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RESUMO
Este trabalho investiga na obra Dois irmãos, de Milton Hatoum, a representação da
transformação urbano-tecnológica de Manaus na segunda metade do século XX. Na
finalização do trabalho, indica-se a coincidência da representação desse momento histórico,
do avanço tecnológico com a entrada da mulher de classe média no universo do trabalho.
ABSTRACT
This research about Milton Hatoum's novel, Dois irmãos, is a investigation about Manaus
urban space in the middle of twentieth century. It is also concluded that thereis a coincidence
between the technological advance and the begininng of the middle class women access in
the work universe. .
Keywords: Milton Hatoum, urban development, technology and literature, woman work.
INTRODUÇÃO
Neste estudo, o pano de fundo para a investigação é a obra de Milton Hatoum, Dois
Irmãos, com o recorte no processo de desenvolvimento tecnológico e modernização do espaço
urbano de Manaus na segunda metade do século XX e a processo de entrada da burguesia
feminina no mercado de trabalho.
O romance inicia-se com o retorno de Yaqub do Líbano, que coincide com a chegada
dos pracinhas brasileiros após a Segunda Guerra mundial. A partir da voz de Nael, filho
bastardo de um dos gêmeos, o leitor conhece a história de ódio e perseguição de Yaqub e
Omar. Os dois são filhos de Halim, um homem sereno e apaixonado por Zana, a mãe, sem
dúvida uma das personagens mais cativantes da obra.
Ao identificar como as transformações urbanas são representadas na narrativa busca-
se identificar o caráter meta histórico desse romance. Ao nos propormos a delimitar um
processo de transformação urbana, parece ficar difícil ignorar como o fator desenvolvimento
tecnológico, em especial como a entrada de diversos artefatos tecnológicos (eletricidade,
geladeira, carros), altera nossas percepções e modo de vida. Temos então, como ponto de
partida para análise, a ideia de que transformações urbanas e desenvolvimento tecnológico
estão em constante diálogo.
Um aspecto histórico da capital manauara que Daou bem evidencia, são os anos de
“ouro” que a borracha proporcionou à região entre fins do século XIX e inícios do XX. Este
momento é, inclusive, de maior grandeza histórica para a cidade. Foi nesta época a
construção das mais majestosas belezas arquitetônicas formam construídas. O Teatro
Amazonas e o colégio Pedro II, por exemplo, são apenas duas das muitas construções que até
hoje mantém vivo na região o passado glorioso do ciclo da borracha.
Sendo assim, Dois Irmãos atravessa Manaus nos dois períodos de reforma urbana da
cidade. O primeiro, provocado pela elite durante ciclo da borracha, e o segundo, com o
militarismo e a criação da Zona Franca, em 1967. É sobre o segundo grande período de
expansão urbana e sua representação quase coincidente com a modernização da loja de Halim,
que se investiga a seguir.
História e ficção se misturam de modo poético (e por que não crítico?) no relato de
Nael. O leitor se sente convidado a estabelecer esses paralelos e acabar por conhecer um
pouco mais deste norte, tão distante e misterioso ao resto do país. Os anos no romance são
marcados a partir de paralelos com momentos históricos, como o fim da segunda guerra, o
golpe militar e a fundação de Brasília, por exemplo. Nessas pequenas dicas é que busca-se
delimitar as relações entre ficção e história proposta neste trabalho.
O processo de expansão que Manaus atravessa no período histórico em que se passa
o romance é mencionado diversas vezes na narrativa. Em alguns casos, é apenas uma breve
menção, apenas para que o leitor não se esquecesse do que acontecia na capital do Amazonas
enquanto a família de Halim se esfacelava. “Manaus crescia muito e aquela noite foi um dos
marcos do fausto que se anunciava” (HATOUM, 2006, p. 190)
Porém, as malhas da narrativa hatouniana, apesar de discretas, não parecem se opor
ao paralelo histórico aqui proposto. O distanciamento econômico e cultural do norte em
relação ao país é claramente indicado na obra quando Nael afirma estarem longe da era
industrial (conforme já citado). Neste momento da narrativa Yaqub, que há muito migrou para
o “sul”, aparece quase como uma representação de São Paulo em Manaus, ao financiar a
reforma da loja, e da casa da família, estabelecendo na obra o início de um intercâmbio
econômico, que se efetiva historicamente a partir da criação da Zona Franca, a qual, tem em
sua criação o argumento do militarismo de “integração nacional”. Em momento coincidente
com a consolidação do capitalismo em nossa sociedade, Rânia protagoniza a cena romanesca,
como a própria representante do modelo econômico, pois desde a reforma da loja, que
caracteriza-se como a reforma econômica desse universo romanesco, a irmã assumirá cada
vez mais o papel de gestora da loja, e consequentemente do capital da família. “Quando
Halim se deu conta, já não vendia quase nada do que sempre vendera” (ibdem, p.99).
