeito é um gé- nio?” Somente quando ocorre uma perturbacao, uma néo- coincidéncia, 6 que comeco a me dar conta de que acon- teceu alguma coisa que deve ter perturbado minha con- cepgao. E esse 0 caso que Jung menciona: a projecdo nao se encaixa mais. Por exemplo, quero ser convencido de que um objeto 6 como isto ou aquilo, mas minha idéia nao se encaixa; existem muitos fatores que, como se diz hoje na moderna ciéncia natural, néo convergem: nao existe convergéncia de resultados. Se, na idéia defendida por Kidwin Hubble sobre o universo em expansao, determina- dos resultados da pesquisa atémica nao coincidirem e nao se obtiver uma convergéncia de resultados, pode-se co- megar a cogitar sobre se essa idéia nfo 6 sé uma espe- culagao ou, na nossa linguagem, uma projecdo da parte de Hubble. Porém, enquanto os resultados parecerem con- vergir numa mesma direcdo, enquanto 0 objeto parecer realmente comportar-se de acordo com o meu modelo men- tal, nio tenho motivos para retirar a projecdo. Estarei ingenuamente convencido de que conheco a qualidade do objeto em si. Assim, um dos motivos para se recolher uma proje- cdo € a idéia do objeto no corresponder aos fatos, é algo falsear em algum ponto e no coincidir com os fatos. Uma outra possibilidade muito freqiiente é que um outro ar- quétipo (D) se constele: um segundo arquétipo se mobili- za e destaca no inconsciente e apresenta outro modelo ou 15 idéia A mente do sujeito, viabilizando outra projegao so- bre 0 objeto. O sujeito entao salta sobre a nova idéia, ale- gando que esta é verdadeira e que a anterior era um erro, uma ilusdo — uma projecao. A uma visao retrospectiva, chamamos a primeira concepgao de projeg&o, mas, enquan- to a pessoa estiver presa nela, enquanto 0 arquétipo esti- ver constelado como valido, no inconsciente e no cons- ciente da pessoa, ela nunca 0 chamarA de projecao; pelo contrario, ira considerd-lo a verdadeira cognicao. O sujei- to entdo sente que esta falando de fatos reais e da manei- ra mais honesta que consegue. Essa troca de arquétipos em geral coincide naturalmente com mudangas externas de condigées, de tal modo que certas teorias nado corres- pondam mais a eles. Enquanto sentirmos subjetivamen- te que nao estamos falando de projegdes mas da verda- deira qualidade de um objeto — que é um aspecto especial de nossa mentalidade ocidental — entaéo chamamo-la de verdade cientifica. Os orientais sAo tao introvertidos que, mesmo quan- do se sentem convencidos, ainda alimentam uma certa duvida e ndo conseguem evitar o ponto de interrogagao a respeito de suas “verdadeiras convicgées”. JA nés estamos seguros de que falamos de um objeto externo, desde que nossas projegoes paregam corresponder a eles. No momento estamos sob o dominio de uma nova constelagéo arquetipi- ca que, por ora, esta funcionando e na qual parece que se encaixam todas as qualidades objetivas. Onde quer que haja o que Bavinck denominou de convergéncia de resultados cientificos, onde quer que tudo parega se encaixar num qua- dro e ninguém seja capaz de pensar em quaisquer fatos contraditérios ao modelo que temos em mente, possuimos, por um periodo de tempo, a nossa verdade. Sendo menos criticos em geral, e tendo apenas um conhecimento frag- mentado dos fatos externos, ou sé um conhecimento par- cial se comparado ao nosso, 0S primitivos produziram expli- cagées cosmogénicas para @ origem da existéncia que, para n6s, S40 projecdes absolutamente transparentes. Precisa- mos ter esse fato em mente, porque nao podemos entender 16 RB mitos. se 08 chamarmos simplesmente de projecéo de processos pré-conscientes, sem ter a idéia clara de “proje- (fo” exatamente no sentido que busquei descrever. Antes de tentarmos