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Direito das

Futuras Gerações
Organizadores
Daury Cesar Fabriz • Julio Pinheiro Faro • Paulo Roberto Ulhoa
Jovacy Peter Filho • Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva
Direito das
Futuras Gerações
Organizadores
Daury Cesar Fabriz • Julio Pinheiro Faro • Paulo Roberto Ulhoa
Jovacy Peter Filho • Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva
Ficha Técnica Colaboradores
Coordenação:
• Daury César Fabriz • Julio Pinheiro Faro
• Paulo Roberto Ulhoa • Jovacy Peter Filho Anamaria Toma-Bianov
• Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva Professora Doutora Assistente no Departamento de Direito
Editora/Copyright : Cognorama da Universidade da Transilvânia em Braşov, Romênia.

Edição: 1ª Carla Amado Gomes


Capa: Escultura “Humanidades“, de Penithencia, em foto de Weverson Roccio - 2013 Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Professora
Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, ambas em Portugal.
Execução: Link Editoração
Diagramação: Link Editoração Carla Faralli
Revisão de texto: Dos próprios autores Professora na Faculdade de Direito da Universidade de Bolonha, Itália.

Produção Gráfica: Eduardy Cabral César Fiuza


Impressão: Grafitusa Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Professor
Titular na Universidade FUMEC, Professor Associado na UFMG, Professor
ISBN: 978-85-66658-04-0
Adjunto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas),
Professor colaborador na UNIPAC, Advogado, Consultor e Parecerista.
Todos os direitos reservados a COGNORAMA
Rua Aleixo Neto, 454 – Sala 503 – Praia do Canto – CEP 29055-260 – Vitória/ES
Daury Cesar Fabriz
Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela UFMG, Professor Associado
do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES); Coordenador e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e
Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Presidente
da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH), Sociólogo e Advogado.

Elizabeth de Mello Rezende Colnago


Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo/Universidade de Vila Velha (PUC-SP/UVV), Pós-Graduada em Direito
Processual Civil pela UNESC, Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Espírito Santo (FAPES), Professora de Direito Administrativo, Professora da
Polícia Militar do Espírito Santo, Advogada e Administradora de Empresas.

Ernst-Ulrich Petersmann
Professor Emérito de Direito Internacional e Europeu, Ex-Diretor do Departamento
de Direito da European University Institute (Florence), Ex-Professor na
University of Geneva e em seu Graduate Institute of International Studies, Ex-
Consultor Jurídico no Ministério alemão de Assuntos Econômicos, no GATT
e na OMC, Ex-Secretário, membro ou presidente de painéis GATT/OMC.

Filipe Knaak Sodré


Mestrando em Ciências Criminais pela Universidad de Ciencias
Empresariales y Sociales (UCES, Argentina), Membro da Comissão
de Direitos Humanos da OAB/ES, Advogado Criminalista.
Colaboradores

Gustavo de Oliveira Vieira Procurador do Estado do Estado do Rio Grande do Sul, Coordenador de núcleo
de Estudos da Escola Superior da Magistratura, Membro do conselho consultivo
Doutor em Direito pela Universidade Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), Consultor ad hoc da CAPES, CNPQ,
Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz FAPERGS, FAPESC e Università degli studi di Roma Ter, Professor convidado da Pós-
do Sul. Professor de Direito Internacional do Curso de Relações Graduação na Università del Salento, Universita de Firenze e Universidad de Sevilla,
Internacionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Coordenador do Grupo Estado e Constituição (CNPq), Pesquisador PQ/CNPq.

Heleno Florindo da Silva José Luiz Quadros de Magalhães


Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Pós-Graduado em Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG, Bacharel em Língua e Literatura
Direito Público e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva, Francesa pela Universidade Nancy II, Professor Titular da PUC Minas, Professor
Membro do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão (BioGEPE) e do Grupo Associado da UFMG e Professor do Mestrado da Faculdade de Direito do Sul
de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” de Minas, Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de
da FDV, Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Bogotá e do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires.
Santo (FAPES), Professor de Direito da Faculdade São Geraldo (FSG).
Jovacy Peter Fiho
Ingrid Zanella Andrade Campos
Mestre em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco de São Paulo (USP), Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/ES, Diretor
(UFPE), Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte da Escola Superior de Advocacia da OAB/ES, Vice-Presidente da ABDH, Professor
(UFRN), Professora, Presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário de Direito Penal na Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Advogado Criminalista.
e do Petróleo e Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB/PE.
Júlia Cristina Faleiro Urbano
Ivy de Souza Abreu
Bacharela em Direito pela UFMG. Advogada.
Mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Bolsista da FAPES, Membro
do Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” Julia Silva Carone
e do BioGEPE da FDV, MBA em Gestão Ambiental e Pós-Graduada em Direito Público,
Licenciada em Ciências Biológicas, Professora Universitária, Advogada e Bióloga. Pós-Graduada em Direito Constitucional, pela Faculdade Damásio de Jesus, e
em Direito Processual Civil, Penal e do Trabalho pela Rede Doctum; Bacharela
Alberto Del Real Alcalá em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Advogada.

Profesor Titular de Filosofía del Derecho, Universidad de Jaén, Espanha. Julio Pinheiro Faro
Jackelline Fraga Pessanha Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e Bacharel em Direito pela
FDV, Secretário-Geral da ABDH, Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-
Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Bacharel em Direito Graduação Stricto Sensu da FDV nos Grupos de Pesquisa “Estado, Democracia
pela Faculdade de Direito de Vila Velha, Professora da Faculdade São Geraldo Constitucional e Direitos Fundamentais” e “Direito, Sociedade e Cultura”, e ao
(FSG), Assessora do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Departamento de Direito da UFRN
no Grupo de Pesquisa “Constituição Federal Brasileira e sua Concretização pela
José Emílio Medauar Ommati Justiça Constitucional”, Colaborador na UFES, Servidor Público Federal.
Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela FD-UFMG, Professor de Teoria da
Constituição, Direito Constitucional e Direito Administrativo I da PUC Minas – Campos Karoline Lins Câmara Marinho de Souza
Serro, Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas – Campos Serro (2009-2014). Mestre em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UFRN.
Professora Efetiva da UFRN e Assessora Judiciária no TJRN. Professora de
Jose Luis Bolzan de Morais especialização da UFRN, da Universidade Potiguar, da UNI-RN e da Pós-Graduação em
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre em Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da Faculdade Maurício de Nassau, Recife – PE.
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Doutor
em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pós-Doutoramento
na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Professor da UNISINOS,
Colaboradores

Katia Blairon Ronaldo L. B. Segundo


Professora de Direito Público e Constitucional na Faculdade de Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela
Direito de Nancy, Universidade de Lorraine, França. Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Advogado.

Leana Mello Thaisa Nunes


Mestranda em Direito Privado do Programa de Pós-Graduação em Direito Aluna Especial do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em
da PUC Minas. Especialista em Direito Processual pelo IEC-PUC Minas. História Social das Relações Políticas da UFES, Pós-Graduada em Direito
Professora de Direito Civil da PUC Minas (Campos Serro). Advogada. Civil e Processual Civil, pela Faculdade Cândido Mendes/Consultime do
Espírito Santo, Pós-Graduada em Direito Penal, pela Escola de Magistratura
Luís Carlos Martins Alves Jr do Espírito Santo da Faculdade de Direito de Vila Velha, Espírito Santo.
Advogada. Assessora Especial na Procuradoria do Estado do Espírito Santo.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Doutor em
Direito Constitucional pela UFMG, Professor no Centro Universitário de Brasília Tiago Vieira Bomtempo
e Centro Universitário de Anápolis, Procurador da Fazenda Nacional.
Mestrando em Direito Privado do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes PUC Minas. Especialista em Direito Público pelo IEC-PUC Minas. Membro da
Comissão de Bioética e Biodireito da OAB Minas Gerais. Investigador do Instituto de
Mestrando em Direito pela UFES, Especialista em Direito Processual Civil e Investigação Científica Constituição e Processo. Biotécnico. Professor universitário.
Graduado pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Professor Assistente na
FDV, Assessor do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo.

Maria Beatriz Nader


Pós-doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte
Fluminense, Doutora em História Econômica e Mestra em História e Filosofia
da Educação pela USP, Professora Associada da UFES vinculada ao Programa
de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em História Social das Relações
Políticas e membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras.

Mariana de Siqueira
Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Mestre
em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora
efetiva da UFRN. Professora da Especialização da UFRN. Professora da Pós-
Graduação em Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da Faculdade Maurício de
Nassau, Recife-PE. Professora da Pós-Graduação da Faculdade Maurício de Nassau,
Natal-RN. Professora da Pós-Graduação em Direito do Petróleo da UNICAP-PE.
Professora da Especialização da UNI-RN. Conselheira Estadual da OAB/RN.

Paulo Roberto Ulhoa


Mestre em Direito pela UFMG, Graduado pela Faculdade Milton Campos em Belo
Horizonte/MG, Coordenador do Curso de Direito da FSG, Professor de Direitos
Humanos, Trabalho Interdisciplinar e Integrador, Propriedade Intelectual e Coordenador
do Laboratório de Prática Jurídica da FSG, Tesoureiro da ABDH, Membro do Conselho
de Direito Constitucional da OAB/ES, Membro da Associação Brasileira de Agentes de
Propriedade Industrial (ABAPI) e do Conselho de Ética do Município de Cariacica.
Apresentação

A Academia Brasileira de Direitos Humanos – ABDH – tem uma carac-


terística que lhe é peculiar como instituição: é inquieta por natureza.
Com esse, por assim dizer, desassossego intelectual, quem ganha é a so-
Um vôo rasante pela extensão hermenêutica da impossibilidade de
plenitude invoca os ares da humildade, ao revelar-se limitado o raio de
ação do Direito. Até porque seus interstícios convivem com a elasticida-
ciedade. Esta, eventualmente, é brindada com a chance de reciclar conhe- de da política, nem sempre alinhada à lógica interpretativa dos signos
cimentos em âmbito dos direitos fundamentais do ser humano, por meio cristalinos de seus códigos.
de eventos e obras trazidos à luz por esta orgânica Academia. Mas, a ABDH nunca se dá por vencida. Acredita que o substrato jurí-
Seria impossível à ArcelorMittal Tubarão apenas apresentar esta dico ainda seja um caminho eficaz para se minimizar arestas, iluminar
obra, sem discorrer, ainda que minimamente, sobre a personalidade ins- consciências e por em xeque a inaceitável, e ainda latente, possibilidade
titucional que insuflou a iniciativa deste livro que lhe está às mãos. de injustiça. Assegurar a proteção, individual, coletiva ou difusa à pes-
Entidade jovem, mas com feitos dignos de um decano, poderíamos es- soa ou a um grupo delas, nos remete à chance de minimização do sofri-
colher aqui muitas perspectivas para um reconhecimento à ABDH. Opta- mento, pessoal ou social. Para isso, uma direção segura é evitar retro-
mos pela inquietude, porque esse nos parece o combustível que a inspira visores e descortinar horizontes por meio da antevisão, valendo-se dos
a integrar visões inovadoras e variadas quanto aos Direitos Humanos, olhos e das vozes dos que se prestam a pensar organicamente, tendo a
como a própria pluralidade dessa matéria diversa e que requer um contí- realidade como foco e a lei como prioridade.
nuo diálogo com a atualidade. Do contrário, os artigos aqui reunidos não Aqui está o Direito das Futuras Gerações, com todos os opcionais de
passariam de um desfile estético do academicismo e da extemporaneida- vanguarda que seus autores, no auge de suas performances, se propõem
de. Afinal, as relações humanas expandem-se, cada vez mais, em volume, a oferecer. Em um tempo de modernos holocaustos e da persistência de
abrangência e complexidade, exigindo um acompanhamento arguto de tantas formas de preconceito, de sofrimento evitável e descaso socio-
necessidades jurídicas crescentemente atuais, inter e transdisciplinares. ambiental, a ArcelorMittal Tubarão, sempre alinhada à legalidade, à ci-
A despeito da condição humana exibir facetas múltiplas, seus dile- ência e à tecnologia, tem o prazer de lhes oportunizar a apresentação de
mas e conflitos, inevitavelmente, circunscrevem-se à órbita de um cerne mais esta grande realização da ABDH. Senão uma forma da instituição
atômico e transversal que a sociologia ousou classificar como a “questão traduzir, mais uma vez, sua bem-vinda inquietude; então a materializa-
social”. Só é possível dividi-la em temas para facilitar a compreensão e ção de novas possibilidades para se transformar o amanhã.
a ação didaticamente, na tentativa hercúlea de transformar Direito em
Sidemberg Rodrigues
Justiça. Ao menos até onde as limitações o permitirem, ainda que soe
pretensioso, a esse respeito, ultrapassar as raias da utopia. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direitos Humanos - ABDH
Limites invisíveis – e nem tão invisíveis assim – desviam a possibilidade Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP
de se manterem genuínos e plenos os princípios fundantes de um sujeito, se- Presidente do Conselho Superior de Sustentabilidade e Responsabilidade Social da
quer consciente de seus direitos e de que será inexoravelmente condenado a Federação das Indústrias do ES – FINDES

protagonista de sua própria história. Contudo, a Justiça, como proteção, em Membro do Conselho de Responsabilidade Social da Confederação Nacional da
Indústria – CNI-DF
muito poderá amenizar processos de individuação, por vezes muito doloro-
Gerente de Responsabilidade Corporativa, Relações Institucionais e
sos, aos que tentam traçar trajetórias existenciais sem o amparo da lei. Comunicação da ArcelorMittal Tubarão
Prefácio

A comunidade jurídica e a sociedade civil celebram o lançamento


de mais uma obra organizada pela Academia Brasileira de Direi-
tos Humanos (ABDH). Mantendo sua tradição democrática, multidis-
Liberdade, igualdade e fraternidade – os elementos básicos do
constitucionalismo – são substituídos, como sugere Denninger, por
uma nova tríade: segurança, diversidade e solidariedade. No pla-
ciplinar e de promoção dos direitos humanos, a ABDH congrega nova- no da diversidade, homens, mulheres, grupos étnicos e culturais,
mente nesta oportunidade um seleto grupo de autoras e autores que imigrantes, homossexuais e transexuais, pessoas com deficiências
nos presenteiam com artigos sobre o Direito das Futuras Gerações. e idosos recebem tratamento diferente pelo direito, pois os textos
Pensar o futuro é algo inerente à sociedade contemporânea. O fu- constitucionais passam a ser vistos como registros programáticos
turo não é mais um capricho dos deuses, é algo que a humanidade para objetivos e demandas de grupos. A solidariedade, que se as-
tem a pretensão de construir, mas o faz sobre as bases da incerteza, da socia às noções de “respeito para com os outros” e de “espírito co-
contingência, do risco. É neste cenário que precisamos refletir critica- mum”, assume caráter transnacional e intergeracional. A segurança,
mente sobre o papel do Direito, das instituições e das forças democrá- por sua vez, deixa de significar a mera certeza jurídica, assumindo o
ticas para lidar com esse novo paradigma social. Para tanto, o Direi- prospecto de ilimitada e interminável atividade de proteção estatal
to precisa se soltar da ótica puramente retrospectiva que por tanto em favor do cidadão contra perigos sociais, tecnológicos, ambien-
tempo marcou sua tradição. É preciso olhar para o passado e para o tais, terroristas e da criminalidade.
presente com consciência do futuro. Não se trata de futurologia – o Esta reestruturação, todavia, não ocorre sem percalços. O pró-
jurista não é o novo oráculo da sociedade –, porém a atenção deve ser prio Estado nacional, no modelo westfaliano, já não consegue res-
voltada não somente aos fatos pretéritos, mas também ao que pode ponder às demandas ligadas aos riscos e desafios globais, exigindo
acontecer; não podemos perder de vista como os direitos e as políticas a criação de novas instituições transnacionais. Novas tecnologias
públicas que hoje plantamos (ou deixamos de plantar) vão impactar o desenvolvem-se em ritmo muito mais acelerado do que a produção
mundo e as futuras gerações. de normas jurídicas voltadas à sua regulação, e, com isso, parcela do
Como poderia se esperar, este cenário induz a transformações na poder legislativo é transferida a órgãos burocráticos sem legitima-
estrutura do Estado de direito e da Constituição. O Estado de direi- ção democrática. O progresso científico da biomedicina e da nano-
to passa a se preocupar não somente com a regulação das relações tecnologia testam os limites éticos que nos definem como humanos.
civis, comerciais e trabalhistas, ou das prestações da seguridade so- Leigos e experts – e até experts entre si – discordam sobre temas
cial. O desenvolvimento deixa de ser visto como algo intrinsicamen- fundamentais para a sociedade, afastando o ideal de consenso. Tri-
te bom, podendo gerar efeitos indesejados. Começa a se desenvolver bunais passam a julgar pelas consequências, desvinculando-se do
ao longo da última metade do século passado a chamada regulação código próprio do sistema jurídico. Além disso, a exigência de pro-
do risco, manifestando-se através de textos constitucionais, progra- teção pode dar lugar à implantação de um estado de exceção per-
mas legislativos e administrativos, orientados à proteção da saúde, manente e à supressão da intimidade privada, como se observa na
do meio ambiente, do consumidor, das pessoas em situação de vulne- infindável “guerra ao terror”. O desafio, portanto, é garantir a defesa
rabilidade, enfim, à proteção aos que suportam os efeitos dos riscos dos direitos das futuras gerações sem perder as garantias constitu-
produzidos na sociedade. cionais até aqui duramente conquistadas.
Prefácio

Sumário

Introdução ________________________________________________ 20
Constitucionalismo e Futuras Gerações
1. O futuro dos direitos humanos e o constitucionalismo do futuro
Estas e outras questões são objeto da notável coleção de artigos (Jose Luis Bolzan de Morais & Gustavo de Oliveira Vieira).
que compõem mais esta obra da ABDH. Diversos autores, variados
assuntos, mas formando um todo coeso sobre o tema do Direito das
___________________________________________________________ 27
Futuras Gerações agrupados nos tópicos Constitucionalismo e Futu- 2. Constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil? Refle-
ras Gerações, Novas Tecnologias, Questão Genética e Autonomia so- xões a Partir da Ideia de um Direito das Futuras Gerações (José Emí-
bre o Próprio Corpo, Sustentabilidade e Meio Ambiente, Alteridade e lio Medauar Ommati).
Ética com Responsabilidade, Democracia Participativa e Identidade
Cultural. Convido-os a lerem esta obra, que, certamente, tornar-se-á
__________________________________________________________ 45
uma referência obrigatória sobre os direitos humanos na atualidade. 3. Multilevel governance of interdependent public goods in the 21st
century: from national to multilevel and cosmopolitan constitutio-
nalism? (Ernst-Ulrich Petersmann).

__________________________________________________________ 65
4. European Union’s Struggle for Gaining Food Safety Regulatory
Autonomy under World Trade Organization Dispute Settlement
Mechanism (Anamaria Toma-Bianov).

___________________________________________________________ 87
Novas Tecnologias
5. O que pode o direito frente às novas tecnologias
(Paulo Roberto Ulhoa).

_________________________________________________________ 105
Doutor Alceu Mauricio Junior
Questão Genética e Autonomia sobre o Próprio Corpo
Professor Universitário - Universidade Vila Velha (UVV-ES) - Faculdade de Direito. 6. Old and new rights in the postgenomic era (Carla Faralli).
Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio.
__________________________________________________________ 121
É Mestre em Direito Público pela UERJ e Bacharel em Direito pela UFBA.
7. Melhoramento humano: de ser para coisa? Uma abordagem a
Cursou especialização na American University, Washington College of Law.
partir da (des)construção da personalidade (Leana Mello & Tiago
Foi bolsista da Comissão Fulbright e do Departamento de Estado dos EUA
(H. Humphrey Fellowship Program). Vieira Bomtempo).
É Juiz Federal na 2ª Região (RJ e ES) _________________________________________________________ 135
8. Eutanásia no sistema jurídico brasileiro: a urgência de uma nova 16. O “bullying” como fator estigmatizador das crianças advindas
análise sob o prisma dos princípios da dignidade humana e da auto- de famílias homoafetivas e a necessidade de alteração dessa men-
nomia privada (César Fiuza & Júlia Cristina Faleiro Urbano). talidade como forma de construir o “cidadão do futuro” (Jackelline
_________________________________________________________ 153 Fraga Pessanha & Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes).
9. O direito das gerações futuras entre a livre disposição do próprio cor- _________________________________________________________ 293
po e os “amputees by choice” (Julia Silva Carone & Julio Pinheiro Faro). 17. Infância e erotização precoce (Maria Beatriz Nader & Thaísa Nunes).
_________________________________________________________ 175 _________________________________________________________ 313
Sustentabilidade e Meio Ambiente 18. O dever de educar e o ensino domiciliar (Ronaldo L. B. Segundo &
Daury Cesar Fabriz).
10. A Sustentabilidade como Paradigma na Construção do Esta-
do Contemporâneo e da Sociedade Civil na Contemporaneidade _________________________________________________________ 321
(Elizabeth de Mello Rezende Colnago). 19. A construção social do criminoso: um diálogo entre o direito
_________________________________________________________ 185 penal e a psicanálise a partir da perspectiva dos direitos humanos
(Jovacy Peter Filho & Filipe Knaak Sodré)
11. Dos cata-ventos ao desenvolvimento: o papel da energia eólica
na concretização da sustentabilidade energética nacional (Ingrid _________________________________________________________ 335
Zanella Andrade Campos, Karoline Lins Câmara Marinho de Souza
Democracia Participativa
& Mariana de Siqueira).
__________________________________________________________ 211 20. Participative democracy and the fiscal issue (Katia Blairon).

12. Por mares nunca de antes navegados: gestão do risco e investiga- _________________________________________________________ 353
ção científica no meio marinho (Carla Amado Gomes).
21. O “Coronelismo” e a Democracia Brasileira: um breve ensaio
_________________________________________________________ 223 reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento das
13. A Exclusão Ambiental no Brasil: uma discussão do racismo campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de
ambiental e da biopolítica (Ivy de Souza Abreu). Victor Nunes Leal (Luís Carlos Martins Alves Jr.).
_________________________________________________________ 235 _________________________________________________________ 371
Alteridade e Ética com Responsabilidade 22. Submissões, Permissões e Pactos: Democracia, Constituição e a Al-
ternativa do Estado Plurinacional (José Luiz Quadros de Magalhães).
14. A Ética da Alteridade e da Responsabilidade e a Hermenêuti-
ca Diatópica: um diálogo entre Lévinas e Panikkar e a busca pelo _________________________________________________________ 393
Reconhecimento do Outro na Construção Intercultural dos Direitos
Humanos (Heleno Florindo da Silva). Identidade Cultural

_________________________________________________________ 263 23. Controversias sobre el reconocimiento de la identidad cultural


como derecho (J. Alberto del Real Alcalá).
15. O julgamento da ADPF n. 132 pelo STF como um caso mode-
lo de uso de uma interpretação construtiva do Direito (Flávio _________________________________________________________ 415
Quinaud Pedron).
_________________________________________________________ 281
Introdução
as futuras gerações. A escritora brasileira, Clarice Lispector, em A Pai-
xão segundo G.H., afirmava: “tenho medo do que é novo e tenho medo

Introdução de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos
estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação”.
Assim é que se apresenta a temática trazida nesta obra. O fim a ser
alcançado com a análise crítica dos direitos das futuras gerações nos en-
saios aqui reunidos é trazer à tona, além de importantes contribuições
para o desenvolvimento econômico-social, bem como para o avanço das
O TEMPO DOS DIREITOS HUMANOS E O ciências e do pensamento contemporâneo, também objetiva tratar das
DIREITO DOS DIREITOS HUMANOS DAS feridas que a sociedade gerou a seus pares, como é o caso do preconceito
FUTURAS GERAÇÕES: UMA INTRODUÇÃO e desrespeito social às diferenças e da omissão Estatal em regular efeti-
vamente as condutas, a fim de impedir sua disseminação.
Julio Pinheiro Faro
Essas palavras introdutórias ao novo livro da ABDH têm, assim, o
Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes
propósito de mostrar a relação entre os vinte e dois ensaios reunidos,
Jackelline Fraga Pessanha
para que o leitor tenha uma visão ampla dos mais variados temas discu-
tidos. O seu fio condutor propõe que os trabalhos reunidos dialoguem

E m uma época em que as incertezas são cada vez mais certas, em que
as vontades se amoldam ao sabor da última moda, em que os es-
forços envidados por órgãos e organizações pela preservação do meio
sobre o Direito das futuras gerações, ainda que não sigam uma mesma
matriz teórica, nem adotem metodologias iguais ou parecidas, já que
seus autores pertencem a escolas de pensamento diversas. A beleza de
ambiente, pelo uso de energias renováveis, pelo respeito às diferenças, uma obra coletiva está nisso, na liberdade e na autonomia dada aos co-
pelas pesquisas biológicas, pela ética com responsabilidade, enfim, por laboradores convidados para escolher quais temas e quais abordagens
uma participação mais democrática e por uma cooperação entre as irão demonstrar dentro da temática central proposta.
pessoas, a Academia Brasileira de Direitos Humanos – ABDH lança sua O livro inicia com dois ensaios voltados para o constitucionalismo e as
nova obra coletiva, com uma reunião de ensaios sobre o Direito das fu- futuras gerações. No primeiro, de José Luiz Bolzan de Morais e Gustavo de
turas gerações. Trata-se de um contributo para que a sociedade cada Oliveira Vieira, sobre O futuro dos direitos humanos e o constitucionalismo
vez mais seja menos individualista e estabeleça laços mais firmes de do futuro, os autores discutem as consequências da condição pós-nacional,
cooperação para as presentes e futuras gerações. promovida pela globalização e que impõe uma revisão do Direito, para ins-
Pensar o que ocorre no presente não é uma tarefa fácil. Projetar o taurar, assim, um debate necessário sobre o presente e o futuro dos Estados
futuro, muito menos. Essa coletânea de artigos demonstra a preocu- nacionais constitucionais e sua relação com os direitos humanos. No se-
pação da Academia com o tratamento dado pela sociedade aos direitos gundo, Constitucionalização do direito administrativo no Brasil? Reflexões
humanos no tempo, tanto em relação ao que já foi reconhecido quanto a partir da ideia de um direito das futuras gerações, José Emílio Medauar
ao que tem sido debatido, e aguarda, por isso, melhores desenvolvimen- Ommati discute a possibilidade de constitucionalização do Direito admi-
tos teóricos e legislativos. Nesse sentido, o direito das futuras gerações nistrativo brasileiro a partir de um direito genérico das futuras gerações.
apresenta um fio condutor que tem estreita relação com o tempo e sua No ensaio seguinte, Multilevel governance of interdependent public
influência sobre os direitos humanos. goods in the 21st Century: from national to multilevel and cosmopolitan
O futuro deve ser pensado, refletido e colocado em prática. As pesso- constitutionalism?, Ernst-Ulrich Petersmann discorre a necessidade da
as não estão entregues ao acaso. Para que haja um avanço da civilização, existência de um constitucionalismo cosmopolitano para uma melhor
sempre foi necessário planejamento. Nesse sentido, a presente obra tem proteção dos bens públicos internacionais, em benefício dos cidadãos e
por escopo uma análise crítica dos mais variados temas que envolvem de seus direitos constitucionais. Com uma reflexão parecida, Anamaria

20 21
N N
Introdução

Toma-Bianov, em European Union’s struggle for gaining food safety re- ecológica mundial, criando-se uma governança ambiental direcionada
gulatory autonomy under World Trade Organization dispute settlement para o desenvolvimento da sustentabilidade, especialmente para a ma-
mechanism, examina como a União Europeia defende sua autonomia nutenção dos direitos das futuras gerações. Também discorrendo sobre
regulatória na criação de padrões e medidas de segurança alimentar a sustentabilidade, Ingrid Zanella Andrade Campos, Karoline Lins Câ-
diante do cenário internacional. mara Marinho de Souza e Mariana de Siqueira debruçam-se, em Dos
Na sequência, Carla Faralli, em Old and New Rights in the Postgeno- cata-ventos ao desenvolvimento: o papel da energia eólica na concretiza-
mic Era, abre o rol de ensaios sobre a questão genética e de autonomia ção da sustentabilidade energética nacional, sobre o estudo do dever do
sobre o corpo humano. Em seu trabalho, Faralli discorre sobre o Projeto Estado de prover fomento à energia eólica e sua relação com o princípio
Genoma Humano e as implicações morais, sociais e jurídicas dessa pes- constitucional de desenvolvimento. Ainda no tema, em seu Por mares
quisa, especialmente no âmbito dos direitos humanos e sua proteção nunca de antes navegados: gestão do risco e investigação científica no
em nível internacional. meio marinho, Carla Amado Gomes analisa a questão da proteção do
Seguindo esse tema, Leana Mello e Tiago Vieira Bomtempo, em Me- meio ambiente marinho diante das intervenções humanas, voluntárias
lhoramento humano: de ser para coisa? Uma abordagem a partir da (des) e involuntárias, e a necessidade de haver uma gestão racional dos recur-
construção da personalidade, analisam a cláusula geral da tutela da pessoa sos do mar para prevenção de riscos. Por fim, Ivy de Souza Abreu analisa,
humana a partir do biodireito, considerando as descobertas cujo foco é a em A exclusão ambiental no Brasil: uma discussão do racismo ambiental
melhoria da qualidade de vida, contrapondo a questão do uso de meios ar- e da biopolítica, a questão da biopolítica e do biopoder e sua influência
tificiais na busca da perfeição e os direitos de personalidade, questionando, nas decisões estatais e sua face excludente diante de questões ambien-
assim, como as escolhas pessoais, isto é, a autonomia pessoal pode cons- tais, gerando um tipo de biorracismo (outsiders ambientais).
truir ou desconstruir a personalidade humana. Também refletindo sobre a Abrindo o tema da alteridade e reconhecimento do outro e ética com
autonomia humana e os direitos relacionados à personalidade, César Fiuza responsabilidade, em A ética da alteridade e da responsabilidade e a her-
e Júlia Cristina Faleiro Urbano analisam, em Eutanásia no sistema jurídico menêutica ditópica: um diálogo entre Lévinas e Panikkar e a busca pelo
brasileiro: a urgência de uma nova análise sob o prisma dos princípios da reconhecimento do outro na construção intercultural dos direitos huma-
dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, essa prática de abre- nos, Heleno Florindo da Silva demonstra a necessidade de reconhecer o
viar a vida sob os princípios da dignidade humana e da autonomia da von- outro (alter) para que se possa alcançar uma construção intercultural dos
tade, buscando subsídios para sua legalização. Terceiro ensaio que compõe direitos humanos, a fim de dar voz e de respeitar as diferenças culturais.
essa lista no debate sobre a autonomia da vontade é o de Julia Silva Carone Também com o mesmo tipo de reflexão sobre alteridade, temos o manus-
e Julio Pinheiro Faro, que, em O direito das gerações futuras entre a livre crito O Julgamento da ADPF n. 132 pelo STF como um caso modelo do uso
disposição do próprio corpo e os “amputees by choice”, fazem uma análise de uma interpretação construtiva do Direito, que traduz uma abordagem
sobre a possibilidade de o ser humano, por ter liberdade de disposição so- atual e recente acerca do tema relacionado à interpretação constitucional e
bre seu próprio corpo (autonomia), amputar membros saudáveis. as uniões homoafetivas. Seguindo ainda com o debate acerca da homoafe-
Apresentando o tema voltado às novas tecnologias, Paulo Roberto tividade e seus reflexos na sociedade contemporânea, em Bullying e homo-
Ulhoa, em O que pode o direito frente às novas tecnologias, destaca a impor- afetividade: necessidade de mudança de paradigmas para a construção do
tância das novas tecnologias para a comunicação entre as pessoas, visando “cidadão do futuro”, Jackelline Fraga Pessanha e Marcelo Sant’Anna Vieira
a inclusão digital que está diretamente vinculada à exclusão econômica e Gomes discutem a falta de respeito ao próximo, cada vez maior na socieda-
educacional, como fundamento básico para o exercício da cidadania. de, especialmente naquilo em que se refere ao preconceito contra crianças
Abrindo a questão ambiental, A sustentabilidade como paradigma e adolescentes inseridas em famílias homoafetivas.
na construção do Estado contemporâneo e da sociedade civil na contem- Maria Beatriz Nader e Thaísa Nunes analisam, em Infância e a eroti-
poraneidade, de Elizabeth de Mello Rezende Colnago, traz uma reflexão zação precoce, como o sentimento de infância e o fenômeno da erotiza-
sobre a necessidade de haver conscientização sobre a percepção da crise ção precoce se formaram historicamente, focando o paradoxo da infân-

22 23
N N
Introdução

cia, o qual distingue a criança do adulto do ponto de vista econômico, e


que desafia e condiciona a menina a se portar, em condições sociais, à
imagem de sua mãe.
Na sequência, Ronaldo L. B. Segundo e Daury Cesar Fabriz discorrem
sobre O dever de educar e o ensino domiciliar, abordando questões rela-
tivas à possibilidade de os pais cumprirem adequadamente seu dever de
prover educação aos filhos mediante o ensino domiciliar, especialmente no
que diz respeito à formação das gerações futuras.
Por fim, ainda abordando a questão do outro, Jovacy Peter Filho e Fili-
pe Knaak Sodré, em A construção social do criminoso: um diálogo entre o
direito penal e a psicanálise a partir da perspectiva dos direitos humanos,
analisando o quanto a sociedade contemporânea rotula e tarifa as pessoas,
atribuindo-lhes estigmas.
Abrindo os artigos sobre democracia, Katia Blairon trata sobre a ques-
tão deliberativa na democracia relacionando interesse coletivo e questão
orçamentário-fiscal dentro do sistema representativo em Participative
democracy and the fiscal issue. Também no viés da democracia, porém
no contexto brasileiro, Luís Carlos Martins Alves Jr. faz uma análise, em
O “coronelismo” e a democracia brasileira: um breve ensaio reflexivo sobre
a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento de campanhas eleitorais,
sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal, de um recente
julgado da mais alta corte judicial brasileira sobre a questão democrático-
-eleitoral brasileira. Ainda sobre democracia, em Submissões, permissões e
pactos: democracia, constituição e a alternativa do Estado plurinacional,
José Luiz Quadros de Magalhães reflete sobre a relação entre democracia
e constituição dentro de uma alternativa democrática dialógica, não hege-
mônica e pluridiversificada do Estado plurinacional.
Por fim, há o ensaio de J. Alberto del Real Alcalá a respeito das Contro-
versias sobre el reconocimiento de la identidad cultural como derecho, em
que defende o reconhecimento positivo progressivo do direito à identida-
de cultural como um direito generalizado das pessoas individuais, e não
como um direito restrito a grupos.

24
N
Constitucionalismo e
Futuras Gerações
1
O FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS E O
CONSTITUCIONALISMO DO FUTURO

Jose Luis Bolzan de Morais


Gustavo de Oliveira Vieira

1  C
 ONSIDERAÇÕES INICIAIS: NOTAS SOBRE
O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DOS
DIREITOS HUMANOS

A temática sugerida nesta intervenção busca refletir acerca das in-


terfaces que se pode promover entre os tópicos presentes no título
deste trabalho diante das perplexidades postas pelo fenômeno da mun-
dialização em suas diversas facetas. Ou seja, pretendemos aqui promo-
ver uma rápida reflexão no que diz com os vínculos que se apresentam
entre a questão da mundialização, como um fenômeno renovado no fi-
nal do século XX e início do atual, dos Direitos Humanos, como projeto
histórico de construção da dignidade humana, e do constitucionalismo,
a partir de seus vínculos modernos com o Estado Nacional e da situação
nova que se apresenta com o processo de desterritorialização e reconfi-
guração das fronteiras “modernas”.
Não podemos nos furtar ao enfrentamento deste tema se quisermos
dar vazão, com um certo grau de suficiência, ao necessário debate acerca
do presente e do futuro dos nomeados Estados Nacionais Constitucio-
nais, como Estados Democráticos, mesmo rompendo, desconstruindo e
reconstruindo seus espaços e estratégias de atuação.
Partindo deste pressuposto queremos sugerir uma leitura que vei-
cule um ponto de vista que parte da contradição entre duas propostas
distintas para aquilo que adiante nomearemos de um projeto mundial
com exequibilidade local.
Assim, desde logo poderíamos adiantar que se fossemos titulares de

27
N
uma resposta à interrogação suscitada pelo tema enfrentado, seríamos la ser uma bebida mundial, global ou universal não faz diferença. Agora,
tentados a dizer que a mundialização em seu sentido estrito, como pro- se formos sair do campo dos objetos, produtos ou técnicas, para os va-
jeto econômico hegemônico, unilateral e, por consequência, uniformi- lores, o sentido dos termos universal e mundial se diferencia profunda-
zante, aparece como uma perversa farsa que impõe (pretende impor) mente, sendo que a mundialização refere à difusão espacial de um pro-
um padrão único e totalizante – para sermos eufemísticos – de condu- duto, de uma técnica ou de uma ideia enquanto que a universalização
tas, interrogando tanto o Direito quanto a Democracia – o constitucio- implica um partilhar de sentidos2.
nalismo, portanto – enquanto mecanismos e vias de acesso e concreti- Assim, para Mireille Delmas-Marty, deve-se operar com a distinção
zação dos Direitos Humanos. mundialização da economia/universalização dos Direitos Humanos,
Por outro lado, se pensarmos a mundialização não enquanto tal, mas enquanto o termo mundialização manteria uma neutralidade, evitan-
como um projeto civilizatório que conjuga uma perspectiva universal do-se o primado da economia sobre os Direitos Humanos3.
que se constrói em escala mundial e se concretiza no plano local a partir
de padrões compartilhados de justiça e de interações variadas entre os
diversos âmbitos onde se desenrolam as relações sociais contemporâne-
as – local, regional, nacional, supranacional, mundial, cosmopolita, em
2  DIREITOS HUMANOS PARA
uma circularidade construtiva/destrutiva/(re)construtiva –, seríamos ALÉM DO ESTADO NAÇÃO
conduzidos a dizer que estaríamos, então, diante de uma nova perspecti-
va se quisermos construir uma sociedade justa e solidária, sob o viés de
uma interação cosmopolita em um ambiente que Habermas nomeia de
mundialização dos riscos ou que Ulrich Beck chama sociedade de riscos.
E m primeiro lugar é necessário pensar a questão do chamado Estado
de Direito e tomá-la sob as suas diversas vertentes, a saber: liberal,
social e democrática de direito, para explorar o modo com que os Di-
Quem sabe poder-se-ia falar, desde uma lógica humanitária, em um reitos Humanos se circunscrevem e ao mesmo tempo transbordam o
pensamento universal democrático que, ao mesmo tempo em que se “espaço” institucional do Estado nacional.
pretende “global”, não visa à diluição das diferenças, harmonizando e Neste sentido, convém ter presente que a cada momento destes o
não unificando posições. projeto do Estado de Direito, ao mesmo tempo em que incorpora con-
A partir desta premissa o tema proposto sugere a possibilidade de teúdos novos – liberdades, igualdades e solidariedades – projeta uma
uma leitura desde três vertentes1, a saber: a) da política, percebida desde atuação estatal privilegiadora de uma de suas funções – legislativa, exe-
a democracia, sugerindo a sua necessária universalização e qualifica- cutiva e jurisdicional, respectivamente –, bem como supõe garantias,
ção, projetando-se por sobre as duas outras vertentes seguintes; b) do prestações ou transformações.
direito, tomado a partir do constitucionalismo, do Estado de Direito e Hoje, sob o influxo do chamado Estado Democrático de Direito es-
dos Direitos Humanos, sugerindo a sua mundialização desde, por óbvio, tá-se imerso, ao mesmo tempo, em um projeto de transformação da so-
seu caráter universal - não homogêneo; c) da economia, em sua interco- ciedade, por um lado, e, por outro, em um esfacelamento das condições
nexão planetária, tomada desde o seu caráter de mundialização e sua necessárias e suficientes para a sua concretização.
necessária vinculação ao projeto que poderíamos identificar com o Es-
tado Democrático de Direito.
2 .  Ver: LAÏDI, Zaki. Malaise dans la Mondialisation. Entretien avec Philippe Petit., pp. 28-29,
Para tanto, podemos utilizar o exemplo comparativo proposto por apud DELMAS-MARTY, Mireille, Trois défis pour um droit mondial. Paris: Seuil. 1998, p. 14.
Philippe Petit em entrevista a Zaki Laïdi segundo o qual para a Coca-co- 3 .  Para ela: Du côté de l’économie, et plus précisément du droit économique, il s’agit en
effet de globalisation si l’on entend par là une diffusion spatiale à l’échelle du globe; mais
ce sera le plus souvent une diffusion unilatérale, donc uniformisante et non pluraliste.
1 .  Esta segmentação tem apenas um caráter organizativo da discussão, não pretenden- D’où le risque évident d’une mondialisation hégémonique, qui n’exprime rien d’autre que
do, com isso, significar uma leitura segmentada do problema. Da mesma forma, esta tri- l’éternelle loi du plus fort.Quant aux droits de l’homme, ils sont en effet porteurs de sens,...,
partição não será objeto de análise pontual no presente texto. comme notre langage commun, à vocation universelle...Ver: DELMAS-MARTY, op. cit., p. 15

28 29
N N
Tal perspectiva nos põe frente ao problema dos Direitos Humanos, ta geração de direitos que incorporariam novas realidades, tais como
como veremos a seguir que é, a nosso ver, outro pilar desta discus- aquelas afetas às consequências, e.g., da pesquisa genética.
são, para que entendamos privilegiadamente o quadro das relações Por outro lado, é preciso que, para além da aceitação desse aspecto
internacionais contemporâneas, em especial no que diz respeito ao mutante, agregue-se ao nosso estudo a perspectiva de que a transfor-
problema da soberania. mação histórica não significou apenas a incorporação de outros di-
Parece-nos fundamental a compreensão não só do estabelecimen- reitos aos já consagrados. A inovação repercutiu também, profunda-
to, mas, em especial, do conteúdo dos ditos Direitos Humanos, assim mente, em um aspecto que poderíamos nomear temporariamente de
como do processo de transformação por que passam com a emergên- abrangência, além de fragilizar o seu caráter de conteúdos negativos.
cia de novas realidades. Embora sempre presente a universalidade, os Direitos Humanos fo-
Neste sentido, é mister que tracemos breves considerações a respei- ram primeiramente aqueles pertencentes a certas parcelas da huma-
to do tema, na tentativa de lograr o estabelecimento de uma compreen- nidade, mas, mais do que isto, representavam, acima de tudo, direitos
são mínima acerca do papel reservado aos Direitos Humanos. individuais, ou seja, direitos incorporados ao patrimônio singular de
Para tanto, é preciso que se tenha desde logo a aceitação de que os cada indivíduo, malgrado o acesso possível de todos. A construção de
Direitos Humanos, como tais, não formam um conjunto de garantias novos Direitos Humanos, frutos de uma sociedade que se expandia
cujo conteúdo possa ser adquirido e construído de uma vez por todas. economicamente e que produzia novos carecimentos, distintos dos
Não são direitos elaborados a partir da compreensão do que seja uma anteriores, implicou na elaboração de direitos que não mais seriam
dada “natureza” inerente à pessoa humana, como fora pensado em de- apropriáveis individualmente, mas, cuja dimensão se espraiaria para
terminados momentos históricos - veja-se o caso de John Locke, para agrupamentos inteiros de indivíduos que se reúnem sob determinada
quem, com o desvelamento do conteúdo desta “natureza” seria viável situação que lhes é comum – os direitos de segunda e terceira gerações
a elaboração dos próprios Direitos Humanos. O que se deve ter como referem à ideia de um compartilhamento de situações em função dos
assente, portanto, é o caráter fundamentalmente circunstancial, o que interesses transindividuais que versam4.
não significa necessariamente efêmero, destes. Em razão mesmo deste Quando adentramos nos chamados Direitos Humanos de terceira
caráter de historicidade que deve ser posto sob evidência no trato dos geração somos tomados pela percepção de que estamos diante, efeti-
Direitos Humanos observa-se a total inadequação da tentativa de se es- vamente, de uma nova realidade para os Direitos Humanos que, nes-
tabelecer qualquer sentido de absolutização na definição dos mesmos. te momento, se apresentam como detentores de uma “universalidade
Tal assertiva pode ser corroborada inapelavelmente pela transfor- comunitária” no sentido de que o seu objeto diz respeito a pretensões
mação que se percebe nos próprios Direitos Humanos desde a sua for- que atingem inevitavelmente a comunidade humana como um todo.
mulação mais festejada no transcurso do século XVIII. Percebe-se nes- Não se trata mais de fazer frente ao arbítrio do Estado relativamente
te percurso a transposição dos chamados direitos de primeira geração a determinados indivíduos, nem mesmo de demandar a solução/garan-
(direitos da liberdade), circunscritos às liberdades negativas como de tia de certas pretensões/benefícios a grupos determinados de pessoas.
– aparentemente – oposição à atuação estatal, para os de segunda gera- Trata-se, isto sim, de fomentar o caráter solidário do homem, fazendo-o
ção (direitos sociais, culturais e econômicos), vinculados à positividade compreender uma espécie de destino comum que o prende aos demais.
de tal ação e preocupados com a questão da igualdade, aparecem como A violação não se estabelece mais na relação do indivíduo com o Estado,
pretensão a uma atuação corretiva por parte dos Estados e, posterior- sequer a pretensão se dirige a um Estado. Ambas refletem como que
mente, os de terceira geração que se afastam consideravelmente dos an- uma corresponsabilidade pela qualidade e continuidade da vida huma-
teriores por incorporarem, agora sim, um conteúdo de universalidade na. A garantia ou a violação afetam a todos inexoravelmente.
não como projeção, mas como compactuação, comunhão, como direitos
de solidariedade, vinculados ao desenvolvimento, à paz internacional, 4 .  BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais:
ao meio-ambiente saudável, à comunicação. Fala-se, já, de uma quar- O Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

30 31
N N
Como se vê, há uma realidade mutante nos Direitos Humanos que madas alhures, ou mesmo, ter de se adaptar aos interesses e vontades do
implica na passagem das liberdades/garantias para os poderes/presta- capital transnacionalizado, em um mundo onde está substituindo-se a
ções e, por ora, para solidariedades, sem que isto signifique que a emer- política pelo mercado, como instância privilegiada de regulação social.
gência de uma nova geração imponha o desaparecimento, ou mesmo o Assim, se constrói um quadro onde essa soberania compulsoriamen-
enfraquecimento, da anterior. Cada uma delas dirige-se para circuns- te partilhada, sob pena de acabar ficando à margem da economia glo-
tâncias que lhes são próprias, embora se intercambiem. balizada, tem obrigado o Estado-Nação a rever sua política legislativa, a
Neste contexto é necessário revisitarmos, rapidamente, o ambiente reformular a estrutura de seu direito positivo, a redimensionar a juris-
privilegiado de expressão dos Direitos Humanos – a Constituição –, ten- dição de suas instituições judiciais mediante amplas e ambiciosas estra-
do presente, sempre, os seus próprios dilemas. tégias de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização,
O que temos vislumbrado, quando as Constituições dos Estados Na- implementadas paralelamente à promoção da ruptura dos monopólios
cionais e o próprio constitucionalismo moderno são revisitados, é a per- públicos, bem como promover amplos e profundos programas de “re-
da de significado e capacidade diretiva dos próprios Direitos Humanos, forma” dos instrumentos e programas de bem-estar social, além de en-
apesar de seu privilegiamento textual nas mais diversas Cartas Políti- frentar o que nomeamos fantochização da política como democracia.
cas contemporâneas, em razão da própria fragmentação desta. Neste contexto dramático de concorrência de poderes, a articulação
Assim, é necessário começar repensando acerca dos reflexos no entre estes diversos espaços, muitas vezes aponta para a flexibilização
constitucionalismo e nas Constituições, como documentos básicos e – para usar um termo da moda – do constitucionalismo, em sentida
fundamentais ordenadores da vida comunitária e da prática do poder fragilização das conquistas sociais obtidas ao longo de séculos de luta
político das questões trazidas pela dita mundialização. cidadã, embora em uma perspectiva otimista possa-se falar em uma
Tal interrogante passa, inicialmente, pelas questões postas pelo de- transformação do caráter soberano dos Estados Nacionais, passando
senvolvimento tecnológico e, particularmente, pelas transformações estes a operarem sob o signo da cooperação.
que esta e outras estratégias derivadas fazem repercutir na organiza- Na perspectiva humanitária tal contexto coloca o problema da con-
ção econômica e nas formas produtivas em escala mundial. cretização dos seus conteúdos. Este parece ser o grande ponto de es-
A mundialização – econômica - implica em uma radical mudança trangulamento de inúmeras questões ligadas a esta temática.
no perfil do Estado contemporâneo, particularmente em seu caráter Se, de um lado, o reconhecimento dos conteúdos das várias gerações
soberano, o que inexoravelmente se reflete sobre a sua capacidade de Direitos Humanos parece ser algo com o que as diversas correntes
de auto-organização. ideológicas sustentadoras dos mais diferentes governos podem convi-
Daí derivam, para o tema em tela, consequências significativas na me- ver e, mais do que isso, buscar legitimação interna e internacional, de
dida em que a fragilização das estruturas estatais e a perda de sua cen- outro a tentativa de dar-se efetividade aos mesmos esbarra nos mais
tralidade exclusivista e superior faz repensar a questão constitucional, diferentes empecilhos, seja de ordem prático-política - e aí estão os inú-
posto que as constituições foram sempre o reflexo da ocorrência do po- meros governos autoritários espalhados pelo mundo além das insufi-
der soberano dos Estados Nacionais dotados de um território – elemento ciências de ordem social para uma ordem efetivamente democrática -;
objetivo – e de um povo – elemento subjetivo – sobre e para os quais se seja de ordem teórico-jurídica - e aí estão as posições da tradição jurí-
constituíam e organizavam em um documento legislativo supremo as dica do Estado Moderno, em especial naqueles países orientados pela
formas e os conteúdos da vida política e social da comunidade. tradição jurídica romano-germânica, que impõem uma postura contra-
Desaparecido, transformado ou minimizado o poder característico ditória em face de uma convivência de ordens jurídicas diversas, par-
do Estado Moderno - a soberania -, pode-se perguntar para onde se diri- ticularmente entre o direito interno e o direito internacional, ou pela
ge o constitucionalismo, em especial quando o agigantamento do poder supremacia de um discurso jurídico liberal que privilegia a figura do
privado faz sombra à tradicional suprema potestade estatal, implicando, indivíduo como titular do direito desvinculada de suas relações sociais
muitas vezes, na sua incapacidade em reagir ou controlar as decisões to- e das interfaces ambientais; seja, ainda, de ordem econômica - e aí estão

32 33
N N
as propostas neoliberais orientadas por um projeto econômico globali- além do Estado nacional. E, mais do que isso, como prática político-ju-
zado e predatório, onde a orientação da política e do jurídico - reféns da rídica de enfrentamento das estratégias de mundialização dominadas
economia financeira do capitalismo neoliberal - se dá sob a égide de um pelas práticas do capitalismo financeiro – tornando-se cabíveis instru-
discurso calcado na ideia de eficácia, flexibilização, desregulação, etc., mentos de mobilização social capazes de reacender a esfera pública em
como apontada acima. novas condições de autonomia e emancipação política.
Pode-se sugerir, assim, que neste quadro, mais do que as estratégias No Brasil, a Constituição Federal de 1988, referenda alguns conteú-
normativas com base constitucional é o próprio sentido do poder políti- dos que nos conduzem a compreendê-la como inserida no rol daquele
co democrático representativo que se dilui – um projeto político comu- constitucionalismo cujo objeto fundante está nos Direitos Humanos,
nitário que movimentou utopias e forjou instituições e não se efetivou conjugados no espectro do princípio da dignidade da pessoa, os quais
em vários quadrantes se vê interrompido. devem orientar não apenas os trabalhos dos juristas, como também a
Apesar disso, cremos ser importante recuperar/retomar o debate atuação das autoridades públicas e da sociedade como um todo.
acerca da matéria visando compartilhar algumas preocupações no Deve-se ter presente, para além da carta de Direitos Humanos ex-
sentido de buscar mecanismos que nos permitam dar maior efetivida- pressa em seu interior e do caráter eficacial que lhe é atribuído - art.
de - no sentido dado pelo constitucionalista português Jorge Miranda 5o, § 1o da CFB/88 -, dentre outros, o disposto no art. 5o, § 2o do texto
- possível aos conteúdos normativos reconhecedores dos Direitos Hu- constitucional brasileiro.
manos em suas diversas expressões, bem como aos conteúdos e me- Esta norma inovadora se apresentava, até o advento da Emenda
canismos da política como democracia, em seu duplo aspecto formal/ Constitucional n. 45/04, como cláusula constitucional aberta, pois, a
procedimental e social/substancial. partir dela poder-se-ia construir a hipótese de que a mesma atribui na-
Pode-se dizer que, para além desta pretensão primária, muitas ou- tureza de norma constitucional aos tratados internacionais de Direitos
tras se colocam, podendo-se aduzir que: a) em primeiro lugar está, sem Humanos que o Brasil é parte, diante da assunção da dignidade huma-
dúvida, a importância da temática, a qual veicula as preocupações re- na e dos Direitos Humanos como axiomas do fenômeno constitucional,
lativas ao que há de fundamental para a construção de um quotidiano o que se vincula à legitimidade material da Constituição - uma fun-
digno para o ser humano; b) em seguida, pode-se referir a necessidade damentação substantiva para os atos do poder público afirmando-se
de constante revitalização não apenas dos conteúdos próprios destas como um parâmetro material, diretivo e inspirador dos mesmos, o que é
pretensões humanitárias mas, sobretudo, aos mecanismos que lhe dão fornecido pelo elenco dos Direitos Humanos.
efetividade, sendo indispensável que tenhamos sempre presente a ne- Entretanto, com a nomeada Reforma do Judiciário, e a inclusão de
cessidade de construirmos instrumentos cada vez mais facilitadores um novo parágrafo ao texto deste art. 5º, ingressa-se em uma nova
da colocação em prática e da possibilitação da usufruição destes con- fase, na qual tal “abertura” sofre um enclausuramento pela exigência,
teúdos – colocação em prática que necessariamente passará por uma para a internalização dos Tratados Internacionais de Direitos Huma-
mudança estrutural na condição político-econômica da distribuição de nos em sede constitucional após o entendimento jurisprudencial do
riquezas e benefícios sociais apropriados por minorias; e, c) por fim, no STF (RE 466.343), de um procedimento legislativo idêntico àqueles
caso brasileiro, é preciso que se busque, até mesmo pela experiência his- próprios às emendas à Constituição.
tórica, instrumentalizar os operadores jurídicos com os meios necessá- Assim, a atividade do jurista, como dito acima, deve ser a de con-
rios para uma prática comprometida com a eficácia dos Direitos Huma- signar máxima efetividade às Normas Constitucionais, ou seja, a uma
nos, especialmente a partir da promulgação da Carta Magna de 1988 que norma constitucional tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia
se assenta, fundamentalmente, na salvaguarda dos direitos e garantias lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as
fundamentais, na esteira, diga-se, do constitucionalismo contemporâ- outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação.
neo, estruturado sob a opção do Estado Democrático de Direito, com Como diz Konrad Hesse, a interpretação tem significado decisivo
o uso de mecanismos jurídicos/judiciosos de garantia de direitos para para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição,

34 35
N N
estando submetida ao princípio da ótima concretização da norma, mericana de Direitos Humanos no caso “A Última Tentação de Cristo”.
para que, assim, se viabilize um espaço valorizado de mundialização Simultaneamente, a abertura interna à normatividade externacio-
destes conteúdos. nal que acompanha o desenvolvimento dos direitos humanos e de ou-
Diante desse panorama, o transbordamento dos referenciais do Es- tro lado, no plano internacional o fortalecimento normativo, institu-
tado nacional produzido pelos Direitos Humanos não estariam a des- cional e jurisdicional, internacional, convergem à revisão de práticas
cerrar novos horizontes ao constitucionalismo? De que modo e sob que autoritárias tradicionais rumo à efetividade dos Direitos Humanos –
condições estas transformações podem ser lidas a partir da Teoria do se não, pelo menos constituem instrumentos de reforço crítico com
Estado e da Constituição? embasamento jurídico calcado na comunidade internacional para as
transformações do porvir.
Ou seja, estas divergências estão a indicar a necessidade de se lançar
novos olhares para o problema, permitindo que se construa uma dou-
3  O CONSTITUCIONALISMO trina que reflita a transição paradigmática da modernidade no campo
ENTRE INTERNACIONALIZAÇÃO, da teoria do Estado e do Direito5.
O exemplo da regulação dos Direitos Humanos, que integram as “fron-
DESTERRITORIALIZAÇÃO E teiras” do direito entre o interno e o internacional, aponta para a necessi-
ENRAIZAMENTOS LOCAIS dade de se recompor o constitucionalismo desde um de seus núcleos fun-
dantes, ao lado do tema da organização do poder político, como trazido nas

H á, ainda, um âmbito muito mais complexo a ser enfrentado, partin-


do-se, de um lado, das transformações sentidas nos e pelos arran-
jos político-institucionais modernos e, de outro, da pretensão de dotar
suas origens revolucionárias liberais – as liberdades, hoje consideradas em
toda sua extensão historicamente construídas e, ainda, inacabadas. Tra-
ta-se, assim, de acatar a tarefa de revisar os pressupostos tanto teóricos
os Direitos Humanos de uma “validação” global, com uma expansão quanto operativos do constitucionalismo, reconhecendo inclusive novas
geográfica não restringida por fronteiras nacionais, bem como não de- práticas e novas ambiências, sem abandonar suas tarefas históricas.
limitadas por estratégias de negação. A negação que pode ser reduto de Para Canotilho, estas constituições mantêm seu valor e função, mas
culturas autoritárias, resultante de pressuposições inautênticas – como saem do isolamento estatal para um ambiente rizomórfico, em rede,
a nomeada luta anti-terror capitaneada pelo governo estadunidense -, sem perder as suas funções identificadoras pelo fato de estarem em
ou consequência de práticas políticas assentadas em pressupostos xe- ligação umas com as outras funcionando como “meios de troca” e não
nófobos, de exclusão social – como nas recentes legislações de alguns como estruturas de fechamento, como característico dos modelos vin-
países europeus no trato da imigração. culados aos limites territoriais dos Estados Nacionais. A interconstitu-
Por outro lado, a experiência constitucional da América Latina põe cionalidade evoca a interorganizatividade e a interculturalidade cons-
em pauta a necessidade de um novo olhar para o tema. A Constituição titucional, pois, “o papel integrador dos textos constitucionais implica
da República do Chile, por exemplo, expressa, no artigo 5º, o reconheci- também inserir conteúdos comunicativos possibilitadores da estrutu-
mento da abertura da soberania em favor do respeito aos Direitos Hu- ração de comunidades inclusivas”6.
manos. Segundo a Constituição chilena, “o exercício da soberania reco- Dentre as diversas teses sobre os “novos espaços” e “novas interações”
nhece como limitação o respeito aos direitos essenciais que emanam da do e para o direito constitucional, é de se salientar a ideia de “Estado
natureza humana. É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover
tais direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos trata-
5 .  DE JULIOS-CAMPUZANO, Alfonso. La Transición Paradigmática de la Teoría Jurídi-
dos internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes”. ca: el derecho ante la globalización. Madrid: Dykinson, 2010.
A mesma Constituição que já sofreu modificações por força da imple- 6 .  CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e a Interconstitucionalidade: itin-
mentação da condenação sofrida pelo Chile por parte da Corte Intera- erários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Lisboa: Almedina, 2006, p. 271.

