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O Desenvolvimento Urbano-tecnológico de Manaus a Partir da Obra

Dois irmãos, de Milton Hatoum

The technology urban development in Manaus through Dois irmãos, a


Milton Hatoum novel.

Miraní Bertanha, mestranda do PPGTE – UTFPR, bertanha@animail.com

RESUMO
Este trabalho investiga na obra Dois irmãos, de Milton Hatoum, a representação da
transformação urbano-tecnológica de Manaus na segunda metade do século XX. Na
finalização do trabalho, indica-se a coincidência da representação desse momento histórico,
do avanço tecnológico com a entrada da mulher de classe média no universo do trabalho.

Palavras-chave: Milton Hatoum, desenvolvimento urbano, literatura e tecnologia, trabalho


feminino.

ABSTRACT
This research about Milton Hatoum's novel, Dois irmãos, is a investigation about Manaus
urban space in the middle of twentieth century. It is also concluded that thereis a coincidence
between the technological advance and the begininng of the middle class women access in
the work universe. .

Keywords: Milton Hatoum, urban development, technology and literature, woman work.

INTRODUÇÃO
Neste estudo, o pano de fundo para a investigação é a obra de Milton Hatoum, Dois
Irmãos, com o recorte no processo de desenvolvimento tecnológico e modernização do espaço
urbano de Manaus na segunda metade do século XX e a processo de entrada da burguesia
feminina no mercado de trabalho.
O romance inicia-se com o retorno de Yaqub do Líbano, que coincide com a chegada
dos pracinhas brasileiros após a Segunda Guerra mundial. A partir da voz de Nael, filho
bastardo de um dos gêmeos, o leitor conhece a história de ódio e perseguição de Yaqub e
Omar. Os dois são filhos de Halim, um homem sereno e apaixonado por Zana, a mãe, sem
dúvida uma das personagens mais cativantes da obra.
Ao identificar como as transformações urbanas são representadas na narrativa busca-
se identificar o caráter meta histórico desse romance. Ao nos propormos a delimitar um
processo de transformação urbana, parece ficar difícil ignorar como o fator desenvolvimento
tecnológico, em especial como a entrada de diversos artefatos tecnológicos (eletricidade,
geladeira, carros), altera nossas percepções e modo de vida. Temos então, como ponto de
partida para análise, a ideia de que transformações urbanas e desenvolvimento tecnológico
estão em constante diálogo.

ESPAÇO E REPRESENTAÇÃO: MANAUS


Nas últimas décadas, talvez por consequência de uma possível pós-modernidade e da
fragmentação do sujeito, uma nova vertente intelectual, em torno da formação da identidade,
se consolida como corrente interdisciplinar. Trata-se dos Estudos Culturais, com ele, a
representação do espaço passa a ser (re)valorizada, afinal espaço e sujeito encontram-se
intimamente ligados. Otto Friedrich Bollnow em Hombre y espacio1 (2002) apresenta ao leitor
um profundo estudo da relação do homem com o espaço e indica ainda que o homem não só
se encontra no espaço, como o habita, e a partir disso, se relaciona com o mundo. O que quero
indicar é que a relação do homem com o meio será de suma importância para o sucesso ou
não de sua história.
Outro grande pensador que aborda a questão do tempo-espaço nessa “pós-
modernidade” é David Harvey, que propõe a compressão do espaço e do tempo devido à
consolidação do capitalismo, a produção em série e a globalização. Harvey afirma: “Espaço e
tempo são categorias básicas da existência humana. E, no entanto, raramente discutimos seu
sentido; tendemos a tê-los como certos...” (HARVEY, 2007, p.187).
O trabalho de Harvey aborda o espaço por uma perspectiva social e filosófica. Com
um grande resgate histórico do papel do espaço na evolução humana, o autor aprofunda-se e
discute o trabalho de muitos teóricos sobre o que é e a importância do espaço para o homem e
para as relações sociais. O aspecto desse trabalho que destaco aqui é a questão da compressão
e da fragmentação do espaço e do tempo que, o mundo atravessou após a segunda guerra
mundial, com o processo de globalização. Um exemplo disso é a rapidez com que hoje se
chega a qualquer lugar em relação ao início do século XX, ou a rapidez com que nos
comunicamos. A sociedade do consumo (e descarte) também é fruto dessa compressão do
tempo-espaço. Não podemos mais esperar que nossos aparelhos eletrônicos sejam
consertados, já compramos outro, afinal, não vale a pena (financeiramente, é claro) privar-se
do aparelho por alguns dias.