compreender os mitos de cria yo, temos de nos lembrar também de um outro fato. [ ‘aber, que nds ndo podemos falar de nenhuma espécie ‘de twalidade exceto em sua forma como contetido de nossa vonseténcia, Como Jung assinalou, a tnica realidade so- lyre a qual podemos nos pronunciar é aquela da qual esta- nos cientes.? Se para vocé isso é dificil de eompreender imagine entaéo que vocé teve um sonho na noite passada 3 te se lembra dele pela manha. Se nao houve aonb uaoEyadcs provando que vocé sonhou, entéo o sonho nao ove existéncia. Vocé pode presumir que ele existiu, ou (jue nao existiu, pode dizer qualquer coisa arbitraria « ue yoste de afirmar a esse respeito, mas, Gentecanente ta, lando, vocé nao pode dizer se ele existiu ou nao. Tudo isso quer dizer que nenhum fator que nao tenha em algum ponto entrado no campo da percepeao consciente de a ‘u- ma criatura humana pode ser citado como real. Os dnteos fatos que podemos afirmar que so reais sao ‘os que, de algum modo, em algum lugar, entraram no campo de cons- ciéncia de um ser humano. Todo 0 resto 6 especulagao ar- hitraria. Naturalmente, pela manha, a pessoa ade su- por que teve um sonho e 0 esq’ i ueceu, mas isso n& ser chamado de fato. : chee : Em termos praticos, portanto, podemos asseverar que a nica realidade que nos 6 possivel mencionar ou com a qual efetivamente lidamos é a imagem da realidade pre- sente no campo de nossa consciéncia. O egos ee pontaneo do extrovertido, que por temperamento tem um: intensissima ligagdo com os objetos, sera algo como: “Sim, mas existe uma realidade, s6 que nado podemos falar dela”. Diante disso, sé podemos dizer que se ele prefere supor °C. G. Jung, Memories, Dri i , , Dreams, Reflections (Nova Iorque: R House, 1963), pp. 255-56. [Em portugués, Memérias, ee HORE 17 isso, que fique 4 vontade, mas isso nao pase oo a posicdo inteiramente subjetiva. Se vocé gosta ee sobre as coisas e diz: “Acredito que existe uma re: ee além do campo de minha consciéncia’, essa cron pe de determinadas necessidades de seu temperaments; en tretanto, se uma outra pessoa nao acredita dessa os e vocé nao tem o menor direito de arrancar-lhe aca eve Por conseguinte, se os indianos preferem dizer ae ng existe realidade além SN ee ean gus oe ts iéncia, nado temos o direito ¢ ‘ ) 5 Pode simplesmente comentar que isso nao ears ane a nossa disposigao de temperamento, que preferimos ii com as coisas como se acreditassemos que existe untae ree lidade que transcende a nossa consciéncia, apesar shee podermos lidar diretamente com ela. Aqui ingest snc terreno das crengas e suposigdes metafisicas e re! oe no qual todos sao livres para fazer as auposigoes que -e lhes agradem; mas com isso abandonamos oO spo do fato cientifico passivel de discussdo. Sendo assim, é om preensivel que as histérias que supostamente Se tae descrever a origem do mundo real estejam completam te entremeadas e mescladas com fatores que seria een dizente denominar histdrias dos processos pré-conset a respeito da origem da consciéncia humana. Chegamos aqui a uma outra questao eapord ates que maneira essas idéias miticas, de import one Ae riamente vital, diferem de racionalizacées de sels maioria vai dizer: “Nao passam de contos de fa as’ i S isso ndo 6 exato. Se nos observarmos peicologieanes He Be longo de um periodo de tempo, em breve po nee ee renciar e dizer “algo” esta pensando em nés, quer ner, certos contetidos se nos apresentam e podemos a oon base neles pois fazem sentido para nos, e nos er ne melhor se pensamos dessa determined ere pes : do fato de todos sabermos que a questao da vida ap “©. G. Jung, Collected Works, vol. 14, § 766. 