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N N
Constitucional Cooperativo” (de Peter Häberle)7, a de “interconstitucio- numa compatibilidade de condições institucionais de reforço mútuo.
nalidade” (de J. J. Gomes Canotilho)8, o Constitucionalismo Multinível” Já, na doutrina brasileira, Marcelo Neves traz uma outra perspectiva
(de Ingolf Pernice)9, o “Transconstitucionalismo” (de Marcelo Neves)10, para observar o fenômeno constitucional contemporâneo, a partir de
dentre outras tantas que buscam respostas para um novo arranjo po- um neologismo: transconstitucionalismo. Para compreender os efeitos
lítico-institucional que parece estar surgindo, sem abrir mão do papel da mundialização no direito constitucional, Neves evoca os fundamen-
civilizatório integrado à história do constitucionalismo, mesmo diante tos luhmannianos e define a ideia de constituição transversal, além do
dos seus próprios limites como mecanismo de controle da violência e de Estado, em vários planos normativos (internacional, supranacional,
promoção da paz e do bem-estar dos homens. estatal, extra-estatal, etc.), como um sistema de níveis múltiplos e plu-
Mas, desde esta perspectiva, o Direito Constitucional sob a influência ridimensional dos Direitos Humanos. Trata-se da superação do consti-
do Direito Internacional e suas interconexões não internacionaliza ape- tucionalismo provinciano ou paroquial, quando, agora, o Estado deixa
nas os conteúdos do Direito Constitucional, mas também a sua própria fa- de ser o locus privilegiado, como outrora se apresentava, de instalação
bricação, a sua origem, o seu locus de produção e sua fonte de legitimação: do constitucionalismo e para o enfrentamento dos problemas constitu-
o poder constituinte, como pretende evidenciar Nicolas Maziau11 tomando cionais, pelo transconstitucionalismo, que implica no reconhecimento
emprestada a experiência, mais pulsante, de internacionalização total do de diversas ordens jurídicas entrelaçadas. Entretanto, não é o entrela-
poder constituinte originário, suportada nos Acordos de Dayton que, pela çamento de ordens jurídicas – o transnacionalismo jurídico – que torna
decisão da comunidade internacional promulgou no anexo IV a Constitui- o transconstitucionalismo peculiar, senão o fato das ordens se inter-re-
ção da Bósnia & Herzegovina, com uma constituição formada com base lacionarem no “plano reflexivo de suas estruturas normativas que são
heterônoma, rompendo com a ideologia clássica da origem popular das autovinculantes e dispõem de primazia”12.
Constituições, resultado do desejo original de suas forças reunidas em As- Diante de tais leituras, há que se reconhecer e assumir que um dos
sembleia Constituinte, representativa nos moldes liberal-democráticos. desafios, e dilemas, substanciais da teoria constitucional na contempo-
Eis, aqui, um exemplo forte de transformação dos preceitos da soberania. raneidade é o reconhecimento de que a pauta da integração entre o di-
Outra das teses que auxilia a compreender este novo fenômeno reito nacional e o direito internacional, ou melhor, o extranacional para
jurídico é a ideia de tentar compreender esta nova fase como de um incorporar a questão do direito comunitário e o direito estrangeiro, de-
constitucionalismo multinível, tomando emprestado referencialmente vem compor uma temática prioritária a nos debruçarmos, notavelmen-
a experiência europeia, com a manutenção das constituições nacionais te naquilo que promove a efetivação dos Direitos Humanos.
e, em patamar comunitário, a construção de uma constituição regio-
nal, europeia, de caráter pós-nacional – na linguagem habermasiana.
Assim, o constitucionalismo se expressa em níveis distintos, alinhados
4  O CONSTITUCIONALISMO
7 .  HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução de Marcos Augusto
Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
SOB DILEMAS CONTEMPORÂNEOS
8 .  CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e a Interconstitucionalidade: itin-
erários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Lisboa: Almedina, 2006
9 .  PERNICE, Ingolf. The Global Dimension of Multilevel Constitutionalism: A Legal Re-
sponse to the Challenges of Globalisation. In: Common Values In International Law: Es-
O problema constitucional hoje englobaria tanto a capacidade de
disciplinar quanto a de limitar o exercício do poder, quanto o li-
berar o potencial de setores especializados dos subsistemas sociais.
says In Honor Of Christian Tomuschat. p. 973–1005. Como atores e regimes não estatais estariam incorporados à esta nova
10 .  NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. fase do constitucionalismo?
11 .  MAZIAU, Nicolas. Les Constitutions internationalisées. Aspects théoriques et essai de
typologie. In: Centre de Recherche et de Formation sur le Droit constitutionnel comparé
de Sienne (Italia). Disponível em <http://www.unisi.it/ricersa/dip/ dir_eco/COMPARATTO/ 12 .  NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Transconstitucionalismo. Tese apresentada para concurso de
maziau.doc>. Acesso em 15 mai 2012. professor titular de Direito Constitucional na USP. São Paulo, 2009, p. 265.

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Desde esta perspectiva, há que se indagar se esta percepção da so- por inúmeras “crises”, originadas em diversas circunstâncias e perspec-
ciedade mundial não se limitaria a continuar sendo uma compreensão tivas, afetando seus fundamentos, suas funções e seus procedimentos
elitista dos “sobre-integrados”, em relação aos “subcidadãos”, excluídos característicos, como apresentado mencionado anteriormente13.
ou teria capacidade de aspirar transpor uma mudança estrutural em Ainda, há que considerar a possibilidade de se pensar um “novo” con-
direção a uma revisão da condição político-econômica para a redistri- stitucionalismo, o qual, sem romper com os fundamentos materiais/
biução das riquezas e do bem-estar produzidos pela civilização e fruto substanciais do próprio constitucionalismo moderno, bem como com-
do ambiente comum. Como o constitucionalismo forjado em concomi- pactuando com o nomeado neoconstitucionalismo do pós-guerras, sig-
tância com o liberalismo político, mas também econômico poderia pro- nifique um deslocamento espacial que passe a alocar a ideia de Consti-
duzir uma condição autorreflexiva reestruturante da ordem econômica tuição em um âmbito “para além” dos Estados Nacionais, como quê um
e política para estender o bem-estar social às maiorias numéricas, ainda constitucionalismo mundial – do que já Gomes Canotilho mencionava
que sediadas em latitudes transfronteiriças? -, que, agora sim, possa promover o terceiro vértice revolucionário, apli-
Se o constitucionalismo democrático representou e representa um cando o conteúdo solidariedade a todos e em todos os lugares.
projeto ainda inacabado, o projeto constitucional que nasce para inte- Agora, se isto irá significar a transferência do lócus do constituciona-
grar e projetar a sociedade nacional passa a apresentar uma abertura lismo ou apenas uma justaposição – do que já temos notícias, bastando
para a humanidade e ao mesmo tempo se confrontar com dualidade tomar em conta, recentemente, a decisão do caso do pai brasileiro que
inquieta que incorpora força e fraqueza, reconhecimento e descom- perdeu seu poder paternal, julgado em 31/1/12, pela Corte Europeia de
promisso, prestígio teórico e desprestígio prático (como sugeriu Dalmo Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, na França, determinando
Dallari já nos idos dos anos 1980). ao Governo português o pagamento de uma indenização em razão de
E é nessa dialética entre idealismo e realismo, entre “força norma- não ter assegurado ao mesmo a possibilidade de um acesso ao sistema
tiva” e “folha de papel” que o modelo inicialmente circunscrito à nação de justiça adequado (Affaire Assunção Chaves C. Portugal, Requête no
tende a assimilar/incorporar valores aos poucos tidos como universais, 61226/08) – ainda não se tem resposta.
bem como se “constitui” a partir de outros lugares e atores que não ape- São nestes vieses que, por ora, cabe averiguar os temas do consti-
nas o Estado Nacional e a sociedade política. tucionalismo, sua transformação e interação com o direito internacio-
A própria ideia da dignidade humana como um princípio que ex- nal, bem como o surgimento de um novo “território” para o mesmo, ca-
trapola a perspectiva nacionalista promove o reconhecimento sis- paz de promover e produzir um novo campo de saber e projetar novos
temático da positivação do Direito Internacional provocada por sua caminhos para a humanidade, buscando os sinais do novo, impondo
humanização em matéria de Direitos Humanos. E este “engate” é fun- a necessidade de se reforçar os estudos em torno das tendências do
damental para sintonizar a humanização do direito internacional com e para o (pós) Estado Constitucional contemporâneo, bem como de
o constitucionalismo democrático em um ambiente no qual o modelo suas mesmas instituições.
estadual moderno confronta-se com a idiossincrasia de sua supera- O fato, delimitado aqui, é que experienciamos, cotidianamente, des-
ção/continuidade/transformação. de esta perspectiva, uma nova fase do constitucionalismo e dos vínculos
Desta abertura, reconhecida por tantos autores, resultaria um con- entre as normas locais, as normas internacionais e aquelas originadas
stitucionalismo em rede, ou, quem sabe, melhor denominar-se “em re- em novos ambientes regulatórios, bem como, a partir disso, reconhece-
des”, a partir do reconhecimento do valor da cooperação interestatal, e mos uma dupla abertura da jurisdição constitucional em sede de con-
de novas demandas socioambientais e democráticas. As constituições trole concentrado, uma no que diz respeito à interação entre direito in-
não podem – mais - serem vistas/compreendidas e aplicadas como caixa
de ressonância unicamente do Estado Nacional, sobretudo diante dos
13 .  BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transfor-
efeitos “destrutivos” porque passa esta instituição – talvez a mais car- mação Espaço-Temporal dos Direitos Humanos. Coleção Estado e Constituição. Nº 1. 2ª ed.
acterística, no âmbito político-institucional, da modernidade – afetada rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

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ternacional dos Direitos Humanos que o país participa e outra no que
tange à democracia, na complexa e intrincada relação entre direito e
política, desde os novos mecanismos de interação democratizantes da
tarefa jurisdicional – realização de audiências públicas e adoção de ami-
4 . Evidente que este caráter socialmente transformador e espacial-
mente de pretensão universal dos Direitos Humanos incidem en-
quanto um vetor-chave para a mudança, que não é nada cosmética,
cus curiae – e de sua integração na “aldeia mundo” estabelecendo “con- mas efetivamente estrutural da sociedade, em seus aspectos além de
versações” ou “diálogos” interinstitucionais. jurídicos, políticos (igualdade política, democracia, políticas corretivas
Tal panorama aponta para a necessária formação de uma teoria ge- das tradições segregacionistas, e.g.) e econômicas ( de distribuição de
ral dos Direitos Humanos e fundamentais para os Estado democrático riqueza nos povos e entre os povos). Trata-se, portanto, de um aguilhão
de direito, ou Estados de direito democráticos, sob o nexo da abertura fincado num ponto nevrálgico do corpo que é formado pela imbricação
e da formação de redes interestatais pautadas pela lógica cooperativa. da Sociedade-Estado-Mercado, a (tencionar) mover-lhe(s) rumo à eman-
Em suma, atenta-se para as evidências de um constitucionalismo cipação social.
em transição, que supera, transcende ou ressignifica pressupostos da
modernidade jurídica no que diz respeito, em particular, ao seu lócus
privilegiado (Estado), recolocando a possibilidade do direito, também,
como vetor de emancipação e transformação social a despeito dos fos-
5 . A dimensão local precisa ser também profundamente considerada
e refletida no constitucionalismo, para que os desenhos institucio-
nais e conteúdos jurídicos sejam permeados pela faticidade do territó-
sos estratificadores que a mundialização fomenta. rio ao qual deverá exercer sua força normativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 6 . Tal transição demanda novas interpretações, atitudes e práticas,


exigindo a construção de uma doutrina que dialogue com estas no-
vas circunstâncias, como o caminho aqui esquematizado, realçando a

1 . Ainda assim, provavelmente, ao final não haverá como fechar con-


clusões definitivas, sem antes ponderar os desafios e os riscos que
uma eventual condensação de culturas jurídicas tende a enfrentar, so-
problematização sobre a disparidade das realidades latino-americanas
ou terceiromundistas e dos subalternos; a(s) implicação(ões) do mi-
metismo de formas e conteúdos(?); a(s) circunstâncias de instauração
bretudo diante dos riscos de pretensões homogeneizantes em torno de de “nova(s)” forma(s) de colonização. Tal se dará, sob a perspectiva do
um determinado “modelo” civilizatório que se pretenda hegemônico. resgate das promessas da modernidade – tendo como mote as teorias
do Estado, da Constituição e dos Direitos Humanos - numa amplitude

2 . Os limites da soberania, o empoderamento de órgãos internacionais


de observação e concretização de direitos, além da acentuação dos
efeitos de uma esfera pública que também acompanha o movimento
global, mesmo sob a interrogação de ser isso desejável ou, mesmo, possí-
vel(?) ante as problemáticas envolvidas pela ampliação dos quadrantes
que passam a serem englobados nessa mesma gramática.
rumo ao cenário pós-nacional precisam ser adequadamente decifrados
para a própria realização do constitucionalismo que em sua origem está
engatado ao compromisso de efetividade dos Direitos Humanos.

3 . Os mimetismos de formas e de gramáticas constitucionais na linha


dos Direitos Humanos não tem uma correspondência direta com
o avanço nos indicadores de efetivação dos mesmos. Pelo menos isso
certamente não ocorre num primeiro momento. Contudo, seria certa-
mente excessivo considerar que de tais mudanças jurídico-formais não
frutificam quaisquer progressos.

42 43
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2
Constitucionalização do Direito
Administrativo no Brasil? Reflexões
a Partir da Ideia de um Direito das
Futuras Gerações*

José Emílio Medauar Ommati

O presente trabalho pretende discutir se, a partir de um direito ge-


nérico das futuras gerações, é possível se falar de uma constitucio-
nalização do Direito Administrativo no Brasil. Caso seja possível se fa-
lar em constitucionalização do Direito Administrativo Brasileiro, como
compreender tal fenômeno.
Destarte, para que fique clara qual a relação entre esse suposto di-
reito genérico das futuras gerações e uma possível constitucionaliza-
ção do Direito Administrativo no Brasil, em um primeiro momento,
desenvolverei a ideia de um direito das futuras gerações; a seguir, em
um segundo passo, mostrarei como aparece e se desenvolve a noção de
constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil, para, na parte
final do presente texto, desenvolver ideias que relacionem essa consti-
tucionalização com o direito das gerações futuras.

1  A Construção de um Direito
das Futuras Gerações

P ode-se afirmar que a construção de um direito das futuras gerações


ocorre na década de 60 do século passado quando a teoria do Direito
volta a discutir o próprio conceito de Direito e o papel da discricionarie-
dade na decisão e interpretação jurídicas.
Embora a construção desse direito possa se dar a partir de perspec-
tivas teóricas bastante distintas, como, por exemplo, a Teoria do Direi-

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N
to e da Democracia, de Jürgen Habermas1, ou a teoria dos sistemas, de é Direito apenas um comando dado por um soberano não é correto, já
Niklas Luhmann2, pretendo abordar a construção desse direito a partir que quando um soberano morre e outro o sucede como definir o mo-
do debate que se desenvolveu ao longo de mais de 30 anos entre Herbert mento exato em que a população em geral terá que seguir esse novo
L.A. Hart e Ronald Dworkin. Isso porque me parece que a construção soberano? E mais: se o Direito fosse apenas fruto de ordens dadas por
da teoria do Direito de Ronald Dworkin poderá ser capaz de justificar a um determinado soberano, a cada nova sucessão teríamos que o novo
existência de um direito das futuras gerações. soberano deveria recriar todas as regras existentes ou, se pretendes-
Pois bem. Quando Hart desenvolve sua obra fundamental, O Concei- se manter as existentes, expressamente assim se manifestar. Algo que
to de Direito, ele pretende justamente se contrapor a uma teoria positi- não ocorre. Muito pelo contrário.
vista bastante em voga no mundo anglo-saxão que defendia uma tese Assim, a descrição até então tradicional, pelo menos para o Di-
simples de que o direito se define apenas pela existência de sanção em reito anglo-saxão, não se sustentava empiricamente e apresentava
suas normas, que são seguidas por terem sido fruto da ordem de um graves problemas conceituais e classificatórios que Hart pretendeu
determinado soberano. solucionar com sua obra.
Ao construir sua teoria, Hart pretende justamente se opor a essas Para Hart, não se pode dizer que o Direito é um conjunto de ordens
duas ideias: de que somente são válidas juridicamente as ordens ema- emanadas por um soberano, ordens essas dotadas de sanção. Uma nor-
nadas de um soberano e que a característica fundamental de uma nor- ma será considerada jurídica ou não se passar no teste do pedigree, ou
ma jurídica é o fato de ser uma ordem dotada de sanção.3 seja, se tal norma for compatível com a chamada regra de reconheci-
Pretendendo apenas descrever o Direito, como se tivesse chegado mento.5 Além disso, existe uma pluralidade de regras no Direito: regras
à Terra um alienígena, de modo que essa descrição do funcionamento dotadas de sanção, que Hart denominou de regras primárias; regras que
do Direito fosse universal, Hart demonstra que esse conceito tradicio- estabelecem direitos e procedimentos para a criação de outras regras,
nal de Direito é deveras simplista. Na verdade, se observarmos atenta- denominadas por Hart de regras secundárias; e, por fim, a regra de re-
mente os diversos ordenamentos jurídicos perceberemos que eles não conhecimento, que será responsável pela determinação se determinada
são formados apenas por regras dotadas de sanção, mas também por regra será considerada jurídica ou não.
regras que estabelecem direitos, além de regras de competência para Portanto, já na perspectiva de Hart, o Direito é um fenômeno muito
a criação de outras regras, seja no âmbito legislativo, seja no âmbito mais complexo do que anteriormente pensado. Totalmente apartado
judiciário; e, por fim, uma regra que estabelece os critérios através dos da Moral, o Direito possibilitará, em virtude de sua textura aberta, que,
quais determinada regra pode ser considerada jurídica ou não, deno- em determinadas situações os juízes possam criar direito novo sem se
minada por Hart de regra de reconhecimento.4 Além disso, dizer que vincularem ao Direito pré-existente. Esse poder dos juízes, conhecido
como discricionariedade, somente poderá ser exercitado naquelas si-
tuações denominadas por Hart de casos difíceis, ou seja, casos nos quais
*
Dedico esse artigo aos meus entes mais queridos: minha mãe, Fides Angélica de Castro
Veloso Mendes Ommati; meus irmãos, Larissa Veloso Mendes Ommati e Ricardo Emílio não há uma regra prévia que estipule o resultado claramente ou há uma
Veloso Mendes Medauar Ommati; minha esposa, Sarah Noeme Maria de Freire Lopes concorrência entre regras que levam a decisões diversas. E essa discri-
Ommati; e meu filho, José Emílio Ommati Neto(Emilinho).
cionariedade faria parte do Direito justamente pelo fato de que a regra
1 .  Nesse sentido, vide: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el derecho y el
de reconhecimento, que apresenta uma natureza social no sentido de
Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría del Discurso. 4ª edição, Madrid:
Trotta, 1998, capítulo 3. que a comunidade reconhece poder aos juízes para decidirem todo e
2 .  Nesse sentido, vide: LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. México: Universi- qualquer caso, também autoriza a esses juízes que criem direito novo
dad Iberoamericana, 2002. caso não encontrem uma regra prévia para a solução do caso.6
3 .  HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito. 3ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 2001.
4 .  HART, Herbert L.A. Op.cit.; No mesmo sentido: OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria 5 .  HART, Herbert L.A. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. Op.cit.
da Constituição. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 134 a 136. 6 .  HART, Herbert L.A. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. Op.cit.

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Será justamente contra todos esses pressupostos positivistas que se záveis ou passíveis de universalização. Para que isso ocorra, de funda-
insurgirá a Teoria do Direito como Integridade, de Ronald Dworkin. mental importância que o teórico que pretende utilizar uma teoria alie-
Para o autor norte-americano, não é correto pensar o Direito como nígena para seu contexto consiga demonstra que tal teoria se adapta,
um domínio separado da Moral. Como diz o autor, se visualizarmos essa descreve e responde aos problemas locais.
questão a partir de uma perspectiva adequada, perceberemos que o Di- E assim é, porque, ao contrário de Hart, que ainda constrói uma teo-
reito é um compartimento da Moral.7 Mas, o que mais interessa para a ria baseada em classificações, para Dworkin, o Direito não se esgota em
construção do presente trabalho não é a relação entre Direito e Moral, um catálogo de regras ou de regras e princípios.11 O Direito é um fenô-
mas sim como compreender o conceito de Direito. meno interpretativo.12
Será que o Direito pode ser conceituado apenas como um conjun- Esse fenômeno interpretativo, chamado Direito, se constitui a partir
to convencional de regras estabelecidas por uma determinada auto- das práticas sociais dos seus participantes. Assim, ao contrário do que
ridade em determinado tempo histórico, de modo que, se o aplicador pensava Hart, o juiz não tem discricionariedade nos casos difíceis, já que
atual não encontrar uma regra poderá livremente criar direito novo, outros padrões normativos podem ser utilizados para a solução de casos
como pretende Hart? controversos. A esses padrões, Dworkin os denomina de princípios.13
A resposta dada por Dworkin é pela negativa e, para mostrar o erro Observando essa prática interpretativa denominada Direito, perce-
em que incorre Hart ao assim descrever o Direito, o autor desenvolverá be-se que advogados, juízes, promotores e comunidade em geral não
sua teoria do Direito como Integridade. argumentam nesses casos difíceis como se o juiz pudesse decidir que
Inicialmente, ao contrário de Hart, Dworkin demonstra consisten- qualquer modo. Pelo contrário. A argumentação cotidiana com e sobre
temente que não é possível simplesmente descrever o Direito sem, ao o Direito revela que, mesmo quando todos se encontram divididos so-
mesmo tempo, participar dele. É dizer: a perspectiva positivista de que bre qual é a decisão correta a ser dada, ainda sim não se afirma que o
a Ciência do Direito deve apenas descrever seu objeto não se sustenta, julgador pode dar qualquer decisão.14
pois, a partir de Hans-Georg Gadamer8, já se sabe que nenhuma descri- Mas, como encontrar essa única decisão correta? Como interpretar
ção é isenta de pressupostos. Toda teoria, portanto, já tem uma porção corretamente o Direito?
de normatividade, ou seja, não apenas revela o que o objeto é, mas tam- Entendendo que o Direito é uma prática interpretativa, Dworkin
bém o que ele deve ou deveria ser.9 nos convida a não apenas interpretarmos essa prática, mas a justifi-
As teorias jurídicas são pensadas para resolver problemas de de- cá-la à sua melhor luz, de modo a torná-la a melhor que ela pode ser.
terminado contexto, ou, se quisermos utilizar a linguagem de Thomas É o que o autor denominará de hipótese estética.15 E isso é possível
Kuhn10, para resolver quebra-cabeças jurídicos e, assim, apresentam porque o Direito não se explica apenas por si mesmo, já que ele apre-
sempre uma prioridade local. Se puderem ser utilizadas em outros con- senta um propósito político.
textos para os quais não foram pensadas, tanto melhor. Poderíamos, Assim, o Direito somente será digno desse nome se ele conseguir le-
então, dizer, que as teorias jurídicas não são universais, mas universali- gitimar as práticas da comunidade que deve se ver como uma comuni-
dade de princípios, ou seja, uma comunidade baseada na ideia de que é
formada por pessoas livres e iguais. Como afirma Dworkin, a legitimida-
7 .  Sobre isso, vide: DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Cons-
tituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006; DWORKIN, Ronald. A Jus-
tiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010; DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços.
Lisboa: Almedina, 2012. 11 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 492.
8 .  GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Herme- 12 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Uma Questão
nêutica Filosófica. 5ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2003. de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

9 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 13 .  DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
10 .  KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª edição, São Paulo: Pers- 14 .  DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit.
pectiva, 1997. 15 .  DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.

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de estatal e do Direito está assentada na medida em que esse Estado e Dessa forma, a interpretação do Direito não pode ser descrita como
o Direito conseguem demonstrar que tratam a todos aqueles que estão apenas seguir o que sempre se fez, como pensam os positivistas, como
sob o seu império com igual respeito e consideração.16 também não pode simplesmente desconsiderar o passado e olhar ape-
A igualdade, entendida como o direito a que as pessoas sejam tratadas nas para o futuro, como pretendem escolas jurídicas as mais diversas,
como iguais, é a virtude soberana de uma comunidade de princípios.17 tais como a Análise Econômica do Direito, os Estudos Jurídicos Críticos
Dessa forma, o juiz não pode, em uma situação em que aparente- e alguns autores pragmatistas.21 A teoria do direito como integridade
mente não há uma regra clara, inventar uma regra para o caso retroa- faz as duas coisas e nenhuma delas ao mesmo tempo!
tivamente, pois se assim agir, estará ferindo princípios caros à ideia de Ora, se a prática interpretativa chamada Direito não se preocupa ape-
comunidade de princípios como aquela que pretende tratar a todos os nas com o passado, mas apresenta uma certa dose de consequencialis-
seus membros com igual respeito e consideração. Princípios tais como o mo, ou seja, com os impactos futuros de uma decisão, surge aí o espaço
do Estado de Direito, legalidade, separação dos poderes, segurança jurí- para se falar em direito das futuras gerações. Sendo o Direito um projeto
dica, só para citar alguns, sairão violados se ainda defendermos a discri- que nunca se fecha e nunca termina, cada momento histórico deve se
cionariedade, seja na função judiciária, seja na função administrativa.18 responsabilizar para desenvolver o Direito da melhor forma possível, de
Não se pode afirmar a existência da discricionariedade no Direito jus- modo a torná-lo o melhor que ele pode ser, justamente para que as próxi-
tamente porque o Direito se apresenta como um projeto que se atualiza ao mas gerações possam assumir sua responsabilidade política em não ape-
longo do tempo. É uma prática interpretativa em que cada nova geração nas continuar a prática, mas fundamentalmente melhorá-la, aprofundá-
deve se questionar sobre quais são as ambições do Direito para si mesmo, -la e ampliá-la. É justamente por isso que Dworkin afirmará que o juiz
sobre como melhor desenvolver esse projeto político que visa a tratar a tem uma responsabilidade política fundamental em pensar, ao dar uma
todos os membros da comunidade como dotados de igual respeito e consi- decisão, quais são os compromissos políticos da comunidade da qual ele
deração ou igual dignidade.19 Assim, a interpretação jurídica é semelhante faz parte e como construir um futuro honrado a partir de sua decisão. O
à escrita de um romance em várias mãos, um romance em cadeia. intérprete deve, ao decidir, imaginar e explicar como sua decisão se en-
Assim como ao se escrever um romance em conjunto, cada autor caixa e aperfeiçoa um objeto externo a ele, mas, ao mesmo tempo, inter-
de um capítulo não pode iniciar uma nova obra, mas continuar a obra no, de modo a tornar esse objeto melhor do que é agora sem, no entanto,
existente de modo a torná-la a melhor que ela pode ser, o aplicador do desvirtuá-lo ou transformá-lo em outra coisa. Esse objeto é o Direito.22
Direito(juiz, administrador e cidadãos em geral) não está autorizado a É possível já visualizar que a teoria do direito como integridade con-
começar uma nova história, mas deve dar continuidade à história que segue explicar e justificar um direito das futuras gerações. As questões
vem sendo construída de modo a torná-la a melhor que ela pode ser, é que pretendo discutir nos dois últimos itens dizem respeito ao proces-
dizer, cada novo capítulo do romance intitulado Direito da Comunida- so de surgimento da constitucionalização do Direito Administrativo no
de, devem ampliar e aprofundar a virtude soberana da comunidade: os Brasil e como essa ideia pode contribuir para o desenvolvimento do di-
direitos de igualdade e liberdade.20 reito das futuras gerações.

16 .  DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e Prática da Igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
17 .  DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.
18 .  Sobre a crise da discricionariedade na função administrativa, vide: OMMATI, José
Emílio Medauar. Do Ato ao Processo Administrativo: A Crise da Ideia de Discricionarie-
dade no Direito Administrativo Brasileiro. IN: Revista dos Tribunais, Ano 102 – Abril de
2013 – Vol. 930, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 23 a 49.
19 .  Sobre a ideia de dignidade humana, vide: DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Op.cit. 21 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.
20 .  DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit. 22 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.

50 51
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2  Um Breve Histórico da Formação do Direito uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob proposta
do Conseil d’État.”24
Administrativo e da Constitucionalização do Assim, para esses autores, a invocação do princípio da separação de
Direito Administrativo no Brasil poderes foi um simples pretexto, mera figura de retórica, visando a atin-
gir o objetivo de alargar a esfera de liberdade decisória da Administra-

A doutrina administrativista pátria majoritária continua até hoje a ção, tornando-a imune a qualquer controle judicial. Não foi por outro
dizer que o Direito Administrativo teria surgido como que por um motivo que em França criou-se uma “jurisdição especializada” para a
“milagre”, na medida em que a Revolução Francesa teria, a partir da ideia Administração Pública, já que se entendia à época que julgar a Adminis-
de separação dos poderes, limitado externamente a Administração Pú- tração ainda era administrar. Percebe-se aí uma leitura toda própria da
blica que, no Antigo Regime, era ilimitada ou com poucas limitações. separação dos poderes para manter uma esfera de imunidade de con-
Assim, ainda hoje, repete-se que o Direito Administrativo teria nascido trole para a Administração Pública.25
a partir da Lei de 28 do pluviose do ano VIII, editada em 1800, organi- Todavia, embora reconheça que houve muita continuidade entre o
zando e limitando externamente a Administração Pública. Tal lei sim- Antigo Regime e o constitucionalismo moderno, que fundou o Estado
bolizaria a superação da estrutura de poder do Antigo Regime, fundada Constitucional em sua vertente liberal com as revoluções burguesas, não
não no direito, mas na vontade do soberano. A mesma lei que organiza consigo concordar com a tese pura e simples de continuidade entre essas
a estrutura da burocracia estatal e define suas funções operaria como duas realidades. Deve ter havido também alguma ruptura. Destarte, pare-
instrumento de contenção do seu poder, agora subordinado à vontade ce mais acertada a posição de Odete Medauar quando afirma: “Melhor se
heterônoma do Poder Legislativo. configura orientação que leva em conta os dois aspectos, sem extremos,
Contudo, alguns autores nacionais e estrangeiros mais atuais já para vincular o direito administrativo à Revolução Francesa em termos
questionam tal origem “milagrosa” do Direito Administrativo Moderno. de princípios, não em virtude da origem de um tipo de organização; e para
Nesse sentido, Gustavo Binenbojm assevera com razão: “O direito admi- levar em conta noções e mesmo práticas do Antigo Regime acolhidas em
nistrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma parte pelo direito em formação, embora em outro contexto sociopolítico”.26
do legislador. Antes, pelo contrário, a formulação de novos princípios Como diz a autora, essa posição não significa neutralidade ou como-
gerais e novas regras jurídicas pelo Conseil d’État, que tornaram viáveis dismo científico por dificuldades na defesa, sem incoerências, de uma
soluções diversas das que resultariam da aplicação mecanicista do di- das orientações. Pode-se dizer que a convivência do vínculo ao passado
reito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível e da novidade, existente no seu surgimento, tornou-se polarização típi-
em virtude da postura ativista e insubmissa daquele órgão administra- ca do direito administrativo. Assim, aspectos antigos foram mantidos,
tivo à vontade do Parlamento”.23 tais como a ideia de autoridade da Administração, de prerrogativas e de
No mesmo sentido, o jurista português Paulo Otero afirma: “[...]a atos discricionários, como também novidades foram inseridas e, dentre
ideia clássica de que a Revolução Francesa comportou a instauração
do princípio da legalidade administrativa, tornando o Executivo subor- 24 .  OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Admi-
dinado à vontade do Parlamento expressa através da lei, assenta num nistrativa à Juridicidade. 1ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2007, p. 271.
mito repetido por sucessivas gerações: a criação do direito administra- 25 .  BINENBOJM, Gustavo. Op.cit., p. 13. No mesmo sentido: OTERO, Paulo. Op.cit.; MA-
tivo pelo Conseil d’État, passando a Administração Pública a pautar-se CHETE, Pedro. Estado de Direito Democrático e Administração Paritária. Coimbra: Al-
medina, 2007. Pedro Machete, por sinal, em obra extremamente instigante, chega a afirmar
por normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico- que houve, na verdade, uma continuidade entre o Antigo Regime e o Estado Constitucio-
-privada, não foi um produto da vontade da lei, antes se configura como nal que, nesse primeiro momento, se afirmou como Estado de Direito. Sobre mais caracte-
rísticas do Estado de Direito relacionadas à Administração Pública, vide: DIAS, Maria Te-
reza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
23 .  BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamen- 26 .  MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2ª edição revista, atualiza-
tais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 11. da e ampliada, São Paulo: Editora RT, 2003, p. 21.

52 53
N N
estas, o fato de a Administração ter que respeitar os direitos dos cidadãos.27 ve, podemos dizer que no Estado de Direito a Administração Pública
Além do respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, outras novida- era pautada pela ideia de negatividade, ou seja, ela deveria respeitar os
des foram introduzidas, como nos relata Odete Medauar: “O novo, que se direitos negativos dos cidadãos, concernentes à igualdade, liberdade e
sucedeu à Revolução Francesa, pode ser sintetizado nos seguintes pontos: propriedade, entendidos em um aspecto meramente formal. De acordo
a) formação de conjunto sistemático de preceitos obrigatórios para auto- com Maria Teresa Fonseca Dias, ao se referir à Administração Pública
ridades administrativas de todos os níveis, muitos dos quais limitativos no Estado Liberal: “O direito público deveria assegurar, tão-somente, o
de poder; b) reconhecimento de direitos de particulares ante a Adminis- não retorno ao absolutismo mediante a limitação do Estado à lei e a
tração, com previsão de remédios jurisdicionais; c) quanto à ciência, ela- adoção do princípio da separação dos poderes. Uma das preocupações
boração doutrinária abrangente de todos os aspectos legais da atividade do Direito Administrativo liberal foi criar um sistema de garantias ao
administrativa; d) elaboração jurisprudencial vinculativa para a Adminis- particular em relação às atividades da Administração Pública executa-
tração e norteadora da construção de novos institutos jurídicos”.28 das por via do exercício de poderes autoritários”.33
Não é por outro motivo que ainda hoje o Direito Administrativo seja Para Maria João Estorninho, o nascimento liberal do Direito Admi-
tão arredio aos avanços produzidos pelo Direito Constitucional e pela nistrativo está claramente de acordo com a visão liberal de mundo da
Teoria do Direito. Ao contrário do que a doutrina tradicional apresen- época, assente na separação entre o Estado e a sociedade, de modo a
ta, o Direito Administrativo não surgiu como uma concretização do Di- garantir a propriedade e a intimidade, valores fundamentais que o libe-
reito Constitucional, mas sim, em alguma medida, como mecanismo de ralismo procurou preservar a todo custo.34
manutenção das práticas de poder do Antigo Regime.29 Somente bem No Brasil, essa Administração Pública liberal terá ainda um proble-
recentemente que se pode dizer que o Direito Administrativo se tornou ma para se estruturar de maneira adequada: a confusão entre público
o Direito Constitucional concretizado. Em outras palavras, foi somente e privado que o país herdara de Portugal. Assim, de acordo com Sérgio
com as modificações operadas pela crise do Estado Social e o surgimen- Buarque de Holanda, em estudo clássico, um dos grandes problemas
to do Estado Democrático de Direito ou Estado Pós-Social, para alguns brasileiros foi a cordialidade do homem brasileiro, significando não a
autores30, que se pode dizer que a Administração Pública busca pautar- amabilidade e a cortesia ou a educação para com as demais pessoas,
se pelo respeito à Constituição e aos direitos fundamentais.31 mas sim o fato de que no Brasil sempre houve uma dificuldade enorme
Na verdade, a história do Direito Administrativo Ocidental pode ser de separar o público do privado. Assim, o homem cordial é aquele que
lida como uma luta permanente contra as imunidades do poder, como não consegue decidir a partir de razões públicas, o que é uma exigência
nos ensina Eduardo García de Enterría.32 E, como todo processo históri- do Estado Constitucional, mas sempre com o coração. Em outras pala-
co, é cheio de percalços, de idas e vindas, de vitórias e fracassos. vras, a Administração Pública Brasileira sempre foi vista como a conti-
Pois bem. Fazendo dessa história uma história breve, bastante bre- nuidade da casa do dono do poder do momento.35
Não foi por outro motivo que, como nos mostra Maria Tereza Fon-
seca Dias, apenas com Getúlio Vargas, na década de 1930, que o Brasil
27 .  MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. Op.cit., p. 22.
conseguiu institucionalizar com relativo sucesso uma burocracia es-
28 .  MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. Op.cit., p. 22 a 23.
tatal profissionalizada.36
29 .  Quando nos referimos à doutrina tradicional, pensamos em autores tais como Hely
Lopes Meirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
30 .  Dentre esses autores, vide: SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em Busca do 33 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 139.
Acto Administrativo Perdido. 1ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2003. 34 .  ESTORNINHO, Maria João. A Fuga para o Direito Privado: Contributo para o Es-
31 .  Sobre essa questão, vide: BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Adminis- tudo da Actividade de Direito Privado da Administração Pública. Reimpressão, Porto:
trativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. Almedina, 1999, p. 31.

32 .  GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lucha Contra las Inmunidades del Poder en el 35 .  HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 3ª edição, São Paulo: Companhia das
Derecho Administrativo(poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes norma- Letras, 1997.
tivos). Lima: Palestra Editores, 2004. 36 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 167 a 183.

54 55
N N
E justamente esse Direito Administrativo negativo passa a ser pro- Apesar do sucesso do Estado Social, esse paradigma entra em crise já
fundamente criticado já no final do século XIX e início do século XX. A no final da década de 60 e durante toda a década de 70 e 80, em virtude
sociedade se torna, nesse momento, mais complexa, passando a exigir fundamentalmente de não ter conseguido realizar e promover a cidada-
do Direito e da Administração Pública intervenções no sentido de ga- nia prometida. O Estado Social conseguiu criar clientes do Estado, não
rantir igualdade material, liberdade de fato e uma redistribuição de ren- conseguindo realizar todas as tarefas impostas a ele.39
da. Surge, assim, com a Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1919, Dessa forma, uma série de fatores desencadeou a crise do Estado So-
o chamado Estado Social, que modificará profundamente o perfil do Di- cial e o surgimento do que ficou conhecido como Estado Democrático
reito Administrativo e da Administração Pública no Brasil e no mundo. de Direito: críticas promovidas pelos movimentos sociais; transforma-
Para esses autores do Estado Social, o Direito Administrativo e a Admi- ções surgidas a partir das revoluções tecnológicas; as sucessivas crises
nistração Pública devem se pautar pela idéia de administração soberana econômicas; e a luta por mais direitos.
consensual. Além disso, deve haver a transformação da Administração Nesse paradigma, a Administração Pública passa a ser vista não
Pública de persona superior(em relação ao particular) em sujeito paritá- mais como apenas uma prestadora de serviços para cidadãos-clientes
rio, ofuscando-se também a bipartição entre o direito público e o privado.37 e apáticos. Passa-se a se discutir cada vez mais a qualidade dos serviços
No Brasil, o paradigma do Estado Social influencia a Administração prestados pela Administração como também mecanismos de controle e
Pública a partir de duas reformas promovidas em períodos autoritários: coparticipação dos cidadãos na gestão da coisa pública.40 Prega-se tam-
a Reforma do DASP, do período getulista e a Reforma do Decreto-Lei bém uma maior agilidade para a Administração Pública e que ela seja
200, de 1967, no auge da Ditadura Militar. As duas reformas pretende- pautada por princípios que norteiem sua atuação. Defende-se nesse
ram criar uma estrutura burocrática que pudesse responder às grandes momento a ideia de que as ações administrativas apenas serão legíti-
transformações sociais pelas quais passava a sociedade brasileira. mas e, portanto, juridicamente válidas, se contarem com a participação
A Reforma do DASP pretendeu profissionalizar o serviço público bra- e assentimento dos possíveis afetados pela decisão. É a processualiza-
sileiro, tentando acabar com o patrimonialismo. Já a Reforma do Decre- ção da atividade administrativa que agora passa a ser vista não mais
to-Lei 200, de 1967, pretendeu racionalizar a estrutura da Administração como uma atuação autoritária, mas consensual.41 Não se fala mais a
Pública Brasileira. As duas reformas foram relativamente bem sucedidas. partir desse momento em unilateralidade, mas sempre em plurilaterali-
A Reforma do DASP, apesar de ter contribuído para a profissionali- dade, em coparticipação: “No contexto do paradigma procedimental do
zação do serviço público, criando-se carreiras no âmbito da Adminis- direito, a participação deixa de ser uma expressão meramente ‘retórica’
tração Público, a serem preenchidas através de concurso público, não e passa a representar a medida de legitimação da atuação administrati-
conseguiu eliminar os cargos de confiança de livre nomeação e exone- va mediante a ampliação dos canais de comunicação existentes na pe-
ração do Chefe do Executivo. Mantinha-se, ainda, um resquício do patri- riferia da esfera pública para o centro do subsistema administrativo”.42
monialismo, denunciado por Sérgio Buarque de Holanda. No Brasil, o surgimento da Constituição de 1988 estabelecendo os
Já a Reforma do Decreto-Lei 200, de 1967, embora tenha conseguido estru- princípios constitucionais da Administração Pública pretendeu jus-
turar a Administração Pública Brasileira, criando as categorias de Adminis- tamente desburocratizar a atividade administrativa, abrindo-a para a
tração Direta e Indireta recepcionadas pela Constituição de 1988, acabou por participação da cidadania em geral. Contudo, por uma interpretação
enrijecer em excesso a estrutura burocrática brasileira, de modo que já antes equivocada dos princípios constitucionais, tal desiderato não foi com-
da Constituição de 1988 havia fortes críticas a essa estrutura burocrática, por
ser emperrada e não conseguir realizar os fins sociais a que se propunha.38 39 .  OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático
de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.
40 .  HABERMAS, Jürgen. Op.cit.
37 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 145. No mesmo sentido: ESTORNINHO, Maria 41 .  Nesse sentido, dentre vários outros: MACHETE, Pedro. Op.cit.; MEDAUAR, Odete. A
João. Op.cit.; MACHETE, Pedro. Op.cit. Processualidade no Direito Administrativo. Op.cit.
38 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 183 a 196. 42 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 164.

56 57
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pletamente alcançado, tendo sido necessária uma reforma da Admi- que haveria uma parte de determinada área do Direito sob a influência
nistração Pública brasileira, a chamada Reforma Gerencial promovida da Constituição e outra parte isenta de tal influência, o que é um absur-
principalmente através da Emenda Constitucional 19/98, para que esse do. Portanto, a expressão em nada agrega ao debate jurídico, embora
processo de horizontalização da Administração Pública passasse a ser continue a ser utilizada.45
implantado no nosso país. Hoje, para grande parte da doutrina administrativista brasileira, o Di-
No entanto, como nos mostra Maria Tereza Fonseca Dias, essa Reforma, reito Administrativo se constitucionalizou com a promulgação da Cons-
apesar de alguns elementos interessantes, ainda trouxe muitos problemas, tituição de 1988.46 Isso significa para parcela majoritária da doutrina na-
pois houve uma despreocupação com mecanismos de controle da gestão cional que a atuação da Administração Pública apenas será legítima se
pública. Se é verdade que a Reforma passou a entender o público como pautada não apenas pelos princípios constitucionais da Administração
algo bem mais amplo do que o estatal, possibilitando a gestão da coisa pú- Pública, mas por todos os princípios constitucionais. Daí Marçal Justen
blica por entidades da sociedade civil(por exemplo, os contratos de gestão Filho afirmar, por exemplo, ser o direito administrativo um conjunto de
com OS e OSCIP), também é verdade que não se preocupou em criar meca- normas jurídicas de direito público que disciplinam as atividades admi-
nismos de controle eficientes em relação a esses novos contratos.43 nistrativas necessárias à realização dos direitos fundamentais.47
Não terei como objetivo aqui analisar a Reforma Gerencial, mas sim Contudo, essa suposta vinculação da Administração Pública à Cons-
como a Constituição de 1988 já poderia ter sido o motor de transforma- tituição foi feita pela metade por parte da doutrina brasileira ou então
ção da realidade administrativa brasileira, a partir da principiologia não foi feita. Isso porque se a Administração Pública se constitucionali-
constitucional. Em outras palavras, pretendo analisar se a Constituição zou, como não cansa de ressaltar a doutrina mais atual do Direito Admi-
de 1988 realmente conseguiu constitucionalizar a Administração Públi- nistrativo, a compreensão dos princípios constitucionais e dos impactos
ca. Com isso, não pretendo analisar se a “prática” administrativa se cons- que tais princípios podem trazer para a atividade administrativa ainda
titucionalizou completamente. A resposta a essa questão é obviamen- deixam muito a desejar, dificultando a construção de uma atuação ad-
te negativa! Até porque se isso tivesse ocorrido os próprios princípios ministrativa que considere e respeite o direito das futuras gerações.
constitucionais perderiam sua função! Na verdade, quero perceber se a Para não me alongar em demasia, vejamos apenas três casos paradig-
doutrina administrativista pátria conseguiu levar até as últimas conse- máticos relacionados aos princípios da legalidade, da moralidade admi-
quências a suposta constitucionalização do Direito Administrativo. nistrativa e um suposto princípio da supremacia do interesse público.
Pois bem. Inicio com a própria expressão constitucionalização do Quanto à legalidade, hoje se entende que tal princípio significa não
Direito Administrativo. Como bem ressalta Virgílio Afonso da Silva, a mais respeito estrito e restrito à lei, mas incorpora a ideia de juridicida-
Constituição de 1988 promoveu uma “onda” de constitucionalização em de, ou seja, legalidade significa hoje fundamentalmente respeito à Cons-
todos os ramos do Direito. Essa expressão, constitucionalização do Di-
reito, contudo, é, no mínimo dúbia e, no máximo, sem sentido.44 A ex-
pressão pode significar que somente é válido o Direito que estiver de
45 .  SILVA, Virgílio Afonso da. Op.cit.
acordo com a Constituição. Mas, com isso, não temos nenhuma novida-
46 .  A primeira autora a expressar essa ideia no Brasil parece ter sido a hoje Ministra do
de, já que todos sabem que o fundamento de validade de todo o Direito
STF, Cármen Lúcia Antunes Rocha, em obra cuja leitura é obrigatória sobre o tema: RO-
se encontra na Constituição. Por outro lado, a expressão pode significar CHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994. Depois dela, vários outros autores se referiram a esse movimento.
Dentre todos, apenas exemplificativamente, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende.
43 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro Setor e Estado: Legitimidade e Regulação. Constitucionalização do Direito Administrativo: O Princípio da Juridicidade, a Releitu-
Belo Horizonte: Fórum, 2008. No mesmo sentido: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parce- ra da Legalidade Administrativa e a Legitimidade das Agências Reguladoras. 2ª edição,
rias na Administração Pública: Concessão, Permissão, Franquia, Terceirização, Parce- Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Di-
ria Público-Privada e outras Formas. 6ª edição, São Paulo: Atlas, 2008. reito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
44 .  SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os Direitos Funda- 47 .  JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8ª edição revista, amplia-
mentais nas Relações entre Particulares. São Paulo: Malheiros, 2005. da e atualizada, Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 68.

58 59
N N
tituição, ou seja, é constitucionalidade ou juridicidade.48 Mas, se legali- que dirá que somente viola a moralidade administrativa se a con-
dade significa constitucionalidade e juridicidade, ou seja, cumprir a lei duta ferir a moralidade institucional da Administração, no final,
por parte da Administração é, antes de tudo, cumprir a Constituição, acabam por afirmar que uma conduta pode ser ilegal, mas moral ou
como compatibilizar tais afirmações com aquelas que continuam a imoral, mas legal!
repetir que, de acordo com o princípio da legalidade administrativa, A moralidade administrativa não se cumpre ao se observar a moral
a Administração somente pode agir se houver expressa previsão le- do homem comum como também não se cumpre ao se observar a mo-
gal autorizando-a? A incompatibilidade se dá justamente porque os ral institucional da Administração Pública. No primeiro caso, porque
princípios constitucionais nem sempre são expressos. Muitos deles a moral do homem comum é bastante relativa para servir de parâme-
decorrem e dependem de uma atividade hermenêutica por parte da tro para a Administração Pública; no segundo, porque se a moralidade
Administração Pública para serem revelados. Inclusive, hoje, a própria da Administração Pública for a do “jeitinho”, do “você sabe com quem
dicotomia princípios expressos e implícitos encontra-se em crise.49 está falando” e outras coisas do gênero, será que a manutenção dessa
Além disso, se legalidade significa fundamentalmente constitucio- moralidade institucional da Administração Pública cumpre constitu-
nalidade, como compatibilizar tal ideia com a doutrina ainda em voga cionalmente o princípio da moralidade administrativa? A resposta so-
no Brasil no sentido da inexistência de decreto autônomo? Ora, gran- mente parece ser pela negativa.
de parte da doutrina brasileira ainda pensa o decreto como simples E paro por aqui quanto à moralidade administrativa.
realizador de comandos legais, impossibilitado de inovar no ordena- Por fim, vejamos o suposto princípio da supremacia do interes-
mento jurídico.50 Mas, nessa nova visão da legalidade, a Administração se público sobre o particular, na verdade hoje defendido apenas por
não poderia diretamente, via decreto, cumprir e realizar os comandos Celso Antônio Bandeira de Mello.53 Na verdade, se supremacia do
constitucionais? Deve ela aguardar sempre o legislador infraconsti- interesse público sobre o particular for princípio, é a própria Cons-
tucional para, só depois, agir? Para mim, as duas respostas são pela tituição de 1988 que passa a ser negada. Não há qualquer elemento
negativa. E, com a legalidade, paro por aqui. constitucional que leve à afirmação de tal princípio! Embora a dou-
Vamos para a moralidade administrativa e aí a coisa ou piora ou é trina mais atual tenha rejeitado tal princípio, o problema se centra
tão ruim quanto com o tema da legalidade. na argumentação utilizada para rejeição, pois abre espaço para mais
Apesar da Constituição se referir à moralidade administrativa, in- decisionismo e arbitrariedade, já que os argumentos estão baseados
corporando a tese de Ronald Dworkin no sentido de que o Direito é um em uma suposta ponderação de valores.54 Aqui, não terei espaço para
compartimento da Moral, os autores ainda teimam em separar Direito desenvolver de modo mais aprofundado as críticas, tanto em relação
e Moral, revelando uma filiação positivista. à supremacia do interesse público sobre o particular quanto as for-
Assim, há desde autores, como Maria Sylvia Zanella Di Pietro51 mas que a doutrina vem defendendo para superar e demonstrar a
que afirmam que viola a moralidade administrativa toda e qualquer inexistência de tal princípio.
violação à Moral do homem comum, passando por Odete Medauar52 Apesar do caráter exemplificativo do meu argumento, acredito que
já é possível perceber que a construção e afirmação de um direito das
futuras gerações passam necessariamente por uma reformulação da
48 .  Dentre tantos, vide: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Op.cit.; BINENBOJM, Gustavo. Op.cit.
vinculação da Administração à juridicidade.
49 .  Sobre a crise e inconsistência da distinção princípios expressos e princípios implíci-
tos, vide: DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição É o que mostrarei no último ponto do presente texto.
Norte-Americana. Op.cit.
50 .  Por todos, vide: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administra-
tivo. 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009.
51 .  DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24ª edição, São Paulo: Atlas, 2011. 53 .  BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.cit.
52 .  MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 15ª edição, São Paulo: Editora 54 .  Sobre os problemas relacionados à ponderação de valores, vide: OMMATI, José Emílio
Revista dos Tribunais, 2011. Medauar. Teoria da Constituição. Op.cit.