Se em um primeiro momento o paralelo aqui esboçado parece estranho, ou até um
pouco exagerado, a seguinte passagem do romance parece permitir sua delimitação: “Se a
inauguração de Brasília havia causado euforia nacional, a chegada daqueles objetos móveis e
eletrodomésticos novos enviados por Yaqub foi o grande evento na nossa casa” (ibdem, p.97).
O divisor de águas no comércio da família é a reforma: “Depois da reforma, Rânia tomou
mais gosto pela loja, mandava e desmandava, cuidava do caixa...” (ibdem, p.98).
A criação da Zona Franca é apenas um capítulo do projeto Operação Amazônia, que,
de acordo com o trabalho dos Serafico, é “o modo por meio do qual ocorreria a regionalização
do desenvolvimento capitalista” (SERAFICO, 2005, p.100). É importante ressaltar que o
projeto econômico, propriamente dito não aparece na narrativa, mas as transformações
urbanas por conta de sua implementação podem ser claramente percebidas pelo leitor. A
tomada militar e a demolição da Cidade Flutuante (Anexo A) são marcos dessas
transformações delimitados na obra.
“Assistiam, atônitos, a demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os
demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do rio. Halim
balançava a cabeça, revoltado... Erguia a bengala e soltava uns palavrões...”
Hatoum parece levar a representação desse processo migratório tão a sério que inclui
um estrangeiro na história dessa família, sendo ele inclusive o grande colaborador para a
derrocada desse lar. Sua chegada no seio familiar provoca reações diversas nas mulheres da
casa. Zana se entusiasma, ao passo que Domingas implicará com o moço desde o primeiro
momento ”e a birra de Domingas me pareceu uma premonição” (ibdem, p.168) “Rochiram, o
visitante, era um indiano que falava devagar... Esse homem de gestos ensaiados observou a
casa e seus recantos, notou que estava cativando Zana” (ibdem, p.168-169).
Também parece válido pontuar que foi o gêmeo quem financiou a reforma do espaço
comercial. Ou seja, o que em primeiro momento pode parecer a representação da
independência social de uma pequena burguesa, encontra-se sustentada em pilares
masculinos. Outro aspecto importante é que a filha como sucessora não foi uma escolha, mas
a única opção possível a Halim, “o que ele esperava de Omar, veio de Rânia, e da expectativa
invertida, nasceu uma águia nos negócios” (idem, p.70).
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Parece termos conseguido indicar é a verossimilhança entre espaço romanesco e o
espaço geográfico real, não literário em Dois irmãos, principalmente no que tange a reforma
urbana manauara em meados do século XX. Confesso que quando pensei neste aspecto do
recorte, não esperava me deparar com um diálogo assim tão profundo e verossímil entre
literatura e história. Que a meta historicidade era um aspecto romanesco presente na obra, não
havia dúvida, tanto é que a investigação estava proposta, a surpresa de fato foi na profunda
“coincidência” temporal com que Hatoum aborda as mudanças de Manaus durante o período
militar. O leitor pode conhecer por um viés poético, através de Dois irmãos, a consolidação
do capitalismo e as profundas transformações sociais, históricas e geográficas que o norte
atravessou na segunda metade do século XX. Ao final do romance, Nael reafirma a
profundidade desse processo: “Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e
crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com seu passado” (ibdem,
p. 197)
Certamente, não serão poucas as passagens do romance (e da história de Manaus)
que mereceriam uma análise mais profunda. A história destes Dois irmãos ainda guarda
muitas surpresas aos que se dispuserem a investigá-la. O trabalho de Caldeira (2004), citado
no início desta monografia nos mostra que, por mais que alguns elementos romanescos se
façam presentes em diversos estudos (como por exemplo as transformações urbanas de
Manaus) ainda assim, o porquê de cada aspecto integrar diferentes trabalhos não são os
mesmos. O que comprova a multiplicidade de olhares que a crítica pode propor sobre a obra
de Hatoum.
REFERÊNCIAS
BUENO, André. Sinais da cidade: forma literária e vida cotidiana. Em: O imaginário da
cidade. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.
DAOU, Ana Maria. A Belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
(Descobrindo o Brasil)
HARVEY, David. A experiência do espaço e tempo. Em: Condição Pós Moderna. São Paulo:
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MALUF, Marina. MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino Em: História da vida
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MICHILES, Aurélio. O quintal da minha casa. Em: Estudos avançados. [online]. 2005,
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