18 Morte, ou da origem e significado da vida, nunca podera ser rospondida racionalmente com certeza absoluta e in- (ubitivel, ela tem, segundo Jung, uma importancia tao (romonda, se n&o inteiramente essencial, que nos dedica- ‘io a formular idéias a esse respeito. Se uma pessoa nao (om mito algum acerca dessas indagagées, ela esta psi- (Wicamente desvitalizada e empobrecida e, provavelmen- (0, sofre de uma neurose. Jung, por exemplo, sugeria a todos os idosos que conviviam com ele que refletissem ‘obre as questées de haver ou nao vida apés a morte e (lo qual era o sentido da morte para eles. Um dos alunos de Jung perguntou-lhe: “Agora estou com setenta anos e vocé (om oitenta. Vocé nao poderia me dizer o que pensa sobre vida apés a morte?” A resposta de Jung foi: “Nao vai ‘\juda-lo em nada lembrar, quando estiver em seu leito de morte, que ‘Jung disse isto ou aquilo’. Vocé tem de ter as suas préprias idéias a esse respeito. O seu mito pessoal. ‘ler o préprio mito quer dizer sofrer e se debater com uma (juestao até que uma resposta brote das profundezas da ulma. Nao quer isso significar que tenha chegado a ver- (lade definitiva, mas sim que essa verdade que lhe ocor- rou 6 relevante para vocé, na forma como a conhece. Acre- ditar nessa verdade ajuda a pessoa a se sentir bem’. Constatamos, dessa forma, que hé mitos de impor- (Ancia vital. Podemos dizer que, no plano psicolégico, ocor- re um fendmeno similar. Por exemplo, todos os povos do mundo conheciam a importancia vital do sal. Como é bem sabido, os povos migravam e, em certas circunstancias, che- garam até a abrir mao de todos os seus bens e tesouros por um punhado de sal. Ha somente cerca de trinta anos foi esclarecido o motivo para tanto. Sabe-se atualmente que o sal desempenha um papel importante na fisiologia huma- na. Mas aquele “algo” em nés, mencionado antes, sempre soube disso. Nos tempos antigos, a importancia do sal era explicada mitologicamente. Havia a busca de idéias que explicassem por que o sal é tao vital para o homem. Tudo era baseado em conhecimentos instintivos, vitais. Portan- to, os mitos expressam um conhecimento vital e instintivo, 19 e quando a pessoa confia nesse tipo de conhecimento entao é saudavel. Isto ndo tem nada a ver com racionalizacdo de desejo ou com alguma espécie de fantasia. Até o momento atual, ainda existem algumas tribos primitivas, mesmo que lamentavelmente apenas umas poucas, que se recusam terminantemente a contar seus mitos secretos para 0S povos brancos. Eles sabem que et ses mitos contém seu conhecimento vital, incumbido “4 lhes preservar a vida. Se um branco chegasse e ners risse de maneira desrespeitosa e prejudicial, dizendo: [ao acredito nisso. Nao passa de conto de fadas”, estaria ane gindo profundamente a alma desses povos primitivos. 6 se pode dizer que a pessoa que nao tem um see nem uma jdéia consistente a respeito do sentido da vida, eeran simplesmente acredita no que le nos jornais, 6 neuré ‘ica e deve ser objeto de pena, pois € prisioneira da crenga em t&o-somente meias-verdades ideologicas. Devemos ter em mente que, quando tentamos interpretar os mitos de | Ao como projegéo de processos psicolégicos internos, fa- zemos isso segundo a perspectiva da populagao branca centro-européia. Essa perspectiva seria imprépria se m estivesse lidando com mitos extraidos das crengas reli- giosas dos esquimés ou de alguns outros grupos Etnicos. Entendendo quem eles s4o, eu diria: Sim, eu também acredito que o mundo foi feito dessa maneira’, e este co- mentério nado seria nem uma mentira diplomatica por- que, para eles, 0 mundo foi criado dessa maneira e essa crenga reflete sua concep¢ao de mundo. Onde é que, hoje em dia, localizamos mitos de cria- cao, elementos ou motivos tipicos de mitos de criagao, om