60 61
N N
3  À Guisa de Conclusão: Uma Nova Leitura da Da mesma forma, não se pode mais defender a ideia de que a Ad-
ministração Pública seja parcial. Assim, a impessoalidade deve ser lida
Principiologia Constitucional-Administrativa para não apenas como uma Administração que não persegue nem favorece
a Construção do Direito das Futuras Gerações pessoas específicas, mas fundamentalmente deve englobar também a
imparcialidade, já que a função primordial da Administração Pública é
Se, como demonstrei nos itens anteriores, o Direito é um projeto co- a de realizar e desenvolver os direitos fundamentais dos cidadãos.
letivo que visa afirmar a igualdade e liberdade dos membros da comuni- A publicidade deve ser vista como proibição de propaganda institu-
dade de princípios, e se, inclusive, já há autores afirmando que a Admi- cional, como também a necessidade de transparência na gestão pública,
nistração Pública tem como obrigação jurídica fundamental cumprir e o que levará necessariamente a ampliação dos controles internos e ex-
realizar direitos fundamentais, a construção do direito das futuras ge- ternos da atividade administrativa.
rações passa necessariamente pelo rompimento de antigos dogmas que Por fim, a eficiência não pode se basear apenas em metas cons-
ainda assolam o Direito Administrativo brasileiro. truídas de modo acrítico que devem ser buscadas a qualquer preço. A
Assim, em um Direito Democrático, não é mais possível se afirmar que construção da eficiência administrativa também deve levar em consi-
a Administração Pública encontra-se em posição de superioridade em deração a participação dos cidadãos para que as metas e os mecanis-
relação aos administrados. A própria expressão administrado deve ser mos de sua realização sejam fruto de um diálogo da Administração
retirada dos livros de direito administrativo e da prática da Administra- Pública com a sociedade em geral.
ção Pública. Isso porque a Administração não lida com administrados, Somente assim acredito que poderemos transformar de fato e de
sujeitos passivos e que tudo aceitam sem saber o que querem da vida. direito a Administração Pública brasileira em construtora e realiza-
A Administração Pública lida com cidadãos que devem participar em si- dora dos direitos fundamentais, construindo-se um novo capítulo
tuação de igualdade na construção das ações administrativas; até porque para o nosso direito, de modo que as gerações futuras possam ser
tais ações irão repercutir na esfera de vida e de direitos dessas pessoas. consideradas parceiras na continuidade e desenvolvimento do proje-
Também não é mais possível defender a ideia de que a Adminis- to do direito democrático.
tração Pública sempre defende o interesse público e, em assim sen- Utopia? Pode ser. Mas, se a utopia ou teoria é boa e a prática ruim,
do, deve ter prerrogativas e privilégios que os cidadãos comuns não então mudemos a prática!56
podem ter. Isso é indefensável em uma democracia constitucional,
pois a Administração pode estar privatizada nas mãos de poucos.
Além disso, a própria construção do interesse público depende da
participação do público para definir as prioridades. Isso porque as
sociedades contemporâneas são marcadas por aquilo que, certa vez,
John Rawls denominou de fato do pluralismo.55 Significa dizer que a
sociedade não é homogênea, mas apresenta interesses conflitantes,
estando unida apenas em função de um projeto coletivo comum: o
desenvolvimento de uma comunidade de pessoas que se respeitam e
que se enxergam como livres e iguais, apesar de suas diferenças. Para
que a geração atual como também as futuras sejam respeitadas, é de
fundamental importância uma participação mais ativa dos cidadãos
na gestão pública. Uma Administração Pública paritária, igualitária.

56 .  Frase de Ronald Dworkin constante na seguinte obra: DWORKIN, Ronald. A Virtude
55 .  RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit.

62 63
N N
3
MULTILEVEL GOVERNANCE OF
INTERDEPENDENT PUBLIC GOODS IN THE 21ST
CENTURY: FROM NATIONAL TO MULTILEVEL
AND COSMOPOLITAN CONSTITUTIONALISM?

Ernst-Ulrich Petersmann

1  F
 rom Constitutional Nationalism to
‘UN Multilevel Constitutionalism’

I n contrast to private goods produced spontaneously in private


markets, the ‘non-excludable’ and ‘non-exhaustive’ characteris-
tics of PGs entail ‘market failures’ requiring government interven-
tions for the collective supply of ‘weakest link PGs’ (like a dike) and
‘aggregate PGs’ (like democratic peace).1 Since republican constitu-
tionalism in ancient Greece, almost all states have learned through
‘trial and error’ the need for adopting national Constitutions as a ne-
cessary legal framework for democratic supply of national PGs (like
rule of law, a common market). Since World War II, all 193 UN mem-
ber states have also joined functionally limited treaty constitutions
like the Constitutions (sic) of the International Labour Organization
(ILO), the World Health Organization (WHO), the UN Educational,
Scientific and Cultural Organization (UNESCO) and the Food and
Agriculture Organization (FAO); the ‘constitutional functions’ of this
functionally limited ‘UN multilevel constitutionalism’ include (1) es-
tablishing multilevel governance institutions, (2) limiting their legis-
lative, executive and dispute settlement powers, (3) regulating their
collective supply of functionally limited ‘aggregate PG’ through ‘pri-
mary rules of conduct’ and ‘secondary rules of recognition, change

1 .  For a discussion of the different kinds of public goods and related ‘production
strategies’ see: S.Barret (2007) and E.U.Petersmann (ed, 2012).

65
N
and adjudication’, and (4) justifying the governance systems, for ins-
2  E
 uropean ‘Cosmopolitan
tance in terms of protecting labour rights and ‘social justice’ through
ILO law, fundamental rights to health protection through WHO law, Constitutionalism’ Regulates
human rights to education, justice and ‘rule of law’ through UNESCO
‘Collective Action Problems’ and
law, or ‘ensuring humanity’s freedom from hunger’ through FAO law.
The more globalization transforms national PGs into global ‘aggrega- Protects PGs More Effectively
te PGs’, the more national (big C) Constitutions turn out to be ‘partial
constitutions’ that can protect international PGs only in cooperation
with other states based on international law and institutions. Yet,
due to intergovernmental power politics focusing on ‘state sovereig-
E uropean human rights and economic integration law confirms that
citizen-oriented ‘cosmopolitan constitutionalism’ protecting cos-
mopolitan rights, ‘participatory democracy’, transnational rule of law
nty’ rather than ‘popular sovereignty’, ‘individual sovereignty’ and and multilevel judicial remedies for the benefit of citizens across sta-
related ‘sovereign responsibilities’, neither the UN nor UN Speciali- te borders – eg in the context of the European Convention on Human
zed Agencies nor the WTO have succeeded in realizing their human Rights (ECHR), European common market and competition law, inter-
rights objectives and protecting other international PGs effectively. national investment and commercial law and arbitration – have protec-
As first explained by Kantian legal theory, state-centered ‘multilevel ted PGs in more legitimate and more effective ways than state-centered
constitutionalism’ cannot effectively protect human rights and other regimes prioritizing rights of governments (eg under UN and WTO law)
international PGs without additional multilevel constitutional sa- over rights and judicial remedies of citizens.3 The ‘multilevel constitu-
feguards of cosmopolitan rights and corresponding constitutional tionalism’ initiated by the ILO, FAO, WHO and UNESCO ‘constitutions’
restraints on abuses of power in all human interactions at national, failed to protect international PGs effectively (like labour rights pro-
transnational and international levels.2 Power-oriented ‘Westphalian tecting ‘social justice’, human rights to education, health protection
conceptions’ of international law focusing on foreign policy discre- and adequate food) because citizens and democratic parliaments were
tion for maximizing ‘national interests’ - without effective parliamen- often not effectively empowered (eg by ‘countervailing rights’ limiting
tary control, judicial review and other constitutional restraints of abuses of executive powers through judicial remedies); political abuses
intergovernmental power politics and of its often welfare-reducing of power (eg in non-democratic UN member states) were not effectively
effects on domestic citizens - become all too often captured by ren- constitutionally restrained (eg through supervisory powers of UN ins-
t-seeking interest groups abusing import protection and non-trans- titutions and compulsory jurisdiction of international courts of justice
parent financial deals (eg loan agreements, concession agreements) limiting ‘harmful externalities’ of violations of human rights). Euro-
generating ‘protection rents’ for politicians and powerful producer pean common market and competition rules realized the PG of consu-
interests at the expense of domestic consumer welfare. mer-driven, open markets because EU citizens could directly enforce
the European Union (EU) and European Economic Area (EEA) rules in
domestic courts; and independent guardians of ‘community interests’
(like the EU Commission) could enforce the rules also in the EU Court of
Justice (CJEU) as well as in the European Free Trade Area (EFTA) Court.
The multilevel legal, democratic and judicial guarantees were linked,
for instance by cooperation among national and European courts (eg
based on ‘preliminary rulings’ by the CJEU) and individual access also
to the CJEU, the EFTA Court and the European Court of Human Rights

2 .  Cf E.U. Petersmann (2012), chapts II and III. 3 .  Cf. Petersmann (note 2), at 145 ff.

66 67
N N
(ECtHR). Also the multilevel HRL in Europe can be directly enforced by ternational public goods democratically and effectively) requires new
self-interested citizens in national and European courts, just as interna- forms of multilevel constitutional, legislative, administrative and judi-
tional investment and commercial law and arbitration offer decentra- cial commitments and institutions for collective protection of human
lized legal and judicial remedies aimed at protecting transnational rule rights and other PGs. In contrast to ‘constitutional nationalism’ (as il-
of law. European integration law protects individual, constitutional lustrated by the ‘hegemonic international law’ conceptions of most UN
and democratic diversity and subsidiarity of governance as constitu- Security Council members) and to power-oriented ‘UN multilevel cons-
tional rights and values (eg in Articles 2-5 of the Lisbon Treaty on EU). titutionalism’, European cosmopolitan constitutionalism empowers
The cosmopolitan constitutionalism underlying the European treaties not only governments but also citizens, parliaments, functionally li-
constituting, limiting, regulating and justifying European PGs (like the mited regulatory agencies (like multilevel competition authorities and
common market, transnational protection of human rights, rule of law, central banks), national and international courts of justice. The focus
multilevel democratic governance) deals with the five major ‘collective of ‘cosmopolitan empowerment’ on extending the ‘constitutional trias’
action problems’ in supplying international PGs more effectively than of human rights, rule of law, and democratic self-government to multi-
traditional regulatory approaches focusing on ‘constitutional nationa- level governance – rather than on foreign policy discretion and intergo-
lism’ (eg in hegemonic countries like the USA, Russia and China) and vernmental power politics - prioritizes constitutionally restrained, and
state-centered ‘UN multilevel constitutionalism’. For instance: democratically more legitimate problem-solving capacities (eg through
European networks of competition authorities subject to multilevel

1 . The jurisdiction gap (ie the limited jurisdiction and incapacity of


individual states to provide ‘aggregate PGs’ unilaterally without in-
ternational cooperation) requires not only constituting, limiting, regu-
protection of individual rights and judicial remedies) that can mobilize
more effectively democratic support for peaceful economic integration
and political cooperation (eg through ‘participatory’ and ‘deliberative
lating and justifying intergovernmental powers for collective supply democracy’ complementing the inadequate control of ‘intergovern-
of international PGs. Democratic exercise of multilevel governance mentalism’ by national parliaments).
powers must also link the law of international organizations to cos-
mopolitan rights, parliamentary control and judicial remedies of ci-
tizens. The common market law of the EU, and its extension to EFTA
countries through the Agreement establishing the European Economic
3 . The incentive gap (ie the inherent temptation of free-riding in the
collective supply of international PGs whose costs and benefits are
distributed unevenly) requires making ‘common but differentiated res-
Area (EEA) as well as through bilateral free trade agreements (eg with ponsibilities’ for private and public, national and international actors
Switzerland), illustrate diverse ‘cosmopolitan IEL approaches’ that more effective. Financial and technical assistance for poor countries (eg
have protected the PG of a citizen-driven, rule-based common market if they provide transnational environmental services by protecting tro-
effectively. By contrast, free trade agreements outside Europe (such as pical forests that are of global importance for bio-diversity and carbon-
NAFTA and ASEAN) remain subject to governmental impunity to vio- -reduction), or WTO provisions for capacity-building and trade facilita-
late international law for the benefit of powerful interest groups (in- tion assisting less-developed countries (LDCs) in participating in world
cluding diplomats interested in excluding their own legal, democratic trade and in implementing WTO obligations, illustrate how legal and
and judicial accountability vis-à-vis citizens), or to redistribute income financial incentives for private and public participation in the supply of
among domestic citizens by discretionary ‘trade remedies’, restraints of international PGs may assist in limiting ‘governance failures’ and pro-
competition and subsidies distorting non-discriminatory conditions of moting equitable sharing of adjustment costs. The limited incentives
competition to the detriment of consumer welfare. for LDCs to make use of the power-oriented GATT dispute settlement
system were successfully reduced by the WTO provisions for legal as-

2 . The governance gap (ie the inability of most intergovernmental


organizations to regulate and govern the collective supply of in-
sistance for LDCs (cf. Article 27 DSU) and by the establishment of a
separate Advisory Center on WTO Law assisting developing countries

68 69
N N
in WTO dispute settlement proceedings and in implementing WTO LDCs as ‘second best’ policies in the absence of worldwide consensus on
obligations. The European experiences with financial redistribution concluding the Doha Round negotiations. Transnational economic and
(e.g. by EU regional, structural and development funds), capacity-buil- environmental PGs are crucially dependent on private stake-holder
ding and ‘human rights conditionality’ illustrate how citizen-oriented participation, for instance by private industries developing product,
‘community law’ and rights-based ‘integration law’ can transform po- production and consumer protection standards, industrial and medical
wer politics by cosmopolitan rights, development assistance and rule innovation (eg ‘green technologies’), and ‘private-public partnerships’ in
of law. The focus of the WTO ‘Development Round’ on assisting the regulating economic markets (eg labour markets, Internet governance,
majority of less-developed WTO member countries to benefit from ‘carbon emission trading systems’ contributing to adjustment to clima-
trade and from welfare-increasing trade regulation has been a neces- te change). As illustrated by the citizen-driven European economic, legal
sary, yet insufficient incentive for promoting participation of LDCs in and human rights regimes, transnational economic, environmental and
the consensus-practice of the WTO. The continuing disagreement on legal PGs (like ‘rule of law’ for the benefit of citizens) cannot become
how to maximize the gains of LDCs from trade illustrates the need for effective and legitimate without rights of all affected citizens to have
limiting consensus-based WTO negotiations by more legal flexibility recourse to legal and judicial remedies against unjustified restrictions
for ‘plurilateral trade agreements’ among ‘coalitions of the willing’. As of individual rights and market distortions.
‘human development’ depends on respect for human rights, and demo-
cratic control of foreign policy powers cannot remain effective without
transnational rule of law, cosmopolitan rights and judicial remedies are
indispensable incentives for citizens to assume their democratic res-
5 . The hundreds of functionally limited treaty regimes for multile-
vel supply of international PGs (eg mutually beneficial free trade
agreements), and their constitutional foundation in diverse national
ponsibilities for their economic and democratic self-development in a legal systems, entail a ‘rule of law gap’ that must be reduced through
globally interdependent world. mutually ‘consistent interpretations’ of interdependent, multilevel le-
gal systems. Both national as well as international legal systems tend

4 . The participation gap (ie the need for inclusive consensus-buil-


ding mobilizing democratic support and participation in collective
supply of PGs) requires empowerment of citizens by cosmopolitan ‘ac-
to proceed from the legal assumption that governments are presumed
to act in conformity with their international legal obligations (cf. Arti-
cle 31 VCLT). Also HRL emphasizes, since the Universal Declaration of
cess rights’ to public goods, legal and institutional protection of ‘deli- Human Rights (UDHR, 1948), the need for protecting ‘human rights … by
berative governance by discussion’, institutionalized leadership (e.g. by the rule of law’, including a human right ‘to a social and international
international organizations with mandates for initiating rule-making order in which the rights and freedoms set forth in this Declaration can
for global public goods) and financial assistance for ‘capacity building’ be fully realized’ (Preamble, Article 28 UDHR). Numerous treaties and
by ‘coalitions of the willing’ so that all relevant public and private ac- UN resolutions acknowledge this need for implementing international
tors cooperate in the collective supply of interdependent ‘aggregate law in domestic legal systems in good faith in view of the interdepen-
PGs’. As in HRL and European economic law, multilevel governance dence of national and international rule-of-law systems (as an ‘aggre-
must be promoted by insisting on ‘responsible sovereignty’ based on gate PG’).4 Both ‘constitutional nationalism’ as well as ‘UN multilevel
‘duties to protect’ human rights and other public goods, international constitutionalism’ prioritizing ‘sovereign freedom of states’ to disre-
duties of cooperation (e.g. among national governments and interna- gard international law inside national legal systems (subject to inter-
tional organizations, national and international courts) and promotion national ‘state responsibility’) tend to aggravate the ‘policy coherence
of ‘regulatory competition’ through plurilateral agreements among ‘al-
liances of the willing’. WTO law encourages ‘competing liberalization’ at 4 .  On UN protection of rule of law beyond the state see the annual reports by the UN
Secretary-General on ‘The Rule of law at the national and international levels’ (De-
worldwide and regional levels, as illustrated by the increasing recourse livering Justice: Programme of Action to Strengthen the Rule of Law at the National
to free trade areas, customs unions and preferential agreements among and International Levels. Report by the Secretary-General, A/66/749, 16 March 2012).

70 71
N N
gap’ resulting from the rule-of-law-gap caused by the legal fragmenta- The unnecessary poverty and lack of democratic governance in many
tion among hundreds of national, international and transnational legal LDCs (notably in Africa and Asia) illustrate similar ‘governance gaps’
regimes and from parochial disregard for the ‘coherent interpretation and ‘rule of law gaps’: UN law continues to fail protecting effectively hu-
requirements’ recognized in national and international legal systems. man rights, rule of law, democracy and other PGs in many UN member
states; it offers no protection for the economic liberties (like freedom
of profession), common market freedoms and property rights, whose
guarantees in in European law enabled more than 60 years of unprece-
3  H
 RL Requires ‘Access to dented economic and social welfare and democratic peace. Hence, the
Justice’ and ‘Cosmopolitan ‘human rights approaches’ advocated by the UN High Commissioner
for Human Rights for interpreting and developing IEL6 must be com-
Constitutionalism’ also in IEL plemented by multilevel constitutional, legislative, administrative and
judicial regulation of ‘market failures’ as well as of ‘governance failures’

C osmopolitan constitutionalism differs from national (big C) Consti-


tutionalism and state-centered ‘UN multilevel (small c) constitutio-
nalism’ by its objective of protecting cosmopolitan rights across national
in IEL - with due respect for the legitimate reality of ‘constitutional plu-
ralism’, for instance regarding the diverse traditions of parliamentary
democracy, ‘constitutional democracy’, and the ‘balancing’ of civil, politi-
frontiers through more democratic, multilevel governance institutions
cal, economic, social and cultural rights.
and stronger, multilevel judicial protection of transnational rule of law
If the purpose of constitutionalism and democracy is defined in
for the benefit of citizens. Since the UN Declaration on the ‘Right to De-
terms of institutionalizing ‘public reason’ for protecting constitu-
velopment’ adopted in December 1986 up to the ‘Millennium Declaration’
tional rights of citizens in legitimate ways, then the power-orient-
of December 2000 committing UN member states to ‘making the right
ed domination of UN and WTO institutions by the self-interests of
to development a reality for everyone and to freeing the entire human
governments (eg in limiting their legal, democratic and judicial ac-
race from want’, the linkages between human rights protection and hu-
countability vis-à-vis citizens) is part of the problem - rather than
man development needs are specified in ever more UN legal instruments
of the solution - of multilevel governance of ‘aggregate PGs’. Due to
and development reports. Also national Constitutions increasingly refer
the absence of a transnational ‘demos’ and of effective parliamenta-
to international law and international organizations as preconditions
ry and judicial control of intergovernmental power politics, trans-
for protecting international PGs through multilevel governance. In IEL,
national ‘cosmopolitan democracy’ must rely more on rights-based
transnational rule of law has rarely been secured only by rights and res-
‘participatory democracy’, cosmopolitan rights and their multilevel,
ponsibilities of states without additional constitutional limitations of
legal and judicial protection as ‘countervailing powers’ to the diffu-
multilevel governance (eg by judicial remedies). The 2013 Report of the
sion of ever more regulatory powers to international institutions
Panel on Defining the Future of International Trade convened by WTO
and non-governmental actors due to globalization. As many rulers
Director-General P. Lamy concluded ‘that governments face a four-pron-
are complicit in abuses of public and private power (eg by means
ged convergence challenge’: (1) failures to promote further convergence
of foreign loan and concession agreements for exploiting natural
of their trade regimes through multilateral WTO negotiations; (2) in-
resources, restrictive business practices), the vigilance of self-inter-
coherencies of preferential and WTO trade regimes; (3) incoherencies
ested citizens and of independent ‘courts of justice’ may offer more
between ‘trade and other domestic policies, such as education, skills and
effective ‘countervailing powers’7 limiting the ubiquity of abuses of
innovation’; and (4) inadequate ‘coherence between trade rules and poli-
cies, norms and standards in other areas of international co-operation’.5
6 .  Cf. Petersmann (2012), chapters IV and VII.
7 .  This conception was emphasized by the CJEU in its Van Gend en Loos judgment
5 .  The Future of Trade: The Challenges of Convergence (WTO, 2013), at 39. (Case 26/62, ECR 1963, 1), where the CJEU stated that ‘the vigilance of the individuals

72 73
N N
power in transnational economic relations than reliance on ‘West- law likewise include numerous guarantees of access to justice or to ‘a
phalian ideals’ of ‘benevolent governments’ committed to ‘Aristote- review procedure before a court of law or another independent and
lian virtue politics’. By linking the ‘cosmopolitan functions’ of IEL impartial body established by law’ in transnational environmental
to existing domestic constitutional guarantees of civil, political, regulation (cf Article 9 of the 1998 Aarhus Convention on Access to
economic and social rights of citizens and to the universal human Information, Public Participation in Decision-Making and Access to
rights obligations of all UN member states, ‘cosmopolitan interpre- Justice in Environmental Matters).8 As some national Constitutions
tations’ of IEL and their judicial protection for the benefit of citi- have responded to systemic governance failures by providing for
zens can initiate ‘cosmopolitan reforms’ and more citizen-oriented broad legal and judicial remedies whenever ‘rights are violated by
‘public reason’ in multilevel governance of PGs, as illustrated by the public authority’ (eg Article 19:4 German Basic Law), and some re-
common market rights of European citizens and the derivation of in- gional economic agreements (like the Lisbon Treaty) are explicitly
vestor rights from bilateral investment treaties and their multilevel committed to facilitating ‘access to justice’ (Article 67:4 TFEU), ‘rule
judicial protection by arbitral and national courts. Also the General of law’ (Article 2 TEU) and a ‘right to an effective remedy and to a fair
Agreement on Tariffs and Trade and the WTO Agreements include trial’ whenever ‘rights and freedoms guaranteed by the law of the
a large number of requirements to make available judicial, arbitral Union are violated’ (Article 47 EU Charter of Fundamental Rights),
or administrative tribunals and independent review procedures not interpreting national, regional and international legal guarantees
only at international governance levels among WTO members, but of ‘access to justice’ in mutually coherent ways for the benefit of citi-
also in domestic legal systems in the field of GATT (cf Article X), the zens can be justified also as a legal requirement of the ‘consistent in-
WTO Antidumping Agreement (cf Article 13), the WTO Agreement terpretation principles’ underlying national and international legal
on Customs Valuation (cf Article 11), the Agreement on Pre-shipment systems (cf Article 31 VCLT).
Inspection (cf. Article 4), the Agreement on Subsidies and Counter-
vailing Measures (cf Article 23), the General Agreement on Trade in
Services (cf Article VI GATS), the Agreement on Trade-Related Intel-
lectual Property Rights (cf Articles 41-50, 59 TRIPS) and the Agree-
4  ‘Cosmopolitan Constitutionalism’
ment on Government Procurement (cf Article XX). As the legal and as a ‘Struggle for Justice’
‘dispute settlement system of the WTO’ is explicitly committed to
‘providing security and predictability to the multilateral trading
system’ (Article 3 DSU) and to ‘raising standards of living, ensuring
full employment’ and promoting ‘sustainable development’ for the
A lmost a century ago, the German jurist R.Jhering noted that the
‘life of the law’ often depends on citizens struggling for their rights;
such ‘struggle for his rights’ may be a ‘duty of the person whose rights
benefit of citizens (Preamble WTO Agreement), the WTO guarantees have been violated’ as well as a ‘duty to society’.9 In US antitrust law
of ‘access to justice’ and of ensuring inside each WTO member ‘the as well as in European economic law, individual plaintiffs invoking
conformity of (domestic) laws, regulations and administrative pro- and enforcing competition and common market rules have been like-
cedures with its obligations as provided in the annexed Agreements’ ned to ‘attorney generals’ promoting also ‘community interests’ rather
(Article XVI:4 WTO Agreement) justify interpreting precise and un- than only individual self-interests. Following the recognition of human
conditional WTO obligations of governments also in terms of cos-
mopolitan rights of their citizens. HRL and regional environmental 8 .  Cf. A.A.Cançado Trindade (2011). The terms ‘effective remedy’ and ‘access to justice’
are often used interchangeably for protecting individual rights to effective access to
a dispute resolution body; rights to fair proceedings; rights to timely resolution of
concerned to protect their rights amounts to an effective supervision in addition to disputes; rights to adequate redress; and the principle of efficiency and effectiveness
the supervision entrusted by (ex) Articles 169 and 170 to the diligence of the Commis- of legal remedies.
sion and the Member States’. 9 .  R. Jhering (1915), chapters II to IV.

74 75
N N
rights and other ‘principles of justice’ as integral parts of national and transnational parliamentary representation and control, the more
international legal systems, ever more national and international courts important becomes ‘constitutionalization’ of transnational gover-
throughout Europe interpret international guarantees of freedom, non- nance powers through ‘cosmopolitan constitutionalism’ protecting
discrimination and rule of law for the benefit of citizens even if the in- individual and democratic diversity in multilevel governance.
ternational rules were addressed to states without explicitly providing Transnational regulation of multilevel governance in international
for cosmopolitan rights: “‘the fact that certain provisions of the Treaty organizations without effective parliamentary control (like the Bretton
are formally addressed to the Member States does not prevent rights Woods institutions, the ILO, the WTO) will continue to differ depend-
from being conferred at the same time on any individual who has an in- ing on the functionally diverse governance problems. For example,
terest in compliance with the obligations thus laid down (see Case 43/75 the regulation of ‘market failures’ through competition, environmen-
Defrenne v Sabena [1976] ECR 455, par. 31). Such consideration must, a tal, social and consumer protection laws and policies may be guided
fortiori, be applicable to Article 48 of the Treaty, which … is designed to more by economic theories (e.g. on ‘internalizing external effects’) than
ensure that there is no discrimination on the labour market’”.10 by human rights considerations. The legal ranking of trade policy in-
The increasing legal and judicial guarantees of ‘access to jus- struments in GATT/WTO law is influenced by economic theories that
tice’ and of cosmopolitan rights offer individuals decentralized and differ from those justifying regulation of monetary organizations and
de-politicized instruments to enforce IEL against illegal government regional common markets. The regulation of many ‘collective action
restrictions and irresponsible interest group politics. The more the problems’ in supplying international public goods may be guided by
‘constitutional trias’ of human rights, rule of law and democracy political ‘public choice’- and ‘public goods’-theories emphasizing the
becomes an ‘acquis communautaire’ of national Constitutionalism diversity of ‘production strategies’ for ‘single best effort public goods’
and a paradigm for ‘constitutionalizing’ also multilevel governance (like an invention), ‘weakest link public goods’ (like nuclear non-prolif-
of transnational PGs, the more citizens and courts of justice must eration) and ‘aggregate public goods’ (like ‘rule of law’).11
struggle for ‘cosmopolitan re-interpretations’ of UN law and WTO In a globally interdependent world, democratic self-government
law ‘in conformity with principles of justice’ and ‘human rights and risks remaining an illusion unless treaties ratified by national par-
fundamental freedoms for all’, as required by HRL and the custom- liaments are not respected. Yet,
ary methods of treaty interpretation (cf Preamble, Article 31 VCLT) transnational ‘rule of law’ differs from ‘rule by law’ and must
and adjudication. For example, interpreting ‘state sovereignty’ in be promoted by recognizing, ‘balancing’ and reconciling competing
conformity with ‘popular’ and ‘individual sovereignty’ in terms of rights and constitutional claims on the basis of common consti-
‘responsible sovereignty’ - focusing on the universal obligations of tutional principles (like guarantees of human rights and popular
all UN member states to respect, protect and fulfill human rights – self-determination in UN law), with due respect for legitimately di-
justifies limiting the Westphalian paradigm of ‘intergovernmental verse interpretations in conformity with different national consti-
rule by law’ by a paradigm of rights-based ‘cosmopolitan democracy’ tutional traditions and democratic preferences. As intergovernmen-
beyond the state based on transnational ‘rule of law’, cosmopolitan tal rules often unduly restrict individual rights, transnational ‘rule
rights and their multilevel, legal and judicial protection, with due of law’ – as a constitutional, jurisdictional and judicial restraint pro-
respect for ‘constitutional pluralism’ and subsidiarity promoting di- tecting equal individual rights against abuses of ‘rule by law’ – may
versity inside UN member states as well as in functionally limited require ‘struggles for justice’ as illustrated by the citizen-driven juris-
international organizations. The more the ‘rational ignorance’ of citi- prudence of European courts, for example in the Kadi-judgments of
zens vis-à-vis the complexity of multilevel governance problems and the ECJ refusing application of UN Security Council sanctions vi-
the diversity of national democratic preferences limit the space for

10 .  Cf. Case C-281/98, Angonese [2000] ECR I-4139. 11 .  Cf. Barret (2007) and Petersmann (2012), at 25 f, 56 f, 94 ff.

76 77
N N
olating human rights.12 In contrast to power-oriented ‘Westphalian 1947). The ‘governance failures’ in concluding the ‘Development
diplomacy’ focusing on foreign policy discretion by government ex- Round’ negotiations in the WTO illustrate the need for additional, le-
ecutives without legal and judicial accountability vis-à-vis citizens gal and cosmopolitan governance reforms of the WTO legal system,
(e.g. for welfare-reducing trade protectionism, inadequate financial for instance by promoting leadership based on an enlarged man-
regulation), democratic self-government and the ‘subsidiarity princi- date of the WTO Director-General, creation of a new WTO Executive
ple’ call for legal empowerment of citizens and decentralized govern- Committee, regular review of the WTO legal and dispute settlement
ment ‘as openly as possible and as closely as possible to the citizens’ systems by a WTO Legal Committee, institutionalizing the inter-par-
(Article 1 TEU). If, as claimed by most economists in conformity with liamentary cooperation inside the WTO, and introducing more flexi-
Rawls’ Theory of justice, the poverty in most LDCs is unnecessary bility for ‘plurilateral trade agreements’ among WTO members. Just
and due to inadequate constitutional restraints of welfare-reducing as international investment law has succeeded in depoliticizing in-
abuses of public and private power13, civil society and parliaments vestment disputes (eg in the International Court of Justice) by of-
must struggle for stronger cosmopolitan rights and constitutional fering non-governmental actors access to investor-state arbitration,
restraints of multilevel economic and environmental governance in many international trade disputes in the WTO could be avoided and
compliance with international treaties ratified by parliaments. decentralized by empowering citizens through cosmopolitan rights
European integration confirms that overcoming discriminatory to challenge arbitrary violations of WTO obligations and of transna-
‘legal nationalism’ requires ‘multilevel guardians of PGs’ based on tional rule of law in domestic courts.
cosmopolitan rights of citizens, independent institutions (like the
EU Commission) with rights to initiate rule-making and promote ‘de-
liberative democracy’, multilevel judicial protection of transnational
5  C
 onstitutional Pluralism as
rule of law, and accountability of governments for violations of in-
ternationally agreed rules. The transformation of GATT 1947 into the ‘Overlapping Consensus’ for
rules-based WTO trading system with compulsory, national and in-
Piecemeal Reforms
ternational jurisdiction for the peaceful settlement of disputes and
judicial protection of rule of law was achieved by ‘intergovernmental
leadership’ by constitutional democracies (e.g. insisting on the com-
pulsory WTO dispute settlement system and on terminating GATT
T here are many diverse conceptions of ‘cosmopolitan rights’ and le-
gal duties vis-à-vis foreigners, for instance depending on whether
national boundaries are considered to have moral significance (eg in
terms of ‘democratic responsibility’ of a people for its own welfare).
12 .  See joined cases C-402/05P and C-415/05 P, Kadi and Al Barakaat International ‘Cosmopolitan constitutionalism’ must respect this legitimate reality
Foundation v Council of the EU and Commission of the European Communities (judg-
ment of 3 September 2008, ECR 2008 I-6351), para. 284: ‘It is also clear from the case- of ‘constitutional pluralism’ by searching only for an ‘overlapping con-
law that respect for human rights is a condition of the lawfulness of Community acts sensus’ (J.Rawls) among individuals, people and governments with of-
(Opinion 2/94, paragraph 34) and that measures incompatible with respect for human ten conflicting conceptions of a good life and of social justice.14 Yet, as
rights are not acceptable in the Community (Case C-112/00, Schmidberger [2003] ECR
I-5659, paragraph 73 and case-law cited).’ For an explanation of the importance of ‘hu- securing human rights in multilevel governance of PGs is ‘a matter of
man rights coherence’ and respect for legitimate ‘constitutional pluralism’ for the inter- justice’ rather than of charity or foreign policy discretion of the rulers,
pretation, legitimacy and effectiveness of IEL see: Petersmann (2012), chapters II to IV. citizens and people will continue to struggle (eg in the ‘Arab spring’)
13 .  Cf. J.Rawls (1999), at 37-38, 106-120 (‘the crucial element in how a country fares is for ‘constitutionalizing Westphalian power politics’ and insist also on
its political culture – its members’ political and civic virtues – and not the level of its
resources’, at 117). For instance, China and India – whose trade liberalization since the stronger constitutional and democratic accountability of foreign policy
1990s has helped to lift hundreds of millions out of poverty – could have avoided the
impoverishment of many of their citizens if they had complied with GATT rules since
the GATT membership of China and India in1948. 14 .  Cf. Petersmann (2012), chapter VI.

78 79
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powers and intergovernmental rule-making, notably in terms of ‘princi- tal regulation) as ‘building blocks’ for global PGs and for connecting
ples of justice’ and ‘human rights and fundamental freedoms for all’ as multilevel ‘courts of justice’ in their joint task of protecting human
required by the customary rules of treaty interpretation and adjudica- rights and rule of law. However, the differences between the com-
tion. Realizing this ‘democratic responsibility’ for ‘cosmopolitan demo- pulsory jurisdiction of WTO dispute settlement bodies and the ‘com-
cracy’ is impeded by the ‘rational ignorance’ of many citizens vis-à-vis pliance procedures’ of multilateral environmental agreements (e.g.
the complexity of multiple governance problems: focusing more on fact-finding, mediation, financial assistance and
capacity-building) illustrate that international dispute settlement
ŠŠ Which powers of initiative, rule-making, rule-application, adju-
procedures must be tailored to the specific regulatory problems.
dication and rule-enforcement should be transferred to higher
For instance, whereas multilevel rule-making may be most effective
governance levels?
if based on internationally agreed minimum standards, multilevel
ŠŠ Should the delegated powers be of an exclusive nature (e.g. for administration and rule-enforcement are often more effective and
international adjudication of disputes among states) or concur- more democratically acceptable at decentralized, national or private
rent powers (e.g. for clarification and enforcement of rules) with levels rather than international levels. Examples include
due regard to the ‘principle of subsidiarity’, i.e. that governance
ŠŠ the ‘global corporate economy’ governed by private law structures;
powers should be exercised ‘as closely as possible to the citizens’
(cf. Article 1 TEU)? ŠŠ the decentralized enforcement of European economic law by
citizens empowered by effective legal and judicial remedies in
ŠŠ Does the economic theory of ‘separation of policy instruments’
national courts;
justify the separate mandates of UN Specialized Agencies? How
should the coherence and cooperation between monetary, trade, ŠŠ the governance of the Internet based on US corporate law, ad-
development and environmental agencies be strengthened in or- ministrative law and intergovernmental coordination; or
der to promote synergies and reduce collective action problems?
ŠŠ the use of the US Alien Torts Claims Act for holding multination-
ŠŠ To what extent should membership of international economic al corporations legally accountable for abuses of workers’ rights
and environmental organizations go beyond governments and in foreign jurisdictions.15
provide for rights and duties also of non-governmental and
parliamentary institutions and civil society in order to institu- The effectiveness and legitimacy of multilevel governance depend
tionalize ‘cosmopolitan public reason’ and ‘participative parity’ on bottom-up support by citizens and parliaments as well as on legal
in deliberations so as to promote ‘transformative decisions’ on protection of the overall coherence of multilevel governance. As UN
competing claims of just distribution? How can the different op- law offers only few effective safeguards of cosmopolitan rights and
erational logics of markets (e.g. their ‘power of exit’) and organi- responsibilities (eg under international criminal law as protected
zations (e.g. their communitarian loyalties) be reconciled in order by national and international courts), empowerment of individuals
to promote ‘just responses’ to global problems? and transnational protection of PGs may be promoted more effec-
tively by multilevel protection of cosmopolitan rights and judicial
Answers to such questions may differ depending on the policy remedies in IEL, possibly following the example of protection of cos-
area concerned. For instance, multilateral negotiations in the UN and mopolitan rights and judicial remedies in European economic law,
WTO could be enhanced by granting the UN Secretary-General and international investment treaties, the WTO Protocol on the Acces-
WTO Director-General more ‘powers of initiative’. Synergies between
regional and global PGs could be promoted by stronger incentives 15 .  For case studies of these diverse forms of multilevel governance see : C.Joerges/
for using regional agreements (e.g. on free trade areas, environmen- E.U.Petersmann (2006).

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sion of China, and regional human rights treaties. IEL - eg the US functionally limited treaty regimes, reducing ‘legal fragmentation’
Reciprocal Trade Agreements Act of 1934 delegating limited powers and promoting rule of law for the benefit of citizens requires legal
for negotiating reciprocal trade liberalization agreements subject to and judicial ‘balancing’ of the respective treaty principles through
congressional ‘fast track approval’ - offers multiple lessons for reg- more inclusive, democratic and dispute settlement procedures.
ulating the ‘collective action problems’ in supplying transnational As governments often find it easier to acknowledge transnational
PGs through ‘transformative strategies’ limiting ‘constitutional fail- individual rights and remedies on the basis of principles of ‘good gov-
ures’ of ‘constitutional nationalism’ and of related international law ernance’ and ‘global administrative law’ than on the basis of ‘cosmo-
conceptions. This contribution has argued that human rights and politan constitutional law’, explaining ‘multilevel constitutionalism’
globalization require cosmopolitan ‘revolutions in legal thinking’ by the need for a coherent ‘multilevel constitutional house’ (Presi-
that most constitutional lawyers, international lawyers and diplo- dent Gorbatev, T.Cottier) may be easier to understand for many citi-
mats resist even in citizen-driven areas of transnational cooperation zens than ‘cosmopolitan constitutionalism’. This is particularly true
like IEL. ‘Cosmopolitan constitutionalism’ offers the most convinc- in the current economic and social crises in view of the political dis-
ing framework for the biggest policy challenge in the 21st century, agreement among citizens and national parliaments about whether
ie constituting, limiting, regulating and justifying multilevel gover- and to what extent constitutional and governance failures abroad
nance of transnational ‘aggregate PGs’ in order to protect the hu- (eg due to corruption in tax and financial regulations in Greece) jus-
man right to an international order enabling fulfillment of the uni- tify financial redistribution on grounds of cosmopolitan rights from
versal human rights obligations of all states (cf. Article 28 UDHR). ‘law-complying’ Euro countries (often with on average poorer fami-
As diplomats and other interest groups often oppose cosmopolitan lies) to Euro members that have never complied with the fiscal and
‘re-interpretations’ of ‘Westphalian international law’ (eg in order to debt disciplines prescribed by EU law (cf Article 126 TFEU). As long
limit their legal, judicial and democratic accountability vis-à-vis cit- as governments and courts (including the CJEU) interpret and apply
izens), political pragmatism suggests to acknowledge ‘constitutional UN law and also WTO guarantees of freedom, non-discrimination
functions’ and ‘multilevel constitutional restraints’ of international and rule of law as ‘Westphalian law’ (eg by granting the EU institu-
legal rules even if governments and judges do not (yet) acknowledge tions ‘freedom of maneuver’ to restrict freedom of trade in mani-
the cosmopolitan dimensions of ‘multilevel constitutionalism’ (eg of fest violation of WTO obligations) without protecting cosmopolitan
WTO guarantees of multilevel judicial remedies). For instance, WTO rights of adversely affected citizens (eg their rights of access to jus-
diplomats and lawyers may find it easier to construe the WTO guar- tice and rule of law), ‘multilevel constitutionalism’ is a more realistic
antees of judicial remedies at national and international levels (eg description of the ongoing ‘struggles for justice’ challenging West-
in Articles X, XXIII GATT) in mutually coherent ways on the basis phalian power politics than the normative ideal of ‘cosmopolitan
of the ‘consistent interpretation’ requirements of national and in- constitutionalism’.16 Similarly, while European HRL has evolved into
ternational legal systems than on grounds of human rights like ac- an effective ‘multilevel cosmopolitan law’, UN HRL is more correct-
cess to justice (as recognized in Article 47 EU Charter of Fundamen- ly described in terms of ‘multilevel constitutionalism’ as long as it
tal Rights). Likewise, linking the ‘constitutional functions’ of IEL to fails to effectively protect cosmopolitan rights and judicial remedies
domestic constitutional guarantees, and adjusting domestic consti- for the benefit of citizens. Also the legal design and collective sup-
tutionalism to the ‘collective action problems’ of multilevel gover- ply of some international ‘weakest link PGs’ (like nuclear non-pro-
nance of ‘aggregate PGs’ (eg by granting ‘fast-track legislation’ for liferation) will continue to be dominated by ‘intergovernmental ap-
parliamentary approval of international ‘public goods agreements’), proaches’ rather than by ‘cosmopolitan law’. Such policy constraints
can promote ’public reason’ and limit ‘constitutional failures’ even if
many governments do not (yet) recognize the cosmopolitan dimen- 16 .  Cf. Petersmann, Can the EU’s Disregard for ‘Strict Observance of International
sions of UN law and IEL. In the absence of legal hierarchies among Law’ (Article 3 TEU) Be Constitutionally Justified? in: Bronckers et alii (2011), 214-225.

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challenge neither the cosmopolitan ideal of constitutionally limited Literature
self-government among free and equal citizens nor the resultant re-
quirement of establishing constitutionally legitimate authority (eg S.Barret, Why Cooperate? The Incentive to Supply Gobal Public
for more effective regulation of nuclear non-proliferation). Yet, in Goods (Oxford: OUP, 2007)
order to pragmatically promote ‘transitional justice’, ‘multilevel con-
M.Bronckers/V.Hauspiel/ R.Quick (eds), Liber Amicorum for J. Bour-
stitutionalism’ limiting abuses of power may continue to be a more
geois (Cheltenham: Elgar, 2011)
realistic ‘foreign policy paradigm’ allowing ‘cosmopolitan interpre-
tations’ by constitutional democracies as well as participation by A.A.Cancado Trindade, The Access of Individuals to International
non-democratic governments interpreting their claims to ‘sovereign Justice (Oxford: OUP, 2011)
equality of states’ in statist terms rather than in terms of univer-
R. Jhering, The Struggle for Law (Chicago: Callaghan, 1915)
sal cosmopolitan rights. As long as the procedures for negotiating
IEL remain dominated by power politics without protecting cosmo- C.Joerges/E.U.Petersmann (eds), Constitutionalism, Multilevel
politan rights and ‘justice as fairness’, courts of justice should take Trade Governance and Social Regulation (Oxford: Hart Publishing,
more seriously their constitutional duties of protecting cosmopol- 2006)
itan rights of citizens against intergovernmental power politics.17
E.U. Petersmann, International Economic Law in the 21st Century.
The bailout agreements for Greece and Cyprus illustrate the limits
Constitutional Pluralism and Multilevel Governance of Interde-
of ‘cosmopolitan justice’ vis-à-vis governments and citizens failing
pendent Public Goods (Oxford: Hart Publishing, 2012)
their ‘cosmopolitan duties’ to prevent ‘governance failures’ at home
(like persistent violations of EU fiscal, debt and financial disciplines) E.U.Petersmann (ed), Multilevel Governance of Interdependent Pub-
with harmful externalities on citizens and governments in other EU lic Goods. Theories, Rules and Institutions for the Central Policy
member states. Challenge in the 21st Century (Florence: EUI Working Paper RSCAS
2012/23).

J.Rawls, Law of Peoples (Cambridge: Harvard University Press, 1999)

17 .  See the numerous case-studies of judicial promotion of teleological ‘reformative jus-
tice’ rather than merely textual ‘conservative justice’ in Petersmann (2012), chapter VIII.

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86
N
4
European Union’s Struggle for Gaining
Food Safety Regulatory Autonomy
under World Trade Organization
Dispute Settlement Mechanism

Anamaria Toma-Bianov

Introduction

I n the World Trade Organization (WTO) the Member States enjoy a


certain freedom of manoeuvre with regard to food safety regulatory
objectives. Since any food standard or regulation may be a barrier to
trade, the main concern of WTO Dispute Settlement Body (DSB) is to
distinguish between their legitimate and protectionist effect. In order
to decrease the possible side-effects resulting from the states regula-
tory autonomy and to overpass the dichotomy existent between trade
liberalization and domestic regulation, the WTO law offers solutions
for a more homogenous approach in the field of food safety. Thus,
Article 3.2 of SPS Agreement settles that if the domestic food safe-
ty standards are emanating from recognized international standard
bodies (such as the Codex Alimentarius Commission), it shall be pre-
sumed that they are consistent with WTO law. The same presumption
operates under Article 2.5 of TBT Agreement, according to which if a
technical regulation is adopted or applied in accordance with relevant
international standards, it shall be rebuttably presumed not to cre-
ate an unnecessary obstacle to international trade. Although, there
is a strong recommendation of using international standards where
possible, there is no place in the WTO for a legislative harmonisa-
tion of food safety standards. Both TBT and SPS Agreement offer
the WTO Member States a freedom of manoeuvre with regard to reg-
ulatory objectives, and the DSB case-law shows that panels and the

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Appellate Body were receptive to domestic regulatory objectives1. mestic regulation. In this context, the DSB is called to state if the do-
The gateways that allow members to set domestic food safety reg- mestic regulations serve legitimate, non-protectionist purposes, such
ulation which are not based on international standards can be traced as consumer protection, safety and health.
in the exception clauses provided by Article XX of GATT and by TBT This article examines the way the European Union defends its regula-
and SPS Agreements. For example, the SPS Agreement settles that tory autonomy in establishing food safety standards in front of DSB and
the WTO members may have more restrictive food safety standards if how it engaged in the defence of certain principles typical for European
they have scientific evidence to show that the standards increase the food policy, such as precautionary principle. In this context, we shall refer
level of food safety above that implied by international standards. to three different cases brought in front of DSB where European Union
In practice, Article 2.2 is largely made operative through Article 5.1, (formerly European Communities) was respondent, namely EC-Hormones,
which requires SPS measures to be based on risk assessment2. In case EC-Sardines and EC-Biotech. The article also offers an historical overview
there is insufficient scientific evidence, Article 5.7 permits Members of the European Union food safety regime in order to create a better under-
to take precautionary measures on the basis of available pertinent standing of the European approach of harmonizing food standards with-
information. Thus, the applicability of Articles 2.2 and 5.1, on the one in EU market place, an approach that responds to market-distortion and
hand, and of Article 5.7, on the other hand, will depend on the suffi- market-segregation represented by multiple national standards.
ciency of the scientific evidence3.
In its dispute settlement case-law, the Appellate Body has repeat-
edly affirmed that WTO Members have the prerogative right in set-
1  H
 istorical Overview of the European
ting any level of protection that they consider appropriate in order
to protect human, animal or plant life and health. The “appropriate Food Safety Regulatory Regime
level of protection” is defined in Paragraph 5 of Annex A to the WTO
SPS Agreement, as being “the level of protection deemed appropriate
by the Member establishing a sanitary and phytosanitary measure
to protect human, animal or plant life or health within its territo-
T he Treaty of Rome, signed in 1957, did not provide any guidance for
food regulation since the major objective for the EC was freedom of
movement of foodstuffs4. Still, recognizing the need to harmonize food
ry”. Still, the WTO Agreements provide for specific obligations that standards, the EC issued a set of directives in the 1970s. These directives
a WTO Member must respect when adopting the regulatory mea- created standards of composition for certain foodstuffs5. As stated by
sures to fulfil its goals of protection. Thus, a WTO Member’s regu- the scholars, the main goal of those directives was to guarantee the free
latory autonomy in setting the appropriate level of protection suf- movement of food within the European Common Market, rather than
fers constraints that are a permanent source of tension within the to ensure consumer health protection6.
international trade system. The main issue that the DSB addressed In 1985, the EC came up with a new approach. Instead of trying to
in its case-law regarding the food safety regulatory autonomy is how harmonize all of the food regulations, it decided to use labelling to indi-
to distinguish between unlawful barriers to trade and legitimate do- cate the differences in composition and production methods, allowing
consumers to make an informed decision7. It adopted the principle of
1 .  See G. Marceau & J. P. Trachtman, “The Technical Barriers to Trade Agreement, The
Sanitary and Phytosanitary Measures Agreement, and the General Agreement on Tariffs 4 .  See K. Goodburn, “Introduction: The Development of EU Food Law”, in K. Goodburn
and Trade. A map of the World Trade Organisation Law of Domestic Regulation of Goods” (ed.), EU Food Law: a Practical Guide, Woodhead Publishing, 2001
in Journal of World Trade, vol.35, no.5, 2002, pp.811 - 881 5 .  A. Alemanno, “Food Safety and the Single European Market”, in C. Ansell & D. Vogel
2 .  See WTO Panel Report, European Communities – Measures Concerning Meat and (eds.), What’s the Beef? The Contested Governance of European Food Safety, MIT Press,
Meat Products (EC – Hormones I), WT/DS48/R/CAN, adopted 18 August 1997 2006, pp. 237, 240

3 .  See WTO Appellate Body Report, European Committee – Measures Concerning Meat 6 .  Idem, p.240
and Meat Products (EC – Hormones II), WT/DS16/AB/R, adopted 16 January 1998 7 .  Idem, p.241

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mutual recognition, requiring a Member State to allow the free circula- products. In 2000, European Commission issued a White Paper on food
tion of goods produced in conformity to equivalent standards of other safety recognizing the need for measures to deal with foodstuffs from
Member States. This mutual recognition principle was established by farm to table, the Commission concluded upon the necessity of creat-
the Cassis de Dijon8 case, in which a German law prohibited the mar- ing an independent European food authority in order to ensure food
keting of liqueurs below a certain alcoholic strength. As a result of this safety. European institutions struggle to find answers to how to guar-
prohibition, plaintiff, a German importer of liquor, could not market antee the quality and security of food, bringing the question of new
his liquor that contained less alcohol, Given the fact that the importer forms of governance in food safety regulation up for debate. Protect-
was able to sell the liquor in France, which did not have this limitation, ing consumers from possible health consequences which can result
the European Court of Justice held that since plaintiff’s liquor con- from the production or consumption of food is today an important
tained less alcohol than what the German law allowed, the justification criterion for developed social statehood. The regulation of risks – also
of its prohibition could not be in the public interest and therefore could of food-related risks – has become, besides forms of self-regulation by
not stand. Thus, the Court held that the German law impeded on the the industry, an integral part of a state’s tasks.
principles of free circulation of goods and introduced the principle of Accordingly, in 2002, the Council of the EU and the European Parlia-
mutual recognition9. This principle required a rather horizontal harmo- ment adopted Regulation (EC) No. 178/2002, presenting the certain prin-
nization of food standards, although a centralized approach in this field ciples on food safety regulation and detailed rules for the institutional
was required. After the adoption of the Single European Act in 1987, the design of European Food Safety Authority (EFSA). The Regulation (EC)
EC adopted additional regulations in the field, but a proper reform of No. 178/2002 represents the General Food Law in European Union Law.
the European food regulation regime wasn’t done. At that moment, the Prior to the creation of the EFSA, EU policy had been aimed at
food safety regulations were adopted “in conjunction with EC efforts eliminating trade barriers within the European market and its goal
to eliminate trade barriers arising from different domestic legislation was economic success rather than safety assurance12. To accomplish
in order to establish an internal market”10. The mid-’90s food crisis ep- this goal, each Member State had regulated its own foodstuffs. In
isodes, such as BSE crisis and the dioxin contamination, lead to recon- contrast, the EFSA is an independent agency that provides scientific
sideration of the European food regulation regime. The BSE crisis “cre- advice to Member States and EU institutions. It gathers data to help
ated a window of opportunity for the development of a more internally anticipate risks and issues opinions on matters relating to human nu-
integrated food safety policy (and consumer health policy in general)”11. trition, animal welfare, plant health, and genetically modified organ-
The increasing mechanization of food production (e.g. genetically mod- isms. The EFSA gives scientific assessments but does not handle any
ified food (GMOs), “functional food”) and a growing interdependence in of the risk management. Instead, the EU institutions and the Member
food trade both in the European internal market and in global trade States themselves are responsible for risk management, a division of
were additional factors contributing to the need for reform. authority that poses an obstacle to greater centralization. EFSA’s risk
In 1997, the European Commission issued a Green Paper on food assessments tend to lead to harmonization of the definition of food
safety concluding that the current food legislation fell short of meet- scares and emergencies. Traceability and labeling are probably the
ing the needs of consumers, producers, and manufacturers of food biggest part of the harmonization of standards and principles that
the EU has undertaken in the realm of food safety regulation in order
to allow the recording of the entire from farm to fork system. The EU
8 .  ECJ, Case 120/78, Rewe-Zentral AG v. Bundesmonopolverwaltung für Branntwein, 1979,
E.C.R., parag. 649, 660 aims to provide consumers with information about products in order
9 .  Idem, parag. 664 for them to make informed choices.
10 .  A. Alemano, op. cit., p. 238
11 .  T. Ugland & F. Veggeland, “Experiments in Food Safety Policy Integration in the Euro-
pean Union”; in Journal of Common Market Studies, Vol. 44, no.3, 2006, p.618 12 .  A. Alemano, op. cit., p.240

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obliged to demonstrate a scientifically confirmed adverse effect from a
2  E
 uropean Union as Respondent particular hazard before they might take measures. In other words, the
in cases involving regulatory Member States were not supposed to wait until people were actually
sick or dying before adopting a sanitary measure. It is the prerogative
autonomy of the member in question to decide whether the international stan-
dard, guideline or recommendation is sufficient to achieve its appro-

E uropean Communities – Measures Affecting Livestocks, Meat and


Meat Products. The dispute13 opposing Argentina, Canada and the
US to the European Communities concerned a number of EC directives
priate level of sanitary protection. The level of protection is decided by
the member alone and this judgment should not be based on scientific
principles or scientific evidence.
regarding the prohibition of hormones grown meat on the Community
The EC also stated that the SPS Agreement requires Members to
market, namely Directive 81/602/EEC14, Council Directive 88/146/EEC15
take into account risk assessment techniques developed by relevant in-
and Council Directive 88/299/EEC16. In defending its case, the EC not-
ternational organizations. However, in the EC’s view, at that particular
ed that article 2.2 required that SPS measures must be based on sci-
moment, the Codex Alimentarius Commission was far from developing
entific principles, as opposed to non-scientific ones. Therefore, when
any such techniques. Due to that context, a WTO member was free to
adopting the measure that aimed at reducing or eliminating a risk to
make an assessment of the risk appropriate to the circumstances pre-
health, the European legislative body followed a scientific approach of
vailing in its territory. Article 5.2 laid down the elements a WTO mem-
the measure. Now, could have been contested the scientific evidence of
ber should take into account in an assessment of the risk: available sci-
the contested measure? The problem was that the SPS Agreement had
entific evidence, relevant processes and production methods, relevant
not defined the term “scientific evidence”, its content depending on the
inspection, sampling and testing methods, prevalence of specific dis-
principles, methods, experiments and data used. That might be a reason
eases, etc. In addressing the issue of “available scientific evidence”, the
for the SPS Agreement only required “sufficient”, not clear or certain,
EC stressed the distinct meanings of the phrase: the evidence a mem-
scientific evidence. The EC argued that the term “sufficient” could not
ber took into account for its risk assessment had to be scientific, i.e. it
mean other than the minimal level of scientific evidence required. EC
must have the minimal attributes of scientific inquiry, and it should be
concluded that neither the Panel nor any other member might judge
part of the body of scientific knowledge in the area of concern, even if
the adequacy of the scientific evidence upon which a member based
it was not the prevailing view among scientists.
its contested measure. In other words, if a part of available scientific
The EC also pointed out that the difference in degree of regula-
evidence indicated that there might be potential hazards to human or
tion was due to the greater attachment of the EC to the precaution-
animal health, a member would be entitled under the SPS Agreement
ary principle. Accordingly, where there was a doubt over the safety
to take a precautionary approach. In this respect, it was sufficient if
of a product, the EC had given the benefit of doubt to the consumer,
the government maintaining the measure had a scientific basis for it.
especially in cases where the potential risks might affect very large
However, the EC stressed that this did not mean that members were
parts of the population.
13 .  See EC-Hormones I and EC-Hormones II supra notes 1, 2 The EC showed that the essential features of the precautionary
14 .  Council Directive 81/602/EEC of 31 July 1981 concerning the prohibition of certain principle were well known and widely accepted; as a consequence the
substances having a hormonal action and of any substances having a thyrostatic action principle had reached the status of a generally accepted principle of in-
OJ L 222 du 7.8.1981, p. 32–33 ternational law, particularly in the area of prevention of risks to human
15 .  Council Directive 88/146/EEC of 7 March 1988 prohibiting the use in livestock farming or animal health or the environment. With regard to the hazard having
of certain substances having a hormonal action, OJ L 70 du 16.3.1988, p. 16-18
been identified in the case, the lack of scientific knowledge on the exact
16 .  Council Directive 88/299/EEC of 17 May 1988 on trade in animals treated with certain
substances having a hormonal action and their meat, as referred to in Article 7 of Direc- mechanisms by which the hazard operated was not a sufficient excuse
tive 88/146/EEC, OJ L 128 du 21.5.1988, p. 36–38 for failing to take strict measures to prevent it.