1Em literatura, a grande referência em relação ao espaço e sua representação é a obra de


Gaston Bachelard, A poética do espaço (1988). Em todas as leituras sobre espaço romanesco que
realizei, não houve sequer um trabalho que não fizesse referência a obra.
Especialmente através de Bachelard e Heidegger, Harvey delimita aspectos
importantes na relação homem-espaço:
“As lembranças “são imóveis e quanto mais seguramente fixadas no espaço, tanto
mais sólidas são”. Os ecos de Heidegger são fortes aqui. “O espaço contém tempo
comprimido, e é para isso que serve o espaço” E o espaço fundamental para a
memória é a casa - “uma das maiores forças de integração dos pensamentos,
lembranças e sonhos da humanidade. Porque é dentro desse espaço que aprendemos
a sonhar e a imaginar. (HARVEY, 2007, p 200)

A representação espacial, no romance dá-se de modo bastante verossímil. A Manaus


literária é a própria capital do Amazonas. Os espaços fictícios nas obras hatounianas são as
casas e os comércios de suas personagens. Sua ambientação é mimética.
Na obra de Milton Hatoum o espaço da casa é essencial no desenvolvimento do
romance, tanto é que a derrocada da família é marcada com a venda da casa. O destaque que
a obra dá a espaços tradicionais dos ambientes urbanos, que marcam a história da cidade,
como o colégio Pedro II, o teatro Amazonas e o mercado Municipal, por exemplo, são
espaços que, ao que parece, “contém tempo comprimido”, indicado em Harvey.
A rua dos Barés, por exemplo, que é a rua da loja de Halim, é de fato uma rua
comercial à margem do Negro, perto do porto de Manaus e do Mercado Municipal (hoje
desativado). A Cidade Flutuante também existiu, o teatro Amazonas e tradicional colégio
Pedro II, imponentes construções no centro da cidade, lembram o passado de sonho e de
glória do ciclo da borracha, no século XIX.
Nesse paralelo entre espaço romanesco e espaço geográfico, podemos perceber que o
desenvolvimento urbano tecnológico da capital amazonense se faz presente na caracterização
do espaço do romance, que é marcado pela transformação da cidade e de artefatos como a
geladeira, por exemplo.

Mercado Municipal, às margens


do Negro - desativado. Colégio Pedro II
Confesso que nas primeiras vezes que acompanhei a trajetória dos Dois irmãos
acreditei que grande parte de toda aquela cidade era ficcional, qual foi minha surpresa ao
verificar empiricamente a existência (e a destruição) de cada uma das ruas e bairros descritas
por Nael. Com exceção da imagem da cidade flutuante (um cartão postal de Manaus), as
demais fotos da capital do Amazonas são minhas. O grande destaque espacial que delimito
nesta obra, (que não se cansa de me surpreender) é em relação à verossimilhança histórica do
processo de reforma urbana que a capital manauara atravessou no período da ditadura militar,
tratado a seguir.

DE CIDADE PROVINCIANA À CAÓTICA: AS TRANSFORMAÇÕES DA


REFORMA URBANA
Durante a leitura do romance podemos verificar que Halim chegou em solo brasileiro
no tempo dos avanços da economia extrativista Norte do país, ao menos era essa a ideia que
se passava. Com a abertura do porto de Manaus a cidade passou pelo seu primeiro momento
de expansão urbano tecnológica. O Porto representa é a via pela qual a tecnologia chega ao
norte do país. As constantes chegadas dos navios a vapor europeus e estadunidenses
representam essa chegada e com ele, as elites (sempre as elites), manauara e paraense,
passavam por um processo de fortalecimento econômico. Também por isso, nessa mesma
época, emigrantes chegavam em busca de oportunidades. Halim era um desses. Foi nesse
movimento de reforma urbana que o libanês deu os primeiros passos em sua vida: de mascate
a comerciante e de moço sozinho a pai de família. Conforme indica Daou:
“Quanto a isso [integração da região Norte ao ciclo econômico brasileiro], é certo, a
incorporação da borracha como matéria-prima de novas indústrias, advindas da
expansão da economia brasileira, no final do século XIX... será responsável pela
notável visibilidade que teve a Amazônia durante a chamada Belle Époque.”
(DAOU, 2004, p.18)