nossa atuagao analitica nos consultérios, e nos sonhos? A forma mais visivel pode ser observada no ieee zofrénico, em que 0 episédio esquizofrénico é Sa e preparado por sonhos de destruigao mundial. m sue modernos, costuma ser uma explosao atomica, ou o tim do mundo, as estrelas despencando — imagens absoluta- mente apocalfpticas; ou a pessoa desperta e todos morre- 20 faim, o ambiente em que se encontra esta todo destrufdo, 1 \uperficie do mundo se abre numa fenda interminavel, © assim por diante. Estas imagens em geral avisam que a vonsciéncia desse ser humano esta em estado explosivo ou prestes a explodir, e que sua consciéncia da realidade om breve ira desaparecer: seu mundo subjetivo sera real- monte destruido. Mas, muito frequientemente, quando o »pisodio esquizofrénico comeca a ceder, ou supera sua fase ayuda, entéo, nas fantasias e em sonhos, os motivos dos imitos de eriagéo surgem e o mundo é recriado a partir de um germe muito pequeno, tal como nos mitos de criagao. \ realidade é reconstruida. Com base em minha experién- cia profissional, se se entendem esses simbolos de recons- lrugao, se se entende o que esta acontecendo quando es- ‘ios simbolos surgem depois de um episédio, e se, no papel de terapeuta, se pode dar-lhes o devido apoio, acompa- nhando o desenvolvimento dessas ideacédes e lidando com clas da forma adequada, pode-se as vezes ajudar a re- construgéo de uma nova personalidade consciente que orno dessa onda posteriormente nao conseguira mais subjugar. Lembro-me de um caso em que aconteceu isso, em- bora nao tivesse sido tao forte; nao se tratava de uma es- quizofrenia clinica. Era um quadro limitrofe, uma mu- |her que, numa condigdo de completa possessao pelo animus, tinha destrogado seu relacionamento com um homem com quem vivia uma transferéncia fortissima. Era um animus ambulante e nao tinha nada além do animus funcionando dentro dela. Uma completa destruigao de sua personalidade feminina tinha se desenrolado ao longo de muitos anos (uma disposigaéo esquizofrénica), e ela esta- va por um triz para perder a cabega. Uma colega que tra- tava dela comigo sugeriu que a interndssemos, conside- rando que ou ela cometeria suicidio, ou faria alguma ou- tra maluquice desse porte, como matar o homem que apa- rentemente a havia decepcionado seriamente. Antes de concordar com essa proposta, quis eu mesma vé-la, e quan do fiz isso percebi, de imediato, que eu no conseguiria 21 mais estabelecer qualquer contato. Ela olhou através de mim com olhar vidrado, e eu nao consegui atingi-la emo- cionalmente. Tive a sensagdo de que ela nao me ouviu, 0 que mais tarde foi confirmado por ela mesma ao me di- zer que nao tinha escutado uma 86 palavra do que eu dis- sera. Estava numa tal condigao que sua atengao, sua cons- ciéncia, achava-se completamente anulada. No meu de- sespero, finalmente lhe disse: “Nenhum sonho, nenhum sonho numa situagao tao desesperada?” Ela disse: ‘S6 um fragmento. Vi um ovo e uma voz disse: ‘a mae ¢ a filha”. Fiquei muito feliz diante da situagao e fui logo falando para ela sobre os mitos de criagao e como 0 mundo renas- ce do ovo mundial. Disse que isso mostrava o germe de uma nova possibilidade de vida e que tudo ficaria bem, que s6 precisAvamos esperar até que tudo viesse para fora do ovo, e assim por diante. Deixei-me arrastar por um entusiasmo avassalador e disse que “a mae e a filha” na- turalmente referiam-se aos mistérios de Eléusis, e expli- quei tudo isso para ela, falando sobre 0 renascimento do mundo feminino, em que a nova consciéncia seria uma consciéncia feminina, e assim por diante. Percebi que, enquanto eu falava, ela ficou quieta; finalmente, coloquei minha mao em seu brago e perguntei: “Vocé