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The EC also stated that there was a wider angle from which the al- other sardines species using the geographical provenience, for example
leged risks might be examined and a broader regulatory context. The Pacific-Sardines.
use of science in the regulatory process had its limitations. Scientific Concerning also the very same issue of sardines naming, in 1978 the
certainty in a regulatory process being difficult to achieve, the regula- FAO-WHO Codex Alimentarius Commission had adopted a standard,
tion might have been done in a context of uncertainty. The question named Codex Stan 94, for canned sardines and sardine-type products.
was how much uncertainty a legal system was prepared to accept. The Article 1 of Codex Stan 94 stated that this standard applied to canned
EC precautionary approach was required to avoid situations as those sardines and sardine-type products packed in water or oil or other
portrayed by many cases of health hazards which only became appar- suitable packing medium. The standard did not apply to speciality
ent long after substances or products had been assumed to be safe. products where fish content constitutes less than 50% m/m of the net
European Communities – Trade Description of Sardines. This dis- contents of the can. Article 2.1 Codex Stan 94 provided that canned sar-
pute17, having Peru as a complainant, concerned the trade description of dines or sardine-type products were prepared from fresh or frozen fish
two species of fish scientifically known as Sardina pilchardus Walbaum from a list of 21 species, amongst them Sardina pilchardus and Sardin-
(Sardina pilchardus) and Sardinops sagax sagax (Sardinops sagax), The ops sagax. With regard to the issue of labelling, article 6 of the Codex
former specie is found mainly around the coasts of the Eastern North Stan 94 specified that the name of “sardines” to be reserved exclusively
Atlantic, in the Mediterranean Sea and in the Black Sea, whereas the for products containing Sardina pilchardus. For the remaining 20 spe-
latter can be found in Eastern Pacific along the coasts of Peru and Chile. cies to which it applied, the standard established the name “X sardines”,
Despite various morphological differences, the two species display sim- where X stands for a country, a geographic area, the species, or in the
ilar characteristics and living habits. Both fish are used in the prepara- alternative the common name of the species in accordance with the
tion of preserved and canned fish products. The measure in relation to law and custom of the country in which the product is sold, and in a
which Peru, a producer and manufacturer of Sardinops sagax, claimed manner not to mislead the consumer.
the nullification was Regulation (EEC) 2136/89 laying down common Peru claimed in the first instance the inconsistency between the EC
marketing standards for preserved sardines18. The Regulation defined Regulation prohibiting the use of the term “sardines” in relation to spe-
the standards governing the commercialization of preserved sardines cies other than Sardinas pilchardus and article 2.4 TBT on the ground
in the European Communities. The mainly contested provision was that the EC did not use the naming standard set out in Codex Stan 94.
article 2 of the EC Regulation providing that only products prepared Peru also stated that the Regulation was inconsistent with article 2.2
from Sardina pilchardus may be commercialized as preserved sardines. TBT because it was more trade-restrictive than necessary to fulfil the
In this respect no other product, including those made out of Sardinops legitimate objective of market transparency that the EC claimed to pur-
sagax, was allowed to be named and commercialized under the descrip- sue. Peru also requested the Panel to find that the measure is inconsis-
tion of preserved sardines. The Regulation also prohibit the labeling of tent with article 2.1 TBT because it is a technical regulation that accords
Peruvian products prepared from fish of the species Sardinops sagax
17 .  WT/DS231, European Communities – Trade Description of Sardines; Panel report, a less favourable treatment than that accorded to like European prod-
WT/DS231/R, 29 May 2002, and WT/DS231/R/Corr.1, 10 June 2002; AB report, WT/DS231/R/ ucts made from fish of the species Sardina pilchardus.
AB, 26 September 2002. The EC rejected Peru’s interpretation of article 2.5 of TBT Agreement
18 .  Council Regulation (EEC) No 2136/89 of 21 June 1989 laying down common marketing contending that the scope of article 2.5 is solely to enhance the trans-
standards for preserved sardines, OJ L 212, 22.7.1989, p. 79–81, subsequently amended by
Commission Regulation (EC) No 1181/2003 of 2 July 2003 amending Council Regulation parency that a central government body has to follow when preparing,
(EEC) No 2136/89 laying down common marketing standards for preserved sardines, OJ adopting and applying a technical regulation and that therefore the
L 165, 3.7.2003, p. 17–18, and by Commission Regulation (EC) No 1345/2008 of 23 December provision is not intended, as Peru alleged, to establish a higher thresh-
2008 amending Council Regulation (EEC) No 2136/89 laying down common marketing
standards for preserved sardines and trade descriptions for preserved sardines and sar- old of explanation.
dine-type products, OJ L 348, 24.12.2008, p. 76–78 On the relevance of Codex Stan 94, the EC made the preliminary ob-

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servation that this standard contains 20 very different “sardine-type” 2.2 does not strictly require that the measure is “necessary” to fulfil the
species belonging to 11 genera, the common name for some of these spe- legitimate objective – only that its effects not be more trade restrictive
cies not being sardines and other species that are called “sardines” in than necessary, meaning that between two equally effective measures,
other parts of the world not being included in Codex Stan 94. In its view, the less trade restrictive should be chosen.
the policy of species inclusion within Codex Stan 94 was influenced by The EC argued that it was only the impact of the measure on im-
the concern that the list set out therein would end up including a too ports or exports that could be relevant to the analysis under article 2.2.
high number of species. To illustrate the difficulties involved in deter- In its view, this follows from the very concept of not more trade re-
mining the coverage of the species under Codex Stan 94, the EC referred strictive than necessary. The EC argued that under article 2.2, one has
to the fact that Peru was exporting Sardinops sagax to more than 20 to compare the trade effects of two measures, not the necessity of one
countries under the trade description of “sardines” rather than “Pacific measure. The EC disagreed with Peru’s assertion that a less restrictive
sardines” even though Codex Stan 94 does not permit Sardinops sagax measure would be to provide that preserved Sardinops sagax be called
to be called “sardines” without any further qualification. Peruvian or South American sardines.
With regard to the relevance of Codex Stan 94 as an international European Communities – Measures Affecting the Approval and
standard, the European Communities argued the obligation contained Marketing of Biotech Products (GMOs). The biotech dispute19 con-
in Article 2.4 is to use relevant international standards as a basis for cerned two distinct matters: on the one hand, the operation and ap-
the technical regulation where they already exist or their completion plication by the EC of its regime for approval of biotech products and,
is imminent. In other words, according to the EC’s view, article 2.4 does on the other, certain measures adopted and maintained by EC Mem-
not require members to follow these standards or comply with them. ber States prohibiting or restricting the commercialization of biotech
The EC argued that the separate but interdependent objectives pur- products. Argentina, Canada and the United States initiated a dispute
sued by article 2 of the Regulation are consumer protection, market settlement procedure with a view to challenge what they allege to be a
transparency and fair competition. It further explained that the legiti- general moratorium in the EC concerning the approval of genetically
mate objectives of the entire EC Regulation are the following: 1) to keep modified organisms (GMOs), the alleged failure to approve a number
products of unsatisfactory quality off the market; 2) to facilitate trade of specific applications for the placing on the market of certain GMOs,
relations based on fair competition; 3) to ensure transparency of the and certain temporary measures adopted by six EC Member States con-
market; 4) to ensure good market presentation of the product; 5) to pro- cerning GMOs that have already been authorized by the EC. In its de-
vide appropriate information to consumers. According to the European fence, EC argued was that was not plausible to argue that GM products
Communities, the first objective only relates to preserved Sardina pil- are or should be treated as equivalent to non-GM products.
chardus and it is pursued through the prohibition of the marketing of Since the first commercialization of GMOs in the early ‘90s, govern-
products of substandard quality. The EC underlined that, as long as the ments around the world have in fact started to address the question
objective is legitimate, WTO members have the right to choose the level of how to regulate GMOs. Regulatory approaches range from complete
of protection they consider appropriate. bans to regulatory inaction, most governments setting up an approval
The prohibition on the use of the term “sardines” for species other than system specific to GMOs, based on a case-by-case detailed risk assess-
Sardina pilchardus was necessary to allow different products to be distin- ment. Often such systems are based on a precautionary approach, and
guished. In this regard, the EC noted that one of the legitimate objectives decisions are sometimes made not only in consideration of scientific
recognized by article 2.2 TBT is the prevention of deceptive practices. factors, but also of socio-economic factors. In order to achieve interna-
The Community reasoned that even if Peru were to demonstrate
that the Regulation was trade restrictive, it would still have to show 19 .  WTO, DS291, DS292 and DS293, European Communities - Measures Affecting the Ap-
proval and Marketing of Biotech Products; requests for the establishment of a Panel by
that it is more trade restrictive than necessary in the light of the risks the United States, WT/DS291/23, Canada, WT/DS292/17, and Argentina, WT/DS293/17, of 8
addressed by article 2 of the EC Regulation. According to the EC, article August 2003; Panel report WT/DS291/R, WT/DS292/R, WT/DS293/R of 29 September 2006

96 97
N N
tional consensus, governments have also addressed the issue in various tions allowed Member States to adopt safeguard measures in respect
international fora. In 2000, they came to adopt the Cartagena Protocol on of biotech products that had obtained approval for EC wide marketing.
Biosafety20, whose 103 signatory parties include Canada and Argentina. More particularly, individual Member States may provisionally restrict
The Protocol addressed the safe transfer, handling and use of living modi- or prohibit the use and/or sale of an approved biotech product in their
fied organisms that may have adverse effect on biodiversity. Based on the own territory if they had detailed grounds for considering, based on
understanding that the inherent characteristics of GMOs require them new or additional information or scientific knowledge, that the par-
to be subject to rigorous scrutiny, the Protocol incorporated the precau- ticular product posed a risk to human health or the environment. In
tionary principle. In addition, other specialized agencies and other inter- cases where a member State adopted such a safeguard measure, it had
national bodies or organisations such as Codex Alimentarius, FAO, WHO, to inform other Member States and the Commission and a decision on
UN, OECD, ASEAN and the African Union are still trying to address this the adopted safeguard measure had then be taken at Community level
issue. The guidance documents established by these fora, in particular, within a prescribed time period.
recognize the need for a case-by-case decision on individual GMOs based US, Canada and Argentina requested the Panel to find that the mea-
on a scientific risk assessment and on risk management considerations. sures at issue were inconsistent with a number of WTO provisions.
The EC’s regime for approval of biotech products is based upon Di- First, the complainant parties claimed the violation of the SPS provi-
rective 2001/187321 (and its predecessor, Directive 90/2207422) governing sions concerning the prohibition to adopt unnecessary SPS measures
the deliberate release into the environment of genetically modified or- which are not based on scientific evidence and produce unduly restric-
ganisms and Regulation 258/9723 with regard to novel foods and novel tive effects on international trade; of provisions concerning the assess-
food ingredients. The objective of the EC regime was to protect human ment of the risk and the determination of the appropriate level of pro-
health and the environment, the European institutions being assessed tection; of provisions concerning transparency and control, inspection
to conduct a case-by-case evaluation of the potential risks biotech and approval procedures. Secondly, the complaining parties argued the
products could pose. On the basis of that evaluation, the commercial- breach of TBT provisions concerning the preparation, adoption and
ization of a particular biotech product could be banned. The contested application of technical regulations and the procedures for conformi-
EC measures outlined the administrative procedure to be conducted ty assessment. Moreover, they also alleged that EC and Member State’s
in the event a company sought to obtain approval to place a biotech adopted measures were in breach of articles I:1, III:4, X:1 and XI:1 GATT
product on the market and the standards by which an application for and of article 4.2 of the Agreement on Agriculture.
approval was to be evaluated. The EC legislation under certain condi- The EC in turn requested the Panel to reject the complaining parties’
claims and to find that, first of all, the delays in the examination of the
20 .  Cartagena Protocol on Biosafety to the Convention on Biological Diversity, reported applications as well as the Member States’ national measures were not
in OJ L 201, 31.7.2002, p. 50.
in violation of the SPS Agreement, the TBT Agreement or the GATT
21 .  Directive 2001/18/EC of the European Parliament and of the Council of 12 March 2001
on the deliberate release into the environment of genetically modified organisms and and that there was no general suspension of the process of authorizing
repealing Council Directive 90/220/EEC, OJ L 106 of 17.4.2001, p. 1–39. GMOs and GM products on the part of the Community.
22 .  Council Directive 90/220/EEC of 23 April 1990 on the deliberate release into the en- The EC emphasized that it had not adopted any general position
vironment of genetically modified organisms, OJ L 117 of 8.5.1990, p. 15–27, preamble, as against GMOs, neither in favour of biotechnologies, trying to be neutral
amended by Commission Directive 94/15/EC of 15 April 1994 adapting to technical pro-
gress for the first time Council Directive 90/220/EEC on the deliberate release into the in this particular issue, but in the same time cautious. As a consequence,
environment of genetically modified organisms, OJ L 103 of 22.4.1994, p. 20–27, and Com- EC did not try to impose its prudent approach on other countries, but it
mission Directive 97/35/EC of 18 June 1997 adapting to technical progress for the second tried to stress the whole socio-political, legal, factual and scientific com-
time Council Directive 90/220/EEC on the deliberate release into the environment of ge-
netically modified organisms, OJ L 169 of 27.6.1997, p. 72–73. plexity of the case, including the process that led to the conclusion of
23 .  Regulation (EC) No 258/97 of the European Parliament and of the Council of 27 Jan- the Cartagena Protocol on Biosafety. In this respect, the EC underlined
uary 1997 concerning novel foods and novel food ingredients, OJ L 43 of 14.2.1997, p. 1–6. that the aims of its policies on GMOs was reaching further beyond the

98 99
N N
protection against the specific risks covered by the SPS Agreement. With regard to European Union reliance of the precautionary prin-
More specifically, the EC’s overall approach to the biotech dispute ciple, we must observe that it has been an established principle of EU
consisted of following arguments: 1) GMOs display characteristics environmental and health law, and, as such, has been implemented in
which were recognized by the international community to pose poten- many concrete regulatory frameworks of risk regulation. Historically,
tial threats to human health and the environment, and they could not the precautionary principle has been officially recognised as the basis
be treated as like or equivalent to their non-GMO counterparts; 2) the for EU’s environmental policy in the moment of its incorporation into
Community regulatory framework for the marketing of GMOs operated the EC Treaty. Article 174 II EC (now Article 191 II TFEU) states: “Commu-
on a case-by-case basis and there had been no de jure or de facto morato- nity policy on the environment shall aim at a high level of protection tak-
rium in respect of the authorization process; 3) the EC’s approach to the ing into account the diversity of situations in the various regions of the
identification, assessment and prevention of risks to human health and Community. It shall be based on the precautionary principle and on the
the environment had been fully consistent with applicable internation- principles that preventive action should be taken, that environmental
al standards; 4) the measures which had been taken to protect the envi- damage should as a priority be rectified at source and that the polluter
ronment and to conserve biodiversity were reasonable and legitimate, should pay”. The ‘core’ idea of precautionary principle states that ‘where
were not necessarily sanitary or phytosanitary in character, and fell in there is a threat to human health or environmental protection a lack of
whole or in part outside the scope of the SPS Agreement; 5) to the extent full scientific certainty should not be used as a reason to postpone mea-
that any such measure could be said to be subject to the SPS Agreement, sures that would prevent or minimise such a threat’24. Thus, it expresses
there had been no undue delay or breach of any part of that Agreement that in cases of scientific uncertainty ‘no evidence of harm’ should not be
on the part of the EC or of the Member States, and in any event such equated with ‘no harm’25. The idea is that public decision makers should
measures were provisionally justified on the basis of the insufficiency be sceptical towards the completeness of scientific knowledge; therefore
of scientific evidence; 6) all measures taken by the EC and its Member they should be aware of the limitations of science when identifying risks
States were also consistent with the TBT Agreement and the GATT, and and pay more attention to the scientific uncertainties involved in public
in any event were justified in accordance with article XX GATT. health and environment regulation26.
The first legal definition of the precautionary principle under EU law
was settled in Article 7 of the Regulation (EC) No. 178/2002 (General Food
Law). Accordingly, “(1) In specific circumstances where, following an as-
3  C
 oncluding Remarks on EU’s sessment of available information, the possibility of harmful effects on
Defence of Its Food Safety health is identified but scientific uncertainty persists, provisional risk
management measures necessary to ensure the high level of health pro-
Regulatory Autonomy tection chosen in the Community may be adopted, pending further scien-
tific information for a more comprehensive risk assessment. (2) Measures
The analysis of the above disputes, which had EC as respondent be-
adopted on the basis of paragraph 1 shall be proportionate and no more
fore the DSB, allows us to identify univocally the EU struggle to defence
restrictive of trade than is required to achieve the high level of protection
its regulatory autonomy in the field of food safety. In all of the disputes
analysed, the EC stood for the defence of its freedom to choose the ap-
24 .  See E. Fisher, “Opening Pandora’s Box: Contextualising the Precautionary Principle
propriate level of protection. Moreover, it asserted that all contested in the European Union”, in E. Vos and M. Everson (eds.), Uncertain Risks Regulated, Rout-
measures aimed at a legitimate objective and satisfied the necessity test. ledge, Cavendish, 2008
On occasions the EC put forward the argument of the irrelevance of in- 25 .  See E. Fisher, “Precaution, Precaution Everywhere: Developing a “Common Under-
ternational standards, on the ground of the inappropriateness of those standing” of the Precautionary Principle in the European Community”, in Maastricht
Journal of European and Comparative Law, vol.9, no.7, 2002
to achieve the legitimate objective pursued.
26 .  See Communication from the Commission on the Precautionary Principle, COM (2000) 1

100 101
N N
chosen in the Community, regard being had to technical and economic
feasibility and other factors regarded as legitimate in the matter under
consideration. The matters shall be reviewed within a reasonable period
of time, depending on the nature of the risk to life or health identified and
the type of scientific information needed to clarify the scientific uncer-
tainty and to conduct a more comprehensive risk assessment”. As a conse-
quence, the European Commission can apply the precautionary principle
by taking a discretionary decision whether a scientific uncertainty has
been identified in the risk assessment. In both EC-Hormones and EC-Bio-
tech cases, EC relied upon precautionary principle. EC tried to argue its
prudent approach, stressing up the whole socio-political, legal, factual and
scientific complexity of the cases. Furthermore, depending on the specific
circumstances prevailing in each country, scientific information may or
may not be deemed sufficient to decide appropriate measures and must
therefore be considered as matters of concern to the domestic legislator.
With regard to international standardization of food, EC has always
defended its interests in food safety matters within the Codex Alimen-
tarius Commission, engaging thus in the defence of the principle typ-
ical of European food safety policy. Although compliance with Codex
standards is voluntary in WTO law, as we have already mentioned, these
standards enjoy a special status under the SPS and TBT Agreements. Ac-
cordingly, national measures that are based upon food standards adopt-
ed by the Codex Commission are presumed to comply with WTO princi-
ples. Thus, WTO members have strong incentives to comply with Codex
standards. Thus, Codex standards were crucial in EC-Hormones case. In
this case, the concurrent existence of harmonized international stan-
dards made it difficult for the EC to justify its measures, which resulted
in a higher level of health protection than that ensured by measures
based on the relevant Codex standard. In the so-called ‘sardine case’, the
compatibility of an EC measure with the WTO principles was evaluated
by reference to a 1978 Codex standard. In both cases, EC argued that the
Codex standards are ineffective or inappropriate to fulfill the legitimate
objectives pursued by the EC regulations, hence reaffirming EC’s contin-
uous struggle for gaining regulatory autonomy.

102
N
Novas Tecnologias

103
N
5
O QUE PODE O DIREITO FRENTE
ÀS NOVAS TECNOLOGIAS

Paulo Roberto Ulhoa

“A idade das nações já passou. Senão quisermos morrer, é hora de sacu-


dirmos os velhos preconceitos e construir a Terra. A Terra não se tornará
consciente de si mesma por nenhum outro meio senão pela crise de con-
versão e de transformação.”
Teilhard de Chardin1

F azer a natureza executar o que o homem quer que ela execute é so-
nho antigo da humanidade. Sonho que se transformou muito desde
os gregos. Sobretudo após a Revolução Industrial com o aparecimento
de novas tecnologias. Ao longo de toda a evolução da técnica2, buscou-se
o que se poderia chamar de eficiência industrial, ou seja, pensamento de
fluxo, domínio das operações etc.
Alguns efeitos qualitativos desta eficiência industrial foram atin-
gidos. No entanto, a técnica como produto do social gerou inúmeros
desequilíbrios com relação a estrutura de poder, criando avanços mas
também incertezas às chamadas “novas tecnologias”.
Para Herbert Marcuse3 – A técnica por si só pode promover tanto o
autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundân-
cia, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo. “No decorrer
do processo tecnológico, uma nova racionalidade e novos padrões de
individualidade se disseminaram na sociedade, diferentes e até mesmo
opostos àqueles que iniciaram a marcha da tecnologia.”4
Pensar o impacto das tecnologias na sociedade vai além do ponto de

1 .  Chardin, Theilard. O Fenômeno Humano. Trad. José Kuiz Archanjo. São Paulo: Cultrix, 1995.
2 .  Gille, Bertrand – O império das técnicas. Pág. 29.
3 .  Marcuse, Herbert – Tecnologia, guerra e facismo. Unesp, 1999
4 .  Marcuse, Herbert. Op. cit. 1999.

105
N
vista técnico – do aparato da indústria, transporte, comunicação; passa Breve história do Ciberespaço
pela influência direta da tecnologia sobre os indivíduos, de forma a or-
ganizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, a manifestação
do pensamento, dos padrões de comportamento dominantes e o con- O Termo “cyberspace” foi inventado pelo escritor “cyberpunk” de fic-
ção científica William Gibson no seu monumental “Neuromancer”-
de 1984. Para Gibson, o ciberespaço é um espaço não físico ou territorial,
trole de dominação5.
Esse controle de dominação, esse poder é a soma das faculdades e que se compõe de um conjunto de redes de computadores através dos
oportunidades que possibilitam aos homens ou aos governos a con- quais todas as informações (sob as suas mais diversas formas) circulam.
secução dos objetivos propostos. Segundo o professor Arthur Diniz “a O ciberespaço gibsoniano é uma “alucinação consensual” onde pode-
tecnologia possibilitou a uma elite o controle da vida e do destino de mos nos conectar através de “chips” implantados no cérebro. A Matrix,
milhões de pessoas”6 como chama Gibson, é a mãe, o útero da civilização pós-industrial onde
Assim, nessa idéia de eficiência industrial onde o “esforço científico os “cybernautas” vão penetrar.
visa eliminar o desperdício, intensificando a produção e padronizando Seria, digamos, como o lugar onde estamos quando entramos num
o produto”, serve também, para aumentar a eficiência lucrativa que se ambiente virtual através de um conjunto de redes de computadores,
apresenta como realização final do individualismo.7 interligados ou não, em todo o planeta. Mesmo sem ser uma entidade
Sabemos que o social e o jurídico se impõem como eventos da es- física concreta, pois é um espaço imaginário, o ciberespaço constitui-se
pécie humana e colocam o direito e seus operadores diante das cons- em um espaço intermediário. Ele não é desconectado da realidade, mas,
tantes hipóteses de conflitos, principalmente, após a disseminação dos ao contrário, parte fundamental da cultura contemporânea.
computadores pessoais e o advento da Internet, onde temos um maior Na definição da Unesco10, o ciberespaço é um novo ambiente humano
vínculo do direito com as novas tecnologias. e tecnológico de expressão, informação e transações econômicas. Con-
O chamado paradigma cibernético8 promoveu uma nova revolução siste em pessoas de todos os países, de todas as culturas e linguagens,
no mundo, com um universo de novas possibilidades. Com a internet, de todas as idades e profissões fornecendo e requisitando informações;
“o indivíduo renasce no entendimento dessas novas relações. A coletivi- uma rede mundial de computadores e outros dispositivos móveis in-
dade, por exemplo, é a soma dos indivíduos que a compõem, porém com terconectada pela infraestrutura de telecomunicações que permite à
forte perfil individual. “Decerto que a coletividade é marca característi- informação em trânsito ser processada e transmitida digitalmente.
ca da nova dinâmica. Ela é a imagem ampliada da vida dos indivíduos. O ciberespaço então é um caos organizado, que funciona. Com um
No entanto, afirmar que quanto maior é a consciência coletiva, menor a fator diferencial que é o uso inicialmente do computador hoje difundi-
individualidade, não procede no ciberespaço.” 9 do em diferentes formatos, tamanhos e utilidade, como smartphones,
tablets, entre outros. “O ciberespaço faz parte do processo de desmate-
rialização do espaço e de instantaneidade temporal contemporâneos...
Se na modernidade o tempo era uma forma de esculpir o espaço, com a
cybercultura contemporânea nós assistimos a um processo onde o tem-
po real vai aos poucos exterminando o espaço.”11
Theillard de Chardin12 considera a evolução humana em termos in-
5 .  Ibidem
telectuais e espirituais. No mundo físico existem duas energias: uma ra-
6 .  Diniz, Athur José Almeida. O Poder e os mitos. Revista Brasileira de estudos Políticos,
No72, 1991. Belo Horizonte/MG. dial – correspondente ao conceito de força newtoniana de causa e efeito
7 .  “. In Harbermas, Jurgen. Op. cit. 1994
8 .  Leary, Timothy “Caos & Cyber Culture” – Ronim Pblishing. 1994 10 .  http://www.unesco.org/cybersociety/cyberspace_spec.htm. Em 12.05.2002.

9 .  Reis, André Silva Fábio. Uma Breve Análise Sociológica do Ciberespaço. www.infojur. 11 .  Unesco. Op. cit. 2002.
ccj.ufsc.br. 16/03/2001. 12 .  Chardin, Teillard – O Fenômeno Humano. Editora Cultrix. São Paulo. 1995.

106 107
N N
– e uma energia tangencial que vem de dentro, de onde o divino aparece. de tempo e espaço, trazendo conseqüências sociais e econômicas. Traz,
Essa energia tangencial seria de três níveis, que Chardin chama de pré- também, problemas com os conceitos de democracia, territorialidade,
vida – para os objetos inanimados, que seriam o mundo mineral, o mun- jurisdição, bem como o rompimento com a arquitetura dos espaços
do animal e o mundo da consciência. Essa camada de consciência, ele de comunicação na Internet, onde a inteligência coletiva reorganiza, a
chama de “Noosfera”. Uma rede invisível da consciência humana que todo instante e interativamente, as massas de informações disponíveis
virtualmente engloba todo o planeta terra. on line, para usufruto público, por meio de conexões transversais e si-
Para Piere Lévy, as tecnologias podem levar a circulação do saber, multâneas e, conseqüentemente, por uma falta de eficácia em operar
que pode levar a uma “inteligência coletiva”. Partindo de uma análise esse direito através da formas tradicionais.
antropológica do espaço, Lévy vai mostrar que, depois de terra (espa- Partindo do pressuposto tecnológico desse novo fenômeno, precisa-
ço do mito e do rito, marcado por uma ligação completa do homem ao mos remontar princípios para então buscar formular um novo direito,
cosmos), do território (fruto da revolução neolítica onde surge a agricul- diante das condições sociais novas. Depois de renovado esse contato
tura, as cidades, a escrita e o Estado), do mercado (espaço de trabalho e com o novo mundo, talvez consigamos inspirar e conduzir as transfor-
da velocidade, instaurado no século XVI com as conquistas marítimas mações necessárias da ordem positiva. Entender essa nova dinâmica,
e a globalização dos mercados com fluxos de matéria-prima, de mão de sob os mais diversos pontos de vista e análise, facilita o trabalho de le-
obra e de capital), surge como quarto espaço o ciberespaço, um espaço gisladores e aprofunda o entendimento dos conflitos existentes na so-
do saber. Esses espaços antropológicos não são excludentes, podendo ciedade atual e das que existirão no futuro.
interagir como camadas comunicantes. A globalização que anunciou a chegada de um novo século amplifi-
Guattari e Deleuze13 falam de uma estrutura rizomática como um cou as desigualdades, ofuscou conquistas e vem potencializando uma
sistema de formas as mais diversas, como um verdadeiro rizoma, com ordem mundial fundada no desequilíbrio das relações de poder político
extensão ramificada em todos os sentidos. (...) Os rizomas se ramificam e econômico e no controle absoluto. A informatização e a robotização,
e se reticulam permitindo estratificações e territórios, da mesma forma com relações desiguais no comércio internacional, favorecem os países
que cria linhas de fuga e de desterritorialização. Existe assim um pro- ricos, à custa dos mais pobres. À medida que se cresce em abundância
cesso de desterritorialização e reterritorialização. de bens e de serviços produzidos pela informatização, cresce também o
Assim, a extensão do ciberespaço acompanha e acelera uma virtua- número dos excluídos do emprego e dos excluídos sociais.
lização geral da economia e da sociedade. Precisamos nos atentar para Assim, há que se perguntar o que pode a cultura jurídica, em face dos
a evolução da sociedade através dessa evolução da técnica e apontar problemas culturais, econômicos, sociais e políticos de hoje? A resposta
alguns fatores que repercutem nas novas relações jurídicas, de forma segundo San Tiago Dantas”14 “O bem estar coletivo, a maior satisfação
a corresponder às expectativas de Um Estado Democrático de Direito. das necessidades humanas com as utilidades ilimitadas que a técnica
Neste quadro de deslocamentos e rupturas, o fenômeno Internet pode proporcionar, a igual repartição das riquezas, a justiça social, con-
precipitou mudanças de paradigmas que podem ser absorvidas em sin- forme já nos apresentava
tonia com a idéia de humanização da sociedade. E o local onde se deve discutir estas questões é a própria Constitui-
Neste cenário, o Estado precisa ser rotineiramente redefinido a fim ção política, onde preconizamos um “Direito teorizado, argumentado
de mediar os conflitos presente e futuros. A constituição, então, deve como base das relações interindividuais. Um Direito vocacionado para
realizar-se de modo a alcançar a pretendida jurisdição constitucional, o justo. Um Direito vivo que se insira no âmbito da tensão existente en-
através de uma nova ordem jurídica. tre o dissenso e o consenso, estabelecido este último a partir de uma
É certo que esse impacto tecnológico fez surgir, também, um direi- razão comunicativa e comunicante (Habermas).
to novo. As novidades tecnológicas implicaram em novas concepções
14 .  San Tiago Dantas, F.C. A cultura jurídica e o mundo moderno. Revista Forense. Rio de
13 .  Deluze, G.; Guattari, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia.” Ed. 34.. 2002. Janeiro. 1945.

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N N
A Constituição política, como nos traz Daury Fabriz, estabelecida Fabriz17 “a formação de uma cultura jurídica, não só como ciência, mas
como espaço público necessário “à convivência harmônica e democráti- principalmente como experiência histórica”, visto que “ a Ciência Jurídi-
ca da sociedade. Nessa perspectiva, o conceito de constituição mostra- ca apareceu depois de uma interpretação lógica-formal e normativa de
se em constante evolução, à medida que deva comportar-se e adequar- uma sociedade que até então vivera o Direito sem o teorizar”.18
se às várias transformações que ocorrem no âmbito da sociedade.”15 Segundo ainda Fabriz “A experiência jurídica surge então como uma
É preciso “re-ligar” o nosso mundo a assuntos polêmicos que ganham experiência cultural de viabilização civilizatória”, e conclui citando o
força à medida que se aprofunda e acelera a difusão das novas tecno- professor Reale19, que o “homem não é apenas um realizador de interes-
logias, e que em escala geométrica afasta a sociedade de uma resposta ses (...) é também um ser que sente indeclinável necessidade de proteger
jurídica eficaz, capaz de conter a exclusão social. o que cria, de tutelar as coisas realizadas e de garantir para si mesmo,
Neste sentido é que o Direito não pode isolar-se do ambiente em acima de tudo, a possibilidade de criar livremente coisas novas”.
que vigora e deixar de atender às outras manifestações da vida social e A evolução acertou o ser humano ao ponto de torná-lo completa-
econômica. Se as normas positivas não evoluem à proporção que evol- mente dependente, mas adaptável ao seu meio. Ao acordar, o homem
ve a coletividade, consciente ou inconscientemente, a conduta ética não apenas passeia por milhares de informações distribuídas em seu
colocar em discussão um mínimo necessário para que os indivíduos dia-a-dia. Ele é capaz de se manifestar, organizar e intervir diretamente
possam realizar-se como cidadãos, para conseguir que todos se bene- na realidade e transformar o futuro. Os exemplos estão aí nas manifes-
ficiem das suas vantagens e para evitar que o abismo entre pobres e tações da praça Tahrir, e na forma de organização das manifestações
ricos continue aumentando. que se espalharam pelo Brasil.
Del Vecchio20 nos ensina também, que “A História da Filosofia é, por
conseguinte, meio de estudo e de investigação, e, como tal, poderosa
Por uma nova cultura jurídica ajuda para o nosso trabalho: oferece-nos repositório de observações, de
raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida seria

N ão é fácil analisar o novo. Ainda mais quando ele se impõe e se


transforma rápido e bruscamente. Para San Tiago Dantas16 “se que-
remos defender o direito, temos de saber, primeiro, o que o ameaça; e
impossível ocorrer”.
A cultura jurídica torna-se, assim, para Del Vecchio21 “um processo
contínuo que reúne as experiências passadas, aliadas às modificações
temos, depois de examinar, sem idéias preconcebidas, o que ele pode re- do tempo presente, na intenção de solucionar os problemas que o ho-
presentar nas soluções de problemas sociais de hoje.” mem se depara com a realidade social; processo esse que se desenvolve
A maior e mais séria ameaça ao prestígio do direito, vem da própria com a Ciência Jurídica e a comunicação do Direito. A busca pela experi-
“cultura jurídica”, que não pode hesitar em “assumir uma posição avança- ência jurídica de outros povos, o conhecimento de outros ordenamen-
da na revisão de conceitos dogmáticos e no ajustamento da ciência às no- tos que se realiza pela comunicação do Direito”.
vas realidades legislativas e às superiores exigências da reforma social.” Examinando os reflexos jurídicos de toda essa nova realidade, bus-
Então, neste mesmo sentido, apreendemos que para “defender o di- camos a direção do Direito Público e Privado, onde já encontramos
reito é, assim, essencialmente, renovar o direito”. Com o crescente de- aspectos relacionados diretamente com o impacto dessa realidade tec-
senvolvimento da ciência, formando o grande patrimônio cultural da
humanidade, é que podemos examinar, segundo Professor Daury Cesar 17 .  Fabriz, Daury Cesar. A Estética do Direito. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 2000.
18 .  Reale, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed., São Paulo. Saraiva. 1996. Apud Daury César
Fabriz – A Estética do Direito(pág. 50)
15 .  Fabriz, Daury Cesar. “Bioética e Direitos Fundamentais.” Mandamentos. Belo Horizon-
te. 2003. 19 .  Reale, Miguel. “Filosofia do direito”. Op. cit. 1996

16 .  San Tiago Dantas, F. C. “A cultura Jurídica e o mundo moderno”. Revista Forense. Rio 20 .  Del Vecchio, Giorgio. “Lezione di filosofia del diritto. 9. ed., Milano; Giuffre. 1953.
de Janeiro. 1945. 21 .  Ibdem

110 111
N N
nológica, especialmente envolvendo a padronização do produto, a virtu- de vida privada que demarca, em essência, a individualidade23 do ho-
alização da produção e novas formas de fiscalização e participação nas mem, não só frente aos outros indivíduos e à sociedade, mas tam-
decisões do Estado, com o acesso à informação. bém, frente ao Estado;
Nesses campos ligados às novas tecnologias encontramos a regula- Da mesma forma, a Liberdade de expressão também é garantia
mentação de questões conectadas a tal ambiente. São questões ora glo- fundamental para evitar a estagnação cultural e o desenvolvimento
bais, ora individuais, ora de informática, ora das telecomunicações, ora da raça humana. E todo e qualquer tipo de censura não pode ser ad-
privada e outras vezes pública, são questões de momento e ao mesmo mitida, como no caso recente da blogueira cubana Yoani Sánchez, Ju-
tempo de futuro. Para Sevcenko, afinal, chegamos ao terceiro milênio lian Assange. Neste sentido nos ensina o Professor José Luiz Quadro
atrasados e com pressa22. de Magalhães24 que “são diversas as formas de expressão de pensa-
Dentro dessa amplitude, apenas para exemplificar, temos: E-law mento, que vão constituir as liberdades derivadas do direito indivi-
(Environmental Law Alliance Worldwide) ligada a atividades jurídicas, dual que se expressa livremente. São liberdades fundamentais que
questões ambientais, manipulação biológica de material genético, Pro- devem ser asseguradas conjuntamente, para se garantir a liberdade
priedade Intelectual (direito autoral, propriedade industrial, softwares de expressão no seu sentido total”.
e cultivares), tráfego comercial (Acceptable Use Policy), Domínios (DNS E quando o tema é cidadania, nos focamos em Hannah Arendt nos
– Domain Name System), Contratos de Adesão (shrink-warp), Provedo- traz que os homens não nascem iguais, tornam-se iguais por conquistas
res de Acesso, Pirataria e comércio eletrônico, documento digital, con- políticas. A cidadania no século XXI ganha um renomado interesse, o
sumidor, territorialidade, acesso à informação, o direito de expressão seu conceito parece integrar noções centrais de filosofia política, como
em rede, a censura, novas definições de gênero, identidade digital, co- os reclamos de justiça e participação política, no entanto, conforme es-
munidades digitais, plágio, sobrecarga informacional digital, privacida- clarece Axel Honneth25 “a luta pelo reconhecimento é o fundamento
de e controle social digital. contemporâneo da teoria crítica”. Indo além do paradigma da comuni-
Qual então o papel de Estado senão regulamentar e oferecer aos ci- cação (informação) ele se preocupa com as condições de reconhecimen-
dadãos, primado no estabelecido no texto constitucional, o bem estar e to e com as causas sociais de sua violação. As lutas pelo reconhecimen-
a justiça social. to de identidade têm caráter emancipacionista, ao serem articuladas
O resgate da complexidade social para o mundo jurídico é a difícil ta- numa esfera pública democrática.
refa que não podemos mais jogar só para o futuro, mas que tem que ser
construído desde agora. É certo, que toda mudança de paradigma gera
bônus e ônus. Para minimizar os benefícios oferecidos pelo paradigma Por uma exigência ética
tecnológico há de se combater os abusos cometidos pelo homem.
A atitude do Estado e da sociedade diante das vantagens e riscos
decorrentes dessa mesma tecnologia deve ser multifacetária, de modo
a buscar um equilíbrio de tratamento que contemple a inovação, o
N o plano global presenciamos nos últimos anos uma redução das
assim chamadas “grandes narrativas”. Essa redução assim autoriza
a volta do ético, o caráter cada vez mais competitivo das relações huma-
consumidor, a cidadania, a ética, a competição, e a segurança, como no nas cria uma demanda, uma necessidade, um clamor por ética.
caso Edward Snowden. Afinal, o que pode ser uma exigência ética? Seu eixo é que o poder
Apesar de também ser um fato social, a revolução tecnológica não não se confunda com força, mas se limite por valores que a todos se
possui autonomia como fator inibidor da plena fruição, por exem-
plo, do direito à vida privada, a liberdade de expressão. O conceito 23 .  Magalhães, José Luiz Quadros de. “Direito Constitucional – TOMO I. Editora Manda-
mentos. Belo Horizonte. 2000.
24 .  Idem
22 .  Sevcenko, Nicolau. Op. cit. 2001 25 .  Honneth Axel. Op. cit. 1996

112 113
N N
imponham. O distingue o poder e a mera força? No caso desta temos culo XX em 300 por cento por ano, e com previsões de dobrar a cada
apenas o vigor físico. No caso do poder, temos um assentimento, uma cinco anos. Com o fim da guerra, explica Sevcenko, os Estados Unidos se
opinião de que é legítimo um mandar e o outro obedecer, segundo Re- viram numa situação privilegiada, como a mais forte coeza e próspera
nato Janine Ribeiro.26 economia mundial.
Para exemplificar, pensemos na lei de trânsito. Se não houvesse al- Conforme o professor Arthur de Almeida Diniz30 “As receitas econô-
guma opinião de que ela (Lei) é legítima, se não houvesse alguma idéia micas preconizadas pelo Fundo Monetário Internacional além de inú-
de que por trás dela esta o poder, só a obedeceríamos pela força – e isso teis, sacrificam mais vidas do que todos os inocentes imolados nos alta-
significaria que a cada esquina estaria um guarda, se possível armado, res Aztecas, babilônicos, para não se equiparar as perdas ao número do
para literalmente nos forçar a obedecer à lei. Mas, quando temos poder, Holocausto nazista.” Já naquela época as ameaças à estabilidade nacio-
e assentimento ou consentimento, não cabe ter, o tempo todo, força: te- nal não mais vem de países vizinhos, mas de qualquer parte do mundo,
remos obrigações, que são mais de ordem ética, moral, pertencendo ao sem nacionalidade, fronteira ou ideologia, que varrem o mundo com a
mundo da opinião, como apresenta o professor Renato Janine Ribeiro.27 velocidade proporcionada pelos novos meios de comunicação.
A novidade é que a contraposição de força/poder estará em enten- O modelo de Estado Social, conforme ensina o professor Menelick31,
der por força não apenas a força física, mas também a econômica. com o final da segunda guerra mundial “começa a ser questionado, con-
A questão, então, está em estabelecer um direito acima da força, ao mes- juntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentração
mo tempo que se constata que o que tradicionalmente se chama poder e com a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, bem
na verdade tem alguma parte com a força. A legitimação dos direitos como pelo movimento hippie da década de sessenta.
humanos e a efetivação do direito acima da força significam que o Esta- O Estado interventor transforma-se em empresa acima de outras
do não constitui mais um quadro suficiente para a legalidade. empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação ou
A internet precipitou mudanças de paradigmas que podem ser ab- pós-industrial comportam relações extremamente intricadas e fluidas.
sorvidas em sintonia com a idéia de humanização da sociedade. Na vira- Tem lugar aqui o advento dos direitos de 3a geração, os chamados inter-
da do milênio profundas mutações reconfiguram o campo irreversível esses ou direitos difusos32, que compreendem os direitos ambientais, do
da informação. Este surto de transformações se divide em dois períodos consumidor e da criança, dentre outros.
básicos, intercalados pela Segunda Guerra Mundial. Informa o Professor Menelick33, que esses direitos de 3a geração “são
No primeiro momento prevalece um padrão industrial que vinha direitos cujos titulares, na hipótese de dano, não podem ser clara e nitida-
representar o desdobramento das características introduzidas pela Re- mente determinados. O Estado, quando não diretamente responsável pelo
volução Científico-Tecnológica dos fins do século XIX, e a segunda fase dano verificado foi, no mínimo, negligente no seu dever de fiscalização
após a guerra, que foi marcada pela intensificação de mudanças – impri- ou de atuação criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A
mindo, segundo Sevcenko28, à base tecnológica um impacto revelado so- relação entre o público e o privado é novamente colocada em cheque.
bretudo pelo crescimento dos setores de serviços, comunicações e infor- As associações da sociedade civil34 passam a representar o interesse
mações - , o que a levou a ser caracterizada como período pós-industrial.
“Uma verdadeira avalanche de inventos, descobertas científicas e 30 .  Diniz, Arthur José Almeida.”O Poder e os Mitos”. Revista Brasileira de Estudos Políti-
inovações técnicas são realizadas nesse período”29, elevando a taxa de cos. UFMG. Belo Horizonte. 1991.

crescimento dos conhecimentos técnicos, que desde o começo dos sé- 31 .  Carvalho-Neto, Menelick de. “Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o
paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado. Pós-Gradua-
ção da FD/UFMG, Belo Horizonte: mandamentos, 1999.
26 .  Ribeiro, Renato Janine. “Direito e ética na sociedade da informação”. I Ciberética. 1998. 32 .  Capez, Fernando “Tutela dos Interesses Difusos e Coletivos”, Ed. MPM. 4a Edição, 1997
27 .  Ibdem, Ribeiro, Renato Janine. – São Paulo
28 .  Sevcenko, Nicolau. A corrida para o século XXI. Cia das Letras. São Paulo, 2001. 33 .  Carvalho-Neto, Menelick de. Op Cit. 1999.
29 .  Sevcenko, Nicolau. Op. cit. 2001 34 .  Vieira, Liszt.Os argonautas da cidadania. Editora Record. Rio de Janeiro. 2001. p.28/29.

114 115
N N
público contra o Estado privatizado e omisso. Os direitos de 1a e 2a ger- Assim, informa Amadeu dos anjos Vidonho Junior37 que “sem dúvi-
ação ganham novo significado. Os de 1a são retomados como direitos da podemos afirmar modernamente que a Internet tal como a História
(agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de partici- da Filosofia, citando Del Vecchio38 “oferece-nos repositório de observa-
pação na debate público que informa e conforma a soberania demo- ções, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da
crática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado vida, seria impossível ocorrer”, e ainda mais, oferece-nos acesso à uni-
Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto. versalidade, onde podemos pesquisar e encontrar os pensamentos de
Tem-se início com uma visão ainda individual, segundo Eliana Calm- todo o planeta.
on “a igualdade real de cada um, merecedora de proteção do Estado – di-
35

reito à educação, ao pleno emprego, à segurança, etc.”


Enfrentam-se as mazelas da globalização, sem conseguir cumprir os Conclusão
compromissos sociais, o mundo atual se vê sem condições de implementar
as políticas sociais e ambientalistas propostas constitucionalmente, e sem
conseguir fortalecer os grupos minoritários, que surgiram como complica-
dor e de exclusão social provocado pelo apartheid econômico: os desempre-
A ssim, à guisa da conclusão, a Internet, como um dos meios de co-
municação mais completos já vislumbrados pela mente humana,
tornou possível a comunicação em nível global, transformando-se em
gados, os subempregados e a economia marginal ou informal. verdadeira praça pública, onde todos, independentemente de raça, cor e
A multiplicação de redes de computadores, comunicações por satélite, nacionalidade, têm direito ao uso da palavra, numa versão moderna da
cabos de fibras ópticas e mecanismos eletrônicos de transferência de dados Ágora da Grécia Antiga.
e informações em alta velocidade, até a proliferação dos pequenos disposi- Um meio de comunicação tão fantástico, revolucionário e hábil para
tivos móveis com acesso à Internet, desencadeou uma revolução nas comu- a realização de atividades pessoais, interpessoais e comerciais é sinal
nicações, permitindo uma atividade real e especulativa sem precedentes. inconteste de sua legitimidade como instrumento de progresso social,
As exigências sociais chegaram a um nível de sofisticação tão elevado mas também de grandes desigualdades.
que o regramento da vida do indivíduo e da sociedade na qual ele se Imprescindível, no entanto, para maior satisfação das necessida-
insere tornou-se insuficiente, sendo necessário ordenar, regrar e disci- des humanas com as inúmeras possibilidades que a técnica propor-
plinar o espaço físico e o meio ambiente. Assim, a preocupação apresen- ciona que ocorra uma integração das facilidades da comunicação aos
tada não é mais pela vida, mas pela qualidade de vida. sistemas jurídicos vigentes, e que seja em sede constitucional, como
Segundo Eliana Calmon36 “a taxa de mortalidade diminuiu e a longe- garantia dos direitos humanos e fundamentais para combater a ex-
vidade se estende à medida que se avança a ciência, fazendo com que o clusão social através da inclusão digital, pressuposto inafastável do
homem tenha praticamente o poder sobre a vida, determinando o nasci- pleno exercício da cidadania.
mento e a morte. A transformação do código genético de plantas, animais Neste sentido é que o Direito não pode isolar-se do ambiente em
ou microorganismos por meio de engenharia genética já é uma realidade.” que vigora e deixar de atender às outras manifestações da vida social
E ainda, “Este poder científico do homem e a rapidez das descober- e econômica; e esta não há que corresponder imutavelmente às regras
tas biológicas, pela biotecnologia, levam a uma grande questão: qual o formuladas pelos legisladores. Se as normas positivas não evoluem à
comportamento a ser adotado pelos profissionais das diversas áreas, proporção que evolve a coletividade, consciente ou inconscientemente,
ao enfrentarem os desafios decorrentes desta evolução? Como tratar a conduta ética deve antes colocar em discussão um mínimo necessário
questões extremamente polêmicas, dentro de um universo de valores para que os indivíduos possam realizar-se como cidadãos, para conse-
ainda envelhecidos? Qual será o limite para a vida e para a morte?”
37 .  Vidonho Junior, Amadeu dos Anjos. “Reflexões sobre o jusfilósofo do século XXI” in
35 .  Calmon, Eliana. “As Gerações de Direitos e as Novas Tendências”. Ed. Consulex. 2002. Internet Legal – O Direito na Tecnologia da Informação. Editora. Juruá. Curitiba. 2003.
36 .  ______________Ibidem Calmon, Eliana. 38 .  Del Vecchio, Giorgio. Lições da Filosofia do Direito. Coimbra. Armênio Amado Editor. 1979.

116 117
N N
guir que todos os seres humanos se beneficiem das suas vantagens e
para evitar que o abismo entre pobres e ricos continue aumentando.
Independente de concordamos com a taxação de ser a globaliza-
ção “uma nova versão do feudalismo” - que de carona no desenvolvi-
mento informacional, prolonga a perversidade da lógica capitalista
do privilégio do capital sobre a pessoa humana -, hoje se realiza de
forma acelerada e irreversível.
Neste cenário, onde o Estado precisa ser redefinido a fim de mediar os
conflitos, é que o constitucionalismo se renova e fortalece, ganhando no-
vos pressupostos principiológicos e novas dimensões, ultrapassando seus
limites tradicionais para afirmar-se num espaço juspolítico mais amplo.
A constituição deve realizar-se, assim, como processo aberto de par-
ticipação, alcançando a pretendida jurisdição constitucional, através de
uma ordem jurídica comunitária e internacional.
Nesse contexto, dever-se-ia começar uma incursão pelos direitos
fundamentais, inicialmente, como forma de combater a exclusão social
através da inclusão digital, que está diretamente vinculada à exclusão
econômica e a exclusão educacional, como pressuposto básico do exer-
cício da cidadania de forma a corresponder efetivamente às expectati-
vas do Estado Democrático de Direito.

118
N
Questão Genética e
Autonomia sobre
o Próprio Corpo
q6
Old and New Rights in
the Postgenomic Era1*

Carla Faralli

1  A
 New Form of Discrimination:
Genetic Discrimination

A s is known, a Human Genome Project was started in the late 1980s


which drew the public’s attention to a revolution begun a few
decades earlier, in 1953, with the discovery of the DNA’s double-helix
structure. As the name suggests, the purpose of the project was to map
the human genome by describing the structure, position, and function
of the genes that characterize the human species.
This research has been amplified and distorted under the pressure
of great economic interests, among other factors, and has been touted
as “the culminating phase in the quest for the biological Grail,”2 reveal-
ing what it means to be human, and having the potential to change our
philosophical self-understanding by showing us how life works. And so
there are great expectations this research has engendered as to the use
it can be put to in diagnosing, curing, and preventing many diseases,
this on the basis of the assumption that every aspect of our individual
and social life can be traced to our genes.

1 .  * Translated by Filippo Valente.


2 .  These words can be found in W. Gilbert, “A Vision of the Grail,” in The Code
of Codes: Scientific and Social Issues in the Human Genome Project (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1992). Some of the most critical commentary
can be found in R. Hubbard and E. Wald, Exploding the Gene Myth (Boston: Bea-
con Press, 1993); D. Nelkin and M. S. Lindee, The DNA Mystique: The Gene as a
Cultural Icon (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995); and R. Lewon-
tin, It Ain’t Necessarily So: The Dream of the Human Genome and Other Illusions
(New York: New York Review of Books, 2000).

121
N
More recent studies have underscored the significant role of nonge- in Article 2 the principle that “everyone has a right to respect for their
netic factors in an organism’s formation and behaviour, this owing, for dignity and for their rights regardless of their genetic characteristics,”
example, to the complexity of the processes by which genes, proteins, and “that dignity makes it imperative not to reduce individuals to their
and the environment interact. Further, as much as genetic testing may genetic characteristics and to respect their uniqueness and diversity.”
make it possible for us to detect, before or after birth, genetic anomalies And Article 6 states, “No one shall be subjected to discrimination based
responsible for a disease now in progress or potentially in the making, on genetic characteristics that is intended to infringe or has the effect
and may also make it possible to locate defective genes in DNA, there is of infringing human rights, fundamental freedoms and human dignity.”
nothing like a cure in most of these cases, because there is still too wide In 2003, UNESCO relied on this document for its own International Dec-
a gap between progress in diagnosis and available therapy. laration on Human Genetic Data, setting forth principles for the collec-
The moral, social, and legal consequences attendant on this kind of tion, processing, use, and storage of such data, which it recognizes in Ar-
research did not escape the project’s own promoters, who set up a spe- ticle 4 as having a special status, for it “may have a significant impact on
cial commission under a project called ELSI (Ethical, Legal, and Social the family, including offspring, extending over generations, and in some
Implications project) so as to inform and raise awareness about the re- instances on the whole group to which the person concerned belongs.”
search in progress and to encourage debate, in an effort to keep at bay The Convention on Human Rights and Biomedicine,4 for its part, and
distorted uses of the knowledge gained, especially those uses driven as is known, was the outcome of a long and laborious process begun in
solely by biological conceptions of the person and by discrimination 1991, and not until 1997 did it come into force, when numerous states
based on genetic differences. signed it in Oviedo. It codifies preexisting yet scattered pronounce-
Beginning in the 1990s, different international documents addressed ments the Council of Europe had issued to member states beginning
the protection of individual rights in connection with the issues raised in 1970 with the aim of achieving international cooperation on medical
by genetics: First came the Universal Declaration on the Human Genome ethics, and it also codifies some (likewise scattered) recommendations
and Human Rights, adopted by UNESCO in 1997; then the Oviedo Con- on genetics dating to the 1980s, beginning with Recommendation No.
vention on Human Rights and Biomedicine, also of 1997; then the Charter 934 on Genetic Engineering, which will be discussed in Section 2.
of Fundamental Rights of the European Union (CFR), of 2000; then the Chapter 4 of this convention is devoted to the human genome, with
International Declaration on Human Genetic Data, of 2003; and finally four articles prohibiting discrimination in any form against anyone on
the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights, of 2005. account of their genetic heritage (Article 11); allowing genetic testing
The Universal Declaration on the Human Genome and Human only for medical purposes and for research, and only with appropriate
Rights reads in its preliminary matter that its own principles are intro- genetic counselling (Article 12); permitting intervention on the human
duced, “recognizing that research on the human genome and the result- genome only for preventive, diagnostic, or therapeutic purposes, and
ing applications open up vast prospects for progress in improving the only if its aim is not to modify the genome of any offspring (Article 13);
health of individuals and of humankind as a whole, but emphasizing and prohibiting the use of medically assisted procreation for the pur-
that such research should fully respect human dignity, freedom and pose of choosing a child’s sex, unless such use is necessary to avoid a
human rights, as well as the prohibition of all forms of discrimination serious hereditary disease related to sex (Article 14). So we have here a
based on genetic characteristics.”3 series of provisions affirming a right to an individual’s genetic identi-
Having proclaimed in Article 1 that the “human genome [...] in a sym- ty—this by way of a corollary, as it were, of the rights to life and health.
bolic sense [...] is the heritage of humanity,” the document sets down

4 .  Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human
3 .  UNESCO, The Universal Declaration on the Human Genome and Hu- Being with regard to the Application of Biology and Medicine: Convention on
man Rights (1997). Available online at <http://unesdoc.unesco.org/imag- Human Rights and Biomedicine (Oviedo, 4 April 1997). Available online at <http://
es/0012/001229/122990eo.pdf>. conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/164.htm>.