Sobre a vinda de imigrantes ao Brasil, a partir da movimentação econômica gerada


pela exploração da borracha, Daou acrescenta que:
“Alterou-se a morfologia social, ao se deslocarem para a Amazônia, trabalhadores
que, rio acima, ajudariam a formar novos seringais. Estrangeiros ali se fixaram,
sobretudo nas das capitais [Manaus e Belém], sendo em grande parte os
responsáveis pela volumosa importação de bens de consumo.” (ibdem, p.20)

Um aspecto histórico da capital manauara que Daou bem evidencia, são os anos de
“ouro” que a borracha proporcionou à região entre fins do século XIX e inícios do XX. Este
momento é, inclusive, de maior grandeza histórica para a cidade. Foi nesta época a
construção das mais majestosas belezas arquitetônicas formam construídas. O Teatro
Amazonas e o colégio Pedro II, por exemplo, são apenas duas das muitas construções que até
hoje mantém vivo na região o passado glorioso do ciclo da borracha.
Sendo assim, Dois Irmãos atravessa Manaus nos dois períodos de reforma urbana da
cidade. O primeiro, provocado pela elite durante ciclo da borracha, e o segundo, com o
militarismo e a criação da Zona Franca, em 1967. É sobre o segundo grande período de
expansão urbana e sua representação quase coincidente com a modernização da loja de Halim,
que se investiga a seguir.

A LOJA, A CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO E AS TRANSFORMAÇÕES


MANAUARAS
Com o fim do ciclo da borracha, a capital do Amazonas entrou em um período de
estagnação econômica. Conforme apontam José e Marcelo Serafico, em 1951 começam a
tramitar na câmara dos deputados do Amazonas os projetos que em 1967 se consolidariam na
Zona Franca de Manaus. Durante esse processo, o cenário político manauara atravessará
diversos momentos de frustração em relação à integração no cenário nacional. Em 1960, ano
da fundação de Brasília, que seu projeto é regulamentado. Em uma investigação temporal,
Dois irmãos apresenta ao leitor o distanciamento que a região norte vive em relação ao
período de modernização que o centro-sul do país atravessa.
“Noites de blecaute no norte, enquanto a nova capital do país estava sendo
inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como
um sopro amornado. E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor dissolvia-se no
mormaço amazônico. Estávamos longe da era industrial [almejado pelo projeto da
Zona Franca] , e mais longe ainda de nosso passado grandioso [ciclo da borracha]
Nessa época, Rânia quis modernizar a loja... (HATOUM, 2006, p.96)