se sente me- Thor?” Pela primeira vez ela sorriu e disse que sim. Per- guntei se ela achava que podia ir paraa cama e nao fazer nenhuma bobagem, e ela respondeu que sim, que podia! E foi isso que aconteceu, e 0 dificil episédio foi transposto. Mais tarde, ela falou que estava num buraco tao negro, e que a consciéncia tinha ido tao longe, que nao havia en- tendido uma sé palavra do que eu dissera. S6 tinha per- cebido que eu tinha entendido o motivo do sonho eo en- tendera de forma positiva; por isso, a caminho de casa, ela falara com os préprios botées: “Bom, aquilo pode ser entendido, e parece ser uma coisa boa”. Entao, veja, eu tinha entendido o que estava acontecendo. Eu nao pude transmitir-lhe essa nocdo, seu complexo do Bu estava dis- tante demais, mas o mero fato de ela haver sentido que alguém a compreendera tinha sido suficiente para trans- 22 por uma situagao extremamente perigosa. Com isso se vé como é importante conhecer esses processos arquetipicos pré-conscientes. . Passei pela experiéncia de, normalmente, nao se po- der transmitir 0 significado desses mitos de criagdo para 4s pessoas quando elas estaéo bem no meio das trevas por- que esse material descreve processos que transcorrem num plano muito distante do da consciéncia. Em contras- tc com outras mitologias, esses temas nao dao ao indivi- duo aquela reagaéo intima de quando se entende alguma coisa e se 6 capaz de aplicar esse entendimento ao pré- prio caso, que é o sentimento de quem ouve interpreta- des de contos de fadas ou de mitos sobre 0 heréi, nos quais se constréi uma ligagaéo emocional e afetiva com o mate- rial. Os motivos dos mitos de criacéo parecem estranhos c extremamente abstratos, e portanto sao dificeis de tra- ver até o plano da consciéncia. Por ter um significado tao remoto, quando se tenta transmiti-lo a outras pessoas é dificil oferecer-lhes a sensagdo de que entenderam. O que se pode observar nos casos limitrofes, a saber, a destruigdo da consciéncia e da percepcao consciente da realidade e a reconstrugdo de uma nova consciéncia, 6 sé 0 caso extremo, 0 exagero de algo que também se encon- tra nas situagdes normais. Identificamos a presenga de motivos de criagéo sempre que o inconsciente estiver pre- parando um avango fundamentalmente importante na consciéncia do individuo. O desenvolvimento psicolégico de um ser humano parece seguir 0 padrao do crescimento fisiologico das criangas, que nao crescem de forma conti- nua mas em acessos e aos arrancos. O crescimento da cons- ciéncia também tende a dar saltos repentinos para a fren- te: ha periodos em que o campo da consciéncia se amplia de forma stibita, e em larga escala. Sempre que o alarga- mento da consciéncia ou sua reconstrucao é muito stbita, as pessoas dizem que tiveram uma “iluminacao” ou reve- lagdo. Quando esse processo é mais continuo, elas nao o percebem tanto e sé tém a sensagéo agraddvel de esta- 23 rem crescendo, de estarem se movimentando no fluxo ae vida, que é interessante, sem passarem pela sensagao de uma repentina iluminagéo ou despertar. Sempre gue © processo da consciéncia dé um grande salto pcan’ A sonhos preparatérios, geralmente contendo motivos dos mitos de criagdo. Finalmente, mas nao por ultimo, é preciso conhecer os motivos dos mitos de criacgéo quando se analisa uma personalidade criativa, Analisar pessoas criativas 6 um grande problema porque, freqiientemente, elas pensam que sao neuréticas ou estao numa crise neurética, e mos- tram todos os sinais disso; entretanto, quando se estuda 0 material de seus sonhos, fica claro que sdo neurdticas nao devido a desajustamentos aos fatos internos ou externos da vida, mas sim porque estao sendo perseguidas por mo idéia criativa