122 123
N N
In 2008, a protocol to the convention was issued on genetic testing,5 set- have, as concerns, for example, the ability to access information about
ting forth some fundamental principles, among which an obligation other members of the group, or the privacy of those concerned (includ-
to ensure adequate genetic counselling when doing genetic testing, ing under this heading the right not to be informed), and the authority
and the right not to be informed. Particularly interesting in this re- to use data pertaining to the group.
gard is Article 13 of the protocol, introducing an exception to Article 6 Clearly, there are profound implications for our individual person-
of the Oviedo Convention on Human Rights and Biomedicine (excep- ality once we find out what our genetic destiny will be as revealed
tionally, and by derogation from Article 6(1) of that convention and through a predictive test (and it should be mentioned in passing from
from Article 10 of the protocol itself), on the protection of those who the outset that these tests are reliable only for monofactorial genetic
cannot consent: The exception states that genetic testing may be car- diseases, and that in the vast majority of cases the disease will instead
ried out on someone lacking the capacity to consent if such testing is be polifactorial, making it impossible to predict its onset). But in any
undertaken for the benefit of family members, this so long as certain event, the information so gained can lead us to take a preventive strat-
conditions are met, including the condition that the benefit gained be egy designed to reduce or minimize the risk involved, but it can just
important to the health of this person’s family members, or otherwise as easily act as a source of anxiety and may even lead to depression
that the test allow them to make an informed choice with respect to or to tragic choices. (The most frequently cited case in this regard is
procreation, and that certain criteria be met ensuring minimal risk that of Huntington’s disease, which tends to have a late onset.) Whence
for the person subject to the test. the need to respect everyone’s right to decide whether to be informed
The EU Charter of Fundamental Rights (CFR)—signed in Nice in about genetic test results and what they mean. On a philosophical lev-
2000, and now referenced in the Treaty of Lisbon, which came into el, the right not to know comes into conflict with the principle of re-
force on 1 December 2009—includes genetic features in Article 21 in a sponsibility, to be sure, but it is certainly a component of the right of
full list of prohibited grounds of discrimination: “Any discrimination self-determination, or the right to freely choose for oneself in life.
based on any ground such as sex, race, colour, ethnic or social origin, Stefano Rodotà comments in this regard that the ability to predict
genetic features, language, religion or belief, political or any other opin- our biological future paves the way for greater control on our part, en-
ion, membership of a national minority, property, birth, disability, age abling us to freely make choices in situations hitherto treated as ne-
or sexual orientation shall be prohibited.”6 cessitated, such that what is now left to chance will at some point be a
The special emphasis that discrimination receives in the documents matter of freedom. We are in this way working toward situations facil-
just briefly discussed shows that genetic discrimination has now made itating us in deliberately designing our biological future: This opens up
its way into the open menu of forms of discrimination, and yet it differs the prospect of an “antidestiny,” where the human being governs situa-
from these other forms in at least two respects. tions rather than sustaining them.7
In the first place, considering the nature of genetic data, discrimina- In the second place, genetic discrimination differs from all other
tion based on genetic features is discrimination affecting not the sin- forms of discrimination in that it may target an individual not on the
gle individual but the biological family the individual belongs to. This basis of a current condition but on the basis of the risk (or the presumed
biological membership group makes it necessary to carefully consider risk) that such a condition may at some point develop, even though it
the question as to who makes up this group and what rights they each may not develop at all.

5 .  “Additional Protocol to the Convention on Human Rights and Biomedicine, 7 .  Stefano Rodotà has been among the first civil lawyers in Italy to address the
concerning Genetic Testing for Health Purposes,” Strasbourg, 27 November 2008. question of genetic data, presciently anticipating contemporary legal doctrine
Available online at <http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/203.htm>. by arguing for the exceptional status of such data. This is a view he first set out
6 .  Article 21 of the Charter of Fundamental Rights of the European Union, OJ C in Tecnologie e diritti (Bologna: Il Mulino, 1998) and then amplified in La vita e
83/392, 30.3.2010. Available online at <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/Lex- le regole: Tra diritto e non diritto (Milan: Feltrinelli, 2008) and Il diritto di avere
UriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0403:EN:PDF>. diritti (Rome and Bari: Laterza, 2012).

124 125
N N
This is because, unlike any other kind of personal data, genetic data
2  Gene Therapy and New Rights
provides information not only about what someone is but also about
what he or she could become. As Rodotà comments, this expands the
range of possibilities for classification by introducing concepts such
as prediction, (risk) proneness, and at-risk person. But these interpre-
G enetic research for therapeutic purposes has given birth to a tech-
nique that is still mostly experimental, and that is gene therapy,
which essentially consists in the transfer of genetic material to either
tive categories—consider that a cautious use of them is already being
prevent or cure disease. In the 1980s and ’90s, a few developments took
recommended even in predictive medicine—can give place to perilous
place that drew much interest but at the same time gave rise to pub-
misunderstandings if “tapped” from mainstream genetics and made to
lic concern: In 1980, the biologist A. Chakabarty was granted the first
spill over into the realm of social policy. Indeed, we incur the risk of
patent for a genetically modified organism; in 1990, gene therapy was
taking a potential condition, or worse, a hypothetical one, its likelihood
administered to a four-year-old girl in the United States for a serious im-
often determined on the basis of statistical methods, and turn it into
munodeficiency condition; and, finally, in 1997 came the cloning of Dolly
an unchangeable predestination, thus fostering an environment recep-
the sheep.
tive to an entire spectrum of consequences, involving matters ranging
Gene therapy can be grouped in two classes: There is germ-line gene
from the legal treatment of those concerned to our social perception of
therapy, whose effects can be passed on to later generations, and there
them, and, perhaps even more alarmingly, involving the world of work
is somatic gene therapy, which, by contrast, only affects the individual’s
and insurance, by threatening to usher in a caste society with a class
cells (and is in this sense uninheritable).
of people regarded as so much a “risk” or a “liability” that they become
Germ-line gene therapy that has been tested on transgenic animals can
“unemployable” and “uninsurable.”
in theory be extended to humans, but so far this has not been attempted.
It is against the background of these potential risks that a trend has
The whole range of issues arising in connection with these develop-
recently developed in genetic research with the emergence of so-called
ments have drawn the attention of the Council of Europe since the ear-
genetic reductionism, a sort of modern avatar of the biological reduc-
ly 1980s, when experimentation on gene therapy was just getting start-
tionism propounded by Francis Galton (1822–1911) and Cesare Lombroso
ed. Thus in Copenhagen on May 25 and 26, 1981, the Council of Europe
(1835–1909). This brand of genetic research has received strong criticism,
held its 7th public parliamentary hearing, where the Danish parliamen-
though, with a firm stand taken against it by many geneticists, not least
tarian M. Elmquist presented a report on the issues raised by genetic
of whom Craig Venter and Francis Collins, the promoters of the Human
engineering.10
Genome Project, who have observed, “We’re clearly much, much more
As a result of this hearing, the Council of Europe issued the previ-
than the sum total of our genes.”8 For which reason, as has been under-
ously mentioned Recommendation 934 (1982) on Genetic Engineering,11
scored by another great American geneticist, Victor McKusick, it would
be a grave mistake to think we have understood everything about our-
and reductionism, the view that with complete knowledge of the human genome
selves just because we have sequenced our own genome, and likewise sequence, it is only a matter of time before our understanding of gene functions
grossly misguided would be the idea that the human condition is sim- and interactions will provide a complete causal description of human variability.
ply the direct and inevitable consequence of our genome.9 The real challenge of human biology, beyond the task of finding out how genes
orchestrate the construction and maintenance of the miraculous mechanism of
our bodies, will lie ahead as we seek to explain how our minds have come to
8 .  The White House, Office of the Press Secretary, press release of June 26, 2000, organize thoughts sufficiently well to investigate our own existence.” J. Craig
“Human Genome Project Information.” Available online at <http://www.ornl.gov/ Venter, Victor A. McKusick, et al. “The Sequence of the Human Genome,” Science
sci/techresources/Human_Genome/project/clinton2.shtml>, site sponsored by 291 (2001): 1304–1351, on p. 1348.
the U.S. Department of Energy Office of Science, Office of Biological and Envi- 10 .  See I. R. Pavone, La convenzione europea sulla biomedicina (Milan: Giuffrè,
ronmental Research, Human Genome Program. 2009), p. 27.
9 .  As McKusick has remarked, “there are two fallacies to be avoided: determin- 11 .  Parliamentary Assembly of the Council of Europe (PACE), “Recommendation
ism, the idea that all characteristics of the person are ‘hard-wired’ by the genome; 934 (1982) on Genetic Engineering.” Available online at <http://assembly.coe.int/

126 127
N N
proposing that the catalogue of human rights contained in the Euro- diagnostic, therapeutic, scientific, industrial, and commercial purpos-
pean Convention on Human Rights (1950)12 be supplemented with a es)13 starts out at point (1) by explicitly recalling the recommendation
new item, namely, “the right to inherit a genetic pattern which has not just commented (no. 934 of 1982, on genetic engineering). It thus rec-
been artificially changed.” This is stated in the recommendation under ognizes “the right to a genetic inheritance which should not be artifi-
points 4 (a)–(d), which read as follows: cially interfered with except for therapeutic purposes,” subsequently
proceeding to list some genetic practices considered to constitute a
ŠŠ a. the rights to life and to human dignity protected by Articles 2
deviation from such purposes or an “undesirable use” of genetic tech-
and 3 of the European Convention on Human Rights imply the
nique. These practices include, but are not limited to, (i) “the creation of
right to inherit a genetic pattern which has not been artificially
identical human beings by cloning or any other method”; (ii) “the fusion
changed;
of human gametes with those of another animal”; (iii) “the fusion of em-
ŠŠ b. this right should be made explicit in the context of the Europe- bryos or any other operation which might produce chimeras”; and (iv)
an Convention on Human Rights; “choice of sex by genetic manipulation for non-therapeutic purposes.”
In the 1986 recommendation, then, it is made explicit that some
ŠŠ c. the explicit recognition of this right must not impede devel-
practices are considered inherent violations of the human right to in-
opment of the therapeutic applications of genetic engineering
herit a genetic endowment that has not been artificially modified. This
(gene therapy), which holds great promise for the treatment and
right is recognized independently of whether the genetic practice in
eradication of certain diseases which are genetically transmitted;
question is therapeutic or not, and the principle is reiterated in the 1989
ŠŠ d. gene therapy must not be used or experimented with except recommendation,14 which explicitly forbids “any form of therapy on the
with the free and informed consent of the person(s) concerned, or human germinal line,” since, as was previously mentioned, this sort of
in cases of experiment with embryos, foetuses or minors with the therapy modifies an individual’s genetic endowment in such a way that
free and informed consent of the parent(s) or legal guardian(s). the modifications pass on to that person’s offspring.
In subsequent years, in keeping with these recommendations, the
As we can see, after the solemn pronouncement at points (a) and European Parliament took important decisions in this matter, begin-
(b)—proclaiming this “right to inherit a genetic pattern which has not ning in particular with its “Resolution on the Ethical and Legal Prob-
been artificially changed”—it is stated at point (c) that this right can lems of Genetic Engineering,” of March 16, 1989,15 taking the view “that
be balanced with the individual’s right to health; it is therefore legit- gene transfers in human somatic cells are basically an acceptable form
imate for individuals to undergo genetic engineering, so long as the of therapy, about which the patient must be properly informed and for
intervention is exclusively therapeutic and, as is stated at point (d), so
long as the individuals concerned or their guardians give their “free
13 .  Parliamentary Assembly of the Council of Europe (PACE), “Recommendation
and informed consent.” 1046 (1986) on the Use of Human Embryos and Foetuses for Diagnostic, Therapeu-
In subsequent years, the Council of Europe progressively specified tic, Scientific, Industrial and Commercial Purposes.” Text adopted by the assem-
its position, especially by way of two further recommendations: one in bly on 24 September 1986 (18th sitting). Available online at <http://assembly.coe.
int/main.asp?Link=/documents/adoptedtext/ta86/erec1046.htm>.
1986 and the other 1989.
14 .  Parliamentary Assembly of the Council of Europe (PACE), “Recommendation
The 1986 document (on the use of human embryos and foetuses for 1100 (1989) on the Use of Human Embryos and Foetuses in Scientific Research.”
Text adopted by the assembly on 2 February 1989 (24th sitting). Available on-
line at <http://assembly.coe.int/Main.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta89/
Main.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta82/EREC934.htm>. EREC1100.htm>.
12 .  Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, 15 .  European Parliament, “Resolution on the Ethical and Legal Problems of Ge-
signed in Rome on 4 November 1950. Available online at <http://conventions.coe. netic Engineering,” OJ C 96, 17.04.1989, p. 165–71. Available online at <http://www.
int/Treaty/en/Treaties/Html/005.htm>. codex.vr.se/texts/EP-genetic.html>.

128 129
N N
which his consent obtained” (Article 22), and calling as well “for an ab- ly address the problem of germ-line gene therapy, but it does prohibit
solute ban on all experiments designed to reorganize on an arbitrary genetic practices contrary to human dignity, and when it turns to imple-
basis the genetic make-up of humans” (Article 27) and “for legislation mentation it refers to the International Bioethics Committee of UNES-
prohibiting any gene transfer to human germ line cells” (Article 28). CO as the body that should “give advice concerning the follow-up of this
Underling these principled statements there seems to be a concep- Declaration, in particular regarding the identification of practices that
tion whereby it is a law of nature, eternal and immutable, that defines could be contrary to human dignity, such as germ-line interventions”
the individual’s genetic characteristics, a conception reinforced by the (Article 24). In this follow-up, the Bioethics Committee published in 2003
view, expressed in Articles 29 and 30, that an individual’s genetic make- a document presenting and discussing the most controversial genetic
up bears importantly on this person’s identity, which is already defined practices, including the genetic manipulation of human germ cells.17 So-
in the embryo. Article 30, in particular, says that even a recombination matic cell gene therapy, for its part, is likened to any other form of med-
of genes that only partly alters the genotype falsifies the individual’s ical intervention and so is required to be carried out in compliance with
identity, and would thus be “both irresponsible and unjustifiable be- the general principles covering any medical procedure.
cause a very individual legal asset is involved.” Under Article 5 of the Universal Declaration on the Human Genome,
These recommendations and this resolution were followed by the
ŠŠ a. Research, treatment or diagnosis affecting an individual’s ge-
aforementioned Oviedo Convention on Human Rights and Biomedi-
nome shall be undertaken only after rigorous and prior assess-
cine (1997), which under Article 13 states: “An intervention seeking to
ment of the potential risks and benefits pertaining thereto and in
modify the human genome may only be undertaken for preventive, di-
accordance with any other requirement of national law.
agnostic or therapeutic purposes and only if its aim is not to introduce
any modification in the genome of any descendants.” ŠŠ b. In all cases, the prior, free and informed consent of the person
As we can see, this article, taking up the guidelines set out in the concerned shall be obtained. If the latter is not in a position to
policy statements in question, draws a distinction between two sorts of consent, consent or authorization shall be obtained in the man-
interventions: those intended to protect and individual’s health—these ner prescribed by law, guided by the person’s best interest.
are deemed legitimate—and those that modify the germ line, thus also
affecting the offspring’s genome, and these are not deemed legitimate. Under Article 8, “every individual shall have the right, according to
So, as was previously observed, with these provisions the 1997 Ovie- international and national law, to just reparation for any damage sus-
do Convention sets forth, on the one hand, the right of future genera- tained as a direct and determining result of an intervention affecting
tions to inherit an unmodified genetic makeup, and on the other the his or her genome.” And under Article 12(a), “benefits from advances in
right of every individual to undergo genetic interventions on the so- biology, genetics and medicine, concerning the human genome, shall be
matic cell line (and hence interventions whose modifications are not made available to all, with due regard for the dignity and human rights
passed on to the individual’s offspring), so long as the purpose is pre- of each individual.”
ventive, diagnostic, or therapeutic, and on the condition of obtaining The question of the person’s right to integrity is addressed in the
the free and informed consent of the individual concerned or of his or previously mentioned CFR (the EU Charter of Fundamental Rights, rat-
her legal guardian.16 ified in Nice in 2000), which under Article 3 reads as follows:
UNESCO’s previously mentioned Universal Declaration on the Hu-
ŠŠ 1. Everyone has the right to respect for his or her physical and
man Genome and Human Rights (also adopted in 1997) does not frontal-
mental integrity.
16 .  On this point, see D. Neri, “La Convenzione europea di bioetica e la terapia
genetica,” Bioetica 4 (1998): 516–25, and D. Neri and M. Mori, “Perils and Deficien- 17 .  See UNESCO, International Bioethics Committee (IBC), “Report of the IBC on
cies of the European Convention on Human Rights and Biomedicine,” Journal of Pre-implantation Genetic Diagnosis and Germ-line Intervention,” Paris, 24 April 2003.
Medicine and Philosophy 26, no. 3 (2001): 323–33. Available online at <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001302/130248e.pdf>.

130 131
N N
ŠŠ 2. In the fields of medicine and biology, the following must be re- explicitly recognizing a right to genetic integrity in the CFR is that its
spected in particular: framers, in prohibiting eugenic practices and reproductive cloning, did
not want a future scenario where, on the one hand, advancements in
ŠŠ (a) the free and informed consent of the person concerned, ac-
biomedicine would make it possible to prevent or treat serious genetic
cording to the procedures laid down by law;
diseases by modifying the human genetic makeup, and yet, on the oth-
ŠŠ (b) the prohibition of eugenic practices, in particular those aim- er, the treatment would be unavailable precisely for that reason (be-
ing at the selection of persons; cause it would involve modifying the human genetic makeup).20
The documents we have looked at can be said to share a core set of
ŠŠ (c) the prohibition on making the human body and its parts as
principles, including the right to human dignity, nondiscrimination,
such a source of financial gain;
and equality, as well as to self-determination and its corollaries, namely,
ŠŠ (d) the prohibition of the reproductive cloning of human beings. informed consent and privacy. These principles offer themselves as an
answer to some questions we are increasingly being forced to deal with:
The preparatory work on the CFR reveals that the charter, in its Should everything that is technologically possible also be considered
final draft, was supposed to contain a right to genetic integrity,18 and morally admissible, socially acceptable, or legally permissible? Where
that it was also meant to prohibit genetic modifications which may be should we draw the line between therapy and enhancement? On the ba-
passed on to offspring, while consequently legitimizing genetic modi- sis of what criteria can enhancement be distinguished from eugenics?
fications only insofar as they are effected for preventive, diagnostic or As Stefano Rodotà has commented, the debate on these issues can
therapeutic purposes.19 be framed, however much with a good measure of oversimplification,
According to some commentators, on a broad interpretation of Arti- by dividing the participants into two broad camps: on the one hand are
cle 3 CFR, the right to the integrity of one’s genetic endowment ought to the “bioconservatives,” and on the other the “transhumanists”21—the
be recognized as falling within the more general right to physical integ- former resolutely committed to restoring our natural rights; the latter
rity (Article 3(1) CFR); and the prohibition against eugenic practices and championing a new freedom, namely, the freedom to exploit without
reproductive cloning (Article 3(2)(b) and (d) CFR, respectively) would hindrance the unprecedented power we are invested with.
entail a broader prohibition against any genetic intervention on the But a similar polarization in the debate is not helpful, for it appeals
germ line, that is, against any genetic modification that can be passed to notions like nature, artifice, health, disease, and normality that are
on to offspring, unless the intervention is therapeutic, being justified highly problematic and call for philosophical reflection.
on the basis of the descendant’s right to health, a right recognized as One ought to consider, in this regard, authors like Jürgen Haber-
prior to the right to genetic integrity.
According to other commentators, by contrast, the reason for not

20 .  See esp. M. G. Giammarinaro, “Luci ed ombre della Carta Europea dei diritti,”
18 .  “Everyone has the right to the protection of his/her life and of his/her phys- Bioetica 4 (2001): 710–25; G. Ferrando, “La Carta dei diritti dell’Unione Europea:
ical, psychological and genetic integrity.” Article 2 (“Right to Life”) of the Draft Oltre le polemiche,” Bioetica 4 (2001): 700–704; A. Santosuosso, “Integrità della
Charter of Fundamental Rights of the European Union (Charte 4157/00; Contrib persona, medicina e biologia: Art. 3 della Carta di Nizza,” Danno e responsabilità
42), Brussels, 13 March 2000. Available online at <http://register.consilium.eu- 8–9 (2002): 809–16; C. Casonato, “Il contenuto della Carta tra conferme, novità e
ropa.eu/pdf/en/00/st04/st04157.en00.pdf>. contraddizioni,” in Diritto, diritti, giurisdizione: La Carta dei diritti fondamentali
19 .  “Any intervention directed at alteration of the human genome may be un- dell’Unione Europea, ed. R. Toniatti, pp. 99–118 (Padua: CEDAM, 2002); and R. Bi-
dertaken only for preventive, diagnostic or therapeutic purposes and only if it is fulco, “Dignità umana e integrità genetica nella Carta dei Diritti Fondamentali
not intended to bring about any alteration in the genome of progeny.” Proposed dell’Unione Europea,” Rassegna Parlamentare 1 (2005): 63–115.
amendment to Article 3 of the Draft Charter of Fundamental Rights of the Euro- 21 .  By transhumanism, or post-humanism, Rodotà means the complex of tech-
pean Union (Charte 4332/00; Convent 35), Brussels, 25 May 2000. Available online nologies that make it possible to overcome the limitation of human form. See S.
at <http://register.consilium.europa.eu/pdf/en/00/st04/st04332.en00.pdf>. Rodotà, Il diritto di avere diritti (Rome and Bari: Laterza, 2012), p. 344.

132 133
N N
mas,22 for whom intervention on the human genome could cause hu-
man beings to lose what Habermas calls the reflexive attitudinal pre-
conditions for moral agency (our self-understanding as members of
the species), along with our naturality. Others, like John Harris,23 argue
that manipulation of the human genome aimed at raising the quality
of life is part of the natural aspiration of humans, who have always, in
every age, pursued the good of improvement by employing the means
at their disposal. And others still, like Buchanan, Brock, Daniels, and
Wikler,24 hold that, even if gene therapy involves the manipulation of
the genetic makeup, its use is legitimate when it can mitigate the disad-
vantages owed to disability and disease, for in these cases it can help in
the effort to ensure equality and equal opportunity.
These are open issues unfolding in a context that, as was noted at
the beginning of this section, is still largely experimental.

22 .  J. Habermas, The Future of Human Nature, translated by Hella Beister and
William Rehg (Cambridge, UK: Polity, 2003).
23 .  J. Harris, Enhancing Evolution: The Ethical Case for Making Better People
(Princeton: Princeton University Press, 2010).
24 .  A. Buchanan, D. W. Brock, N. Daniels, and D. Wikler, From Chance to Choice:
Genetics and Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 2000).

134
N
7
MELHORAMENTO HUMANO: DE SER PARA
COISA? UMA ABORDAGEM A PARTIR DA
(DES)CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE

Leana Mello
Tiago Vieira Bomtempo

1  INTRODUÇÃO

P resencia-se o momento da chamada “revolução biotecnológica”, a


era da transformação, não somente do homem sobre o ambiente em
que vive, mas também sobre si mesmo, da autoconstrução ou, porque
não, da desconstrução. A biotecnologia, segundo Pessini: “[...] significa
muito mais que seus processos e produtos: trata-se de uma forma de
empoderamento humano. Por meio de suas técnicas (por exemplo, na
recombinação de genes), instrumentos (como os seqüenciadores de
DNA) e produtos (novos medicamentos e vacinas), a biotecnologia dá
aos seres humanos poder para controlar suas vidas de maneira mais
efetiva, diminuindo a sujeição à doença e minimizando a influência
aleatória da biologia. As técnicas, instrumentos e produtos da biotec-
nologia aumentam as capacidades dos seres humanos de agir e “funcio-
nar” efetivamente, direcionando-as para muitos objetivos diferentes”1.
Junto a isto, retoma-se a ideia de melhoramento humano ou enhance-
ment, possibilidade hoje vislumbrada na genética, na estética, na nano-
tecnologia, na robótica e nos esportes na busca do ser humano perfeito.
De acordo com Silva e Moreno: “O desenvolvimento científico e tec-
nológico nos traz, a cada dia, novas possibilidades de intervenções no
corpo. As necessidades de pro­dução e acúmulo que rondam o contex-

1 .  PESSINI, Leocir. Bioética e o desafio do transumanismo: ideologia ou utopia, ameaça ou


esperança?. Revista Bioética, Brasília, v.14, n.2, jul. 2009. Disponível em:http://revistabioeti-
ca.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/14. Acesso em: 03 Abr. 2013. p.127-128.

135
N
to atual nos empurram para a busca do desempenho, do ponto ótimo guém seja protegido pelo ordenamento jurídico como sujeito de direi-
de performance. O corpo tornou-se ob­soleto. As introjeções tecnoló- tos, merecedores de respeito pela condição de serem seres humanos.
gicas surgem a fim de “turbinar” a máquina humana, ampliando-a, A doutrina de Bittar é clara ao dizer que “a construção da teoria dos
melhorando-a, melhor adaptando-a às necessida­des ambientais. É direitos da personalidade humana deve-se, principalmente: a) ao cris-
como se a seleção “natural” de Darwin ganhasse outros contornos e tianismo, em que se assentou a ideia da dignidade do homem; b) à Esco-
nós, à mercê das leis evolutivas, tivéssemos de nos adaptar”2. la de Direito Natural, que firmou a noção de direitos naturais ou inatos
Entretanto, até que ponto pode-se afirmar que o estágio de perfei- ao homem, correspondentes à natureza humana, a ela unidos indisso-
ção não redefine o conceito de corpo e de pessoalidade? Existe limite luvelmente e preexistentes ao reconhecimento do Estado; e, c) aos filó-
para a autonomia humana? Sob a ótica do Direito, estamos a um pas- sofos e pensadores do Iluminismo, em que se passou a valorizar o ser, o
so da construção de uma nova personalidade ou de desconstrução da indivíduo, frente ao Estado”.
personalidade jurídica atualmente existente? Assim, de modo geral, tanto no espaço público quanto no privado, os
Neste sentido, este artigo buscará não responder a estas questões, direitos da personalidade começaram a ser reconhecidos. A tutela geral
mas trazer elucidações para que se possam discutir os novos contor- da personalidade foi criada através de junções das construções e rup-
nos que a personalidade jurídica está passando diante dos avanços turas políticas, econômicas, sociais e jurídicas. Vários movimentos no
tecnocientíficos. direito público contribuíram para tal desenvolvimento seja a Revolução
Para tanto, necessário é abordar uma breve evolução dos direitos Industrial, a Declaração francesa, Declaração Universal da ONU, Decla-
de personalidade, a ser tratada no capítulo 2. ração norte-americana bem como a preocupação com os direitos hu-
Após, analisar os aspectos que envolvem o melhoramento humano manos, com as liberdades públicas. Ademais, no âmbito privado, a nova
e possível coisificação da pessoa no capítulo 3. visão da pessoa como fim em si mesma, foi alertando os legisladores de
Por fim, propor em que sentido o Direito, representado pelo Biodireito, que era importante a proteção da pessoa humana e seus atributos.
aplica-se diante das técnicas de enhancement, no reconhecimento de uma Rosa Maria Andrade Nery4 traça uma distinção importante sobre
nova construção da personalidade jurídica ou de desconstrução do mode- o tema personalidade na concepção da teoria geral do direito privado
lo atual existente, a partir da cláusula geral de tutela da pessoa humana. e da teoria geral do direito de personalidade; enquanto esta é mais
específica, pois nela são estudadas “situações jurídicas que têm por
objeto determinados componentes de nossa própria humanidade”.5
aquela pode ser interpretada como o homem, sujeito de direitos e
2  B
 REVE EVOLUÇÃO DOS obrigações, concedendo-lhe poderes para ser parte e titular de uma
DIREITOS DE PERSONALIDADE vida jurídica como indivíduos.
Nesse tópico que é objeto de estudo, a teoria geral do direito de per-

T ratar-se-á nesse capítulo sobre uma breve explanação dos direitos de


personalidade que intrinsecamente está ligada à ideia de ser pessoa.
Segundo o dicionário Aurélio, personalidade é “1.caráter ou qualida-
sonalidade se torna presente em qualquer vínculo que envolva as rela-
ções humanas patrimoniais bem como negócios jurídicos de todas as
espécies. Esses objetos fazem parte da essência humana não como um
de do que é pessoal.2. O que determina a individualidade duma pessoa rol taxativo, mas como meio exemplificativo de acordo com o caso con-
moral; o que a distingue de outra.”3 A personalidade faz com que al-

2 .  SILVA, André Luiz; MORENO, Andréa. Frankenstein e cyborgs: pistas no caminho da Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.419
ciência indicam o “novo eugenismo”. Pensar a Prática, Goiânia, v.8, n.2, Jul./Dez. 2005. Dis- 4 .  NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do
ponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fef/article/view/110/1556. Acesso em: 03 direito privado. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2008.
Abr. 2013. p.126. 5 .  Nery, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do
3 .  FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. 3ª Ed. direito privado. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2008, p. 272.

136 137
N N
creto, com a vivência das pessoas dessa sociedade complexa e de mudan- injúria romana “constitui o embrião do direito geral de personalidade”8.
ças diárias de concepções. Surgem então novos aspectos da personalida- A actio iniuriarum tutelava a moral e os bens imateriais da pessoa
de que devem ser protegidos além dos já consolidados como vida, saúde, humana mesmo com a Escola dos Glosadores (sec. XII) e Escola dos Co-
liberdade, dignidade, integridade, identidade, honra e imagem. mentadores (sec. XIV). Não houve nenhuma mudança significativa nos
Há divergência entre os doutrinadores quanto à natureza dos direitos direitos da personalidade. Somente com o Renascimento e com o Huma-
de personalidade. A maioria entende se tratar de direitos subjetivos pelo nismo do século XVI houve a criação de um direito geral de personalida-
fato de o homem ter o poder de utilizar de sua autonomia, do exercício de de denominado ius in se ipsum.9
sua dignidade, sendo titular de suas próprias escolhas e objetivos. Outros Mas somente com a Constituição da República Federal Alemã e pos-
já veem como um direito objetivo de personalidade, ou seja, regras impos- teriormente da Suíça e Áustria que foram estabelecidas legislações sobre
tas que exigem a efetivação da dignidade da pessoa humana. De acordo o direito geral de personalidade. Em 1949, na Alemanha, a Constituição
com Pedro Pais de Vasconcelos, os direitos objetivos constituem “a regula- Federal previa que todos tinham o direito de desenvolvimento de sua per-
ção jurídica relativa à defesa da personalidade consagrada, quer no direito sonalidade de forma livre, respeitando os seus limites e não violando os
supranacional, quer na lei constitucional, quer na lei ordinária, cuja ratio direitos dos outros. Os direitos de personalidade, nesse sentido, eram de
se funda em razões de ordem pública e de bem comum, e que é alheia à direitos subjetivos.10
autonomia privada.”6 O código civil da Itália de 1942 “veda a disposição do corpo, que im-
Carlos Alberto Bittar7 interpreta os direitos de personalidade como porte em diminuição permanente de sua integridade ou contrária à lei, à
direitos inatos devendo o Estado apenas cumprir o seu dever de sancio- ordem pública ou aos bons costumes (art. 5º); consagra o direito ao nome
ná-los. Nesses termos, a pessoa já nasce com esses direitos sem necessa- (art. 6º) e confere ação para sua tutela (art.7º)”11 além de outros direitos
riamente fazer algo para adquiri-los. como à imagem e à propositura de ações de indenização.
É perceptível que ao longo da história dos direitos de personalidade, no O Código Civil de Portugal de 1966, a Constituição da República Por-
período do direito romano em que prevaleciam os estatutos, só possuíam tuguesa de 1976 e suas respectivas revisões de 1982 e 1989, também sus-
personalidade aqueles indivíduos que eram livres, cidadãos e tinham o tentavam um direito geral de personalidade, protegendo os cidadãos de
status de família. Com o passar do tempo, outros períodos foram surgindo qualquer ofensa a sua personalidade física ou moral.
em substituição aos estatutos, prevalecendo assim a religião e a vingança Segundo Capelo de Sousa, “foi através das sanções penais que os ele-
privada desde a monarquia como uma forma de os homens punirem aque- mentos constitutivos e as manifestações da personalidade humana co-
les que tivessem provocado um dano ou descumprido uma obrigação. Essa meçaram por ser jurídico-estadualmente tutelados” e ainda entende que
atitude era considerada uma forma de tutela dos direitos de personalidade, outro fato importante para o aparecimento do direito geral de persona-
embora a forma como eram observados os direitos de personalidade não lidade foi “a afirmação e tutela, ao nível do poder jurídico-político, dos
se comparava com a visão de que se tem na contemporaneidade. direitos inatos ou fundamentais, inclusive direitos fundamentais de per-
Mesmo com a Lei das XII Tábuas ainda prevalecia a vingança pri- sonalidade de cada cidadão face ao Estado e aos demais entes públicos”.12
vada, além de pena pecuniária em casos de lesões corporais graves. O
Império veio para estruturar a vida política, econômica e social e com 8 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade.
ius praetorium junto com ius civile as deficiências da Lei das XII Tábu- Coimbra Editora, 1995, p.54

as sobre os direitos da personalidade foram obtendo novos rumos. A 9 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade.
Coimbra Editora, 1995.
10 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalida-
de. Coimbra Editora, 1995.
6 .  VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p.50. 11 .  BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ed. Rio de Janeiro: Forense
7 .  BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Uni- Universitária, 2008, p12.
versitária, 2008. 12 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalida-

138 139
N N
No direito brasileiro, o código civil de 2002 tratou de sistematizar própria pessoa estabeleceu como prioritários para o livre desenvolvi-
os direitos de personalidade nos artigos 11 a 21, além da existência de mento da sua personalidade”.15
outras leis especiais que entraram em vigor ao se preocuparem com a Francisco Amaral interpreta os direitos de personalidade como “di-
proteção e reconhecimento dos direitos das pessoas. reitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pes-
O próprio Código Civil, no seu artigo 11, traça algumas caracterís- soa, no seu aspecto físico, moral e intelectual”.16
ticas desses direitos da personalidade sendo eles intransmissíveis e A cada dia, os direitos de personalidade vêm dando maior proteção
irrenunciáveis, além de poder considerá-los como indisponíveis, im- à pessoa, vez que os mesmos não são numeros clausus no ordenamento
prescritíveis, extrapatrimoniais, oponíveis erga omnes. Quanto ao jurídico, mas sim um rol aberto que se amplia e se transforma com cada
aspecto da (ir)renunciabilidade, embora entendido pela doutrina vivência da sociedade, com cada anseio e escolha, de forma que o ser
tradicional como um direito que está atrelado à pessoa do seu titu- humano se autorrealize e principalmente viva com dignidade.
lar, Stancioli, 13 traz um capítulo em seu livro retratando a diferença Todo cidadão deve ter o seu livre desenvolvimento da personalidade
entre a renúncia ao direito da personalidade e renúncia ao exercício que, mesmo não previsto na legislação brasileira, é encontrado inserido
de direito da personalidade, ou seja, num há a interpretação de que na Declaração Universal dos Direitos do Homem e, não menos impor-
haveria a perda da titularidade do direito de personalidade e noutro tante, sempre buscando a efetivação da autonomia privada como meio
ele entende como exercício da autonomia, ao considerar que “a renún- de construir projetos de vida individuais.
cia é fator fundante do livre desenvolvimento da personalidade e da
afirmação da pessoalidade. Ela é a mais perfeita expressão do direito
ao livre desenvolvimento da personalidade.”14
3  M
 elhoramento humano
Os direitos de personalidade são direitos essenciais e qualidade de
ser pessoa que estão previstos no ordenamento jurídico acompanhan- e a coisificação da pessoa
do o sujeito por toda a sua vida, tendo como fundamento o princípio da
dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III da Consti-
tuição da República de 1988.
A pessoa, hoje, deve ser o centro do ordenamento jurídico e por isso
O corpo humano é um organismo biológico, formado por órgãos e teci-
dos que realizam diversas funções físicas e químicas. É por meio dele
que nos identificamos e exercemos a nossa identidade e pessoalidade.
foram positivados os direitos de personalidade para assegurar dignida- Para Lara: “A partir de uma concepção secular, o corpo humano é um
de a todos, além de proteção à sua integridade física e psíquica, imagem, organismo biológico complexo, no qual se estabelecem relações físicas
vida, dados genéticos, honra, nome, intimidade, ou seja, vem garantir e químicas. Toda pessoa humana pressupõe uma base sensível, um ele-
direitos de forma que a pessoa tenha uma vida digna, se autorrealize e mento material, corpóreo, que lhe permita existir: o corpo é a forma de
exerça sua autonomia privada. ser pessoa e de estar no mundo. É por meio do corpo que a pessoa si-
Assim, os direitos de personalidade podem ser conceituados como tua-se no tempo e no espaço, é reconhecida pelos demais e exerce sua
“projeção de algum aspecto da personalidade em espaços de subje- pessoalidade. Não há pessoa sem corpo, pois a existência humana é ne-
tividade e intersubjetividade, que deve ser tutelado pelo Estado na cessariamente corporal”17.
medida da necessidade individual, de acordo com os valores que a
15 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Rena de Lima. Aspectos gerais dos
direitos da personalidade. In. TEIXEIRA, Ana Carolina; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite
de. Coimbra Editora, 1995, p. 92 (coor.) Manual de teoria geral do direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 232.
13 .  STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou como 16 .  AMARAL NETO, Francisco. Direito Civil: introdução. 6.ed. rev. Atual e aum. Rio de
alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. Janeiro: Renovar, 2006, p. 82.
14 .  STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou como 17 .  LARA, Mariana Alves; STANCIOLI, Brunello Souza. O direito à liberdade de uso e
alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 109. (auto) manipulação do corpo. 2012. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mi-

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Todavia, diante das inovações trazidas pela tecnologia, o corpo hu- mas somente maleabilidade humana e liberdade morfológica”20.
mano começa a se construir a partir de um desejo incansável da per- Por outro lado, os bioconservadores são contra o uso da tecnologia para
feição com o uso de recursos cada vez mais artificiais, o que se pode o aperfeiçoamento humano, pois sustentam que o melhoramento é desu-
remeter a uma verdadeira coisificação da pessoa, instrumento e desejo mano, na medida em que coisifica o próprio homem e viola a sua dignidade.
de si própria para a materialização da felicidade, se assim pode-se dizer. Aponta Bostrom: “Em oposição a essa visão transumanista, tem-se o
De acordo com Silva e Moreno: “O número de novas técnicas e campo bioconservador, que argumenta contra o uso da tecnologia para
novas possibilidades científicas de intervenção no corpo nos revela modificar a natureza humana. Autores bioconservadores proeminentes
um dogmatismo quanto a seus funda­mentos. Tais técnicas revelam incluem Leon Kass, Francis Fukuyuama, George Annas, Wesley Smith,
um desejo de normalizar, suprimir aquilo que o homem desconhece Jeremy Rifkin e Bill McKibben. Uma das preocupações centrais dos bio-
e foge a seu controle. Revelam o desejo de remodelamento pelo arti- conservadores é a de que tecnologias de melhoramento humano pode-
fício, substituição do orgânico imperfeito pela réplica melhorada. Re- riam ser “desumanizantes”. A preocupação, que já foi expressa de várias
velam uma vontade que se impregna no homem a partir do momento maneiras, é a de que essas tecnologias possam minar a nossa dignidade
de reconhecimento do corpo como matéria e enquanto matéria, tudo humana ou inadvertidamente erodir algo que é profundamente valioso
que existe. O rompimento com a transcendência o faz crer apenas a respeito de ser humano, mas que é difícil de ser colocado em palavras
no material, sendo assim em seu corpo de carne e osso, tornando-o ou de se levar em conta em uma análise de custo e benefício. Em al-
dependente para sua realização e felicidade”18. guns casos (e.g. Leon Kass), esse desconforto parece derivar de senti-
Neste sentido, surgiram dois movimentos, os transumanistas e os mentos religiosos ou cripto-religiosos, enquanto em outros (e.g.Francis
bioconservadores. Fukuyama), parece estar assentado em bases seculares. A melhor forma
Acerca dos transumanistas, noticia Pessini que: “O movimento tran- de tratar a questão, argumentam esses bioconservadores, é implemen-
sumanista teve início nos anos 1980 com os escritos de um futurista tarem-se proibições globais de categorias inteiras dessas promissoras
conhecido como FM-2030. Foi definido como um movimento cultural e tecnologias de melhoramento humano para prevenir um escorregão la-
intelectual que afirma a possibilidade e o desejo de fundamentalmente deira abaixo nesse “declive escorregadio”que cai em direção a um estado
aprimorar a condição humana através da razão aplicada, especialmente “pós-humano” que é, em última análise, rebaixado”21.
usando tecnologia para eliminar o envelhecimento e aprimorar as capa- Seja transumanista ou bioconservador, o que se verifica é a coisifica-
cidades intelectuais, físicas e psicológicas”19. ção da pessoa no sentido último de podermos perder a nossa própria
Assim entendem que a natureza humana não é estática, e que os identidade, a ponto de não sabermos quem somos. Em que medida exis-
avanços tecnológicos devem ser usados a favor do homem e, mesmo tirá vontade livre e consciente em um mundo onde crianças podem ser
em si, o que não acarretaria a extinção da espécie, mas sim a sua evo- projetadas com o uso da engenharia genética, o uso de medicamentos,
lução no pós-humano. São adeptos da clonagem, da robótica com a sobretudo os antidepressivos, prozac, rivotril, que apagam as nossas
implantação de chips para se conectar a computadores, do melhora- dores, mas retiram a nossa autonomia22. O recurso à nanotecnologia e
mento genético e mesmo na fusão homem e máquina. “Os pós-huma-
nistas não acreditam que a biologia seja um destino, mas antes algo 20 .  PESSINI, Leocir. ob. cit, p.133-134.
que deve ser superado, porque, segundo eles, não existe ‘lei natural’, 21 .  BOSTROM, Nick. Em defesa da dignidade pós-humana. Revista Bioethics, v. 19, n. 3.
Tradução: Brunello Stancioli , Daniel Mendes Ribeiro, Anna Rettore e Nara Pereira Car-
valho. Disponível em: http://www.nickbostrom.com/translations/Dignidade.pdf. Acesso
em: 03 Abr. 2013. p.03.
nas Gerais, Faculdade de Direito. Disponível em : < http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/
dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-8XTP7G/disserta__o_mariana_alves_lara.pdf?se- 22 .  Avanços médico-farmacêuticos foram realizados em proveito de nosso conforto psi-
quence=1 >. Acesso em : 03 abr. 2013.p.17. cofísico, mas não sem perigos. A ritalina, uma anfetamina fornecida a crianças sofrendo
perturbações da atenção, está sendo usada também para melhorar funções cognitivas
18 .  SILVA, André Luiz; MORENO, Andréa. ob. cit, p.135-136. de jovens sadios; esse e outros produtos servem, por vezes, além de suas especificações
19 .  PESSINI, Leocir. ob. cit, p.133. normais, ou abusadas, como o prozac, o viagra, o DHEA. Como resistir ao uso off label de

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à robótica, áreas promissoras na conjugação corpo e máquina, pode seara esportiva, área propícia ao melhoramento humano, visualiza-se
trazer uma nova pessoalidade ou instrumentalidade do antes humano de forma clara este processo de coisificação da pessoa na busca dos
para o futuro “cyborg”. melhores resultados. O corpo revela-se um objeto de experiências, em
Relata Drumond: “No limite das alterações produzidas pelas novas razão de interesses econômicos. São roupas especiais, próteses, e mes-
tec­nologias há que se considerar a questão da cibernética, a ciência do mo a possibilidade do doping genético são os meios a que os atletas
controle e da comunicação entre o animal e a máquina. A cibernética visam melhorar seus desempenhos.
consegue adicionar próteses a cor­pos humanos ou de animais, substi- Silva e Goelner apontam que: “Essa melhor equipagem da perfor-
tuir funções perdidas ou aumentar atividades específicas. [...] A última mance esportiva atesta a inutilidade do corpo humano “natural” e, ain-
centúria foi pródiga no desenvolvimento de conhecimentos sobre a da, o quanto podem ser ultrapassadas as suas limitadas performances.
interrelação entre a neurociência e a computação eletrônica, o que de- Reafirma-se, assim, a imagem do cibercorpo e do ciberatleta como pro-
terminou a sua aplicação em experimentos de interface direta entre o dutos de minuciosas e constantes intervenções tecnológicas que, mais
sistema nervo­so de mamíferos e equipamentos eletromecânicos”. do que adaptá-los ao universo esportivo, buscam eugenizá-los – termo
“São exemplos a criação de junções “neurosiliconiais” envolvendo tomado por nós como a elevação, cada vez maior, de sua perfectibili-
transistores e neurônios para a preparação de circuitos neuronais, a dade. Coloca-se, aqui, o extermínio do caráter supostamente natural do
recriação de imagens visuais de si­nais transmitidos por condutos óti- corpo e do humano, pois, como afirma Virilio (1996), o natural hoje é ser
cos de gatos, o controle remoto de manipulador mecânico de braços por artificial. E, para o novo eugenismo, intervenções como o doping gené-
implan­tes inseridos no córtex motor cerebral de macacos-coruja e o tico, a ciborguização do treino esportivo e a recorrência à biotecnologia
controle remoto que pode fazer ratos caminharem por meio do implan- não passam de rotinas cotidianas de um campo em plena expansão”25.
te de placa de eletrodos”. Diante deste panorama, não se pode entender que haverá um futuro
“Equipamentos são fabricados para, via miniaturização, serem aco- para a dignidade humana, pois que autonomia existirá num futuro ‘pré-
plados ao corpo ou às vestes, ou como acessórios de aparelhos ópticos moldado’? “A dignidade humana marca, antes, aquela “intangibilidade” que
auditivos propiciando, por exemplo, visão retrógrada, visão noturna, só pode ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento
audição amplificada, aces­so independente à Internet (“wireless”) e a recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas26”. Rodotà aler-
outras bases de dados”23. ta que: “Muito diferentes desde o ponto de vista qualitativo são as novas
Acrescenta-se ainda a cultura do ‘corpo sarado’, do homem a serviço possibilidades de programação integral dos seres humanos que oferece a
da estética e da beleza, no recurso às cirurgias plásticas, botox, anaboli- genética. Aqui a ruptura com o passado adquire um caráter radical e a ma-
zantes e esteróides, tornando-se objetos de si próprios. nutenção do acaso se converte na via forçada para no sucumbir a um cien-
Neste entendimento, a utilização do ser humano como objeto des- tificismo que acabará caindo por terra a dignidade humana e oferecendo
sas con­quistas, transgredindo os conceitos de normalidade anatô­mica uma visão inteiramente instrumental da pessoa”27.(tradução nossa).
e fisiológica, também suscita discussão sobre a manipulação delibera- Deixa-se o psicocorpo, falível, sujeito às doenças, às emoções, para a
da do atleta, que se submete a práticas extenuantes ou pré-molda- criação do cibercorpo perfeito, indestrutível e inanimado. Isto porque
das, no intuito de obter novas realidades so­ciais e econômicas24. Na
25 .  SILVA, André Luiz; GOELLNER, Silvana Vilodre. Universo biotecnológico e fronteiras
estimulantes antes de exames? O provigil trata normalmente a narcolepsia, mas permite partidas: Esporte, gênero e novo eugenismo. Revista Gênero, Niterói, v. 7, n. 2, 1. sem. 2007.
a qualquer um prolongar seu tempo de vigília, não sem inconveniente. LEPARGNEUR, Disponível em: http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/08112009-024307silva-
Hubert. Promoção da humanidade futura: Enhancement.  Revista Bioethikos - Centro goellner.pdf. Acesso em: 03 Abr. 2013.p.85.
Universitário São Camilo - 2010; v,4, n.3. p.311. 26 .  HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia libe-
23 .  DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Tecnologia e esporte: perspectivas bioéticas. Re- ral? São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.47.
vista Bioethikos - Centro Universitário São Camilo - 2011; v,5, n.4. p.413. 27 .  RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas: entre el derecho y el no derecho. Trad. Andrea
24 .  DRUMOND, José Geraldo de Freitas. ob. cit, p.416. Greppi. Madrid: Trotta, 2010.p.174.

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o psicocorpo não tem resistência nem é confiável. Seu código genéti-
4  CONSTRUÇÃO OU DESCONSTRUÇÃO
co produz um corpo que muitas vezes funciona mal e se cansa rapi-
damente, possibilitando apenas parâmetros tênues de sobrevivência DA PERSONALIDADE? O BIODIREITO
e limitando sua longevidade. A sua química carbônica gera emoções
E A CLÁUSULA GERAL DE TUTELA
superadas. O psicocorpo é esquizofrênico. Já o cibercorpo não é um
sujeito, mas um objeto, não um objeto de cobiça, mas um objeto para DA PESSOA HUMANA
a engenharia. O cibercorpo é ligado a eletrodos e antenas, ampliando
suas capacidades e projetando sua presença para locais remotos e para
dentro de espaços virtuais. Torna-se um sistema estendido, não para
meramente sustentar um eu, mas para intensificar operações e iniciar
O s direitos de personalidade, conforme vistos, são intransmissíveis
por possuírem um único titular, não permitindo que haja qualquer
mudança de sujeito. São oponíveis erga omnes que fazem com que haja
sistemas inteligentes alternados28. “um dever de tolerar e respeitar as decisões alheias acerca da própria
Sobretudo, pode-se entender que o melhoramento humano, diante do personalidade e de contribuir para realização dos aspectos existenciais
exposto, instrumentaliza a pessoa ao ponto de perder a sua personalida- do seu projeto de vida”.30
de, já que seus elementos constitutivos, estados e capacidade de discer- Outra característica é a de serem imprescritíveis, ou seja, não há ex-
nimento deixarão de existir, o que implica também em perda da autono- tinção pelo não exercício da pretensão, além de extrapatrimoniais por
mia, pois conforme define Francisco Amaral: “A personalidade humana é não possuírem avaliação econômica, além de serem essenciais para a
um todo complexo, unitário, integrado e dinâmico, constituído de bens e efetivação da dignidade humana.
elementos constitutivos (a vida, o corpo e o espírito), de funções (função Motivo de várias críticas pelos doutrinadores modernos é o artigo 11
circulatória, inteligência), de estados (saúde, prazer, tranquilidade) e por do Código Civil que prevê a irrenunciabilidade desses direitos de perso-
força, potencialidade e capacidade (instintos, sentimentos, vontade, ca- nalidade. Segundo Cupis, esses direitos são essenciais e “não podem ser
pacidade criadora e de trabalho, poder de iniciativa etc.)”29. eliminados por vontade de seu titular”31. Nesse sentido, os direitos de
De outro modo, perquire-se que mesmo diante das exponenciais personalidade são irrenunciáveis por serem garantidos como o mínimo
possibilidades advindas com o melhoramento humano, a personalidade necessário para efetivação da personalidade.
humana poderia subsistir a partir da sua própria (des)construção pelo Todavia, por sermos pessoas livres, é necessário que cada um escolha
indivíduo, no tornar-se o que quiser pelo exercício de sua liberdade, pro- exercer ou não os direitos de personalidade garantidos pelo Código Ci-
posta de discussão do capítulo seguinte. vil e pela Constituição da República. Tais direitos podem ser renunciá-
veis por serem atos de autonomia e não de imposição, por serem formas
de construção de projetos de vida e não de restrição da liberdade.
A Constituição Federal garante a todos, como direito fundamental,
a liberdade, bem como a autonomia privada que podem ser interpre-
tadas como livre exercício de escolhas, de formas de se viver, inclusive
para determinar o não exercício dos seus direitos de personalidade para
assim efetivar o artigo 1º, inciso III, da Constituição da República que
dispõe sobre a dignidade da pessoa humana. Tal fato é questionado por
Teixeira ao considerar os direitos de personalidade como irrenunciáveis

28 .  SILVA, André Luiz; GOELLNER, Silvana Vilodre. ob. cit, p.84. 30 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janei-
29 .  AMARAL, Francisco.  Direito civil:  introdução.  7. ed., rev., modificada e aum. Rio de Janeiro: ro: Renovar, 2010, p.209.
Renovar, 2008. p.300. 31 .  CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. São Paulo: Quorum, 2008, p.58.

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quando pontua que: “a priori, que o titular dos direitos de personalidade que a pessoa possa fazer suas próprias escolhas, construir seu plano de
tem o dever de exercê-los, mesmo que isso contrarie o seu projeto de vida e sua personalidade, mas desde com responsabilidade.
vida individual, a ser exercido num estado plural; estabelecer que tais É importante observar, contudo, que o direito de liberdade ao pró-
direitos são indisponíveis, significa que sua essência transmuda-se de prio corpo para o seu uso e manipulação, sobretudo na genética, deve
direito para a de dever. Será que é este o tipo de tutela que a Constitui- ser limitado a casos excepcionais e pontuais, de forma que não interfira
ção pretende dar aos direitos de personalidade?”32 nem prejudique os direitos alheios e coletivos. Isto porque com o desen-
Dessa forma, questiona-se que o artigo 11 e o 13 do Código Civil de volvimento da biotecnologia, em especial na área de engenharia gené-
2002 vedam o exercício da autonomia privada contrariando os princí- tica, com o intuito de projetar pessoas, de definir nascimentos e mortes,
pios constitucionais e direitos fundamentais, até mesmo porque hoje bem como na construção do corpo, coloca-se à tona a polêmica de estar-
o ser humano deve ser livre para buscar sua felicidade, exercendo di- mos tratando de uma construção ou desconstrução da personalidade.
reitos sobre si mesmo com atos de disposição do próprio corpo. To- O corpo necessariamente não precisa ser mais o natural e nem in-
mam-se como exemplos, fatos ocorridos na contemporaneidade como tangível. Ele tem que ser construído de acordo com os desejos pessoais,
a possibilidade de mudança de sexo, com as cirurgias de transgenita- com o consentimento livre e esclarecido e com o exercício da autonomia
lização, a prática da eutanásia e do suicídio assistido, tatuagens, uso para a busca da felicidade.
de piercings e alargadores, cirurgias estéticas, amputação de mem- Assim coaduna-se ao posicionamento de Teixeira: “cada pessoa, den-
bros (wannabes), os úteros de substituição e a participação em reality tro do seu projeto de vida, constrói-se de formas diversas, priorizando
shows com a exibição irrestrita da intimidade da pessoa, caracterizan- alguns valores e dispensando outros, o que pode implicar em renúncia
do-se não como renúncia aos direitos de personalidade, mas na cons- de bens tidos como essenciais por alguns, mas dispensáveis por outros.
trução da pessoalidade e da identidade. Consequentemente, a essencialidade universal de direitos de persona-
O biodireito seja como um subsistema ou como microssistema jurí- lidade, como imposição às pessoas, é imprópria no âmbito do Estado
dico vem para regular essas novas tecnologias dentro da medicina, da Democrático de Direito, construído sobre os pilares do pluralismo, da
biotecnologia, da biologia que trata sobre aspectos da pessoa humana, dignidade e de iguais liberdades para todos. Afirmar a possibilidade de
buscando doutrinas, legislações e jurisprudências. Segundo os ensina- a pessoa escolher o destino a ser dado aos seus direitos personalíssimos
mentos de Bruno Torquato de Oliveira Naves e Maria de Fátima Freire é confirmar a tutela positiva dos direitos de personalidade que, para o
de Sá33 verificamos alguns princípios relacionados ao biodireito como o presente estudo, ultrapassa a relevância da tutela negativa, de mera abs-
da precaução, responsabilidade, autonomia privada e da dignidade da tenção. A tutela positiva, aqui, assume duas feições: de o ordenamento
pessoa humana que é o fundamento de todo o ordenamento jurídico. jurídico proteger a autonomia privada, mesmo que seja no sentido da
Tais princípios vêm para proteger e evitar danos, além de fazer com que disposição em situações jurídicas existenciais; e de terceiros e o Estado
os pesquisadores, manipuladores, geneticistas, hajam com ética e cons- conviverem e tolerarem as escolhas feitas por uma pessoa, mesmo que
ciência, não extrapolando limites e descumprindo normas, sob pena de sejam incomuns, irreverentes, diferenciadas, pois elas acabam por satis-
responderem penalmente. fazerem os valores pessoais”.34
A noção do princípio da dignidade da pessoa humana é que o mesmo Com as constantes transformações da sociedade, a bioética e o bio-
deve garantir iguais liberdades fundamentais para todos os indivíduos. direito, através da ética e de normas jurídicas, surgem para proteger e
Contudo, a dignidade deve, e só é construída, através da autonomia para garantir o respeito a direitos fundamentais às diversas situações que
são criadas diariamente sobre a vida humana.
É possível a construção da pessoalidade e da personalidade através
32 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janei-
ro: Renovar, 2010, p.221.
33 .  SÁ, Maria de Fatima Freire de.; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodi- 34 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Reno-
reito. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. var, 2010, p.226-227.