História e ficção se misturam de modo poético (e por que não crítico?) no relato de
Nael. O leitor se sente convidado a estabelecer esses paralelos e acabar por conhecer um
pouco mais deste norte, tão distante e misterioso ao resto do país. Os anos no romance são
marcados a partir de paralelos com momentos históricos, como o fim da segunda guerra, o
golpe militar e a fundação de Brasília, por exemplo. Nessas pequenas dicas é que busca-se
delimitar as relações entre ficção e história proposta neste trabalho.
O processo de expansão que Manaus atravessa no período histórico em que se passa
o romance é mencionado diversas vezes na narrativa. Em alguns casos, é apenas uma breve
menção, apenas para que o leitor não se esquecesse do que acontecia na capital do Amazonas
enquanto a família de Halim se esfacelava. “Manaus crescia muito e aquela noite foi um dos
marcos do fausto que se anunciava” (HATOUM, 2006, p. 190)
Porém, as malhas da narrativa hatouniana, apesar de discretas, não parecem se opor
ao paralelo histórico aqui proposto. O distanciamento econômico e cultural do norte em
relação ao país é claramente indicado na obra quando Nael afirma estarem longe da era
industrial (conforme já citado). Neste momento da narrativa Yaqub, que há muito migrou para
o “sul”, aparece quase como uma representação de São Paulo em Manaus, ao financiar a
reforma da loja, e da casa da família, estabelecendo na obra o início de um intercâmbio
econômico, que se efetiva historicamente a partir da criação da Zona Franca, a qual, tem em
sua criação o argumento do militarismo de “integração nacional”. Em momento coincidente
com a consolidação do capitalismo em nossa sociedade, Rânia protagoniza a cena romanesca,
como a própria representante do modelo econômico, pois desde a reforma da loja, que
caracteriza-se como a reforma econômica desse universo romanesco, a irmã assumirá cada
vez mais o papel de gestora da loja, e consequentemente do capital da família. “Quando
Halim se deu conta, já não vendia quase nada do que sempre vendera” (ibdem, p.99).
Se em um primeiro momento o paralelo aqui esboçado parece estranho, ou até um
pouco exagerado, a seguinte passagem do romance parece permitir sua delimitação: “Se a
inauguração de Brasília havia causado euforia nacional, a chegada daqueles objetos móveis e
eletrodomésticos novos enviados por Yaqub foi o grande evento na nossa casa” (ibdem, p.97).
O divisor de águas no comércio da família é a reforma: “Depois da reforma, Rânia tomou
mais gosto pela loja, mandava e desmandava, cuidava do caixa...” (ibdem, p.98).
A criação da Zona Franca é apenas um capítulo do projeto Operação Amazônia, que,
de acordo com o trabalho dos Serafico, é “o modo por meio do qual ocorreria a regionalização
do desenvolvimento capitalista” (SERAFICO, 2005, p.100). É importante ressaltar que o
projeto econômico, propriamente dito não aparece na narrativa, mas as transformações
urbanas por conta de sua implementação podem ser claramente percebidas pelo leitor. A
tomada militar e a demolição da Cidade Flutuante (Anexo A) são marcos dessas
transformações delimitados na obra.
“Assistiam, atônitos, a demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os
demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim
balançava a cabeça, revoltado... Erguia a bengala e soltava uns palavrões...”

(HATOUM, 2006, p. 159)

No romance, pode-se marcar a demolição do bairro mais ou menos no ano de 1968,


ano da morte de Halim. De acordo com o trabalho de Aurélio Michelis, a partir de 1967 a
cidade “foi invadida por forasteiros de várias línguas” (MICHELIS, 2005, p. 290) E esse
momento aparece representado em Dois irmãos pela boca de Omar “Manaus está cheia de
estrangeiros, mama. Indianos, coreanos, chineses... O centro virou um formigueiro de gente
do interior... Tudo está mudando em Manaus...” (HATOUM, 2006, p.167).

Vista aérea da Cidade Flutuante – Cartão Postal de Manaus


(Extraída do trabalho de Michiles, 2005)

Hatoum parece levar a representação desse processo migratório tão a sério que inclui
um estrangeiro na história dessa família, sendo ele inclusive o grande colaborador para a
derrocada desse lar. Sua chegada no seio familiar provoca reações diversas nas mulheres da
casa. Zana se entusiasma, ao passo que Domingas implicará com o moço desde o primeiro
momento ”e a birra de Domingas me pareceu uma premonição” (ibdem, p.168) “Rochiram, o
visitante, era um indiano que falava devagar... Esse homem de gestos ensaiados observou a
casa e seus recantos, notou que estava cativando Zana” (ibdem, p.168-169).

EXPANSÃO URBANA E TRABALHO FEMININO


“Forçuda como uma anta e paciente como o pai” (p. 98) é como Nael resume a
personalidade dessa comerciante no processo de transição da loja de Halim para sua filha.
Essa definição supera a imagem de mulher enquanto sexo frágil, incapaz de tomar a frente de
seu próprio destino. Em Rânia não existe o “corpo fraco”, feito para ser protegido. Ela resiste
às investida de dominação, inclusive ao casamento. Apesar de suas expectativas (e opções)
sociais serem distintas das de Domingas, não só enquanto trabalhadora, mas, por sua origem
pequeno burguesa, ela acaba por ter mais condições de ser dona de si.
Rânia, como o próprio Nael aponta na narrativa, ocupa um lugar na casa. Seu quarto
é menor que os dos gêmeos, mas maior que o puxadinho em que vive Domingas e o filho:
“Rânia significava muito mais do que eu, porém menos do que os gêmeos. Por
exemplo: eu dormia num quartinho construído no quintal, fora dos limites da casa.
Rânia dormia num pequeno aposento, só que no andar superior. Os gêmeos dormiam
e quartos semelhantes e contíguos, com a mesma mobília...” (Hatoum, 2006, p.24)