e precisam fazer algo a esse respeito. Sao acossadas por uma tarefa criativa; vistas de fora, elas se comportam exatamente da maneira que os outros neur6- ticos e, muitas vezes, elas mesmas se diagnosticam como neuréticas por causa disso. A dificuldade, porém, esta em que nao se pode fazer a invengao pelo outro! Digamos a0 um fisico que deve inventar uma coisa procura aten e mento; é isso o que o inconsciente quer dele. Nao se po e fazer isso por ele! Antes de mais nada, provavelmente voce néio conhece fisica 0 bastante e, em segundo lugar, seria afinal a sua invengao, e invenere significa adentrar algu- ma coisa, descobrir algo novo, e nado se pode fazer isso pela outra pessoa. Gracas a Deus por isso, pois 108 estaria privando da mais valiosa experiéncia de sua ve a se o fizesse. Portanto, vocé tem de acompanhar o outro em sua sofrida jornada. Ele diz: “Sim, mas 0 que é que eu tenho de descobrir?” Bom, eu também nao sei, mas ele tem de descobrir alguma coisa! Entaéo ele diz que Se eu nao posso lhe dizer 0 que é, no 0 estou ajudando. En AO, vocé tem de ter bastante material cientifico a mao Pare conseguir mostrar ao individuo que um ato criativo esta acontecendo agora, que um mundo novo esta prestes a nascer, que algo inédito quer entrar no campo da cons- 24 /\Oncin, Ha determinados processos preparatérios que de- vom ser entendidos, porque deles se pode, no minimo, ex- (rir certos indicios quanto ao rumo que a invengao ira (omar, poupando assim, ao analisando, um doloroso des- perdicio de tempo. O analista pode servi-lo como um cao (Wo fareja e diz: “Por aqui nao, nao por esta trilha, mas por wquola La!” Dessa forma, vocé pode intuitivamente circuns- vrever a dire¢éo em que esta se encaminhando o processo ‘ruitivo dele, de tal sorte que ele nao precisa perder tempo ‘lurante anos perseguindo caminhos errados, sendo possi- , portanto, acercar-se mais depressa do evento original (le criagéo de um mundo que se constelou em sua psique. Isto tem uma importancia enorme se vocé pensar no ‘juanto € difundida a crenga de que a psicandlise, e a ana- lixe junguiana também destroem a personalidade criativa. Muitos artistas e cientistas criativos evitam contato co- hosco porque acreditam que nés, dentro de um modelo ana- litico redutivo, iremos destruir sua personalidade criati- va. Rilke disse, quando insistiram para que fosse fazer analise freudiana, que tinha medo de, ao expulsar seus ilem6nios, seus anjos também fossem expulsos e, portanto, recusava-se a fazer andlise. Eu afirmo que esse medo da personalidade criativa em se submeter a um tratamento analitico, ou de mostrar interesse pela andlise, é justifica- do na medida em que sao poucos os analistas que conhe- cem 0s processos criativos da mente e, entendendo-os de forma equivocada, usam métodos redutivos de cura da neu- rose, quando deveriam, em vez disso, adotar uma atitude de favorecer novos contetidos que estao prestes a vir a luz na consciéncia. Quem tem uma personalidade criativa, quando uma tarefa criativa o pressiona e deprime, de fato comporta-se, muitas vezes, como um neurético horrivel, de maneira desajustada e impossivel. Corrigir ou coibir um pouco o comportamento neurético, sem destruir ao mesmo tempo o cerne criativo do processo, é uma tarefa delicada. Para tanto, é muito importante conhecer o material para se poder reconhecer os processos. Vocés vero que os mitos de criag&o podem ajudar-nos a encontrar esse material. 