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das técnicas de melhoramento humano desde que haja autonomia e para discussão dos caminhos que devem ser seguidos na construção da
não viole a liberdade de outrem. A cláusula geral de tutela dos direitos personalidade diante dos avanços biotecnológicos a partir de um debate
da pessoa se dá através de legítimas decisões autônomas individuais dialógico dos limites que devem ser impostos ao melhoramento humano
como forma de construção da dignidade da pessoa humana. para o exercício de iguais liberdades fundamentais e a coexistência de
Para que se tenha uma construção própria de vida boa, todas as individuais projetos de vida inseridos no Estado Democrático de Direito.
decisões no âmbito do biodireito devem ser livres, desde que com res-
ponsabilidade e discernimento. Por vivermos numa sociedade comple-
xa e plural, o direito é e deve ser dinâmico, sendo construído a partir
do exercício de iguais liberdades fundamentais, de formas de se viver
como meio de autorrealização e pelo exercício da autonomia.
Na contemporaneidade, se fala de um novo conceito de personalida-
de, ou seja, aquela que é construída por cada um de acordo com o seu
projeto de vida e com as situações jurídicas existenciais vividas, pois não
se trata de um rol taxativo e sim de um ato de escolha para viver melhor.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução dos direitos de personalidade e sua tendência não são


meros direitos taxativos, mas exemplificativos na medida em que o
homem se relaciona consigo e com o mundo diante dos desdobramen-
tos jurídicos advindos das novas tecnologias como direitos reproduti-
vos, dados genéticos, mudança de sexo, entre outros. Porém esses avan-
ços podem degradar a personalidade humana e, sobretudo, a dignidade
em um processo de coisificação da pessoa a partir da instrumentaliza-
ção do corpo. O melhoramento humano traz promessas da proximida-
de da tão desejada perfeição, ao preço de tornarmos pós-humanos ou
‘cyborgs’, o homem máquina, desvinculados de emoções e consciência.
Ainda assim, cabe a cada indivíduo escolher o que lhe convém como
projeto de vida e ao Estado, promover o exercício de sua autonomia.
Todavia, esta liberdade encontrará restrição se tolher a liberdade de
outrem, ou seja, somente será legítima a partir do exercício de iguais
liberdades fundamentais.
Desta forma, o melhoramento humano, pode (re)construir a pessoali-
dade humana, desde que seja possível o exercício de autonomia, expresso
na cláusula geral de tutela da pessoa humana, calcada na dignidade.
Portanto entende-se que o Biodireito, fulcrado nos princípios da au-
tonomia privada, da precaução e da responsabilidade, abre-nos a porta

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EUTANÁSIA NO
SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO:
A URGÊNCIA DE UMA NOVA ANÁLISE SOB O
PRISMA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E DA AUTONOMIA PRIVADA

César Fiuza
Júlia Cristina Faleiro Urbano

1  INTRODUÇÃO

N as últimas décadas, a medicina evoluiu de forma extraordinária,


proporcionando tratamentos cada vez mais eficazes contra diver-
sas enfermidades e, consequentemente, propiciando o prolongamento
da vida de inúmeros doentes. Entretanto, tais tratamentos podem ser
considerados humilhantes pelo paciente a eles submetidos, ferindo o
seu ser no que há de mais profundo – sua dignidade. Por esse motivo,
existem inúmeros casos em que o enfermo julga ser a morte a melhor
saída, em vez da vida martirizada pela doença.
Diante desse contexto, a eutanásia é tema que se impõe ao debate.
Alguns países já autorizam a prática, com o intuito de aliviar a agonia
daqueles que se encontrem doentes, sem chances de cura. Tal ainda não
ocorreu no Brasil.
Temos, assim, que compreender a eutanásia, face ao direito à vida,
constitucionalmente garantido, contrapondo a este os princípios da
dignidade da pessoa humana e da autonomia privada. Esta implica o
direito de o individuo tomar as rédeas de sua vida como melhor lhe
convier, podendo, pois, optar pela eutanásia, quando esta lhe pare-
cer a alternativa mais digna.
Para tanto, preliminarmente, é fundamental entendermos o que seja
eutanásia, bem como os demais termos necessários ao seu estudo.
Em seguida, procederemos a uma análise das influências sociológi-

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cas, culturais, e, principalmente, religiosas, que corroboram com a proi- patível com a sua concepção de dignidade humana. Segundo esse autor,
bição da aludida prática no Brasil. Seria legítima esta influência num pode-se distinguir eutanásia em sentido estrito daquela em sentido am-
país, cujo Estado se declara laico? plo. Tem-se eutanásia em sentido estrito, quando o auxílio é prestado
Posteriormente, devemos examinar o tratamento que já é dispensa- após iniciado o processo de morte, isto é, nos casos, em que o encerra-
do ao tema pela legislação pátria. mento da vida, com ou sem ajuda, é iminente. Em sentido amplo, pode-
Por fim, faremos um estudo de da eutanásia no Direito comparado. se falar em eutanásia, quando se contribui para a morte de outra pessoa
Como o assunto é tratado em outros países? que, apesar de dispor de mecanismos para viver mais tempo, pretenda,
real ou presumidamente, pôr fim a sua vida, já tida como insuportável,
devido ao sofrimento causado pela doença.
A eutanásia pode-se classificar em duas categorias, que dizem res-
2  EUTANÁSIA peito ao tipo de ação utilizada para sua prática e à vontade do paciente.
Considerando-se a forma utilizada para sua prática, a eutanásia po-

E timologicamente analisada, a palavra “eutanásia” deriva da ex-


pressão grega euthanos, na qual “eu” pode significar bem ou bom,
e thanos, morte. Assim, em sua origem, eutanásia traduz-se por “boa
derá ser ativa, quando a morte seja provocada, deliberadamente e com
desígnios misericordiosos, por meio de ações; passiva ou por omissão,
quando a morte do paciente ocorra dentro de um quadro terminal, seja
morte”, ou seja, uma morte tranquila e suave, sem dor. Essa definição
pela inação médica, seja pela interrupção de algum tratamento para
do termo, contudo, não é suficiente para sua exata compreensão; é
prolongar a vida. Será ainda por duplo efeito, quando a morte antecipa-
necessário estudar a concepção atual e sua evolução histórica.
da seja consequência indireta de ações médicas executadas, visando ao
Conforme se pode deduzir da origem etimológica, a eutanásia con-
alívio do sofrimento de um paciente terminal.
sistiria em facilitar o processo de morte do indivíduo, sem, contudo, nele
Quanto à vontade do doente, a eutanásia poderá ser voluntária,
interferir. No entanto, o sentido do termo foi-se modificando ao longo
quando solicitada pelo próprio paciente; ou involuntária, quando pre-
dos anos, sendo, atualmente, empregado para definir a prática, motiva-
sumível, nos casos em que o enfermo se encontre inconsciente. A euta-
da por compaixão, pela qual se abrevia a vida de um paciente incurável,
násia praticada contra a vontade do paciente é homicídio.
de maneira controlada e assistida.
De acordo com José Roque Junges (2006, p. 302),2 o termo eutanásia
Para se configurar a eutanásia, é necessário que a intenção do sujeito
teria sido utilizado pela primeira vez por Suetônio, no século II d.C., em
ativo, isto é, daquele que finda a vida do doente, seja, exclusivamente,
A vida dos doze Césares, obra em que é narrada a morte tenra do Im-
acabar com a aflição e o sofrimento do enfermo, ministrando-lhe a “boa
perador Augusto, propagando-se a ideia de que se possa ser autor da
morte”. Desse modo, presume-se que a morte seja de fato boa, ou seja,
própria morte, do mesmo modo que se é autor da própria vida.
quando nada rápida e, se possível, sem sofrimento. Não há que ser ne-
Embora o registro mais antigo da nomenclatura seja datado do sécu-
cessariamente suave ou doce, como querem alguns. Muitas vezes, isso
lo II d.C., a prática da eutanásia em si é tão antiga quanto a civilização,
é impossível. De todo modo, o objetivo da eutanásia será sempre o de
havendo, inclusive, indícios na Antiguidade de procedimentos simila-
abreviar sofrimento. Além disso, o procedimento deverá ter sido solici-
res. Em determinadas tribos primitivas e grupos selvagens, por exem-
tado pelo próprio paciente ou por familiares que demonstrem que esta
plo, era comum a prática que impunha ao filho a obrigação sagrada de
teria sido a vontade dele, caso estivesse consciente.
ministrar a boa morte ao pai velho e enfermo.
Nesse sentido, Claus Roxin1 define eutanásia como a ajuda prestada
Na República, Platão posiciona-se contrariamente à criação de crian-
a uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou em consideração a
ças que não fossem biologicamente perfeitas, bem como ao tratamento
sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte com-
de enfermos graves, haja vista que tal prolongamento tornaria a vida

1 .  ROXIN. A apreciação jurídico-penal da eutanásia, p. 18. 2 .  JUNGES. Metodologia da análise ética de casos clínicos, p. 38.

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mais penosa para o sujeito. Para ele, “quem não é capaz de viver desem- eutanásia, quando, em sua mais célebre obra, A Utopia, defendeu que,
penhando as funções que lhe são próprias não deve receber cuidados, em uma comunidade ideal, seus membros, no final da vida, deveriam
por ser uma pessoa inútil tanto para si mesma como para a sociedade”.3 receber o auxílio adequado, mesmo que em casos extremos fosse reco-
Nesse mesmo sentido, na obra Peri Technés, que compõe a compila- mendável pôr fim a sua existência.
ção de escritos hipocráticos, em relação à prática médica, diz-se que “a Com o advento da Renascença, a questão da eutanásia ganhou des-
medicina consiste em afastar por completo os padecimentos dos que taque na obra de Francis Bacon, o qual traçou os contornos do sentido
estão enfermos e mitigar as dores de sua enfermidade, e não tratar os já atualmente dado à prática. Em Novum organum, escrito originalmente
dominados por enfermidades, conscientes de que em tais casos a medi- em 1620, o filósofo inglês defende que o compromisso do médico não
cina não tem poder”.4 se restringe ao restabelecimento da saúde do paciente, mas abrange,
Essa compreensão da medicina é característica da cultura grega, cen- também, a mitigação do sofrimento proveniente da enfermidade que
trada no belo e no são. o acomete. E isso deve ser feito não somente quando tal mitigação da
O método da eutanásia também não era estranho à Roma antiga, agonia auxilie e conduza à recuperação, mas também quando, dissipan-
pois nela se permitia que um homem desse a morte a outro volunta- do-se toda a perspectiva de recuperação, sirva apenas para obter uma
riamente, como ocorria no caso do direito de vida e de morte exercido morte tranquila e fácil.
pelos ascendentes sobre os descendentes submetidos ao pátrio poder. “Além disso, julgo ser manifestamente do ofício de um médico,
Sobre essa hipótese, Gisele Mendes de Carvalho assevera que: “[...] não não apenas restaurar a saúde, mas mitigar as dores e o sofrimento
mais do que uma aplicação desse direito de vida e morte era o que das doenças, e não somente quando essa mitigação das dores, ou
correspondia ao pai – junto ao de dar a morte ao nascido disforme, dos sintomas perigosos, possa levar, conduzir à convalescência, mas
o qual era obrigatório de acordo com os antigos costumes – de não também, quando totalmente ausente toda esperança de saúde, sirva
conservar e nem alimentar os filhos que lhe nascessem, podendo lhes para conduzir a uma saída justa e fácil da vida. Pois não é pequena a
dar a morte ou expô-los a ela”.5
O referido direito encontrava-se, segundo Cícero, expressamente
haec quibus persuaserint; aut inedia sponte vitam finiunt, aut sopiti sine mortis sensu
instituído na Lei das XII Tábuas.6 solvuntur. invitum vero neminem tollunt nec officii erga eum quicquam imminuunt per-
Já na Idade Média, Thomas More7 também se mostrou favorável à suasos hoc pacto defungi honorificum. alioqui qui mortem sibi consciverit causa non
probata sacerdotibus et senatui; hunc neque terra neque igne dignantur; sed in paludem
aliquam turpiter insepultus abiicitur – Em tradução livre: Os doentes, como disse, rece-
3 .  PLATÃO. A república, p. 374. bem cuidados afetuosos; nada é poupado que possa contribuir para sua cura, quer em re-
4 .  PESSINI; BARCHIFONTAINE. Problemas atuais de bioética, p. 374. médios, quer em alimentos. Os afetados de um mal incurável recebem todos os consolos,
5 .  CARVALHO. Alguns aspectos da disciplina jurídica da eutanásia no direito brasileiro, p. 484. todas as atenções, todos os alívios morais e físicos, capazes de lhes tornar a vida mais su-
portável. Mas quando a esse mal incurável se juntam sofrimentos atrozes, os sacerdotes
6 .  De acordo com Cícero (De legibus, 3, 8, 19), na Tábua IV instituía que seria permitido e magistrados se apresentam ao paciente e o exortam a morrer, mostrando-lhe que está
ao pai matar imediatamente o filho notoriamente disforme (cito necatus tamquam ex XII despojado dos bens e das funções da vida; que não faz senão sobreviver à própria morte.
Tabulis insignis ad deformitatem puer). Persuadem-no, então, a não alimentar mais o mal que o devora, e a morrer com resolução,
7 .  MORUS. Utopia: de legibus utopiensium. (Aegrotantes, ut dixi, magno cum adfectu uma vez que a existência não é para ele senão uma horrenda tortura. Deve quebrar as
curant, nihilque prorsus omittunt quo sanitati eos, vel medicinae vel victus observatione, cadeias que o amarram, e desprender-se, por suas próprias mãos, da masmorra da vida; ou
restituant. quin insanabili morbo laborantes assidendo, colloquendo, adhibendo demum pelo menos consentir que outros dela o libertem. A morte não é uma repulsa aos benesses
quae possunt levamenta solantur. ceterum si non immedicabilis modo morbus sit verum da vida, mas o termo de um suplício. Nestes assuntos, obedecer os conselhos dos sacer-
etiam perpetuo vexet atque discrutiet; tum sacerdotes ac migistratus hortantur homi- dotes, intérpretes da vontade de deus, é agir de forma religiosa e santa. Os que se deixam
nem, quandoquidem omnibus vitae muniis impar aliis molestus ac sibi gravis morti iam persuadir põem fim a seus dias pela abstinência voluntária ou são adormecidos por meio
suae supervivat, ne secum statuat pestem diutius ac luem alere, neve cum tormentum ei de um narcótico mortal, e morrem sem se aperceber. Os que não querem a morte, nem
vita sit mori dubitet, quin bona spe fretus acerba illa vita velut carcere atque aculeo vel por isso passam a receber menos atenções e cuidados; quando cessam de viver a opinião
ipse semet eximat; vel ab aliis eripi se sua voluntate patiatur; hoc illum cum non commo- pública honra sua memória. Quem se matar sem motivo reconhecido pelos sacerdotes ou
da, sed supplicium abrupturus morte sit prudenter facturum, quoniam vero sacerdotum pelo senado, será indigno da terra e do fogo; será privado de sepultura e atirado torpemen-
in ea re consiliis, id est interpretum dei sit obsecuturus, etiam pie sancteque facturum. te nos pântanos).

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porção de felicidade, a eutanásia, que César Augusto desejou para si”.8 O primeiro deles é o suicídio assistido. O suicídio assistido em muito
No século XIX, por fim, a expressão “eutanásia” passou a significar se assemelha à eutanásia, sendo considerado por alguns como um tipo
a procura da doce morte, acepção usada hodiernamente. Um dos pri- de eutanásia voluntária. Contudo, para a maioria dos autores, tais prá-
meiros casos documentados de consumação da eutanásia, no século ticas não se confundem.
XX, no Ocidente, é relatado em Luis Jiménez de Asúa.9 Juan Zinowsky, Maria de Fátima Freire de Sá leciona, em Direito de morrer - eutaná-
escritor polonês residente em Paris, padecia de câncer e tuberculose e, sia, suicídio assistido, que: “[...] embora o suicídio assistido encontre-se,
sofrendo dores e aflições as mais desumanas, rogou a sua namorada, conceitualmente, muito próximo à eutanásia, os respectivos institutos
Stanislawa Uminska, que colocasse fim a sua agonia. Em 15 de junho não se equivaleriam, haja vista que enquanto na eutanásia o sujeito é
de 1924, diante dos insistentes pedidos de Juan, Stanislawa atirou no submetido ao procedimento, no suicídio assistido ele é apenas auxilia-
escritor com a arma que ele próprio não tivera coragem de usar para do. A função do auxiliador se restringe ao fornecimento de meios para
abreviar seu sofrimento. O Tribunal Francês, considerou caridosa a que o paciente alcance seu intento de por fim a própria vida”.10
conduta da jovem, absolvendo-a. Assim, pode-se concluir que o suicídio assistido ocorre quando uma
A partir da última metade do século XX, o desenvolvimento cada vez pessoa, que não consiga concretizar, por si só, sua intenção de morrer,
mais acelerado de inovações tecnológicas que propiciam a cura de do- seja ajudada por outro indivíduo, por meio de ações, como prescrição
entes graves e o prolongamento da vida daqueles que já se encontram de doses altas de medicamentos e indicação de uso, ou até mesmo por
à beira da morte; o paternalismo médico extremado, frente ao qual as atitudes mais passivas, como a persuasão e o encorajamento. Segura-
decisões do paciente são irrelevantes para a condução do tratamento; e mente, essa era uma das opções em Utopia.
a negação exacerbada da finitude da vida resultam no crescimento do Outro conceito importante é o de distanásia. A distanásia represen-
clamor pelo método eutanásico. O país precursor dessa discussão foi a ta o oposto da eutanásia, uma vez que consiste no prolongamento da
Holanda, na década de 1970, seguido por considerável parte do conti- vida do enfermo, por meio das mais variadas práticas médicas, ainda
nente europeu e, ulteriormente, pela América do Norte, o que acarretou que em condições tidas como deploráveis. Na distanásia, a morte é imi-
a despenalização da prática em certos locais. nente, mas a vida é prolongada por meio de aparelhagem.
A atitude humanizada perante a morte acompanha as mudanças Por fim, a ortotanásia, que também é palavra oriunda do grego, e sig-
culturais, ideológicas e institucionais no que tange ao início e ao fim da nifica morte certa, no tempo certo, isto é, aquela que ocorre naturalmen-
vida. Além disso, há uma vertente histórica partidária do emprego da te. Logo, não é uma questão de antecipar a morte, mas de esperá-la, com
eutanásia em situações cuja finalidade seja dotar de dignidade o ato de a utilização dos meios regulares para os cuidados que se façam neces-
morrer. Por outros termos, em certas circunstâncias e sob certas condi- sários. Ela seria o meio termo entre a eutanásia e a distanásia. Na orto-
ções, a morte pode ser preferível à vida. tanásia, a vida do paciente não é prolongada com a ajuda de aparelhos.
Para uma melhor abordagem do tema proposto, é necessária uma
breve apresentação de outros conceitos relacionados ao tempo certo
de uma morte digna.
3  EUTANÁSIA E RELIGIÃO

8 .  Tradução livre do seguinte trecho de Bacon: “Itam ut paulo ulterius isistam: etiam pla-
ne censeo ad officium medici pertinere, non tantum ut sanitatem restituat, verum etiam
ut dolores et cruciatus morborum mitiget: neque id ipsum solummodo, cum illa mitiga-
S egundo Ronald Dworkin, as questões referentes à vida e à morte,
atualmente enfrentadas, são essencialmente religiosas, uma vez que
“estamos nos limites de uma nova era religiosa, ainda que muito diversa
tio doloris, veluti symptomatis periculosi, ad convalescentiam faciat et conducat; immo
verum cum abiecta prorsus omni sanitatis spe, excessum tantum praebeat e vita magis
lenem et placidum. Siquidem non parva est felicitatis pars (quam sibi tantopere precari
solebat Augustus Caesar) illa euthanasia. BACON. De augmentis scientiarum, p. 222-223.
9 .  ASÚA. Liberdade de amar e direito de morrer. p. 23. 10 .  SÁ. Direito de morrer - eutanásia, suicídio assistido, p. 40.

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daquela que a história começou a deixar para trás no século XVIII”.11 A Halakah - tradição legal hebraica - é avessa à eutanásia. O médico
O posicionamento da Igreja Católica quanto ao tema em debate está é tido como um instrumento de Deus utilizado para resguardar a vida
descrito na Declaração sobre a Eutanásia, proclamada em 1980, pela humana, sendo-lhe defeso apoderar-se do direito divino de escolha en-
Congregação para a Doutrina da Fé.12 A declaração entende a eutanásia tre a vida e a morte de seus pacientes. Para os judeus, a definição de
como uma ação ou omissão que, por sua natureza ou em suas intenções, morte não deriva exclusivamente de fatos médicos e científicos, que
provoca a morte de um sujeito, com o objetivo de eliminar toda a sua apenas descrevem o aspecto fisiológico que observam, sendo, também,
dor. O documento condena veementemente a eutanásia ao considerá- uma questão ética e legal, do mesmo modo que a fixação do tempo do
-la “uma violação à Lei Divina”, “uma ofensa à dignidade humana”, “um óbito é uma questão moral e teológica.
crime contra a vida” e “um atentado contra a humanidade”. Isso porque Contudo, a cultura hebraica faz uma distinção entre o prolongamen-
a vida humana é nela considerada “o fundamento de todos os bens, a to da vida do paciente, que é obrigatório, e o prolongamento da agonia,
fonte e a condição necessária de toda a atividade humana e de toda a que não o é. Desse modo, embora o direito de morrer não seja reconhe-
convivência social” e, sobretudo, “um dom do amor de Deus, que os cren- cido, existe sensibilidade ante o sofrimento do enfermo.
tes têm a responsabilidade de conservar e fazer frutificar”. Assim, se o médico estiver convencido de que o paciente em constan-
Por outro lado, a Igreja Católica também é contrária ao prolonga- te sofrimento possa falecer em poucos dias, ficará autorizado a suspen-
mento da vida a qualquer custo, conforme se apreende da Carta Encicli- der os métodos reanimatórios e o tratamento não analgésico.
ca Evangelium Vitae,13 escrita durante o papado de João Paulo II, no ano A prática da eutanásia é unanimemente condenada pelas quatro
de 1995. Essa Encíclica rejeita expressamente a prática da distanásia, grandes escolas islâmicas, fundadas respectivamente por Abou Hassifa,
também chamada de obstinação terapêutica, ou futilidade médica, já Malek, Chaffei e Ahmed Ibn Handibal.
que sua execução significaria renunciar ao chamado do Senhor. Tal condenação é reafirmada na Declaração Islâmica de Direitos
Assim, para o Catolicismo, as pessoas devem ser capazes de aceitar Humanos, de 1981.15 Segundo o documento, a vida humana é sagrada e
o momento da morte de acordo com os desígnios divinos, não podendo inviolável, devendo ser resguardada mediante a utilização de todos os
apressá-lo ou retardá-lo a qualquer custo. recursos possíveis.
Para o Judaísmo, o homem não possui disponibilidade sobre a pró- Para o Islamismo, a sacralização da vida humana conjugada à “limita-
pria vida e o próprio corpo, visto que estes pertencem a Deus. A vida, na ção drástica da autonomia da ação humana” proíbem a eutanásia, bem
doutrina judaica, é considerada um dom de valor infinito e indivisível, como o suicídio. O médico é visto como um soldado da vida e, por isso, não
inexistindo diferença moral entre sua abreviatura em longos anos ou pode utilizar-se de medidas positivas para abreviar a vida do paciente.
em poucos minutos. Segundo Neuhaus,14 os judeus pregam a preserva- No Budismo, a personalidade deriva da interação de cinco ativida-
ção da vida ainda que a um alto custo, pois, para eles, cada instante da des: a corporal, a sensitiva, a perceptiva, a volitiva e a consciente. Entre
vida humana é intrinsecamente sagrado. Preservá-la, pois, é algo que elas, a volitiva ocupa papel preponderante, pois representa a capaci-
está muito além de levar uma vida boa. dade de escolha, de orientação da consciência. Dessa forma, a morte
de alguém se dá quando não se possa mais desempenhar uma vontade
11 .  DWORKIN. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. VIII. consciente, quando o encéfalo perca definitivamente a capacidade de
12 .  Declaração sobre a Eutanásia. Disponível em: viver. Para os budistas, a forma de morrer, o momento preciso da mor-
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/docu- te, é de fundamental importância.
ments/rc_con_cfaith_doc_19800505_euthanasia_po.html>. Acesso em: 15 Em suas meditações, Buda declarou que a variável decisiva que con-
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duz ao renascimento é a essência da consciência no instante da morte.
13 .  Carta Enciclica Evangelium Vitae. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/docu-
ments/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae_po.html>. Acesso em: 15 jan. 2013. 15 .  Disponível em <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/declaracaoislamica.html>.
14 .  NEUHAUS. Guaranteeing the good life: medicine and the return of eugenics, p. 35. Acesso em 15 de jan. de 2013.

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Por isso, os budistas conferem grande importância ao fato de se ter pen- Os princípios jurídicos referem-se a uma compilação de padrões de
samentos adequados no momento da morte. Assim, o Budismo reconhe- conduta presentes de forma explícita ou implícita no ordenamento ju-
ceu, há tempos, o direito de as pessoas decidirem quando devam passar rídico e, como as regras, possuem o status de norma. Disso, hoje, pratica-
desta existência para a próxima. O importante não é se o corpo viva ou mente ninguém discorda.
morra, mas se a mente permaneça em placidez e harmonia consigo, isto é, A dignidade da pessoa humana consiste na qualidade intrínseca ao
valoriza-se mais a paz da mente e a honra da vida do que a longevidade. indivíduo que o torna merecedor de respeito, não somente pelos ou-
Dessa forma, o Budismo não se opõe intransigentemente à eutaná- tros indivíduos, mas também pelo Estado. Dworkin define-a como o
sia em qualquer de suas formas, permitindo sua aplicação em determi- direito de viver em condições, quaisquer que sejam, nas quais o amor-
nadas situações, desde que o sujeito a ela submetido esteja em estado -próprio seja viável ou admissível.16 Para ele, as pessoas possuem o di-
de dignidade e paz. reito de não serem vítimas da indignidade, de não serem tratadas de
A proibição legal da Eutanásia no território brasileiro possui indis- um modo que, em sua cultura ou comunidade, seja entendido como
cutível influência do Cristianismo, pois as normas legislativas de qual- demonstração de desrespeito.
quer país derivam do processo cultural e histórico por ele vivido e, no O princípio da dignidade humana, consagrado no art. 1º, inciso III, da
processo brasileiro, assim como no da maioria dos Estados ocidentais, o Constituição, deve, portanto, ser encarado como pedra angular de nosso
Cristianismo ocupa papel fundamental. sistema jurídico.
Embora o Estado brasileiro se declare laico, desde a edição do De- Os estudiosos contrários à eutanásia afirmam que a disposição
creto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, o caminho para que se alcance a ou relativização do direito à vida constitui uma violação não somen-
laicização ideal, quando todos possam verdadeiramente tomar decisões te ao direito do titular, mas de todas as outras pessoas, pois todos
pessoais sem se preocupar em respeitar a moral cristã, ainda será longo. estariam sendo atingidos em sua dignidade. E esta não permite a me-
Prova disso é que a legalização da eutanásia ocorre, sobretudo, em paí- nor margem de negociação em torno dos bens e valores fundamen-
ses de sociedades há muito tempo secularizadas. tais da pessoa humana.
Ainda que os argumentos trazidos pelas religiões possuam incomen- Entretanto, esse princípio não se limita a designar o ser da pessoa,
surável relevância no debate da eutanásia, em um Estado efetivamen- mas a humanidade dela. A partir desse ponto, entende-se que é desse
te laico, a influência deles deve restringir-se aos que compartilhem de princípio que emana a qualidade de ser humano da qual decorre a sub-
seus preceitos, não podendo ser imposta pelo Estado àqueles que co- jetividade – compreendida como a racionalidade de cada um e a capa-
munguem de outras crenças ou que não possuam crença alguma, já cidade de fazer escolhas. É na dignidade que reside o valor próprio, de
que, em uma sociedade comprometida com a liberdade e com o plura- pessoa independente, dotada de capacidade para configurar sua vida
lismo, as questões de ordem espiritual devem ser deixadas a cargo da sob sua própria responsabilidade.
consciência individual. A dignidade da pessoa humana, logo, é o cerne basilar dos direitos
fundamentais, sendo, nas palavras de Jorge Miranda a “fonte jurídico-
-positiva” desses direitos e a “fonte ética que lhes confere unidade de
sentido, de valor e de concordância prática”.17
4  O
 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE A dignidade da pessoa humana é o fundamento basilar de todos os
DA PESSOA HUMANA demais valores humanos. Assim, ela assegura o direito à vida, e não o
dever de viver a qualquer preço.

P or meio de uma abordagem contemporânea do Direito, não arrai-


gada ao positivismo jurídico, é possível afirmar que o princípio da
dignidade da pessoa humana é ponto central no debate das questões
O aparente conflito entre a dignidade da pessoa humana e o direito

16 .  DWORKIN. Domínio da vida, cit., p. 58.


relativas à eutanásia. 17 .  MIRANDA. Manual de direito constitucional, p. 166.

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à vida perde o sentido quando se deixa de restringir o direito à vida ao O consentimento ocorre sob várias condições e formas. Ele pode ser
mero direito de existir e se passa a considerá-lo como o direito de se ter maquinal ou relutante e, muitas vezes, ocorrer sob intensas pres-
uma existência digna. sões que podem invalidá-lo. Quanto às formas, além do modo ex-
A indissociabilidade entre o direito à vida e a dignidade é reiterado presso, há a modalidade tácita, que se dá passivamente, por omissão.
por outros autores, como Alexandre de Moraes,18 o qual afirma que a Há, ainda, o consentimento presumido, que se assemelha muito ao
Constituição proclama o direito à vida, competindo ao Estado assegurá- consentimento subentendido, e ocorre nos casos em que a vontade
-lo em sua dupla acepção. A primeira se relaciona ao direito de continu- do paciente seja presumida com base naquilo que se sabe sobre ele.
ar vivo e, a segunda, ao de se ter uma vida digna quanto à subsistência. O consentimento deve se referir às ações e inações próprias do in-
O princípio da dignidade, portanto, permite a percepção de que a eu- divíduo. Embora muitas vezes se pressuponha legitimamente que o
tanásia não seja uma relativização do direito à vida, mas uma reafirma- silêncio de uma pessoa constitua consentimento ou que este esteja
ção da humanidade de cada um. implícito em outras declarações ou ações, tais inferências podem
Sendo assim, embora a vida seja considerada um direito inviolável, não ser suficientemente garantidas.
é preciso considerá-la em sua dupla acepção e questionar se sua manu- Igualmente, esses autores defendem que as crenças, as escolhas e
tenção encontre-se em consonância com o princípio fundamental da os consentimentos das pessoas surjam e se modifiquem com o tem-
dignidade da pessoa humana. Deve-se lembrar, também, que a descon- po. Quando as escolhas atuais de uma pessoa contradigam suas esco-
sideração das escolhas dos indivíduos fere os princípios da liberdade e lhas anteriores, que podem ter tido o propósito explícito de prevenir
da autonomia, correlatos ao princípio da dignidade. futuras mudanças de opinião, surgem problemas morais e interpre-
tativos. Como exemplo, Beauchamp e Childress citam o caso de um
homem, de 28 anos, que decidiu não se submeter mais à diálise renal,
em razão da restrição de seu estilo de vida e dos encargos para sua
5  DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO família. Ele tinha diabetes, era legalmente cego e não podia andar,
devido a uma neuropatia progressiva. Sua esposa e seu médico anu-

D efender a eutanásia não é defender a morte, mas respeitar a li-


berdade do indivíduo de realizar suas próprias escolhas. Auto-
determinação significa determinar-se por si mesmo, ou seja, é a capa-
íram em fornecer medicação para aliviar a dor e em não colocá-lo de
volta na diálise, mesmo que ele pedisse, sob a influência da dor ou
de outras mudanças corporais que ocorressem por estar morrendo.
cidade que o indivíduo tem de tomar decisões relativas a sua própria
Perto de morrer, no hospital, o paciente acordou queixando-se de dor
existência, suas relações sociais, sua integridade e outros aspectos,
e pediu que o pusessem novamente na diálise. A esposa e o médico
de acordo com valores, expectativas, necessidades, prioridades e
decidiram agir de acordo com o pedido anterior do paciente de que
crenças próprias.
não interviessem e ele morreu quatro horas depois. Na opinião de
Tom Beauchamps e James Childress aplicaram à bioética o sistema
Beauchamp e Childress, a esposa e o médico deveriam ter posto o
de princípios morais que devem ser empregados nos problemas enfren-
paciente na diálise para determinar se ele havia revogado autonoma-
tados pelos profissionais da saúde. A pesquisa desses estudiosos tem in-
mente sua escolha anterior.20
tensa utilização e aceitação na bioética, pois se afasta do velho enfoque
Beauchamp e Childress defendem, ainda, que o médico deva estar
dos códigos e juramentos.19
atento à autonomia do paciente em querer revogar decisões anteriores,
A aludida obra pondera que o paradigma básico na saúde, na polí-
principalmente quando digam respeito a sua vida. Isso porque, mui-
tica e em outros contextos é o consentimento informado e expresso.
tas vezes, o doente, além da doença que o esteja vitimando, pode estar
passando por um estágio psicológico conturbado, por uma depressão
18 .  MORAES. Direito constitucional, cit., p. 65.
19 .  BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica. 20 .  BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica, cit., p. 149.

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profunda. E é nesse momento que o médico deve ter a capacidade de acordo com Mônica Vieira,23 sua consumação configura ilícito penal, na
entender o real significado da autonomia do paciente e investigar o que forma de homicídio privilegiado – a privilegiadora é o “relevante valor
o tenha levado a mudar seu consentimento, para, assim, ter segurança moral” que move a ação. O autor ressalta a necessidade de a vítima estar
da real vontade do enfermo. sofrendo gravemente, de a doença ser incurável e de o sujeito se encon-
Respeitar a autonomia do paciente implica deixá-lo decidir qual trar em estado terminal para que haja a privilegiadora.
o melhor modo de viver sua vida, o que inclui a melhor forma e mo- Mônica Vieira admite que, simultaneamente, a eutanásia pode ser
mento para abrir mão dela, quando já não seja mais possível vivê-la considerada homicídio qualificado, quando a circunstância qualifi-
de modo digno, quando a própria existência se torne um processo cadora for objetiva – como o uso de veneno para dar fim à vida do
insuportável. Contudo, para que o indivíduo exerça a autonomia, é doente. O consentimento do ofendido não possui relevância jurídica
preciso que, no momento de escolha, a vontade seja livre, destituída na prática da eutanásia.24
de qualquer tipo de coação, pois aquele que se encontre em situa- O Anteprojeto de Reforma da Parte Especial, de 1984, estabelecia, em
ção de grave sofrimento, fato que deverá ser atestado por um médico seu art. 121, § 3º, que estaria isento de pena “o médico que, com o con-
competente, deve compreender todas as consequências da decisão sentimento da vítima, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, des-
tomada. Nos casos em que o paciente encontre-se inconsciente, a si- cendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa
tuação torna-se mais complexa, nesses episódios, Dworkin assevera morte iminente e inevitável atestada por outro médico”. Tal proposta,
que a decisão deva ficar a cargo de parentes ou pessoas próximas aos porém, não foi aprovada.
pacientes, por conhecerem seus interesses.21 Também na proposta de reforma do Código Penal Brasileiro, de 1999,
A Constituição da República, nos termos do art. 5º, garante a inviola- pretendia-se inserir dois parágrafos no art. 121, nos quais se pode notar
bilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade. Entretanto, os refe- a intenção de reduzir a pena no caso da prática de eutanásia – desde que
ridos direitos não são absolutos e, em caso de conflitos entre eles, a au- o agente a tivesse feito por autêntica compaixão (§3º) e de deixar claro
tonomia do paciente deve ser avaliada prioritariamente. Nesse sentido, que a recusa da distanásia não constituísse ato ilícito (§4º).
dispõem Batista e Schramm (2007) que em caso de conflito de interes- Sobre a recusa da prática da distanásia, Mônica Vieira sustenta que
ses e de direitos, o direito à autodeterminação possui prioridade léxica se inclui naturalmente no exercício permitido da medicina e não cons-
sobre os demais direitos, no contexto de decisões referentes à vida e à titui fato punível.25
morte de seu titular. Isso significa que a pessoa, em princípio, é mais O Código Civil Brasileiro de 2002 não dispõe específica e expressa-
qualificada para avaliar e decidir o rumo de sua vida.22 mente sobre o direito à vida, mas o consagra em dispositivos como o art.
Desse modo, o art. 5º da Constituição pode ser interpretado como 15, segundo o qual “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com
uma defesa de determinados direitos, não como uma imposição de de- risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Para Môni-
veres. O direito do paciente de não se submeter ao tratamento ou de in- ca Vieira, sem a menor dúvida, o legislador optou pela proteção incondi-
terrompê-lo seria, então, uma consequência da garantia constitucional cional da vida humana, inclusive em face das atitudes do próprio titular
de sua liberdade de consciência e de sua autonomia jurídica. Assim, o do direito. A autora reforça sua afirmação fazendo referência ao art. 11
indivíduo que goze de capacidade plena deve ter sua vontade respeita- do Código Civil, que estabelece serem irrenunciáveis os direitos da per-
da em relação à eutanásia. sonalidade, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.26
Vista a eutanásia da perspectiva constitucional, vale estudá-la da A legislação estrangeira tem-se ocupado cada vez mais do tema da
perspectiva infraconstitucional.
O Código Penal Brasileiro não tipifica a prática da eutanásia, mas, de 23 .  VIEIRA. Eutanásia – humanizando a visão jurídica, p. 231.
24 .  VIEIRA. Eutanásia, cit., p. 231.
21 .  DWORKIN. Domínio da vida, cit., p. 301. 25 .  VIEIRA. Eutanásia, cit., p. 227.
22 .  BATISTA; SCHRAMM. A eutanásia e os paradoxos da autonomia. 26 .  VIEIRA. Eutanásia, cit., p. 225.

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eutanásia, abordando-o de diversas formas. Mas na grande maioria dos pela eutanásia e a sua prática, deverá transcorrer um prazo de 30 dias,
países ocidentais, o direito de morrer ainda padece de certa irracionali- de modo a evitar decisões precipitadas. Esse período, entretanto, pode-
dade, uma vez que, enquanto os seus cidadãos podem optar por morrer rá deixar de ser cumprido nos casos em que a doença seja crônica e o
lentamente, recusando-se a comer e a receber determinado tratamento paciente tenha deixado escrito ou enviado uma declaração antecipada.
ou pedindo para serem desligados de aparelhos, é-lhes proibido optar Roxana Borges29 assevera que, na Espanha, a Lei Geral de Saúde (LGS
por uma morte rápida e indolor, que lhes poderia ser facilmente minis- – Ley General de Sanidad, de 25 de abril de 1986) estabelece, em relação
trada. Em outras palavras, morrer de fome, sob sofrimentos atrozes, ao consentimento prévio do paciente, que é direito de todos, pacientes
pode; encurtar a vida docemente, não. Talvez a questão tenha que ver, e familiares, o fornecimento de informação completa, contínua, verbal
quem sabe, com a paixão de Cristo, inculcada no inconsciente ocidental e escrita sobre seu processo, incluindo diagnóstico, prognóstico e alter-
cristão. O sofrimento dignifica a morte e a própria vida. nativas de tratamento. É direito também a livre escolha entre as opções
De todo modo, apesar disso, a Holanda tornou-se, em 10 de Abril de apresentadas pelo médico do caso, sendo preciso o prévio consentimen-
2004, o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia. Apesar dos pro- to escrito do usuário para a realização de qualquer intervenção, exceto
testos ocorridos à época, pesquisas apontam que aproximadamente quando a não intervenção suponha risco para a saúde pública; quando
90% dos holandeses são favoráveis à prática. não haja capacidade para tomar decisões, situações em que o direito
A lei holandesa tornou a morte assistida (eutanásia ou suicídio assis- será exercido pelos familiares ou representantes; e quando a urgência
tido) um procedimento permitido nos Países Baixos, alterando os arts. não permita demora diante do risco de ocorrerem lesões irreversíveis
293 e 294 da lei criminal holandesa. ou existir perigo de falecimento.
Anteriormente à legalização, a Lei Funeral (Burial Act), de 1993, in- Nos Estados Unidos, a eutanásia não é permitida por lei, mas, de
corporou cinco critérios para a eutanásia e três elementos para a notifi- acordo com Goldim,30 a Justiça americana possibilita algumas outras si-
cação de seu procedimento. Isso tornou a eutanásia um procedimento tuações que antecipam o final de vida, como a interrupção de tratamen-
aceito, porém não legal. O preenchimento dessas condições eximia o to que apenas prolongue o processo de morte de pacientes e o suicídio
médico da acusação de homicídio. assistido. Exemplo disso é o caso Nancy Cruzan, ocorrido em 1990, no
Segundo José Roberto Goldim, em seu artigo Eutanásia – Holanda,27 a qual a Justiça do Estado de Missouri assegurou aos familiares o direito
Lei de 2001 trouxe determinadas inovações, como a possibilidade de rea- de solicitarem a interrupção de tratamentos que apenas prolongavam
lizar este tipo de procedimento em menores de idade, a partir dos 12 anos, a vida da paciente que se encontrava em estado vegetativo persistente.
desde que a solicitação do paciente esteja acompanhada pela autorização O Estado norte-americano do Oregon aprovou, em 08 de Novembro
dos pais. Para além dos critérios anteriormente instituídos pela entrada de 1994, uma lei sobre Morte Digna (Measure 16), que foi a primeira a
em vigor da Lei Funeral, também foi estabelecido que o término da vida legalizar o suicídio assistido naquele país, embora seu próprio texto
deva ser feito de um modo medicamente apropriado. Sendo assim, os no- afirme que o procedimento nela permitido não constitua eutanásia,
vos critérios legais determinam que a eutanásia só possa ser realizada suicídio ou suicídio assistido. Essa lei estabelece critérios mínimos a se-
quando o paciente tiver uma doença incurável e sofrer com dores insu- rem cumpridos para que uma pessoa possa ter acesso à prescrição de
portáveis; quando o paciente tiver pedido, voluntariamente, para morrer; medicamentos e de informações que lhe possibilitem morrer.
e depois que um segundo médico tiver emitido sua opinião sobre o caso. O debate da eutanásia no Estado americano da Califórnia foi abor-
De acordo com André Luis Adoni,28 a Bélgica admite a prática da eu- dado por Roxana Borges, Segundo ela “no ano de 1991, foi feita uma pro-
tanásia desde que a doença seja incurável e traga sofrimento físico e/ou posição de alteração do Código Civil da Califórnia não aceita em um ple-
mental permanente e insuportável ao paciente terminal. Entre a escolha biscito, de que uma pessoa mentalmente competente, adulta, em estado

27 .  GOLDIM. Eutanásia – Holanda. 29 .  BORGES. Direito de morrer dignamente, cit., p. 299-300.
28 .  ADONI. Bioética e biodireito: aspectos gerais sobre a eutanásia e o direito a morte digna. 30 .  GOLDIM. Eutanásia – Estados Unidos.

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terminal, poderia solicitar e receber uma ajuda médica para morrer”.31 CONCLUSÃO
A alteração proposta declarava que “o direito de optar pela elimina-
ção da dor e do sofrimento e de morrer com dignidade no tempo e no lu-
gar de nossa própria escolha, quando nos tornamos doentes terminais, é
uma parte integral de nosso direito a controlar nosso próprio destino”.32
E videntemente não se pretendeu esgotar o tema da eutanásia,
pois, devido a sua complexidade, muitos aspectos ainda preci-
sam ser debatidos. Essas discussões certamente provocarão posicio-
Para encerrar a análise da eutanásia na jurisdição americana, cum- namentos diversos.
pre ressaltar que, conforme lembrado por Goldim, em abril de 1996, o Com os avanços tecnológicos da medicina ocorridos nas últimas
juiz Stephen Reinhardt, do 9º Tribunal de Apelação de Los Angeles, Ca- décadas, o problema da eutanásia ganha cada vez mais destaque. Nes-
lifórnia, estabeleceu que a Constituição Americana garante o direito ao se contexto, tanto os médicos como os doentes são confrontados dia-
suicídio assistido a todo paciente terminal.33 riamente com as possibilidades de novas tecnologias que permitem
No entendimento de André Luis Adoni,34 o Uruguai provavelmente manter a vida por longos períodos de tempo.
tenha sido o primeiro país do mundo a legislar sobre a possibilidade de O tema da eutanásia, então, é demasiadamente controverso, mas
realização da eutanásia, precedendo até mesmo a Holanda. A aludida os argumentos favoráveis não devem ser ignorados. No Brasil, é ne-
prática enquadrar-se-ia no art. 37, Capítulo III, do atual Código Penal cessária uma ampla discussão e também uma legislação específica
Uruguaio, o qual entrou em vigor em 1º de agosto de 1934. Tal artigo abor- sobre sua prática.
da a questão de causas de impunidade e caracteriza o homicídio piedoso. É preciso compreender e admitir a finitude da vida humana nos
Em maio de 2012, o Senado Argentino, por unanimidade, aprovou dias atuais, pois a morte é algo inerente à vida humana, sendo a parte
a lei da “morte digna”, que dá aos pacientes terminais o direito de re- final desta. Assim, o direito à morte deve ser defendido tanto quanto
jeitar tratamento médico que prolongue suas vidas, quando as pers- o direito à vida.
pectivas de uma melhora são remotas. Se os doentes não estiverem O esgotamento dos meios propiciadores da cura deve possibilitar
em condições de manifestar a sua vontade, a decisão ficará a cargo de ao paciente e à sua família a tomada de decisões que visem ao alívio da
suas famílias. O debate sobre a “morte digna” foi reacendido naquele dor, à diminuição do desconforto, e, principalmente, à possibilidade de
país a partir do caso de uma menina, Camilla. A garota faleceu duran- se posicionar frente ao momento final de sua existência.
te seu parto e foi ressuscitada, nunca mais, porém, saindo do coma. Isso porque a pessoa doente, vivendo uma situação de extremo so-
Os médicos eram unânimes em dizer que seu estado era “irreversível”, frimento e dor, prisioneira de um estado irreversível, ainda é pessoa,
motivo pelo qual sua mãe, Selva Herbon, queria desligar os aparelhos dotada de dignidade e, muitas vezes, de discernimento, capaz de esco-
que a mantinham viva. Mas, até a aprovação da lei que permite a “mor- lher entre a dor e a morte.
te digna”, não havia essa possibilidade. O caso, ocorrido em 27 de abril Para que a decisão do paciente seja concretizada, este deve estar
de 2009, tornou-se público, em agosto do ano passado, quando Selva em pleno gozo de sua autonomia; isso lhe garantirá a liberdade de es-
começou a pressionar o legislativo para que aprovasse a lei. A nova colha sobre seu bem-estar. Além disso, o enfermo deve conhecer todos
legislação não legaliza a eutanásia ou o suicídio assistido, mas permite os dados que possam influenciar sua decisão, pois, só assim, ele será
ao paciente que possua uma doença terminal ou se encontre em um capaz de decidir sobre seu futuro de acordo com seus valores.
estado irreversível rejeitar tratamentos, alimentos ou reanimação ar- O Estado, por sua vez, deve instituir meios para que a autonomia
tificial, que só servirão para prolongar a agonia. do enfermo prevaleça, protegendo, dessa forma, a própria dignidade
da pessoa humana, porquanto levar um ser humano a morrer de um
31 .  BORGES. Direito de morrer dignamente, cit., p. 304. modo que para ele representa uma contradição de sua vida, nada mais
32 .  DWORKIN. Domínio da vida, cit., p. 253. é do que uma odiosa forma de tirania.
33 .  GOLDIM. Eutanásia – Estados Unidos. A legislação deve estar em conformidade com a evolução da bioé-
34 .  ADONI. Bioética e biodireito, cit., p. 415. tica, proporcionando diferentes caminhos para que a pessoa possa ter

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o direito de morrer com dignidade. Desse modo, a legislação pátria, Cordeiro Leite. (Org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. 1. ed.,
sobretudo o Código Penal, deve ser atualizada, a fim de contemplar São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
os novos valores sociais. Nesse contexto, é imperativa a instituição
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174
N
9
O DIREITO DAS GERAÇÕES FUTURAS ENTRE A
LIVRE DISPOSIÇÃO DO PRÓPRIO CORPO E OS
“AMPUTEES BY CHOICE”

Julia Silva Carone


Julio Pinheiro Faro

1  Introdução

A s discussões sobre o futuro da natureza humana e sua ligação com


o direito das futuras gerações têm se refletido em três vertentes
interessantes. A primeira: a ética do melhoramento genético, tanto do
ser humano quanto de outros organismos vivos. A segunda: a doação e
o comércio de órgãos. A terceira: o bem-estar dos indivíduos que optam
por abortarem fetos anencefálicos, modificarem o formato de seus cor-
pos ou mesmo amputar membros saudáveis. Todas essas discussões são
influenciadas pelo argumento moral, e, no caso de versarem sobre seres
humanos, todas elas têm como pano de fundo o direito à livre disposi-
ção do corpo humano, de modo que, seja o tema o uso de material gené-
tico, o uso dos próprios órgãos ou o bem-estar individual, o argumento
moral será colocado ao lado do jurídico.
Em The case against perfection, Michael J. Sandel traz reflexões fi-
losóficas sobre o bioeticismo e o melhoramento genético1. O seu argu-
mento é contra o melhoramento genético e favorável à valorização da
vida. No entanto, ele deixa bem claro, em seu livro que existe muita dife-
rença entre curar e melhorar. A cura não tem como objetivo a perfeição,
mas o bem-estar, enquanto o melhoramento almeja a perfeição, fican-
do o bem-estar, na melhor das hipóteses, apenas em segundo plano. As

1 .  Existe tradução para o português: SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era
da engenharia genética. Trad. Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 2013.

175
N
ponderações feitas pelo filósofo estadunidense são valiosas e mere-
2  P
 essoas que amputam
cem ser observadas. Isso porque o dilema moral que envolve todas as
questões relacionadas à engenharia genética surge quando o indiví- os próprios membros saudáveis
duo resolve interferir na natureza humana, isto é, quando emprega
os meios medicinais (voltados para a cura) para fins não medicinais (o
melhoramento da espécie).
Talvez com um receio plausível sobre as consequências que o uso da
E ssas pessoas que escolhem amputar membros saudáveis de seu pró-
prio corpo têm sido denominadas amputees by choice. A literatura
especializada trata essa situação como um transtorno ou distúrbio, em-
engenharia genética possa trazer para a espécie humana, Jürgen Ha- bora não a classifique, atualmente, como patologia. O nome técnico uti-
bermas, em Die Zukunft der Menschlichen natur. Auf dem Weg zu einer lizado é body identity integrity disorder ou, em português, transtorno de
Liberalen Eugenik?, seja contrário ao uso de exames com embriões e à identidade de integridade corporal.
manipulação genética para fins não medicinais2. Para o sociólogo ale- Esse distúrbio assemelha-se aos casos de parafilia4, a qual é um pa-
mão, tanto a seleção dos melhores seres humanos como os procedimen- drão de comportamento sexual em que a fonte de prazer não é o ato co-
tos de melhoramento da espécie resultam em uma eugenia censurável. pular. Dentre as condutas parafílicas, o desejo de se ver amputado é co-
Basta lembrar que durante a ditadura nazista na Alemanha foram fei- nhecido como apotemnofilia. E o seu reconhecimento como um desvio
tas experiências com seres humanos, financiadas e apoiadas por várias patológico é, atualmente, uma reivindicação dos próprios candidatos à
empresas do mundo. amputação. Isso porque ao se reconhecer como patologia o transtorno,
Embora se possa discordar dos argumentos trazidos pelos dois filó- eles esperam que o tratamento seja a intervenção cirúrgica que promo-
sofos acima referidos, o fato é que os dois revelam uma preocupação verá a ablação do membro que incomoda. No entanto, o mais provável é
importante para o futuro da natureza humana e para o direito das ge- que o reconhecimento transforme a cirurgia em ultima ratio, preferin-
rações futuras: o embate entre o limite da autonomia das pessoas sobre do-se o tratamento clínico, ambulatorial.
as questões que envolvem sua própria natureza ou seu próprio corpo e a Em termos gerais, ser um amputee by choice revela um comporta-
coisificação do ser humano. Essa preocupação é tema, inclusive, de refle- mento destoante daquele considerado normal, embora possa ser um es-
xões do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, para quem a modernidade tilo de vida no qual o bem-estar individual é alcançado mediante uma
líquida tente a transformar os seres humanos em refugo, em objetos3. amputação. Sua relação com os direitos humanos é clara, pois lida com
Diante desse quadro, este breve ensaio faz uma rápida análise sobre a autonomia das pessoas para disporem livremente de seu próprio cor-
uma questão que ainda não tem atormentado os filósofos e os juristas, po. Além disso, há a questão ligada à saúde do indivíduo. Como a cirur-
mas que já se tem feito presente na literatura médica: a possibilidade de gia para esses fins não é considerada legítima, medicamente, as pessoas
que o ser humano, por ter liberdade de disposição sobre o seu próprio com esse transtorno fazem amputações caseiras ou induzem amputa-
corpo, decida amputar membros saudáveis. ções, de maneira que, quando sobrevivem, a única saída que os médicos
encontram para lhe salvar a vida é realizar a amputação.
Trata-se, como se pode perceber, de um transtorno neurológico5. No
2 .  Existe tradução para o português: HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a entanto, nem antes nem após a ablação o indivíduo pode ser caracteri-
caminho de uma eugenia liberal? 2. ed. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2010. zado como deficiente. Ainda que lhe falte, efetivamente, um membro de
3 .  Diversos são os trabalhos do autor com esse tema, dentre eles: BAUMAN, Zygmunt. seu corpo, sua amputação é fruto de sua escolha, e não fruto da única
Subjetividades como objetos de consumo. Trad. Carolina Sanmiguel Barros, Victor Au-
gusto Moura Castro, Lucca Cascelli Sodré e Maurício Seraphim Vaz. Panóptica, vol. 8, n. 1
(25), jan./jun. 2013; BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plinio Dentzen. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001; BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro 4 .  MOREIRA, Luiz Eduardo de Vasconcelos et al. Construções do corpo na razão diag-
Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1999; BAUMAN, Zygmunt. Vida nóstica do DSM e da psicanálise. A peste, São Paulo, vol. 2, n. 1, p. 79-88, jan./jun. 2010, p. 83.
líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007; BAUMAN, Zygmunt. 5 .  BRANG, David; McGEOCH, Paul D.; RAMACHANDRAN, Vilayanur S. Apotemnophilia:
Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. a neurological disorder. Cognitive Neuroscience and Neuropsychology, vol. 19, n. 13, 2008.