A filha de Halim representa na obra a ocupação da pequena burguesia feminina no


universo do trabalho em meados do século XX. Tal relação pode ser facilmente estabelecida,
se observarmos que a época em que a filha de Halim extrapola os limites da casa, e começa a
tomar frente da loja, é coincidente com as mudanças do comportamento feminino no ambiente
urbano no Brasil, e, por sua vez, a saída da mulher de classe média ao mundo do trabalho é
coincidente com o momento de expansão urbano-tecnológica. Com exceção das cidades do
Rio de Janeiro e São Paulo, o fenômeno expansão urbana e mulheres no trabalho deu-se
especialmente a partir da segunda metade do século XX, época em que a história é narrada.
Para Rânia, sair do ambiente familiar para dedicar-se ao comércio, não seria em nada
surpreendente se não fosse pela classe social que a personagem representa. Não me faltam
referências à personagens femininas em nossa literatura, mas não me ocorre uma pequena
burguesa tão forte quanto a filha de Halim. Ela não apenas assume o comércio da família
quando atinge a idade adulta, como também o transforma. Deixando de ser a loja bagunçada
de Halim, para ser o moderno comércio de Rânia.
Porém a reviravolta da loja não é fruto apenas de uma forte personalidade feminina,
ela conta com um amparo masculino, é Yaqub quem auxilia Rânia na transição de gestão. A
passagem além de confirmar esse auxílio, oferece ao leitor mais uma pista às transformações
que a cidade atravessará:
Desconfiei da sanha empreendedora de Rânia e percebi que seu impulso era movido
pelas mãos e as palavras de Yaqub. Em menos de seis meses a loja deu uma guinada,
antecipando a euforia econômica que não ia tardar” (HATOUM, 2006, p .98)

Também parece válido pontuar que foi o gêmeo quem financiou a reforma do espaço
comercial. Ou seja, o que em primeiro momento pode parecer a representação da
independência social de uma pequena burguesa, encontra-se sustentada em pilares
masculinos. Outro aspecto importante é que a filha como sucessora não foi uma escolha, mas
a única opção possível a Halim, “o que ele esperava de Omar, veio de Rânia, e da expectativa
invertida, nasceu uma águia nos negócios” (idem, p.70).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Parece termos conseguido indicar é a verossimilhança entre espaço romanesco e o
espaço geográfico real, não literário em Dois irmãos, principalmente no que tange a reforma
urbana manauara em meados do século XX. Confesso que quando pensei neste aspecto do
recorte, não esperava me deparar com um diálogo assim tão profundo e verossímil entre
literatura e história. Que a meta historicidade era um aspecto romanesco presente na obra, não
havia dúvida, tanto é que a investigação estava proposta, a surpresa de fato foi na profunda
“coincidência” temporal com que Hatoum aborda as mudanças de Manaus durante o período
militar. O leitor pode conhecer por um viés poético, através de Dois irmãos, a consolidação
do capitalismo e as profundas transformações sociais, históricas e geográficas que o norte
atravessou na segunda metade do século XX. Ao final do romance, Nael reafirma a
profundidade desse processo: “Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e
crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com seu passado” (ibdem,
p. 197)
Certamente, não serão poucas as passagens do romance (e da história de Manaus)
que mereceriam uma análise mais profunda. A história destes Dois irmãos ainda guarda
muitas surpresas aos que se dispuserem a investigá-la. O trabalho de Caldeira (2004), citado
no início desta monografia nos mostra que, por mais que alguns elementos romanescos se
façam presentes em diversos estudos (como por exemplo as transformações urbanas de
Manaus) ainda assim, o porquê de cada aspecto integrar diferentes trabalhos não são os
mesmos. O que comprova a multiplicidade de olhares que a crítica pode propor sobre a obra
de Hatoum.
REFERÊNCIAS

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.

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BOLLNOW, Otto Friedrich. Hombre y espacio. Barcelona: Labor, S.A, 2002.

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DAOU, Ana Maria. A Belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
(Descobrindo o Brasil)

FREITAS, Júlia Maria Amorim. A casa e a língua: redes de textualidade e territorialidade em


Relato de um certo oriente de Milton Hatoum. Disponível em
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