25 As vezes pode-se afirmar que a parte criativa é 80% do problema, e¢ 0 reajustamento, 20%; outras é 0 inverso. Parte disso sempre esta presente, e essa é uma das suti- Jezas da andlise. Depende muito do relacionamento afetivo entre analista e analisando, pois se é muito intensa a contratransferéncia, 0 analista tende a nao ser suficien- temente redutivo, e se o analista depreciar secretamente o analisando, pode prejudicé-lo e, com isso, destruir suas possibilidades criativas. Essa é uma situacdo muito deli- cada, na qual a pessoa tem, eventualmente, de confiar nos proprios sonhos. E como 0 jardineiro que precisa de- cidir sobre o que ira arrancar e 0 que ira cuidar para que cresca. Pode-se, contudo, fazer uma transferéncia muito intensa, pensando que o cerne de criatividade da pessoa 6 a coisa mais importante e que todas as bobagens que saem dai sao criativas e por isso devem ser alimentadas. O analista excessivamente maternal, que se senta em cima para chocar um monte de ovos de fénix, acaba parindo ovos falsos! Por outro lado, acho que o instinto criativo é tao for- te que se o analista tentar destrui-lo 0 analisando aban- donaré a andlise. Nao se pode destrui-lo. Se o analista efetuou a tentativa errada de reprimi-lo, causa mal-estar e 6dio pela psicologia. Alimentaré amargor, mas a forca dinamica de uma disposigao criativa jamais sera supri- mida. Pode-se dizer que ha também criaturas humanas sem uma criatividade muito forte, apenas com uma pe- quena dose de fantasias criativas, e que poderiam alar- gar seus horizontes e tornar suas existéncias mais signi- ficativas; portanto por que nao deixar que vivam! Pois, afinal de contas, a pessoa de fato se sente melhor se nao se esmaga 0 impulso. Se toda vez que vocé quiser brincar com alguma coisa divertida vocé pensar que é criancice, entao vocé definha. Nao chega a ser uma catastrofe; mas acho que é uma pena esmagar pequenos impulsos criati- vos, que poderiam tornar a vida muito mais bonita. Gra- cas a Deus, em geral os sonhos ficam selvagens quando a pessoa tenta erradamente esmagar alguma coisa. 26 Ao lor Eliade, descobrimos que os mitos de criac& oii muitas civilizagdes eram repetidos em condicé = jeificas. Os mitos cosmogénicos e a mitologia da fr dia por exemplo, sao usados toda vez que uma nov sa 6 sonatrutda, Eliade oferece uma ilustracao: ne O astrélogo mostra em que local os alicerces ficam en atamente sobre a cabeca da serpente [que é uma con telagao estelar] que sustenta o mundo. O carmihnteire /abrica um pequeno gancho de madeira do tronco da arvore Khadira, e com um coco enterra o gancho no chdo, nesse ponto espectfico, de tal maneira que o gan- cho prenda com firmeza a cabeca da serpente no solo. A pedra fundamental é colocada em cima do gan- cho. Apedra angular, portanto, fica situada exatamen- te no ‘centro do mundo’. Mas 0 ato da fundacdo repete, ao mesmo tempo, 0 ato cosmogénico, pois ‘firmar? a cabeca da serpente, enterrar o gancho nela, é imita: gesto primordial de Soma (Rgveda, II, 12 D ou Tad i" quando este ‘fincou a serpente em seu covil’ (VI, 7, Dun A serpente simboliza 0 caos, o informe e néio-ma- nifesto. Indra sobrepuja Vrtra (IV, 19, 3) indivi. (aparvan), ndo-desperto (abudhyam)...* “ = No instante em que a pessoa assenta 0 alicerce de t ,ela (por assim dizer) recria 0 mundo todo outra vez, Na baixa Idade Média, quando os vikings ou os angl saxdes davam © primeiro passo para se estabelece' inl novo territério, construiam um altar e repetiam o mit a ee eo enad com isso que aquele territério antes fart ettenti on sy emt de ereaione coats cientemente submetido a Sean tio a Getona, ‘ Neo vam entrando nele e se instalando em tal ugar, oO hie ° Margaret Sinclair Stevenson, The Ri r r venson, The Rites of the Twice-B 1920), eitado em Mireoa Bliade, The Myth of the ternal Rouiea: or Coe. istory (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1971), p. 19. 27

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