176 177
N N
opção possível. Assim, por exemplo, em termos jurídicos, tais indivídu- dos de autoablação, como o uso de correntes, armas, rodas de trem, gui-
os não podem gozar de preferências conquistadas por pessoas deficien- lhotinas fabricadas em casa e gelo seco9. Em indivíduos que não toleram
tes. Não do ponto de vista biomédico da deficiência, já que a perspectiva mais o sofrimento, o distúrbio pode, inclusive, ser fatal, a exemplo de
muda a se adotar o modelo biopsicossocial de deficiência6. Para resumir, casos em que pacientes posicionaram uma perna em um trilho, no intui-
se os amputees by choice sofrem alguma exclusão social, serão considera- to de que o veículo em movimento cortasse o membro que, em tese, não
dos, da perspectiva do modelo biopsicossocial, como pessoas deficientes. fazia parte de seu corpo. O risco é muito alto, e o número de óbitos, caso
As discussões sobre o distúrbio estão no contrafluxo da pauta de houvesse uma estatística confiável, provavelmente também seria alto.
discussão sobre as questões atinentes ao futuro da natureza humana. O fato: não há estatísticas sobre o transtorno. Isso não se deve apenas
Enquanto juristas e filósofos têm se preocupado às questões sobre o ao fato de inexistir previsão legal, mas também porque poucos pacientes
melhoramento da espécie (eugenia), as questões sobre o melhoramento admitem a própria situação, por terem vergonha de falar do que sentem,
do bem-estar têm sido relegadas ao segundo plano. Parece haver um ou porque acreditam que seu terapeuta não será capaz de entender10. As-
esquecimento que os direitos das futuras gerações dependem primor- sim, é difícil mensurar a proporção de ocorrência do distúrbio. Pesquisas
dialmente do bem-estar das gerações atuais, afinal há uma relação de comprovam, sem resultados conclusivos, que pessoas com o distúrbio
ascendência-descendência entre elas. Assim, talvez essa seja a primeira tendem a ser educadas, predominantemente brancas, do sexo masculino
reflexão, por mais incipiente que seja, na qual se faça uma análise rela- e, em maior proporção, homossexuais e transexuais11.
cionada com o Direito. A natureza do problema não goza de consenso entre psicólogos, psi-
quiatras e neurologistas12. O que há de fato é um desencontro entre a
experiência corporal da pessoa e a real estrutura de seu corpo13. Tam-
bém variam as explicações sobre o motivo pelo qual as pessoas desejam
3  Relatos de casos amputar um membro saudável. Talvez o consenso é de que no transtor-
no inexiste um esboço psicológico de um membro que, de fato, existe14,

O distúrbio de identidade experimentado pelos amputados por es-


colha própria tem encontrado cada vez mais relatos. De acordo
com a literatura especializada, essas pessoas se sentem “excessivamen-
ou seja, a construção cerebral da imagem do corpo não registra o mem-
bro. No entanto, a descrição do transtorno não tem comprovação cien-
tífica. Até onde se tem relatos, foi verificada a ausência de deficiência no
te completas7”, como se houvesse em seu corpo um membro estranho.
controle dos movimentos corporais, o que seria esperado numa pessoa
Não se trata de uma simples modificação do corpo como tatuagens ou
com o esboço corporal distorcido ou incompleto, um desencontro entre
implantes de silicone. Uma pessoa com distúrbio sobre a integridade e
a identidade corporal tem a sensação de ser deficiente quando, para os
padrões normais, ele não é. Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 36.
O transtorno parece ser uma perturbação mental que interfere na 9 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol.
vida social do indivíduo. Os que não conseguem uma cirurgia clandesti- 3, n. 8, 2004, p. 28.

na recorrem normalmente a alternativas perigosas para se livrarem do 10 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol.
3, n. 8, 2004, p. 27.
membro em excesso8. Há documentação sobre os mais diversos méto-
11 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol.
3, n. 8, 2004, p. 27.
6 .  Para uma discussão sobre isso, ver, por exemplo: FARO, Julio Pinheiro. Nada sobre nós 12 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of
sem nós: uma análise sobre inclusão social pelo trabalho – a Convenção 159 da OIT e a Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 36.
Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (no prelo). 13 .  BAYNE, Tim. LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and
7 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of the Ethics of Amputation. Journal of Applied Philosophy, vol. 22, n. 1, 2005, p. 76.
Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 36. 14 .  BAYNE, Tim. LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and
8 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of the Ethics of Amputation. Journal of Applied Philosophy, vol. 22, n. 1, 2005, p. 76.

178 179
N N
o corpo e a imagem que o paciente tem do próprio corpo15.
4  A
 utonomia e amputação
Diante das divergências que há a indicação de tratamento para o
distúrbio não é unânime e está longe de contar com algum consenso. de membros saudáveis
Talvez por isso a hesitação em caracterizá-la como patologia.
Pelos relatos médicos16, a psicoterapia tem se mostrado pouco efi-
ciente entre pacientes e o uso de medicamentos antidepressivos e te-
rapia comportamental foram capazes de amenizar os pensamentos di-
D iante disso tudo, a amputação não parece ser a opção de tratamen-
to mais plausível. Muitos cirurgiões optam por não fazer a cirurgia.
Especialistas em ética médica afirmam que se o desejo de amputação
rigidos a amputar o membro, sem, no entanto, os suprimir. Terapia com é permanente e duradouro, o paciente não é psicótico e está ciente dos
movimentos e música já foi utilizada em 1984, tentando-se reintegrar a riscos e consequências, a cirurgia é eticamente autorizável21. A discus-
parte estranha do corpo com sua representação cerebral, tendo o ob- são é basicamente sobre a autonomia do paciente, perquirindo se ele
jetivo de reinstalar conexões neurais atrofiadas entre corpo e cérebro, tem autonomia para discernir, sozinho, sobre a decisão que pretende
mas não foram efetivos em casos em que o membro estranho havia sido tomar. A avaliação a respeito disso é uma avaliação da situação mental
excluído do mapa corporal no cérebro17. Outros métodos são estimula- do paciente. E por isso deve ser feita por psiquiatras, já que há diferença
ção magnética repetitiva e implantação de estimulação por eletrodos entre decisões livres e desejos obsessivos (manias)22.
na área afetada do cérebro18. Como no distúrbio da integridade de identidade corporal o enten-
No entanto, na ausência de estatísticas, não é possível concluir que dimento é de que inexiste autonomia do paciente, a opção pela ampu-
os tratamentos sejam eficientes, embora haja relatos sobre o alívio da tação deve ser feita após um quadro clínico completo. Assim, embora o
angústia de portar um corpo estranho, ou seja, apesar de casos bem-su- corpo humano pertença à pessoa, não há um direito absoluto de dispor
cedidos19, normalmente as pessoas com distúrbio inventam histórias so- dele como bem entender, de maneira que a ablação não é uma opção de
bre a amputação e sentem medo de que a verdade venha à tona20. Assim, tratamento para um distúrbio cuja finalidade é se amputar. Do contrá-
mesmo os relatos de sucesso das intervenções cirúrgicas para o trata- rio, casos de distúrbio obsessivo-compulsivo seriam resolvidos com a
mento do transtorno, eles não podem ser computados como favoráveis prática da vontade do paciente, ou mesmo na hipótese de pacientes com
ao reconhecimento da apotemnofilia como patologia. depressão suicida, o suicídio seria o tratamento. Portanto, a amputação
não é aceita como tratamento.
Essa conclusão se revela ainda mais sensata pelo fato de a amputa-
ção ser experimental e não poder certificar que a cirurgia promove a
cura do distúrbio. Ademais, estudos levam à necessidade de se fazerem
presente três requisitos para ocorrer a cirurgia: a efetividade da medi-
da, a sustentabilidade dos efeitos e a inexistência de um tratamento
15 .  BAYNE, Tim. LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and
the Ethics of Amputation. Journal of Applied Philosophy, vol. 22, n. 1, 2005, p. 76. menos nocivo23. A intervenção cirúrgica deve ser apenas ultima ratio.
16 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of A preferência deve ser o tratamento psicológico-psiquiátrico, para, só
Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 39. diante de sua ineficácia, optar-se pela cirurgia.
17 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of As discordâncias são, portanto, muitas. E não dizem respeito apenas
Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 39.
18 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of 21 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of
Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 39. Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 40.
19 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 22 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of
3, n. 8, 2004, p. 29. Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 40.
20 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 23 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of
3, n. 8, 2004, p. 29. Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 41.

180 181
N N
a questões médicas e psicológicas. Também há divergências sobre a éti-
ca da amputação enquanto tratamento e sobre a autonomia dos indiví-
duos. Em suma, questões médicas, éticas e jurídicas estão fortemente
imbricadas nesse interessante tema, que demanda uma reflexão maior,
tanto filosófica quanto jurídica. Isso porque, além das questões morais
envolvidas, também existem diversas questões jurídicas que deman-
dam regulamentação, como, dentre outras, o processo de reabilitação, a
responsabilidade médica, a aposentadoria, a readaptação aos postos de
trabalho, a saúde, dentre outros temas que merecem atenção. Embora
os relatos sejam relativamente poucos, o assunto não é irrelevante, me-
recendo estudos mais aprofundados.

5  Conclusão

E m síntese, essa pequena reflexão tem como objetivo destacar a ne-


cessidade de uma reflexão jurídica e filosófica, já que qualquer con-
clusão nesses dois campos não pode ser senão muito provisória. A im-
portância do assunto decorre do fato de que é imprescindível para o
melhor desenvolvimento do direito e dos direitos das futuras gerações.
Prestar atenção aos comportamentos do presente é fundamental para
a construção do futuro. Estudos mais sistematizados e aprofundados
certamente contribuirão com o desenvolvimento do tema, tanto no
campo jurídico quanto no filosófico, bem como diante das ponderações
e das decisões médicas sobre como tratar o distúrbio.

182
N
Sustentabilidade
e Meio Ambiente
10
Dos cata-ventos ao desenvolvimento:
o papel da energia eólica na
concretização da sustentabilidade
energética nacional

Ingrid Zanella Andrade Campos


Karoline Lins Câmara Marinho de Souza
Mariana de Siqueira

1  Introdução

D om Quixote, personagem da obra de Cervantes, inspirado nas es-


tórias da cavalaria, pôs-se sobre o seu cavalo Rocinante, tornou-se
cavaleiro andante, vivendo “aventuras” plurais, mais imaginárias do que
reais. Em suas ilusórias peripécias, deparou-se com “castelos”, “prince-
sas” e “gigantes”, havendo quem passasse a denominá-lo, ao invés de “ca-
valeiro andante”, de “cavaleiro errante”.
Em uma de suas mais emblemáticas aventuras, Quixote enxerga em
moinhos de vento verdadeiros gigantes, inicia luta direta contra eles,
sendo derrubado por uma de suas pás. Sancho Pança, fiel escudeiro de
Quixote em suas andanças, o socorre, tentando lhe mostrar a concretu-
de e veracidade que habitava o espaço diante deles posto.
A narrativa da luta de Quixote contra os moinhos de vento sai da es-
tória literária e adentra na história da linguagem como signo ensejador
da ideia de luta romântica. Desde então, lutas sonhadoras são conven-
cionalmente denominadas de “lutas quixotescas”.
Os moinhos de vento, marcantes na estória de origem espanhola,
vencedores de uma luta imaginária, reaparecem hoje na história ener-
gética internacional como combatentes que buscam espaço concreto e
inserção ampla na matriz energética mundial. A presença dos cata-ven-
tos eólicos nas matrizes de energia dos mais variados países, realidade
já existente, persiste hoje tímida e um tanto quanto incipiente.

185
N
A matriz energética mundial, ainda dominada pelos hidrocarbone- cas de forma mais significativa. Normativas sobre o tema também têm
tos e carvão, necessita de diversificação, não apenas pela dificuldade de sido desenvolvidas, assim como a criação de órgãos ou pessoas jurídicas
acesso às tradicionais fontes de energia como também por seu elevado públicas destinadas a cuidar especificamente do assunto.
potencial poluidor. É exatamente ai que nasce o espaço para a chegada O Brasil, por exemplo, atento a essa realidade, tratou de instituir o
de energias limpas, alternativas e renováveis, dentre elas a energia eólica. Programa Nacional de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia –
A energia eólica, oriunda do movimento que nasce a partir do encon- Proinfa – através da Lei Federal nº 10. 438, de 26 de abril de 2002, regula-
tro entre ventos e aerogeradores, é energia alternativa ao modelo con- mentada pelo Decreto n.º 5.025, de 30 de março de 2004.
vencional de geração de eletricidade, é também renovável por renascer O Proinfa objetiva diversificar a matriz energética brasileira, hoje
cotidianamente e em curto espaço de tempo, e fonte de energia limpa majoritariamente concentrada na hidroeletricidade, viabilizando o
diante dos pequenos impactos ambientais que gera e da pouca emissão acesso universal e sustentável à energia, com foco especial nas poten-
de resíduos dela provenientes. cialidades e vocação natural de cada região geográfica brasileira.
Por suas vantagens, em especial aquelas atinentes ao meio ambiente, Os ventos, vocação natural de determinadas regiões do Brasil, como
a energia eólica tem recebido atenções especiais, aparentando ser ver- é o caso do Nordeste, levam a crer que o fomento a energia eólica é rumo
dadeiro caminho apto à concretização do desenvolvimento sustentável. viável a ser buscado pelo poder público.
A ideia de desenvolvimento sustentável, de um desenvolvimen- O fomento à sustentabilidade no setor energético brasileiro é cami-
to conciliador dos interesses econômico, social e ambiental, tem nho viabilizador da concretização da ideia de desenvolvimento consti-
ocupado espaço notório nos debates e práticas energéticas dos tucionalmente consagrada, de um desenvolvimento que não se limita ao
mais variados países desde a Conferência das Nações Unidas sobre crescimento econômico e que também abarca o desenvolvimento social
o Meio Ambiente, ocorrida em 1992, na cidade do Rio de Janeiro. e a preservação ambiental. Ao se considerar que parques eólicos podem
Hoje, são inúmeros os documentos que abordam o tema da susten- ser instalados especialmente no Nordeste brasileiro, região marcada
tabilidade em perspectiva global, a exemplo do Protocolo de Kyoto por fortes índices de pobreza e desigualdade, outro viés do desenvolvi-
e do Protocolo de Madri. mento constitucionalmente previsto também restará concretizado via
As fontes alternativas e renováveis de energia, como é o caso da fomento à energia eólica: o desenvolvimento regional.
eólica, se destacam nesse âmbito. Promover o desenvolvimento econô- O presente trabalho, diante da realidade energética atual e das pers-
mico atinente à energia com a presença indissociável da sustentabili- pectivas de mudança que a circundam, se debruça sobre o estudo do
dade é meta internacional passível de ser concretizada com o fomento fomento à energia eólica como caminho para a estruturação da ideia
aos parques eólicos. constitucional de desenvolvimento (social, ambiental, econômico e re-
Apesar de ser notória a necessidade de diversificação da matriz gional). Para tal, faz uso de metodologia teórico descritiva, com análise
energética mundial via incremento das fontes alternativas e renová- de dados empíricos e da normativa pertinente ao tema.
veis, como é o caso da eólica, tem se mostrado difícil a sua espontânea Inicialmente, discorre sobre o acesso à energia elétrica como direito
concretização. Custos elevados, fatores tecnológicos, insegurança ju- fundamental social. Caracterizado esse acesso como direito fundamen-
rídica e ausência de leis disciplinadoras do tema são alguns dos moti- tal dos indivíduos, versa o trabalho sobre o dever de o Estado provê-lo
vos ensejadores dessa dificuldade. através de prestações positivas. O estudo, a partir dai, expõe a necessi-
Aos países parece caber a atuação com o objetivo de compensar as dade de implementação do dever estatal de fornecer acesso à energia
dificuldades hoje constatadas, conciliando interesses públicos e priva- de forma sustentável e universal. Analisa, como não poderia deixar de
dos, em busca da concretização da sustentabilidade energética. ser, a regulação eólica hoje existente em sede nacional. Apontando, em
Diante dos óbices à espontânea instalação e execução dos parques conclusão, como caminho para concretização do acesso universal e sus-
eólicos, disseminam-se no globo políticas públicas de fomento à energia tentável à energia elétrica e efetivação do desenvolvimento, o fomento
dos ventos com vistas a permitir a sua inserção nas matrizes energéti- à geração de energia na via eólica.

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N N
último caso, não haverá texto narrando a existência de uma espécie de
2  O
 acesso universal e sustentável direito fundamental, mas sim textos variados que, interpretados em con-
à energia elétrica como direito junto, com sistematicidade e unidade, permitirão identificar direito fun-
damental em espécie não escrito, ou seja, direito fundamental implícito. É
fundamental e o papel da energia o caso do direito fundamental de acesso à energia elétrica. Não expresso
eólica em sua concretização especificamente no texto constitucional, nele reside de forma implícita,
sendo extraído a partir da leitura de outros dispositivos da Constituição.

O s direitos fundamentais podem ser hoje definidos como elementos


indispensáveis à dignidade humana, responsáveis por limitarem a
atuação estatal em prol da defesa de uma esfera mínima de liberdade para
É possível concluir, a partir do exposto, sempre haver a existência de
ponto de partida formal, escrito no texto constitucional, para a identifi-
cação de direito fundamental. Se o direito fundamental vem expresso, é o
os sujeitos. Correspondem a bens juridicamente tutelados por um Estado texto que o exterioriza, se o direito fundamental vem implícito, é do texto
que, a partir de tal tutela diferenciada, os reconhece como indispensáveis que se extrai o seu ser. A formalidade, portanto, é marca identificadora,
à dignidade de seus cidadãos. O reconhecimento desses elementos como direta ou indireta, dos direitos fundamentais, e a Constituição é a sua ge-
direitos fundamentais, variável conforme o desenrolar da história, surge nitora. O direito de acesso à energia, não escrito expressamente na Cons-
atualmente no âmbito do texto constitucional e pode ocorrer através de tituição, nela possui assento, ponto de partida formal, por ser compatível
dispositivo linguístico expresso ou de forma implícita. com outros dispositivos consubstanciados em seu texto.
Do conceito de direitos fundamentais aqui exposto é possível extrair Da materialidade dos direitos fundamentais: construindo o acesso à
algumas de suas característica; são elas: a) os direitos fundamentais energia como direito fundamental. Além da formalidade, a materialidade
tem assento no texto constitucional1, b) quando expressos na Cons- aponta como característica dos direitos da dignidade, permitindo a identi-
tituição, são identificados a partir de signo linguístico nela escrito; c) ficação de direitos fundamentais a partir de sua essência, de seu conteúdo,
quando implícitos, dependem do aspecto formal como ponto de partida de sua matéria, e não apenas a partir de sua previsão expressa e específica
identificador de sua existência, a ele sendo acrescida a necessidade de em documento jurídico formal, no caso, a Constituição. Assim, a materiali-
preenchimento da materialidade dos direitos fundamentais; d) os direi- dade faz possível o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos,
tos fundamentais se conectam à ideia de dignidade e possuem a marca compreendidos a partir de interpretação sistemática do ordenamento e
da modificação oriunda dos avanços da história. pautada na unidade do texto constitucional. A forma escrita será ponto de
As características aqui destacadas são aquelas que se revelam im- partida para a construção da ideia de existência de um determinado direi-
portantes à identificação do acesso à energia elétrica como direito to fundamental implícito no texto constitucional; será ponto de partida ao
social fundamental. Identificado esse direito, reconhecida a sua exis- qual se acresce a nota da materialidade.
tência, nasce o dever estatal de concretizá-lo. Passemos à análise mais Corroborando com essa ideia aponta o conteúdo do §2º, do art. 5º, da
detalhada do assunto. Constituição Federal de 1988, responsável por expor que os direitos e ga-
Do assento constitucional dos direitos fundamentais: o caso do acesso à rantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do
energia. Para que um elemento seja identificado como direito fundamen- regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais
tal, é preciso que resida em essência no texto constitucional. Essa morada em que o Brasil seja parte. Direitos fundamentais implícitos, decorrentes,
pode acontecer através de dispositivo expresso que o mencione, como é derivados de princípios, do regime constitucional e de documentos inter-
o caso da saúde, educação e alimentação, todos direitos sociais expressos nacionais, podem se reconhecidos a partir de interpretação sistemática,
no texto do artigo 6º da Constituição de 1988, ou de forma implícita. Nesse desde que conectados à ideia de dignidade, e que aptos a passar pela filtra-
gem do texto constitucional de 1988.
1 .  DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Não escrito expressamente no texto constitucional como direito
Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 40-41. fundamental, o acesso à energia elétrica pode ser dessa forma caracte-

188 189
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rizado a partir de sua essência, por ser elemento diretamente conectado A primeira dimensão de direitos fundamentais tradicionalmente
à ideia de dignidade. Inúmeros dos direitos fundamentais atualmente apresentada no universo doutrinário engloba os direitos individuais
expressos na Constituição dependem do acesso à energia para a sua típicos do Estado Liberal, os chamados direitos de liberdade. O Esta-
concretização e máxima eficácia. É o caso do direito à educação, da vida do, em se tratando desses direitos, deveria se abster, em regra, de in-
digna, e da saúde, por exemplo. terferir na vida dos sujeitos.
Com o acesso à energia elétrica os cidadãos conquistam melhor A segunda dimensão, por sua vez, abarca os direitos sociais, econô-
qualidade de vida, adquirem a liberdade de escolher o modo de uso da micos e culturais do Estado Intervencionista, os denominados direitos
energia disponibilizada, concretizam a ideia de dignidade e de desen- de igualdade. Nesse contexto, ao Estado não apenas caberia se abster
volvimento. Não apenas o desenvolvimento humano e social se co- de intervir na vida dos indivíduos, mas também atuar através de pres-
necta ao acesso à energia, mas também o desenvolvimento econômi- tações positivas, fazeres, com vistas a reduzir desigualdade e a concre-
co no viés quantitativo do crescimento. As receitas vindas da geração tizar a ideia de isonomia.
e distribuição de energia são elevadas. A terceira das dimensões se refere aos direitos de ordem transindivi-
Por ser caminho para a concretização de direitos fundamentais dual, os direitos de fraternidade. A quarta dimensão, por fim, envolve os
plurais, por se configurar como instrumento de tutela da dignidade, o direitos típicos da globalização.
acesso à energia elétrica pode ser definido como direito fundamental Dentre as categorias catalogadas de direitos fundamentais, o acesso
implicitamente tutelado pelo Estado brasileiro, retirado a partir de in- à energia se insere na modalidade de direito social a ser oferecido pelo
terpretação sistemática do texto constitucional hoje vigente. Estado através de prestações positivas. O Estado poderá prestar direta
Das modificações compatíveis com o avançar histórico: o acesso à ou indiretamente as atividades do setor, devendo, em qualquer uma das
energia hoje. Aquilo que é considerado fundamental e indispensável à duas hipóteses mencionadas, acompanhar, regular e fiscalizar o seu de-
dignidade dos sujeitos varia conforme o transformar da história e da senvolvimento, e estruturar políticas públicas que viabilizem o acesso
sociedade. O direito é fenômeno social e se modifica a partir das modi- dos sujeitos à energia.
ficações sociais. Nem tudo aquilo que é visto como direito fundamental Na medida em que o acesso à energia é reconhecido como direito
hoje o foi também no passado. As transformações sociais, os avanços fundamental social dos cidadãos brasileiros nasce o dever estatal de
tecnológicos e modificações históricas viabilizam a ampliação no rol de sua concretização via ações positivas. São inúmeras as formas de con-
direitos fundamentais reconhecidos com o passar dos tempos. O acesso cretização do dever de prover acesso à eletricidade, sendo a energia eó-
à energia elétrica se insere nesse contexto. lica uma delas. Diante de tão plurais formas de prestação do dever em
A energia elétrica, antes de difícil acesso, geração e distribuição, não questão, o que poderia justificar a escolha estatal do caminho da eletri-
costumava ser qualificada como direito fundamental dos sujeitos e con- cidade eólica? A escolha pelo fomento à energia eólica como caminho
sequente dever do Estado. Com a evolução tecnológica, simplificação e para a concretização do acesso à energia é dever ou escolha discricioná-
diversificação em suas formas de geração, tornou-se possível construir ria estatal? Quais os fundamentos que a embasam?
a ideia de que o acesso à energia elétrica é direito fundamental coerente Em uma interpretação sistemática do ordenamento, é possível
com o momento histórico atual. A vida contemporânea, para que seja concluir que o direito fundamental de acesso à energia dos sujeitos
dotada de dignidade, passa necessariamente pelo acesso à eletricidade. e o dever estatal em provê-lo devem trazer junto de si as marcas
Do acesso à energia como direito fundamental social. A doutrina, obser- da universalidade e da sustentabilidade. O acesso à energia a ser
vando o longo histórico de conquista de direitos fundamentais pelos ho- provido pelo Estado aos cidadãos deve ser universal e sustentável,
mens e atentando para as características de cada um deles, costuma cata- é exatamente ai que reside o fundamento para o fomento à geração
logá-los em dimensões. Por serem construções doutrinárias, são variadas de energia na via eólica. Passemos a análise mais detalhada do as-
as dimensões de direitos fundamentais apresentadas pelos estudiosos do sunto nos pontos seguintes.
tema, havendo uniformidade quanto à enumeração de quatro dimensões. Do dever de prover acesso universal à energia elétrica: o papel da

190 191
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energia eólica. No mundo, cerca de 1,3 bilhão de pessoas ainda vive ca- e modificações, hoje se focando em novas realidades, a exemplo das
rente do acesso à eletricidade. Tornar esse acesso universal passar a ser, áreas indígenas, de reforma agrária e quilombolas.
nesse contexto, meta internacional2. Universalizar o acesso à energia O Proinfa, programa focado no incremento às fontes alternati-
significa torná-lo possível a todos os sujeitos e regiões existentes em de- vas e renováveis de energia, igualmente se insere no contexto da
terminada localização geográfica. Universalizar a energia em sede na- universalização do acesso à eletricidade, sendo o espaço ideal à
cional, por exemplo, significa levar energia elétrica às regiões e cidadãos vinculação entre essa universalização e o fomento à energia eóli-
do Brasil que ainda não a possuem. ca. Regiões distantes das fontes geradoras de hidroeletricidade po-
O presente estudo enxerga a universalização aqui descrita como dem ter acesso à energia viabilizado pelo uso de fontes alternati-
qualificadora do dever estatal de prover acesso à energia. O Estado, vas, compatíveis com as características naturais da localidade. No
ao cumprir com o seu dever se prover acesso à energia aos indivíduos, que tange à energia eólica, o incremento ao seu desenvolvimento
não deve se limitar às regiões que já o possuem, sendo impreterível que veio expressamente previsto na normativa do Proinfa, como meta
atente para as localidades dele carentes. a ser implementada pelo poder público.
O Estado brasileiro, atentando para o dever de prover acesso univer- Da sustentabilidade na geração de energia elétrica. Roberto Gian-
sal dos sujeitos à energia, instituiu programas destinados a esse fim, são santi, discorrendo sobre a sustentabilidade, expõe que o termo susten-
exemplos específicos o “Programa Luz para Todos” (Decreto 4.873, de 11 tável remete-nos à ideia daquilo que se pode sustentar. Advindo das
de novembro de 2003), a tarifa social do consumidor de baixa renda (Lei ciências naturais, diz respeito ao ponto de vista ecológico, refere-se à
12.212, de 20 de janeiro de 2010) e o Proinfa, esse último diretamente co- tendência dos ecossistemas à estabilidade, ao equilíbrio dinâmico. Su-
nectado à sustentabilidade do acesso e ao papel da energia eólica na gere, assim, estabilidade, equilíbrio, e transmite a ideia de algo durável
universalização do acesso à eletricidade. por longos períodos de tempo.4
A tarifa social do consumidor de baixa renda, cujas regras foram Clóvis Cavalcanti, por sua vez, conceitua sustentabilidade da se-
modificadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica em agosto de guinte forma: “O conceito de sustentabilidade equivale à ideia de ma-
2013, permite redução no valor da conta de luz através de desconto nutenção de nosso sistema de suporte da vida”.5 O autor ensina que
na tarifa de energia. Em regra, a tarifa social apenas poderá ser apli- sustentabilidade é a possibilidade de se obter continuamente condi-
cada a famílias com renda menor ou igual a meio salário mínimo e ções iguais ou superiores de vida para um grupo de pessoas e seus su-
previamente cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais cessores em dado ecossistema.
do Governo Federal. Os descontos na conta de energia provenientes da Ao ser associada ao desenvolvimento das atividades econômicas
tarifa social variam entre 10% e 65%.3 a ideia de sustentabilidade se destaca. As atividades econômicas são
O “Programa Luz para Todos”, instituído em 2003 para que duras- efetuadas a partir do uso de recursos naturais, muitos deles escassos
se até o ano de 2008, hoje se encontra prorrogado, com fim de vida e não renováveis. Viabilizar a satisfação das necessidades das comuni-
previsto para o ano de 2014. Enxergando o acesso à energia como in- dades atuais sem prejudicar o acesso das futuras gerações aos recursos
dispensável ao desenvolvimento social e econômico das regiões que naturais utilizados pelas atividades econômicas é corolário da ideia de
não o possuíam, o Programa foi criado para levar luz elétrica para o sustentabilidade no setor econômico.
número aproximado de 10 milhões de brasileiros dela carentes, em Reconhecida por ecólogos, biólogos e ambientalistas como neces-
especial os que vivam no meio rural. Com a constatação de falta de sária à manutenção da vida, compreendida jurídico-economicamente
acesso à luz em localidades diversas, o programa sofreu ampliações

4 .  GIANSANTI, Roberto. O desafio do desenvolvimento sustentável. 2º Ed. São Paulo:


2 .  Disponível em: http://www.onu.org.br/rio20/temas-energia/ Acesso em 15 de setembro Atual, 1998. p. 13.
de 2013. 5 .  CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma socieda-
3 .  Disponível em: www.aneel.gov.br Acesso em 15 de setembro de 2013. de sustentável. 4º Ed. São Paulo: Cortez, 1995. p. 165.

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N N
como uma questão de justiça intergeracional e vista como forma de
3  O
 desenvolvimento sustentável
concretização da dignidade, hoje a sustentabilidade ocupa espaço nos
mais variados documentos jurídicos. como diretriz energética
Atualmente, a sustentabilidade opera como determinação ético-ju-
nacional e a sua concretização
rídica que implica o dever de respeitar os direitos daqueles que ainda
não nasceram, é verdadeiro caminho viabilizador da tutela dos direitos via parques eólicos
das futuras gerações.
A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, datada de 1981, anterior
à atual Constituição e por ela recepcionada, já tratava do uso racional e
sustentável dos recursos naturais como dever dos agentes econômicos.
O ambiente, elemento indispensável à vida humana na terra, tem re-
cebido atenções frequentes nos dias atuais, especialmente no que
diz respeito à necessidade de sua tutela diante do exercício das ativida-
A Constituição Federal de 1988, atentando para a relevância do bem des econômicas, como é o caso da geração de energia elétrica em suas
ambiental e para a necessidade de sua proteção, dedicou, de forma pio- mais variadas formas6. O princípio do desenvolvimento sustentável,
neira, um Capítulo inteiro à disciplina dessas temáticas. nesse sentido, foi agregado ao ordenamento jurídico brasileiro como
O meio ambiente ecologicamente equilibrado é constitucionalmen- elemento norteador do exercício das atividades econômicas. Inicial-
te qualificado como bem de uso comum do povo, essencial à sadia qua- mente consubstanciado na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente,
lidade de vida, sendo dever de todos e do Poder Público tutelá-lo, não foi adotado pela Constituição Federal de 1988 (caput do art. 225 e art. 170,
só em benefício das presentes gerações, mas também em prol das que IV), sendo reproduzido em normativas infraconstitucionais específicas,
virão. A tutela ambiental explicitamente constante no art. 225, caput, a exemplo da Lei Federal n.º 9.478, de 1997, instituidora dos objetivos e
da Constituição Federal de 1988, também aponta como princípio da Or- princípios da Política Energética Nacional.
dem Econômica Constitucional (vide art. 170). Do exposto, depreende-se que a sustentabilidade foi reconhecida
A consagração da tutela ambiental no âmbito da ordem econômica como dever fundamental pela Constituição Federal de 1988 através do
constitucional gera espaço para o reconhecimento de um elemento princípio do desenvolvimento sustentável. O princípio do desenvolvi-
normativo implícito: o desenvolvimento sustentável. Como o meio mento sustentável impõe o dever solidário ao Poder Público e à socie-
ambiente possui recursos limitados e escassos, reconhece o consti- dade em promover o desenvolvimento limpo, abrangendo os valores
tuinte que ao desenvolvimento econômico devem ser acrescidas a sociais, ambientais, jurídicos e econômicos. Para Guido Soares, desen-
preservação dos recursos naturais e a busca do bem estar social. É volvimento sustentável nada mais significa do que inserir nos proces-
exatamente ai que nasce constitucionalmente o princípio do desen- sos decisórios de ordem política e econômica, como condição necessá-
volvimento sustentável. ria, as considerações de ordem ambiental.7
Se o desenvolvimento sustentável é rumo para todas as atividades O Estado, assim, ao prover aos indivíduos o direito de acesso univer-
econômicas efetuadas em âmbito nacional, também o será para as ati- sal à eletricidade não poderá desconsiderar a diretriz da sustentabili-
vidades energéticas. Ao Estado, desse modo, não basta prover acesso à dade. Seja como executor direto das atividades de eletricidade ou como
energia elétrica com universalidade, é preciso também fazê-lo na pers- agente normativo e regulador, o Estado deverá considerar em suas atua-
pectiva da sustentabilidade. ções e decisões a meta da sustentabilidade.
A energia eólica, por sua versatilidade, pelo potencial ambiental O princípio do desenvolvimento sustentável deve estar presente no
que possui, pela complementaridade que oferece à matriz energética
nacional é caminho apto a colaborar com o acesso universal e sus-
6 .  CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, José Rubens Morato. (Organizadores). Direito Cons-
tentável à energia elétrica. Por serem o desenvolvimento sustentável titucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva. 2007. p. 286.
e a energia eólica elementos centrais do presente estudo, o tópico a 7 .  SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. Emergên-
seguir os abordará especificamente. cia, Obrigações e Responsabilidades. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2001. p. 81.

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desenvolvimento econômico que, por sua vez, deverá ter a questão am- Apesar do apelido, a lei em questão não se limita aos temas do pe-
biental como limite, em prol da manutenção da vida digna para as pre- tróleo, também dispondo sobre biocombustíveis, gás natural e sobre
sentes e futuras gerações. energia em sua generalidade. A Lei Federal nº 9.478/1997 apresenta a
Juarez Freitas ensina que o desenvolvimento sustentável introduz, in- essência da Política Energética Nacional em seus dispositivos iniciais,
tencionalmente, na sociedade e na cultura, o paradigma axiológico e exis- na medida em que enumera os seus princípios regentes e objetivos fins.
tencial da sustentabilidade homeostática, que precisa reunir os seguintes Inúmeros dos objetivos e princípios da política energética na-
aspectos nucleares: a) é determinação ética e jurídico-institucional, oriun- cional apresentados expressamente na Lei do Petróleo possuem o
da diretamente da Constituição, de responsabilização de todos pelos direi- enfoque ambiental; são exemplos: a) proteção do meio ambiente; b)
tos presentes e futuros ao ambiente qualificadamente sadio e favorável ao conservação de energia; c) uso de fontes alternativas de energia me-
bem-estar, monitorado por metas e indicadores viáveis; b) é determinação diante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das
ética e jurídico-institucional de responsabilidade objetiva pela prevenção tecnologias aplicáveis; c) o incremento, em bases econômicas, sociais
e pela precaução, de maneira que se chegue antes dos eventos danosos, à e ambientais, da participação dos biocombustíveis na matriz ener-
semelhança do que sucede nos dispositivos antecipatórios biológicos; c) é gética nacional; d) a mitigação das emissões de gases causadores de
determinação ética e jurídico-institucional de sindicabilidade e aprofun- efeito estufa e de poluentes nos setores de energia e de transportes,
dada das escolhas públicas e privadas, de sorte a evitar cautelarmente mi- inclusive com o uso de biocombustíveis.
tos comuns, armadilhas falaciosas e políticas inconsistentes, com o dever Diante do exposto, é possível concluir pelo dever de respeito
de promoção segura e concomitante do desenvolvimento material e ima- ao desenvolvimento sustentável no desenvolvimento de políticas
terial (valorativo e sutil); d) é determinação ética e jurídico-institucional energéticas nacionais.
de responsabilidade pela educação ambiental voltada ao desenvolvimen- Dividindo esforços rumo ao desenvolvimento sustentável, em para-
to de baixo carbono, compatível com os valores supremos da Carta, que lelo a lei que expõe os princípios e objetivos da PEN, encontra-se a Lei
não confundem com os do crescimento material, considerado como o fim da Política Nacional de Conservação de Energia, nº 10.925, de 17 de outu-
em si mesmo. Ou seja, uma reeducação valorativa “esverdeada” é ponto de bro de 2001, que dispõe sobre a Política Nacional de Conservação e Uso
destaque em qualquer programa constitucional, digna de nome.8 Racional de Energia e dá outras providências.
Assim, para que qualquer empreendimento, como é o caso daque- A mencionada norma estabelece que a Política Nacional de Conser-
les atinentes à matriz energética, seja reconhecido como sustentável vação e Uso Racional de Energia objetiva a alocação eficiente de recur-
ambientalmente, necessariamente precisa restar comprovado que é sos energéticos e a preservação do meio ambiente. Segundo Paulo de
atividade devidamente autorizada, em consonância com a legislação Bessa Antunes, esse é um reconhecimento formal de que o desperdício
ambiental pertinente, bem como em conformidade material com o de energia é um fator de degradação ambiental9.
sentimento constitucional de sustentabilidade. Ou seja, os empreen- Acresça-se à normativa exposta, igualmente na busca pelo desenvol-
dimentos energéticos devem ser promotores do bem-estar social, via- vimento sustentável energético, a Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002,
bilizadores da geração de emprego, com cautela ambiental, nos limites aqui já mencionada e responsável por criar o Programa de Incentivo às
de capacidade do meio ambiente. Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa). A citada Lei institui
A política energética brasileira, responsável por conformar todas as o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica -
atividades energéticas nacionais, inclusive as atividades de energia eó- PROINFA, com o objetivo de aumentar a participação da energia elé-
lica, é disciplinada em sua mais basilar essência pela Lei Federal nº 9.478, trica produzida por empreendimentos de Produtores Independentes
de 6 de agosto de 1997, mais conhecida como “Lei do Petróleo”. Autônomos, concebidos com base em fontes eólica, pequenas centrais
hidrelétricas e biomassa, no Sistema Elétrico Interligado Nacional. De
8 .  FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 1 ed. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 32/33. 9 .  ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 1023.

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acordo com os dizeres da lei em questão, há dever de incremento espe- lico Brasileiro, publicado pelo Centro de Pesquisas de Energia Elétrica da
cífico à energia eólica. Eletrobrás, o território brasileiro tem capacidade para gerar até 140 GW14.
O complexo normativo constitucional e infraconstitucional aqui A doutrina aponta vários benefícios na utilização da energia eó-
brevemente exposto revela quão lícito, necessário e apropriado é o lica, pois reduzem os impactos ambientais e não emitem gases de
fomento às fontes alternativas de energias na busca pelo desenvolvi- efeito estufa, além de fomentar os avanços tecnológicos do setor, o
mento sustentável. Nesse interim, como fonte alternativa de energia, que finda por gerar implicações positivas socioeconômicas15. Entre
destaca-se e energia eólica. outros fatores positivos destacam-se a preservação de recursos hi-
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), denomi- dráulicos, o fato de a energia eólica não produzir emissões perigosas
na-se energia eólica a energia cinética contida nas massas de ar em e de ser completamente renovável.
movimento (vento). Seu aproveitamento ocorre por meio da conversão Entre os aspectos negativos suscitados, encontram-se os possíveis
da energia cinética de translação em energia cinética de rotação, com impactos com a fauna, em especial com os pássaros; os impactos com os
o emprego de turbinas eólicas, também denominadas aerogeradores, possíveis ruídos gerados pelas estruturas de hélices; o uso da terra, uma
para a geração de eletricidade, ou cataventos (e moinhos), para traba- vez em que as fundações das turbinas, ficam normalmente enterradas;
lhos mecânicos como bombeamento d’água10. e o impacto visual, pois as fazendas eólicas devem ser instaladas em
A ANEEL aponta que estudos realizados e em andamento demons- áreas livres (sem obstáculos naturais) para que sejam comercialmente
tram que, no Brasil, a participação da energia eólica na geração de viáveis, sendo, desta forma, visíveis16.
energia elétrica ainda é pequena. Em setembro de 2003 havia apenas Mesmo com a enumeração de variados aspectos negativos, os aspec-
seis centrais eólicas em operação no País, perfazendo uma capacida- tos positivos se sobressaem nessa atividade. A necessidade de licencia-
de instalada de 22.075 kW11. mento e monitoramento ambiental de todo o empreendimento refor-
O Relatório Wind Force 10 demonstra que é plenamente possível çam o apoio à produção de energia na via eólica no país.
complementar, em pelo menos 10% (dez por cento), a geração de ener- O licenciamento ambiental é elemento de prevenção de danos am-
gia elétrica mundial utilizando energia eólica, reconhecendo a ener- bientais disciplinado pela Lei Federal nº 6.938/1981, responsável por ins-
gia eólica como uma fonte vantajosa economicamente e antenada tituir a Política Nacional de Meio Ambiente; Lei Complementar nº 140,
com as questões ambientais 12. de 08 de dezembro de 2011; e nas Resoluções do Conselho Nacional de
No Brasil, o potencial da energia eólica já foi comprovado por diver- Meio Ambiente – CONAMA.
sos levantamentos e estudos realizados e em andamento, os primeiros Em face dos princípios ambientas, com ênfase na precaução e pre-
estudos foram feitos na região Nordeste, principalmente no Ceará e em venção, os parques eólicos devem ser previamente licenciados, sendo
Pernambuco13. Ressalta-se que o Ceará atualmente reúne o maior parque notória a necessidade e importância da obtenção de licenças ambien-
eólico do país, com 267,90 MW (megawatts) de energia sendo geradas pelo tais a possibilitar a operação dessas atividades. Os empreendedores ainda
vento em 11 usinas já instaladas. De acordo com o Atlas do Potencial Eó- devem elaborar e apresentar ao órgão ambiental licenciador o Estudo de
Impacto Ambiental, demonstrando os impactos negativos e positivos do
10 .  ANEEL. Energia eólica. Disponível em: <http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pd- empreendimento, no aspecto ecológico, econômico e social. A realização de
f/06-energia_eolica(3).pdf>. Acesso em 21 de set. 2013. Estudo de Impacto Ambiental, além de previsão constitucional (art. 225, §
11 .  ANEEL. Energia eólica. Disponível em: <http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pd-
f/06-energia_eolica(3).pdf>. Acesso em 21 de set. 2013. 14 .  BRASIL. Atlas do Potencial Eólico Brasileiro <http://www.cresesb.cepel.br/publicaco-
12 .  REENPEACE International, European Wind Energy Association (EWEA) and Forum es/index.php?task=livro&cid=1>. Acesso em 21 de set. 2013.
For Energy And Development - Fed. Wind Force 10 – A Blueprint To Achive 10% Of The 15 .  MARTINS, F. R.; GUARNIERI, R. A.; PEREIRA, E. B. O aproveitamento da energia eóli-
World’s Electricity From Wind Power By 2020. London, 1999. ca. Revista Brasileira de Ensino de Física. v. 30, n. 1, p.1304-1 a 1304-13, 2008.
13 .  ANEEL. Energia eólica. Disponível em: <http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pd- 16 .  TERCIOTE, Ricardo. A energia eólica e o meio ambiente. <http://www.feagri.unicamp.
f/06-energia_eolica(3).pdf>. Acesso em 21 de set. 2013. br/energia/agre2002/pdf/0085.pdf>. Acesso em 21 de set. 2013.

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1º), está regulamentada na Resolução nº 001/86 do Conselho Nacional do material a todos os entes da sociedade, transmudou-se em sua função,
Meio Ambiente – CONAMA, e é exigível a atividade efetiva ou potencial- passando da “ausência” perante as forças econômicas a uma função so-
mente poluidora ou degradadora do meio ambiente. bremaneira interventora19.
Dessa forma a atividade será sempre previamente conhecida e possível No Brasil, a Constituição de 1988 inaugurou um novo modelo de Es-
de ser monitorada e fiscalizada pelos órgãos ambientais, através da com- tado pautado na ideia de que somente se justificaria a atuação direta
petência comum constitucional. Os impactos positivos da atividade, que como agente de mercado por imperativo de segurança nacional ou rele-
já são inúmeros, se reforçam nesse contexto. Nesse sentido, assinalam-se vante interesse coletivo, conferindo-lhe, em contrapartida, uma impor-
os significativos ganhos da sociedade na utilização dessa fonte alternativa, tante função pautada em seu poder extroverso. Assim, o novo Estado
como, por exemplo, a redução na emissão de poluentes atmosféricos; a di- passaria a ter uma função reguladora, devendo se utilizar dos diversos
minuição da necessidade de construção de grandes reservatórios para hi- instrumentos normativos e fiscalizatórios que estão à sua disposição
droeletricidade; e a redução do risco gerado pela sazonalidade hidrológica. para alcançar o equilíbrio das forças econômicas.
A energia eólica é fonte alternativa renovável que agrega diversas van- Nesse contexto, foi adotado o modelo de agências reguladoras, já
tagens na geração de energia elétrica. Se a geração de energia elétrica atra- utilizadas no direito americano, bem como no direito europeu, sob a
vés de fontes alterativas deve ser fomentada por ser um dos objetivos da denominação de autoridades independentes, no fito de implementar o
Política Energética Nacional, da Política Nacional de Conservação de Ener- seu poder regulador, descentralizando o poder com relação às funções
gia e do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica, desempenhadas pelo Poder Executivo.
igualmente deve ser fomentada a geração de energia em parques eólicos. Assim, a regulação pode se dar através de um conjunto de atividades
Diante do grande potencial brasileiro, a energia eólica se coaduna estatais que, somadas, buscam equilibrar as forças de mercado, do que
como uma saída sustentável para a matriz energética brasileira, con- resulta ser aquela termo complexo, que pode ser compreendido como a
tribuindo para a estabilização energética e para a universalização da ação estatal para frear a tendência natural de sobreposição dos grandes
energia. Igualmente, o desenvolvimento da energia eólica, como fonte agentes econômicos sobre os pequenos e sobre a sociedade como um
alternativa, está em consonância com os ditames do desenvolvimento todo; isto é, seria uma mão visível, que concede ao mercado uma liber-
sustentável, ou seja, com o tripé: fomento econômico, bem-estar social e dade assistida.
respeito ao meio ambiente. No que tange ao tema do trabalho, o bem energia elétrica, conforme
visto, constitui-se como resultado de conversões energéticas a partir de
fontes primárias de origens diversas (hidráulica, nuclear, solar, eólica,
combustíveis fósseis, etc), de modo que, feita a conversão de geradores e
4  Regulação da energia eólica no Brasil transportada até os centros de consumo, a energia é consumida, e, face
à distância entre o ponto de geração e o de consumo, classifica-se tal

T endo em vista o fracasso da adoção da doutrina liberal, que con-


cebia o mercado como autossuficiente no que tange à sua própria
regulação, o Estado, dadas as circunstâncias gravosas17 que levaram a
bem como móvel20, sendo objeto de diversas relações, jurídicas e econô-
micas, as quais são regidas tanto pelo direito privado quanto público,
tendo em vista que, além da relação consumerista, a Constituição, no
crer que a “mão invisível”18 não seria suficiente para conferir igualdade
art. 21, XII, b, alçou a sua prestação à categoria de serviço público de titu-
laridade da União, em articulação com os Estados onde se localizam os
17 .  Refere-se, aqui, às circunstâncias que levaram ao declínio da difusão dos ideiais libe-
rais, no início do século XX, com as Grandes Guerras e a Crise da Bolsa de Nova Iorque,
que teve seu estopim em 1929, consoante historia Eric Hobsbawm, no capítulo “A Era da 19 .  SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica.
Catástrofe” de sua obra: Era dos Extremos: O breve século XX : 1914-1991. Tradução Marcos São Paulo: Forense Jurídica, 2009. p. 1.
Santarrita; revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 20 .  CAMPOS, Clever. Curso Básico de Direito de Energia Elétrica. Rio de Janeiro: Synergia,
18 .  SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p.53. 2010. p. 10.

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potenciais hidroenergéticos, que pode prestá-lo através de concessões, de funcionamento de atividades até o ano de 2010, conforme descrito
permissões ou autorizações, demonstrando o influxo de normas oriun- no Decreto nº 5.025, de 2004, foi instituído com o objetivo de aumen-
das dos diversos ramos do Direito. tar a participação da energia elétrica produzida por empreendimentos
Assim, para regular a prestação de tal serviço público foi criada, concebidos com base em fontes eólica, biomassa e pequenas centrais
através da Lei n.º 9.427/1996, a ANEEL – Agência Nacional de Energia hidrelétricas (PCH) no Sistema Elétrico Interligado Nacional (SIN)23,
Elétrica, que a exerce por meio da fiscalização das atividades, bem tendo sido importante meio de estímulo à captação de investimentos
como promove o fomento, diante das crescentes demandas por fontes para o setor eólico nacional.
de energia sustentáveis, da exploração de meios de geração de energia Nesse mister, ficou estabelecido que o Ministério de Minas e Energia
renováveis ou não poluentes. (MME) seria o responsável por gerir o programa, definindo suas diretri-
A energia elétrica oriunda do potencial eólico enquadra-se, portan- zes, planejamento e valor econômico de cada fonte e que a Eletrobrás
to, nas novas perspectivas de geração de energia, visando, sobretudo, a executaria o mesmo através da celebração de contratos de compra e
concretização do direito ao meio ambiente equilibrado, bem como ter em venda de energia (CCVE)24.
conta que as fontes não renováveis colocam o país sempre em situação de Importante ressaltar que, com relação à fonte eólica, em si, não exis-
dependência com relação aos demais Estados exportadores de energia. te uma legislação específica que trate do assunto, cingindo-se a normas
Por isso, deveras importante debruçar-se sobre as regras que regem infralegais, como resoluções, portarias e editais específicos para a con-
a exploração de tal atividade por meio de recurso natural presente em cessão de parques eólicos, aplicando-se as leis atinentes ao setor elétri-
nosso território, que comporta um potencial energético eólico mapea- co como um todo.
do de aproximadamente 140 GW, correspondente a mais de 10 usinas Registre-se, por oportuno, que as distribuidoras de serviço público
de Itaipu, conforme dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE)21, de energia elétrica, ligadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), de-
sendo imprescindível a geração de um ambiente institucional seguro e vem garantir o fornecimento integral de seu mercado consumidor, nos
simplificado para atrair investimentos no setor. termos da Lei n.º 10.848/2004, o que será efetivado por meio de compras
Conforme dados da ANEEL22, em setembro de 2003 havia apenas 6 de energia das empresas geradoras, das mais diversas fontes, o que pode
centrais eólicas em operação no País, perfazendo uma capacidade ins- ser realizado mediante a firmação de contratos de concessão firmados
talada de 22.075 kW, destacando-se Taíba e Prainha, no Estado do Ceará, após a devida licitação, mas também se admite, no direito brasileiro, a
que representavam 68% do parque eólico nacional. geração de energia elétrica por produtores independentes.
Hoje este cenário se alterou, pois a referida fonte renovável vem atrain- Esclareça-se, assim, que as empresas geradoras de energia elétrica
do cada vez mais investimentos, o que implica, portanto, numa maior pre- através da fonte eólica, recebem uma outorga de concessão do Poder
ocupação com a regulação específica da referida atividade, pois, apesar Público para assim funcionarem, mas podem realizar suas atividades,
de se tratar da prestação de serviço de energia elétrica, tem peculiares também, independentemente de concessão ou vínculo obtido por meio
características atinentes à própria conformação física dos aerogeradores. de licitação, atuando como produtoras independentes, devendo haver,
No que diz respeito a incentivo do setor, o Programa de Incentivo entretanto, autorização do Ministério de Minas e Energia nesse sentido,
às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), que previa o início como no caso da empresa Gestamp Eólica Jardins S/A, que, através da
Portaria n.º 309, de 23 de maio de 2012, do referido Ministério, passou a se
21 .  Entretanto, segundo estima o presidente da mesma, Maurício Tolmasquim, o Brasil te- estabelecer como Produtora Independente de Energia Elétrica, median-
ria capacidade para gerar até 300 mil MW, valor muito superior ao que se encontra mapeado. te a implantação e exploração da Central Geradora Eólica denominada
Notícia publicada sob o título “Potencial eólico no País equivale a até 30 usinas de Itaipu”, EOL Parque Eólico Cabeço Preo V, devendo cumprir com os requisitos
de autoria de Daniela Amorim e Alexandre Rodrigues, no sítio eletrônico da Agência Es-
tado. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,potencial-eolico-
no-pais-equivale-a-ate-30-usinas-de-itaipu,64801,0.htm. Acesso em 20 de setembro de 2013. 23 .  http://www.mme.gov.br/programas/proinfa/
22 .  Disponível em: www.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pdf/06-energia_eolica(3).pdf 24 .  http://www.mme.gov.br/programas/proinfa/

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estabelecidos na legislação pertinente, bem como a Resolução n.º 389 Energia Elétrica (ASMAE), que iniciou suas atividades em 01/01/2000.
ANEEL, vindo, posteriormente, a comercializar a energia obtida de seus Contudo, com a prefalada crise energética instaurada em 2001, ficou
geradores com as concessionárias de distribuição de energia elétrica. exposta a fragilidade do sistema de livre mercado de energia elétrica,
Além disso, podem gerar energia elétrica os chamados autoprodu- tornando-se imperiosa, na esteira da finalidade regulatória do Estado
tores, que são agentes que produzem energia elétrica destinada a seu brasileiro, que este tornasse a se imiscuir em tal mercado, no fito de ver
uso exclusivo, mediante autorização, podendo comercializar eventual atendido o direito de acesso à energia elétrica por todos, de modo que
excedente de energia, desde que autorizado pela ANEEL. a Medida Provisória n.º 29, convertida na Lei n.º 10.433/02, promoveu
Dessume-se, portanto, que no âmbito da geração de energia elétrica alterações jurídicas no Mercado Atacadista, convertendo-o em pessoa
obtida da fonte eólica, existem dois ambientes distintos, quais sejam, o jurídica de direito privado sem fins lucrativos e submetendo-o à autori-
do livre mercado, denominado Ambiente de Contratação Livre (ACL) e zação, regulamentação e fiscalização da ANEEL25.
o Ambiente de Contratação Regulado (ACR). Após isso, fora criada a Câmara de Comercialização de Energia Elé-
A coexistência de ambos os ambientes gera, no mínimo, contro- trica (CCEE), com Lei n.º 10.848/04, que tem natureza de pessoa jurídica
vérsias no que diz respeito à concretização do direito fundamental à de direito privado sem fins lucrativos e é responsável pela comercializa-
energia elétrica, pois enquanto a Constituição Federal, em seu art. 21, ção de energia elétrica entre as empresas geradoras desse bem às con-
XII, b, prevê que é a União a titular da prestação do serviço público de cessionárias distribuidoras, sob o manto da regulação da ANEEL.
energia elétrica, vem se consolidando, no direito brasileiro, a possibi- Esse instrumento fora criado no fito de ver concretizado o direito
lidade de exploração da atividade de geração de energia sem que haja fundamental à energia elétrica, e com o escopo de garantir que todos
uma seleção pública, com igualdade de condições, o que leva a crer que possam ter acesso a esse bem, principalmente quando se denota que
tal costume administrativo (porque o produtor independente deve ser são os grandes consumidores de energia elétrica, os que mais têm inte-
autorizado pelo Poder Público) viola o princípio da livre concorrência e resse na permanência do livre mercado, sendo que, em conformidade
o princípio da competitividade, que rege a licitação. com as diretrizes firmadas pelo governo atual (2011-2014), novas fontes
Todavia, percebe-se que tal situação passou a ser admitida como le- de energia devem ser buscadas, privilegiando-se as fontes renováveis.
gítima, nos últimos anos, em virtude da crise energética instaurada no Portanto, nas linhas a seguir, serão delineadas algumas regras bási-
início da década dos anos 2000, numa tentativa de difundir as possibi- cas a serem seguidas pelo Estado e por aquelas empresas que preten-
lidades de investimento no setor, bem assim através da interpretação dem explorar a atividade de geração de energia elétrica através da fonte
de que o art. 21, XII, b, da Constituição prevê que o serviço seja prestado eólica no Ambiente de Contratação Regulada (ACR).
mediante autorização. É cediço que, para prestar atividade com natureza de serviço públi-
Tal situação, porém, ocasiona uma verdadeira insegurança jurídica, co, mister que a Administração Pública promova o necessário processo
pois, ainda que se aponte a necessidade de autorização da União, atra- licitatório, nos termos do art. 37, XXI, Lei n.º 8.666/93, Lei n.º 8.987/95, a
vés do Ministério de Minas e Energia, como uma ingerência regulatória qual, nos termos do §4º, do art. 2º, da Lei n.º 9.491/97, que criou o Progra-
do Estado, essa não é suficiente para estabelecer a segurança das rela- ma Nacional de Desestatização – PND, deverá se dar pela modalidade
ções jurídicas oriundas da geração de energia, e atinge frontalmente o Leilão, a despeito da obrigatoriedade de concorrência para demais con-
princípio da isonomia. cessões de serviços públicos, o qual será promovido pela ANEEL, conso-
Com relação, de seu turno, à comercialização da energia elétrica pro- ante se denota do art. 3º, II, da Lei n.º 9.427/96.
duzida, conforme previsão do art. 12 da Lei n.º 9.648/98, poder-se-ia co- Entretanto, tal leilão, nos termos do art. 18-A, da Lei nº. 8.987/1995,
mercializar tal bem perante o Mercado Atacadista de Energia Elétrica, será realizado com inversão da ordem de fases, contrariando o procedi-
que tinha funcionamento semelhante a uma bolsa de valores, com as re-
gras de seu exercício previstas na Resolução ANEEL n.º 265/98 e passou 25 .  CAMPOS, Clever. Curso Básico de Direito de Energia Elétrica. Rio de Janeiro: Synergia,
a ser gerido pela Administradora de Serviços do Mercado Atacadista de 2010. p. 58.

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mento comum previsto na Lei n.º 8.666/93, visando, outrossim, dar maior cuniárias perante a ANEEL são proporcionais à participação de cada
efetividade ao mesmo, de maneira que, após a fase de oferecimento de consorciada, sem prejuízo da responsabilidade solidária, sendo a líder
lances, serão analisados os documentos de habilitação das empresas de- do consórcio a responsável por todas as informações de interesse da
nominadas vendedoras de energia, para verificação do atendimento das Autorização para o cumprimento das responsabilidades do consórcio
condições fixadas no correspondente Edital. perante a ANEEL, sendo que a composição do consórcio não poderá
Segundo editais publicados pela ANEEL para outorga de concessão ser alterada até a outorga de Autorização. Posteriormente, caso haja
da geração de energia de fonte eólica, é objeto do leilão a contratação mudança de participação, o consórcio deverá solicitar prévia anuência
de Energia de Reserva proveniente de empreendimentos de geração, a da ANEEL para transferência de parte ou de toda a outorga, confor-
partir da fonte eólica, destinada ao Sistema Interligado Nacional (SIN), me inciso VIII do art. 3º, da Lei nº. 9.427/1996, e inciso XII do art. 4° do
no Ambiente de Contratação Regulada (ACR), o que será firmado atra- Decreto 2.335/1997, mantidas as condições do Edital até a operação do
vés de Contrato de Energia de Reserva (CER), na modalidade “quantida- empreendimento, se for o caso.
de de energia”, implicando dizer que o serviço será remunerado única e Também importante ressaltar que a ANEEL fixa um cronograma
exclusivamente em razão do quantitativo produzido e comercializado, a ser seguido pela empresa, após ser declarada vencedora do leilão,
devendo a empresa exploradora da atividade arcar com os riscos da dis- indicando, também, a data para início do funcionamento, prevendo,
sipação de energia. Não significa dizer, outrossim, que estes riscos não entretanto, que algumas fases podem demorar mais em razão da na-
serão pagos pelo consumidor final, porquanto estarão embutidos no tureza do ato a ser executado.
preço de comercialização pelas empresas eólicas. Conforme os diversos editais da ANEEL, a empresa de energia eóli-
Ademais, para que possa vir a ser vencedora do certame, a empresa ca deverá, antes da licitação, obter a Licença Prévia de instalação – LP,
vendedora de energia deverá, necessariamente, constituir uma Socieda- após vencer a licitação, providenciar a obtenção da Licença Ambiental
de de Propósitos Específicos, isto é, uma empresa destinada tão somen- de Instalação – LI e iniciar a implantação do canteiro de obras para rea-
te à exploração daquela atividade e com o intuito de gerir tão somente lizar as obras civis das estruturas, concretar as bases das unidades gera-
aquela concessão estatal, registrada, preferencialmente sob a forma de doras, montar as torres das unidades aerogeradoras, iniciar as obras da
Sociedade Anônima, para receber a outorga de Autorização. subestação e/ou da linha de transmissão e concluir, assim, a montagem
No caso de pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras, quando das torres das unidades geradoras.
concorrerem isoladamente, deverão criar uma Sociedade de Propósito Posteriormente, deve buscar a obtenção da licença Ambiental de
Específico (SPE), constituída sob as leis brasileiras, para fins de outor- Operação – LO, para iniciar a operação em teste (inserir uma linha para
ga de Autorização, e quando concorrerem consorciadas com Pessoa cada unidade geradora ou grupo de unidades geradoras), e, só então co-
Jurídica de Direito Privado brasileira, a liderança do consórcio caberá, meçar as atividades de operação comercial.
sempre, à Pessoa Jurídica de Direito Privado brasileira, sendo também Por fim, insta asseverar, que, uma vez fixado o prazo para a empresa
obrigatória a constituição de SPE para fins de outorga de Autorização. vendedora de energia iniciar as operações comerciais pela ANEEL, não
Registre-se, ainda, a necessidade de terem um representante legal sendo este cumprido, sujeitarão aquela às penalidades estabelecidas na
no Brasil, com poderes expressos, mediante procuração por instru- Resolução Normativa nº. 63/2004, sem prejuízo do disposto no parágra-
mento público ou particular, com firma reconhecida em cartório, para fo único do art. 7º do Decreto nº. 6.353/2008 e nos respectivos Contratos.
receber citação e responder administrativa e judicialmente no País, Por sua vez, o descumprimento do cronograma físico apresentado
bem como representá-la em todas as fases do processo, condições es- à ANEEL implicará, além das penalidades previstas na regulamenta-
sas que deverão estar expressamente indicadas em seus documentos ção específica, a execução da Garantia de Fiel Cumprimento recolhida
de Qualificação Jurídica. pelas vendedoras, conforme processo administrativo instaurado espe-
Em se tratando, de seu turno, de consórcio de empresas, brasilei- cialmente para este fim, assegurados o contraditório e a ampla defesa,
ras ou estrangeiras com pelo menos uma brasileira, as obrigações pe- ressalvando-se, entretanto, os casos de atraso comprovadamente pro-

206 207
N N
vocados por atos do Poder Público e/ou os decorrentes de caso fortuito fonte eólica mostra-se um eficiente meio de concretização do direito
ou de força maior. fundamental à energia elétrica, porquanto amplia o espectro de fontes
Pelo que se denota, ainda, dos referidos editais, é possível que seja a serem buscadas pelas distribuidoras que possuem o dever de garan-
antecipada a entrada em operação comercial dos empreendimentos de tir o suprimento integral das necessidades energéticas de seu mercado
geração, desde que os sistemas de transmissão ou de distribuição asso- consumidor.
ciados estejam disponíveis para operação comercial, na data antecipada Ademais, coaduna-se com o direito fundamental ao meio ambiente
de entrada em operação comercial do empreendimento, sendo a energia equilibrado, encartado no art. 225, da Constituição Federal, pois, a des-
de reserva produzida remunerada pelo preço contratual que for vigente peito dos impactos ambientais gerados, como poluição sonora e visual,
no ano em que ocorrer o início do suprimento, atualizado pelo IPCA. configura-se como energia renovável, bem como a proporção dos im-
As regras acima delineadas resultam da análise dos diversos editais pactos supera a eficiência econômico-ambiental comparada com outras
publicados pela ANEEL para a outorga de autorização de geração de fontes energéticas.
energia elétrica através da fonte eólica, sendo certo se dizer que, como Também ficou demonstrado que, a despeito de inexistir legislação
foram instituídas através do poder regulatório da agência em apreço, específica e pormenorizada relativa à fonte eólica, a legislação atinente
podem vir a ser alteradas por lei. à energia elétrica, como um todo, aliada ao poder normativo e fiscaliza-
Desta forma, dessume-se que, a despeito da inexistência de leis espe- dor da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, são suficientes
cíficas para regulamentar a geração de energia por meio da fonte eólica, para dar respostas satisfatórias ao setor, haja vista a regulação específi-
não há óbice à regulação implementada pela ANEEL, que, com base nas ca delineada nos editais licitatórios e em resoluções normativas.
especificidades técnicas do setor, busca atender à sua finalidade precípua. De toda forma, indispensável se faz reconhecer a existência de obs-
Outrossim, caso alguma regra infralegal estabelecida pela agência táculos a serem superados para a implantação de um ambiente seguro,
reguladora venha a ferir direitos legalmente instituídos, deve-se primar do ponto de vista institucional, hábil a fornecer subsídio à alocação de
pela interpretação judicial, a despeito de ser possível o estabelecimento investimentos, nacionais ou estrangeiros e conseguir, com isto, imple-
da cláusula arbitral em tais contratos, sempre atentando para o fato de mentar o direito ao desenvolvimento.
que, somente alcançaremos o desenvolvimento com a fixação de regras O desenvolvimento a ser buscado na perspectiva energética não
firmes que garantam, para a alocação de investimentos em tal área, a deve ser encarado apenas no viés do crescimento, também devendo en-
segurança jurídica o que, para tal setor, significa, segurança econômica. globar o perfil social e ambiental hoje indissociáveis.
A política energética nacional, política pública extremamente relevan-
te, deve objetivar suprir as demandas atuais, sem prejuízo das gerações
futuras, concretizando o desenvolvimento de forma sustentável. Para
5  Conclusões que dos ventos nasça a concretização da ideia constitucional de desen-
volvimento não se deve abandonar a diretriz da justiça intergeracional.

D iante de todo o conteúdo relatado, indubitável se revela a carac-


terização do acesso à energia como direito fundamental social.
A ligação que esse acesso possui com as ideias de desenvolvimento
e dignidade humana reforça essa tese. As liberdades e caminhos que
nascem diante dos sujeitos a partir do acesso à eletricidade lhes per-
mite viver com dignidade.
O Estado, atento ao dever que possui de viabilizar dignidade de vida
aos sujeitos, é prestador necessário do acesso universal e sustentável
à energia elétrica no país. Do referido estudo, pode-se concluir que a

208 209
N N
11
A EXCLUSÃO AMBIENTAL NO BRASIL:
UMA DISCUSSÃO DO RACISMO
AMBIENTAL E DA BIOPOLÍTICA

Ivy de Souza Abreu

1  INTRODUÇÃO

A vida humana e suas necessidades e implicações adquiriram status


de fator decisório na política desde a modernidade. A gestão da
vida se tornou fundamental na política: a decisão de fazer viver e deixar
morrer compete ao soberano. É neste contexto de viver e morrer, excluir
e incluir, que a biopolítica se apresenta.
No cenário contemporâneo de biopoder e de biopolítica o racismo
adquire novas feições e assume papel de destaque, em especial com sua
faceta ambiental. O racismo ambiental extrapola as questões meramen-
te raciais e étnicas, abarcando as injustiças, os preconceitos e a desigual-
dade que afligem populações e grupos ambientalmente vulneráveis, so-
bre os quais recai um passivo ambiental exorbitante.
Exteriorizam-se as relações entre estabelecidos e outsiders, entre
vida política e vida nua (homo sacer), entre cidadãos e subcidadãos, en-
tre opressores e oprimidos, entre incluídos e excluídos. A tensão entre
esses grupos pode ser maximizada ou mitigada de acordo com as de-
cisões biopolíticas do soberano. A dignidade humana e a igualdade se
equilibram na corda bamba das relações de poder frente ao estado de
exceção que se naturaliza.
É este panorama de injustiça e exclusão que se configura na reali-
dade ambiental brasileira com a formação de vários grupos de excluí-
dos ambientais, aqui denominados outsiders ambientais. Um dos casos
mais emblemáticos da caracterização do outsider ambiental é a exclu-
são dos brasileiros sedentos, em especial na região Nordeste do país.
Estes grupos enfrentam dois problemas que aqui merecem destaque:

211
N
um problema ambiental – a seca – e um problema político – o descaso transformação da vida. A espécie torna-se a grande variável nas próprias
do poder soberano. estratégias políticas”5. A biopolítica se dirige “ao homem vivo, ao homem-
Assim, indaga-se diante do contexto biopolítico brasileiro: Como as -espécie. [...] à multiplicidade dos homens enquanto massa global, afeta-
decisões biopolíticas, em especial em relação à questão da seca no Bra- da por processos próprios da vida, como a morte, a produção, a doença”6.
sil, interferem na formação de grupos outsiders ambientais e no racis- Mortalidade, natalidade, doenças, epidemias, fome, saúde pública,
mo ambiental? Eis a problemática que será trabalhada neste artigo. imigração, emigração, habitação, xenofobia, racismo são problemas
biopolíticos enfrentados pelos governos nacionais e que pesam mui-
to na tomada de decisões. No atual contexto biopolítico a vida natu-
ral dos seres humanos se tornou um fator decisório nas intrincadas e
2  A
 BIOPOLÍTICA E O RACISMO AMBIENTAL: complexas teias do poder soberano.
PRIMEIROS CONCEITOS Neste panorama de biopoder e de biopolítica é que o racismo toma
novos contornos, inclusive com o racismo ambiental. O racismo deixa

A primeira referência ao termo biopolítica foi feita por Michel Fou-


cault, “em sua conferência proferida no Rio de Janeiro em 1974 e
intitulada ‘O nascimento da medicina social’”1. A temática continuou
de ter apenas impacto racial estendendo-se a preconceitos e injustiças
ocorridos com grupos vulneráveis, sejam histórica, econômica, social ou
ambientalmente desprotegidos.
sendo trabalhada pelo autor, em especial, relacionando-a a questão da Um triste cenário se descortina: a naturalização do preconceito, da
sexualidade, da medicina social e do biopoder. desigualdade e do racismo, em todos os seus aspectos, na sociedade
Giorgio Agamben trabalha a biopolítica relacionando os conceitos brasileira. Como traz a lume Herculano: “Racismo é a forma pela qual
de soberania, homo sacer (via nua), campo de concentração2 e estado de desqualificamos o outro e o anulamos como não-semelhante. [...] Assim,
exceção3. O poder soberano decide, em estado de exceção, quem caracte- nosso racismo nos faz aceitar a pobreza e a vulnerabilidade de enorme
riza o homo sacer e, por isso, será excluído do convívio social e ignorado parcela da população brasileira, com pouca escolaridade, sem renda,
em suas necessidades mais básicas, sendo passível, inclusive, de exclu- sem políticas sociais de amparo e de resgate, simplesmente porque na-
são territorial e banimento para os campos de concentração. turalizamos tais diferenças, imputando-as a ‘raças’”7.
Assim, as decisões políticas dos Estados perpassam pelas necessi- E ainda Pacheco, “[...] é fundamental assumir que racismo e preconcei-
dades e implicações da vida humana. “A vida entrou na história, isto é, to não se restringem a negros, afrodescendentes, pardos ou mulatos. Está
fenômenos da espécie humana entraram na ordem do saber e do poder, presente na forma como tratamos nossos povos indígenas. Está presen-
no campo das técnicas políticas”4. A gestão da vida se tornou imprescin- te na maneira como ‘descartamos’ populações tradicionais – ribeirinhos,
dível nos sistemas políticos contemporâneos. quebradeiras de coco, geraiszeiros, marisqueiros, extrativistas, caiçaras
E é exatamente desta gestão política da vida que a biopolítica se in- e, em alguns casos, até mesmo pequenos agricultores familiares. Está
cumbe. Assevera Pelbart que “a vida e seus mecanismos entram nos cál- presente no tratamento que damos, no Sul/Sudeste, principalmente, aos
culos explícitos do poder e saber, enquanto estes se tornam agentes de brancos pobres cearenses, paraibanos, maranhenses... Aos ‘cabeças-cha-
tas’ em geral, no dizer preconceituoso de muitos, que deixam suas terras
1 .  PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 55. em busca de trabalho e encontram ainda mais miséria, tratados como
2 .  “Lógica da Soberania”, “Homo sacer” e “O campo como paradigma biopolítico do mo-
derno” são as três partes nas quais a obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I” 5 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 58.
se divide. (AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo 6 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 57.
Horizonte: Editora UFMG, 2010).
7 .  HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental.
3 .  O tema estado de exceção é abordado na obra “Estado de Exceção: homo sacer II”. Revista de gestão integrada em saúde do trabalho e meio ambiente. São Paulo, v. 3, n.
(AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer II. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004). 1, p. 1-20, jan./abr. 2008. Disponível em: <http://www.revistas.sp.senac.br/ index.php/ITF/
4 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 58. article/viewFile/89/114>. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 17.

212 213
N N
mão-de-obra facilmente substituível que, se cair da construção, corre ŠŠ d. favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movi-
ainda o risco de ‘morrer na contramão atrapalhando o tráfego’”8. mentos sociais e organizações populares para serem protagonis-
O problema do preconceito e do racismo no Brasil já extrapolou as tas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento,
questões raciais e étnicas e se alastrou não apenas no convívio social, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambien-
mas também na vida política no país e nas decisões governamentais. tais e a sustentabilidade do seu uso”.9
A motivação para exclusão de brasileiros tem as mais variadas nuan- A exclusão adquire novas feições com a formação de grupos ambien-
ces, seja cor da pele, local de nascimento, tipo de trabalho ou ausência talmente segregados. O racismo ambiental se configura de várias formas
deste, local de residência, escolaridade, conta bancária, e, o que se des- e com diferentes prejuízos às suas vítimas, que suportam de algum modo,
taca, a questão ambiental. um impacto ambiental negativo muito maior que as outras pessoas.
Dentro deste contexto se inserem as discussões sobre justiça/injus- O tratamento desigual em relação aos grupos ambientalmente exclu-
tiça ambiental e racismo ambiental. Tais conceitos foram trazidos pela ídos é vergonhoso. Seja pela atitude permissiva do poder público ao não
Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, impedir que estes grupos sejam diretamente afetados por empreendi-
fruto do Colóquio Internacional sobre Justiça ambiental, Trabalho e mentos poluidores, seja pela omissão com a ausência de políticas públicas
Cidadania, realizado na cidade de Niterói-RJ em 2001. Assim: “Enten- eficazes no combate a injustiça ambiental, seja pelo descumprimento do
demos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desi- princípio da informação, seja com a inexistência de efetiva participação
guais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos dos interessados – afetados – nos atos decisórios, seja pela falta de acesso
danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos recursos naturais, como é o caso dos nordestinos e a falta de água.
aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos
bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.
Por justiça ambiental, ao contrário, designamos o conjunto de prin-
cípios e práticas que:
3  OS OUTSIDERS AMBIENTAIS NO BRASIL
ŠŠ a. asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou
de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequên-
cias ambientais negativas de operações econômicas, de decisões
N a apresentação da obra “Os estabelecidos e os outsiders” de Elias e
Scotson10, Federico Neiburg traz a conceituação básica de estabele-
cidos e outsiders. As terminologias establishment ou established (os esta-
de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como belecidos) designam grupos e indivíduos que ocupam posições de poder e
da ausência ou omissão de tais políticas; prestígio, se consideram um modelo moral para os demais, assim, se auto-
percebem como socialmente melhores. E sua contraposição, os outsiders,
ŠŠ b. asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos re-
são os não membros da “boa sociedade” dos estabelecidos, os que estão
cursos ambientais do país;
fora dela, associados à anomia, violência, delinquência e desintegração.
ŠŠ c. asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso Esta relação entre estabelecidos e outsiders de Elias e Scotson se co-
dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização aduna diretamente com os conceitos de subcidadania de Jessé Souza e
de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráti- de homo sacer de Giorgio Agamben, outrossim, se aplicando à formação
cos e participativos na definição de políticas, planos, programas e de grupos excluídos ambientais e ao racismo ambiental no Brasil.
projetos que lhes dizem respeito;
9 .  DECLARAÇÃO de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Niterói, 2001.
Disponível em: <http:// www.fase.org.br/download/redejustamb.doc>. Acesso em: 05 nov.
8 .  PACHECO, Tania. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que trans- 2012, pp. 1-2.
cende a cor. Jan. 2007. Disponível em: <http://www.rebrip.org.br/projetos /clientes/noar/ 10 .  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
noar/UserFiles/17/File/DesInjAmbRac.pdf. >. Acesso em: 05 nov. 2012, pp. 7-8. relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 7.

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N N
No caso do homo sacer, para Agamben, “uma pessoa é simplesmente víduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil [...]
posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina”, podendo gozar de reconhecimento”16. Assim, os subcidadãos situam-se
sendo assim, matável, mas não sacrificável. “Soberana é a esfera na qual abaixo dos considerados cidadãos (detentores de habitus primário) e
se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e muito abaixo dos sobrecidadãos (detentores de habitus secundário).
sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta O racismo ambiental em sua faceta excludente e preconceituosa tem
esfera”11. Assim, o homo sacer é uma figura intermediária entre os seres como consequência a formação destes grupos excluídos, seja na forma de
humanos, que não podem ser sacrificados, e os seres não humanos (ani- outsiders ambientais, seja na forma de homo sacer ambiental. A exclusão
mais)12, que são passíveis de sacrifícios. pressupõe, no mínimo, a mitigação da cidadania destes indivíduos, quiçá
A relação entre vida natural e política se estabelece com a inclusão a extirpação completa desta cidadania, de um modo ou de outro, estes
da vida nua (vida matável e insacrificável do homo sacer) como moti- grupos ou indivíduos acabam se caracterizando pela subcidadania.
vadora das tomadas de decisões dos Estados modernos, mesmo que no
sentido da exclusão e do menosprezo, como foi no nazismo e ainda o é
hodiernamente, com o racismo, por exemplo.
4  A
 BIOPOLÍTICA E O RACISMO
Como Agamben afirma, “no homo sacer, enfim, nos encontramos
diante de uma vida nua residual e irredutível, que deve ser excluída e AMBIENTAL NO BRASIL COMO FORMA
exposta à morte como tal, sem que nenhum rito ou nenhum sacrifício
DE EXCLUSÃO DE CIDADÃOS
possam resgatá-la”13. O homo sacer não faz jus a qualquer esforço da
sociedade para ser resgatado de sua condição de matável, para ser salvo
de seu contexto excludente, assim como são os outsiders.
No estudo de Elias e Scotson, “constata-se que outsiders são vistos
A o se tratar de exclusão e racismo, se faz necessário compreender o
contexto atual de estado de exceção em que as decisões biopolíti-
cas são tomadas. Walter Benjamin em seu texto “Sobre o conceito de his-
pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados
tória”, alerta: “VIII - A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado
e desordeiros”14. Sendo assim, inferiorizados e estigmatizados pelos
de exceção” em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de
estabelecidos, o que pode enfraquecer e desestruturar o grupo exclu-
história que corresponda a essa ideia. Só então se perfilará diante dos
ído. O “estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos
nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadei-
poderoso costuma penetrar na autoimagem deste último e, com isso,
ro estado de exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo
enfraquecê-lo e desarmá-lo”15. Além do que esta estigmatização serve
melho­rará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato
como um mecanismo de exclusão dos não estabelecidos e formação
de os seus opositores o verem como uma norma histórica, em nome do
de uma massa de subcidadãos.
progresso. O espanto por as coisas a que assistimos “ainda” poderem ser
Os subcidadãos, segundo Jessé Souza, detêm um habitus precário,
assim no século vinte não é um espanto filosófico. Ele não está no início
ou seja, “seria um tipo de personalidade e de disposições de comporta-
de um processo de conhecimento, a não ser o de que a ideia de história
mento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indi-
de onde provém não é sustentável”.17
11 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2010, pp. 83 e 85. No atual contexto biopolítico de exclusão, em especial com a for-
12 .  Considerando-se aqui o senso comum de que os seres humanos não são animais e mação de grupos segregados por motivação ambiental, como é o caso
estariam acima destes. Em termos biológicos de classificação das espécies (taxonomia), a
espécie Homo sapiens é do Reino Animalia (portanto, um animal), Filo Chordata, Classe
Mammalia, Ordem Primata, Família Homininae, Gênero Homo. 16 .  SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia
política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 167.
13 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, p. 100.
17 .  BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter.
14 .  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L, Obra citada, p. 27. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e his-
15 .  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L, Obra citada, p. 24. tória da cultura. v.1. 8. ed. rev. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245.

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N N
dos nordestinos brasileiros sedentos, fica evidente que se instaurou um quer ouvi-los –, seja porque não têm vez – ou ninguém os deixa falar
estado de exceção permanente. O estado de exceção não é mais excep- –, seja porque, em termos de governabilidade, estes grupos excluídos
cional, se tornou a regra. E pior: o progresso acaba legitimando sua exis- constituam apenas uma grande massa para manobras políticas, nos di-
tência e sua perpetuação. zeres de Sloterdijk, um “pretume de gente”22.
A decisão biopolítica de retirar a humanidade de alguém ou de um Convivem ao mesmo tempo, paradoxalmente, dentro do Estado
grupo de indivíduos e de, portanto, torná-lo matável, excluído, outsider Democrático de Direito, a defesa e a garantia os direitos fundamen-
é do poder soberano. O limite entre vida e morte, entre inclusão e exclu- tais e a possibilidade de suspensão de todos esses direitos pelo es-
são, entre cidadãos e subcidadãos é uma expressão da soberania. En- tado de exceção. A dignidade humana e a igualdade como direitos
tretanto, o poder soberano está fora do ordenamento jurídico, destarte, fundamentais frente ao significado biopolítico do estado de exce-
acima da lei, em se tratando de estado de exceção. ção: a exclusão de cidadãos, em especial, a exclusão ambiental e o
O soberano “tendo o poder legal de suspender a validade da lei, colo- consequente racismo ambiental.
ca-se legalmente fora da lei”18, possibilitando o progressivo alargamento E pior: como estes grupos de outsiders são oprimidos, renegados e ig-
dos limites do estado de exceção e consequentemente, a permissividade norados, inclusive e principalmente pelo poder público, apesar de cons-
ao regime totalitário. tituírem um número enorme de indivíduos, a consciência de sua força
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a política acaba se dissipando. As “massas que não se reúnem mais efeti-
instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal vamente tendem com o tempo a perder a consciência de sua potência
que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas política”23. “A exclusão de enorme quantidade de setores populacionais
também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pa- da participação e inserção [...], leva aqui, [...] a uma ‘reação em cadeia de
reçam não integráveis ao sistema político”.19 exclusões’ e, por igual, também à pobreza política”24.
Em consonância com Benjamin, alertam Agamben que “o estado de Como afirma Agamben: “A dupla categorial fundamental da política
exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de gover- ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência políti-
no dominante na política contemporânea”20 e Pelbart que “o soberano é ca, zoé-bíos, exclusão-inclusão”25. E é exatamente nesta zona limítro-
aquele que decide do valor ou da falta de valor da vida enquanto tal [...]”21. fe que a força política e a luta dos – e pelos – grupos desprivilegiados
Com a naturalização do estado de exceção quaisquer categorias de cida- pode fazer a diferença. A defesa dos direitos fundamentais dos outsi-
dãos podem perder seu valor e se tornarem matáveis. Qualquer um pode ders ambientais por diferentes setores sociais, inclusive pela academia,
perder sua humanidade e se tornar o homo sacer. Quaisquer grupos po- pode acarretar mudanças positivas e pesar na tomada de decisões bio-
dem ser inferiorizados e estigmatizados, transformando-se em outsiders. políticas pelo governo.
Os milhares, quiçá milhões, de brasileiros que morrem pela falta A exteriorização da insatisfação da sociedade brasileira com a si-
de água no Nordeste são um exemplo claro da inferiorização da vida tuação dos outsiders ambientais do nordeste se transmuta em um
humana de alguns com a formação dos aqui denominados outsiders fator decisório. A partir do momento em que os cidadãos brasileiros
ambientais. A utilização da biopolítica para perpetuação do estado de demonstrarem sua repudia às promessas eleitoreiras de acabar com
exceção no Brasil é evidente com o racismo ambiental. o problema da sede e de levar água ao sertão e apoiarem os grupos
Intencionalmente, grupos vulneráveis arcam com as consequências
gravosas dos danos ambientais, seja porque não têm voz – ou ninguém
22 .  SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na socieda-
de moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 11.
18 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2010, p. 22. 23 .  SLOTERDIJK, Peter, Obra citada, 2002, p. 22.
19 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2004, p. 13. 24 .  MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da constituição dirigente.
20 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2004, p. 13. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 124.
21 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 64. 25 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2004, p. 15.

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ambientalmente excluídos, rejeitando o racismo ambiental e inserin-
5  CONSIDERAÇÕES FINAIS
do tais grupos no contexto das discussões políticas, a posição das deci-
sões biopolíticas não será mais excludente.
Assevera Carvalho: “O mundo contra o qual a crítica ecológica se le-
vanta é aquele organizado sobre a acumulação de bens materiais, no qual
A biopolítica se manifesta nas relações de poder contemporâneas
com a gestão da vida pelo soberano. As tomadas de decisões políti-
cas perpassam, inevitavelmente, pelos binômios vida – morte, estabele-
vale mais ter do que ser, no qual a crença na aceleração, na velocidade e na
cidos – outsiders, inclusão – exclusão e cidadania – subcidadania.
competitividade sem limites tem sido o preço da infelicidade humana, da
A decisão biopolítica de fazer viver ou deixar morrer, valorando a
desqualificação e do abandono de milhões de pessoas, grupos e socieda-
vida humana com a exclusão de quem tem menos ou nenhum valor é
des que não satisfazem esse modelo de eficácia”.26
uma dimensão injusta e trágica do biopoder e da soberania. Com a for-
O que se pretende, segundo Abreu, é permitir que as atividades huma-
mação de grupos excluídos, os outsiders, o racismo fica em evidência.
nas se desenvolvam “da forma menos impactante possível, evitando a al-
A vida nua, matável, descartável, irrelevante se espalha por diferentes
teração do equilíbrio ambiental e o esgotamento dos recursos naturais e
grupos vulneráveis, inclusive, na esfera ambiental.
tomando medidas cabíveis para minimizar o impacto gerado por essas ati-
Assim, o racismo transcende o preconceito racial e étnico e se ma-
vidades antrópicas”27. A distribuição do passivo ambiental não pode recair
terializa nas diferentes relações sociais, com a exclusão de pessoas e
apenas sobre determinada categoria de indivíduos, socialmente excluídos.
grupos em situação de vulnerabilidade. Um caso grave de racismo am-
A faceta trágica da biopolítica com o racismo ambiental, a desconside-
biental no Brasil que se destaca é o da exclusão dos brasileiros sedentos,
ração de grupos vulneráveis e a formação de outsiders ambientais, pode
no sentido literal, de seres humanos com sede, que não têm água sequer
ser redimensionada positivamente. É possível que os grupos excluídos,
para satisfação de suas necessidades mais básicas e mínimas.
vistos apenas como massa votante (número de votos) e não como cida-
Os direitos fundamentais exsurgem na defesa destes grupos am-
dãos que merecem respeito e cujos direitos fundamentais devam ser asse-
bientalmente vulnerabilizados e se posicionam contra a correnteza ex-
gurados, deixem sua posição de outsider e retomem sua cidadania furtiva-
cludente da biopolítica. Os grupos outsiders ambientais são encarados
mente esquecida pela máquina estatal.
pelos políticos brasileiros não como cidadãos que precisam de apoio
A situação precária dos brasileiros sedentos – um exemplo gritante de
para garantia de seus direitos, mas como votos em potencial. O título
injustiça ambiental – que outrora foi plataforma eleitoral de muitos po-
de eleitor vale mais do que a identidade ou o cadastro de pessoa física.
líticos – e ainda o é, pode ser mitigada com a efetivação participação dos
Esse mar de subcidadãos que têm sede e fome configura um nú-
cidadãos nas decisões biopolíticas, com a cobrança das promessas feitas
mero incrivelmente alto de votos para os candidatos que prometem
nas eleições e com a luta pela defesa dos direitos fundamentais destes ser-
acabar com a seca no sertão. A retomada da cidadania, injustamente
tanejos que não têm força política e econômica, que não têm voz, que não
furtada destas pessoas, serve apenas como vã promessa eleitoreira e
têm visibilidade, mas que têm dignidade. Estes brasileiros são cidadãos
como garantia de votos.
dignos e esta condição de outsiders ambientais não lhes é justa. A subci-
Não há interesse político em resolver o problema da seca no Nor-
dadania destes excluídos ambientais não pode ser aceita como natural.
deste brasileiro. O joguete biopolítico dos mecanismos de poder com a
vida destas pessoas é ultrajante. A memória dos horrores dos regimes
totalitários está viva no mundo inteiro, mas quem se preocupa com os
26 .  CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a formação do sujeito perigos que o progresso trouxe para os outsiders ambientais? Quem
ecológico. São Paulo: Cortez, 2004, p. 68.
se lembra dos milhões de pessoas que morrem no mundo por causa
27 .  ABREU, Ivy de Souza. Holismo e proteção do meio ambiente com vistas a manuten-
ção do equilíbrio ecológico: uma análise a partir do conceito de justiça em Aristóteles. De- da pobreza? Quem discute o problema da falta de água que rouba a
recho y Cambio Social. Lima - Peru, ano X, n. 31, p.1-11, 01 jan. 2013. Disponível em: <http:// dignidade dos irmãos brasileiros?
www.derechoycambiosocial.com/revista03/HOLISMO_ E_PROTEÇÃO_DO_MEIO_AM- O estado de exceção, a exclusão, o preconceito, o racismo ambiental, a
BIENTE.pdf>. Acesso em: 28 jan. 201, p. 5.

220 221
N N
desigualdade, a subcidadania, as injustiças socioambientais, a pobreza,
a fome, a miséria são questões biopolíticas que não podem renegadas a
um segundo plano de discussão. Cabe a toda sociedade, em especial a
academia, lutar pelos direitos dos outsiders, relembrar os horrores dos
regimes de exceção para evitar que novamente se instaurem.
Defender e buscar uma sociedade justa para todos é dever das pre-
sentes gerações. As gerações futuras dependem das atitudes dos ci-
dadãos do presente para que os problemas da exclusão e do racismo
ambiental sejam minimizados e um panorama biopolítico de justiça
ambiental seja fortalecido.

222
N
12
A SUSTENTABILIDADE COMO PARADIGMA
NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO
CONTEMPORÂNEO E DA SOCIEDADE
CIVIL NA CONTEMPORANEIDADE

Elizabeth de Mello Rezende Colnago

1  Introdução

O Meio Ambiente natural é o objeto maior a ser protegido, de acordo


com a Constituição Federal de 1988. Isto é feito em seu artigo 225 1
e, ao interpreta-lo, encontramos as diretrizes que determinam, em pri-
meiro momento, a titularidade do direito de “todos” ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
E, como norma jurídica impositiva, a Constituição Federal visa pro-
porcionar, para presentes e futuras gerações, as garantias de preser-
vação da qualidade de vida, em qualquer forma que esta se apresente,
procurando conciliar, elementos econômicos, sociais e ecológicos, evo-
luindo de acordo com a ideia de desenvolvimento sustentável.
A noção de desenvolvimento sustentável não evidencia a possibili-
dade ecológica de generalização dos padrões de consumo das socieda-
des atuais. Deve reforçar uma mudança dos valores éticos, pautados na
solidariedade como forma de preservar os níveis de bem estar material,
que consequentemente passará por uma mudança nesses padrões de
consumo, reforçando a ideia de bem estar social.
Em seu caráter fundamental dos direitos humanos, tem-se por esco-
po a realização da sustentabilidade e de uma ordem social justa, inseri-
dos como elemento fundante da ordem econômica ao Poder Público e
não só a coletividade.

1 .  ART. 225. Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e
à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

223
N
Desta forma, deve-se exigir ao Poder Público, o dever jurídico-constitucio- Segundo Da Silva Rosa, a noção de ética respeitosa em relação aos
nal de proteção do meio ambiente, inclusive, no projeto de construção do limites da natureza e ao direito à vida dos seres vivos, partindo de uma
‘Estado Contemporâneo/Sustentável’ para que se configure a ordem constitu- perspectiva transitória rumo a uma sociedade ecologicamente susten-
cional ambiental para maior efetividade em suas atividades. tável, “ Se efetivará através da reinvindicação de meios alternativos ca-
pazes de nos por em ralação com a natureza de uma maneira bem mais
justa. Essa ética nos convoca a assumirmos valores, tais como a respon-
sabilidade, a solidariedade, a precaução e a participação”5.
2  A mudança do paradigma dominante Este termo está ainda diretamente relacionado ao desenvolvimento
econômico e material em respeito à capacidade do meio ambiente em se

A Sustentabilidade é um termo usado para definir ações e ativida-


des humanas que visam harmonizar duas lógicas: a econômica à
natural. E desde que surgiram, as atividades econômicas sempre fo-
regenerar. Daí ser necessário o uso de recursos naturais de forma inteli-
gente para que eles se mantenham no futuro.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o desenvolvi-
ram indissociáveis dos ecossistemas. A humanidade ‘[...] depende da
mento sustentável é conceituado como um modelo que visa suprir as ne-
capacidade dos ecossistemas de prover recursos e serviços e ainda
cessidades atuais da humanidade, sem colocar em risco a capacidade das
absorver os resíduos. Por isso, discutir o prazo de validade da espécie
gerações futuras também o fazerem. Este conceito foi oficializado pela
humana na Terra requer atenção ao caráter metabólico de seu proces-
ONU no Relatório Brundtland, a partir da ideia de “ecodesenvolvimento”
so de desenvolvimento” 2.
na primeira Conferencia das Nações Unidas, de Estocolmo em 1972.
No processo de desenvolvimento sustentável, as atenções devem es-
E como forma de reafirmar a Declaração da Conferência das Nações
tar sempre voltadas à ‘precaução’, como forma de proteção ao meio am-
Unidas, adotada em Estocolmo em 1972, a Conferencia das Nações Uni-
biente e aos seres humanos. Deve estar voltada para postergar medidas
das sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na Declaração do Rio de
eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambien-
Janeiro em 1992, proclamada em princípios, procurou dar prosseguimen-
tal, posto que “[...] em vez de o desenvolvimento depender de crescimen-
to à discussão iniciada, com o claro objetivo de estabelecer uma nova e
to econômico - como nos últimos dez mil anos - ele passará a requerer o
equitativa parceria mundial por meio da criação de novos níveis de co-
inverso, o decrescimento”3.
operação entre os Estados, os setores-chave das sociedades e dos povos.
O decrescimento é baseado nas teses do economista Nicholas Geor-
A referida declaração procurou ratificar acordos internacionais
gescu-Roegen, em que os recursos naturais são limitados e, portanto,
em respeito aos interesses de todos, com a proteção e a integridade
não existe crescimento infinito. A melhoria das condições de vida deve
do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, ainda reco-
ser obtida sem aumento do consumo superfluo para suprir as necessi-
nhecendo a natureza integral e interdependente da Terra. Somente
dades atuais dos seres humanos, mudando-se o paradigma dominante,
assim seria alcançado o desenvolvimento sustentável, como determi-
para não comprometer as proximas gerações.
nado pelo Principio 4 desta declaração, dentre os demais princípios
É o princípio da solidariedade que se destaca, em relação a mudança
proclamados na denominada ECO-92, em que “a proteção ambiental
do paradigma dominante à diminuição da exploração da natureza, para
deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e
“[...] suprir as necessidades atuais dos seres humanos, sem comprome-
não pode ser considerada separadamente”6.
ter o futuro das próximas gerações, ou seja, a ética da solidariedade, ou
ainda da equidade intergeracional”4.
biental. In: Marques, José Roberto (Org.). Sustentabilidade e Temas fundamentais de Di-
2 .  CECHIN, Andrei e VEIGA, José Eli da. O fundamento central da Economia Ecológi- reito Ambiental. Campinas: Millennium, 2009. cap. 1. p. 29-30.
ca.2009, p.19. 5 .  DA SILVA ROSA, Teresa . VEIGA, José Eli da. (organizador) Economia socioambiental.
3 .  Idem, p. 19. São Paulo: SENAC, 2009, p.34 e 35.
4 .  CRUZ, Branca Martins da. Desenvolvimento Sustentável e Responsabilidade Am- 6 .  AGENDA 21. www.ecolnews.com.br/agenda 21. Acesso em 04 de junho de 2012.

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E não é outra a determinação do Princípio 21, em que “[...] a cria- socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da
tividade, os ideais e a coragem da juventude de todo o mundo deve- dignidade da vida humana, antes mesmo da promulgação da Constitui-
rão ser mobilizados para criar uma parceria global com o fim de se ção Federal em 1988 e da Conferência da ONU de 1992.
alcançar um desenvolvimento sustentável e assegurar um futuro “A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente foi importante mar-
melhor para todos”. co da sistematização da tutela ambiental. Ainda que anterior a própria
A Declaração do Rio/92 deu um passo significativo ao dizer que “[...] Constituição, sua recepção proporcionou o nascimento do Direito Am-
o melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação biental Brasileiro como ciência autônoma”11.
de todos os cidadãos interessados, em vários níveis” 7. Inclusive o Poder E não é diferente com a Lei 8.666/93 que regulamenta o artigo 37,
Público como um ator de ‘governança ambiental’ 8, e neste passo signi- inciso XXI, da Constituição Federal e institui normas para licitações e
ficativo, quanto às mudanças de padrões de consumo, relacionou uma contratos da Administração Pública e dá outras providencias no âmbito
série de atividades, entre as quais o exercício da liderança por meio das dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
aquisições pelos Governos, de modo a aperfeiçoar o aspecto ecológico A contínua preocupação em nosso País com o meio ambiente saudá-
de suas políticas de aquisição. vel, pode ser observada também no conteúdo da Instrução Normativa
E assim, dando continuidade as declarações onusianas, a “Rio + 20” nº 1 de janeiro de 2010, da Secretaria de Logística e Tecnologia da In-
teve como objetivo maior - para o futuro que queremos e sem esquecer formação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que es-
o presente que se quer - a intenção de definir novos desafios emergen- tabelece critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens,
tes. Foram “[...] levantados uma série de problemas relacionados ao de- contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal
senvolvimento sustentável e aponta caminhos para solucioná-los, mas direta, autárquica e fundacional.
carece de medidas práticas de implementação. A maioria das decisões A referida instrução normativa inseriu no artigo 3º da Lei nº 8.666/93
efetivas foram postergadas para 2015” 9. mais um princípio em que a administração pública deve observar/ga-
Mas a sustentabilidade não está determinada somente nas conferen- rantir e nortear as contratações públicas, que é o princípio da promoção
cias das Nações Unidas e a nível constitucional como acima citado. Ela do desenvolvimento nacional sustentável.
está determinada também a nível infraconstitucional, em leis esparsas E, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei nº
como modo de melhor tratar as questões ambientais. Sendo assim, cabe 12.305/10, também estabelece, dentre os seus objetivos, a prioridade, nas
analisar brevemente algumas leis ambientais, dando destaque a Política aquisições e contratações governamentais, para produtos reciclados e
Nacional do Meio Ambiente, a Lei nº 6.938/81 “[...] que deu novo direciona- recicláveis, e bens, serviços e obras que considerem critérios compatí-
mento institucional e administrativo à proteção ambiental no Brasil” 10. veis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis.
Ela já se preocupava em efetivar o desenvolvimento sustentável Desta forma, a política de resíduos sólidos, indica critérios e estes
através da preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental estão pautados no desafio de se avaliar a real necessidade de aquisição
propícia à vida. Visou assegurar no País, condições ao desenvolvimento do produto pretendido, levando-se em conta as circunstancias sob as
quais o produto foi gerado, considerando as matérias empregadas na
7 .  MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19 ed. São Paulo: Ma- sua produção, as condições de transporte, se podem ser reciclados, bem
lheiros, 2011, p. 107. como avaliação em relação ao comportamento durante sua fase útil e
8 .  A governança tornou-se uma das palavras ou temas-chave em política global ambien- após sua disposição final. Ou seja, verificar o produto do berço ao túmu-
tal, sendo que muito da força do conceito vem da capacidade de convergência dos interes- lo. Esse ainda é um tema novo e complexo que merece ser aprofundado.
ses transnacionais sobre as especificidades dos interesses individuais.
Em novembro de 2011, foi editado o Plano de Ação para Produção
9 .  ESTADÃO. com.br. Publicação: Acesso em 23/06/2012.
10 .  DANTAS, Marcelo Buzaglo; SÉGUIN, Elida; AHMED, Flávio (coord.). O direito ambien-
tal na atualidade: Estudos em homenagem a Guilherme José Purvin de Figueiredo. Rio de 11 .  GUIMARÃES, Vanessa de Azevedo. ARAÚJO, Marinella Machado. Licitação Sustentá-
Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.484. vel. In www.fmd.pucminas.br, 2010, p. 6.

226 227
N N
e Consumo Sustentáveis – PPCS, que visa à promoção e ao apoio a que “a participação cívica na conservação do meio ambiente não é
padrões sustentáveis de produção e consumo. Em seu primeiro ci- um processo político já terminado. Os fundamentos foram bem-lan-
clo de implementação, com inicio em 2011, que se estenderá até 2014, çados em todo o mundo, mas o edifício da participação tem muitos
identificou como temas prioritários, entre outros, as compras e cons- setores para serem concluídos” 12.
truções públicas sustentáveis. O Estado, como um dos atores de governança ambiental e indutor de
Neste plano de ações, por meio do Decreto Normativo n. 107/2010, Políticas Públicas, deve integrar em todas as suas atividades, critérios
o Tribunal de Contas da União decidiu e determinou a inclusão nas econômicos, sociais e ambientais, como exemplo a ser seguido, na cons-
prestações de contas de órgãos públicos, informações quanto à ado- trução do edifício da participação, para garantir o melhor benefício pos-
ção de critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens sível ao meio ambiente, como requisito obrigatório da “supremacia do
e na contratação de serviços ou obras. Ele tem como referência o De- interesse público em face do particular”, que nada mais é do que bene-
creto nº 5.940/2006 que institui a separação dos resíduos recicláveis fício em prol da sociedade, já que este é o comando constitucional para
descartados pelos órgãos e entidades da administração pública fede- todas as atividades exercidas na Administração Pública.
ral direta e indireta, na fonte geradora, e a sua destinação às associa- É como afirma Luiz Eduardo Wanderley em que a nova visão de de-
ções e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis, e ainda dá senvolvimento sustentável está fincada “[...] nas lutas contra hegemôni-
outras providências. cas e, entre as oscilações e tendências, mostra a urgência de mobiliza-
Mas, o que se verifica, é que nenhuma destas leis acima citadas, ção das sociedades mundiais, face ao desastre ecológico planetário em
quais sejam, a Lei nº 6.938/81, a Instrução Normativa nº 1 de janeiro comportamentos e práticas de uma cultura ecológica” 13. Ele afirma em
de 2010, a Lei 8.666/93, o Decreto nº 5.940/2006, o Decreto Normativo sua tese que tal mobilização deve ser manifestada na ecotecnologia, na
nº 107/2010 e a Lei nº 12.305/10, deixam claro o que vem a ser sustenta- ecopolítica, na ecologia social dentre outras.
bilidade. Elas apenas estabelecem critérios normativos a serem obser- É o objetivo que se pretende, qual seja, o encontro do Estado com a So-
vados, ou seja, nenhuma delas dispõe o que é padrão sustentável de ciedade Civil, constituído pelo processo de democratização, com a revita-
produção e consumo. lização da sociedade civil na postura de negociação, que aposta na possibi-
Destarte, padrão sustentável de produção e consumo não é sim- lidade de uma atuação conjunta, formalizada pela diversidade de atores.
plesmente aumento de consumo, como sinônimo de progresso como É nessa crescente participação democrática, que surge a partir de
pensado há décadas. Há contraponto desta questão. Está intrínseca ações, “[...] no sentido de pressionar as administrações públicas, para
e extrinsecamente relacionado com a reeducação de diversos atores fortalecer processos de cooperação e cogestão no público. Neste sen-
sociais, tais como sociedade, governo, indústria, comércio. Cada ator tido, criou-se uma tendência de atuação sociopolítica denominada em
social deve voltar-se para padrões de consumo éticos em relação aos geral pela expressão governabilidade participativa”. 14
bens produzidos, e que no caso dos bens ambientais, a estes, não se Os tipos de atores envolvidos são variados em relação ao Estado e
atribui um preço de utilização, nem a compensação de custos. a Sociedade Civil. Quanto ao Estado, formalizados pelo Executivo nas
E cada ator social deve buscar a relação rica e complexa, em que três esferas estatais (federal, estadual e municipal) e o Legislativo, com
podem se ajudar, se desenvolver, se regular e controlarem-se mutua- normas mais objetivas, funções e procedimentos razoavelmente defini-
mente. Deve-se repensar na implantação de politicas com estímulo dos, como os Conselhos Gestores de Políticas Públicas, Orçamentos Par-
a consumo de transformação, atrelando elementos da natureza no
processo econômico, isto é, incluindo todos os atores, tais como go- 12 .  MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19 ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2011, p. 109.
verno, indústria, comércio e os próprios consumidores.
13 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educação popular: metamorfoses e veredas. São Pau-
Partindo do conceito de sustentabilidade, que é o de suprir as ne- lo: Cortez, 2010, p.73.
cessidades atuais dos seres humanos, sem comprometer o futuro 14 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo. A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão
das próximas gerações, e, para alcançar a sua plenitude, sabemos pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). São Paulo: EDUC, 2009, p. 153, 154.

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ticipativos, Audiências Públicas e ainda agencias estatais específicas. O importante diferença, a coletividade irá vislumbrar que emerge a cons-
segundo, a sociedade civil, com ênfases diferenciadas, em vários tipos ciência de si mesmo, de suas ações e que somos responsáveis também
de movimentos sociais e associações, dentre os quais, os movimentos pelas consequências destas ações. O que não é diferente no enfrenta-
ambientalistas, de negros, de jovens, mulheres, moradia, partidos políti- mento da sustentabilidade do desenvolvimento.
cos, universidades, Igreja e ONGs. É quando Abdruschin fala da ‘ética do cuidado’, ainda como precur-
Segundo Raquel Raichelis e Ana Carolina Evangelista foi a Carta Polí- sora da sustentabilidade, em relação à consciência de si, em que: “Cada
tica de 1988 que imprimiu novos rumos e conteúdos ao debate sobre a de- pessoa se insere num determinado contexto e se constrói a partir da
mocratização do Estado e a definição de mecanismos inovadores de arti- interação com o ambiente que lhe é peculiar. É esse éthos sua morada,
culação com a sociedade civil, alargando os espaços de participação social, sua habitação. É a partir daí que a pessoa se faz como tal, e, portanto, é a
vejamos: “A Carta Constitucional, ao reafirmar a legalidade dos condutos partir daí que precisa ser compreendida. Nesse sentido, cuidar significa
clássicos da ordem democrática, abriu novas possibilidades de exercício ler nas entrelinhas do contexto sociocultural. A partir desse olhar o que
da cidadania ativa por meio de instrumentos como plebiscito, o referendo está pronto no mundo presta-se a transformação, e transformando o
popular, as audiências públicas, a iniciativa popular de lei, entre outros”.15 mundo o homem se transforma e se cuida também”.18
E segundo orientação imperativa de Luiz Eduardo Wanderley, é a de E ao retornar a Edgar Morin, apostar no incerto, é consciência indi-
que “[...] sem uma efetiva da democracia – política, econômica, social, cul- vidual além da individualidade, é um ‘circuito indivíduo/sociedade’ em
tural e como modo de vida -, a gestão pública fica enfraquecida e inerte 16. que a democracia favorece a relação rica e complexa, em que os dois po-
Desta forma, o Estado, assim como os cidadãos brasileiros estão dem se ajudar, se desenvolver, se regular e controlarem-se mutuamente.
submetidos a um regime político, ou seja, a democracia, que comporta É a auto organização como dito por Morin, ou seja, é ordem, desordem,
a autolimitação do poder Estatal pela separação dos poderes, a garantia tolerando e nutrindo endemicamente, às vezes explosivamente, de con-
dos direitos individuais e a proteção da vida privada, que segundo Ed- flitos que lhe conferem vitalidade, posto que “[...] vive da pluralidade, até
gar Morin, é “ [...] mais que um regime político; é a regeneração contínua mesmo na cúpula do Estado (divisão dos poderes executivo, legislativo,
de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democra- judiciário), e deve conservar a pluralidade para conservar-se a si própria. 19.
cia que produz cidadãos” 17. Nesta mesma linha, sobre esses encontros, e transpondo ao pen-
Portanto, os indivíduos atuando em conjunto, formam a sociedade, e, samento de Luiz Eduardo Wanderely, que primam pela diminuição da
essa coletividade, retroage sobre os mesmos, que são nada menos que desigualdade, ensinando que é preciso combinar os horizontes utópi-
produtos de um processo reprodutor da espécie humana, produzindo-se cos de uma construção de uma sociedade, que é pautada nos termos e
a cada geração, inseparáveis e ao mesmo tempo meio e fim de cada um. objetivos da Republica Federativa do Brasil, e que está contida no artigo
Nessa compreensão de Edgar Morin, para guiar a vida com respei- 3° da Constituição Federal de 1988, tais como, construir uma sociedade
to à diferença e identidade quanto a si mesmo, é que devemos atentar livre, mais humana, justa, solidária, democrática, sustentável, ética, “[...]
para o fato de que somos livres e não podemos somente acreditar que com passos concretos de uma publicização crescente; algo em desenvol-
as nossas vidas foram predestinadas pela vontade divina ou destino. vimento em distintas regiões do globo, em busca de uma gestão pública
Ha diferença entre o ser e o dever-ser. Quando compreendermos essa democrática, apesar dos limites e obstáculos encontrados. 20

15 .  RAICHELIS , Raquel. EVANGELISTA, Ana Carolina. A cidade de São Paulo: relações 18 .  ROCHA, Abdruschi Schaeffer. Hermenêutica do cuidado pastoral: lendo textos e pes-
internacionais e gestão pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). Parte soas num mundo paradoxal. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012, p. 197.
II. São Paulo: EDUC, 2009, p. 205. 19 .  MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo:
16 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo. A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pú- Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002, p. 109.
blica. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). Parte I. São Paulo: EDUC, 2009, p 157. 20 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo. Gestão pública das cidades. A cidade de São Paulo: re-
17 .  MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo: lações internacionais e gestão pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.).
Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002, p. 107. São Paulo: EDUC, 2009, pag 157.

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Essa nova visão, deve estar pautada na educação ambiental, de for- instrumento legal. É uma tendência de atuação sociopolítica a que cha-
ma a educar a humanidade para uma nova realidade, em que se consi- ma de governabilidade participativa. É acesso à cidadania fundada na
dere a Terra, e os recursos naturais como finitos, como bens essenciais constituição do Estado Democrático de Direito.
à manutenção de vida. E sempre que existirem no mercado opções de
produtos e tecnologias, estes devem integrar os aspectos econômicos,
ambientais e os sociais, já que as agressões contra a pessoa humana
atingem toda a natureza. Essa é a visão de decrescimento citada acima,
3  Conclusão
de Nicholas Georgescu Roegem.
É longo discurso pela frente, até que o processo multidimensional
consiga traçar as possibilidades do desenvolvimento das complexida-
A insustentabilidade do desenvolvimento surge quando a racionali-
dade econômica deixou de considerar a natureza como elemento
na esfera da produção, gerando uma crise ambiental. Em outras pala-
des ou dimensões políticas, econômicas, sociais, ambientais e jurídicas
vras, nesse momento foram assinalados os limites da racionalidade eco-
que nutre os avanços da individualidade que se afirma nos direitos do
nômica e os desafios da degradação ambiental ao projeto civilizatório
homem e do cidadão. Adquire liberdades existenciais, no sentido da
da modernidade. A partir de então, a conscientização e a percepção da
realização da Humanidade, ou seja, a permanência integrada “[...] dos
crise ecológica se estabelecem mundialmente ainda nos anos 60, expan-
indivíduos no desenvolvimento mútuo dos termos da tríade indivíduo/
dindo-se nos anos 70 até os dias de hoje.
sociedade/espécie”21 para a tão almejada comunidade planetária orga-
A conservação do meio ambiente vem demandando alterações signifi-
nizada, sustentável, com a finalidade precípua da busca da hominiza-
cativas nos usos dos recursos naturais, impondo ao Poder Público e à cole-
ção na humanização, pelo acesso à cidadania terrena.
tividade o dever de defendê-la face à complexidade dos conflitos surgidos.
E nesta linha de interpretações, podemos nos apropriar de um
A popularização e a universalização do conceito de desenvolvimen-
conceito de Giorgio Agamben de que “[...] ser contemporâneo é fixar o
to sustentável foram oficializadas no relatório “Nosso futuro comum”
olhar no seu tempo para dele perceber não as luzes, mas o escuro” 22.
da Comissão Brundtland, efetivando-o como sendo “aquele que aten-
E perceber o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne, “é não
de às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as
cessar de interpretá-lo”. 23
gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”24. Em 1992,
Portanto, há limites da natureza, e, ao direito à vida dos seres vi-
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-
vos, rumo a uma sociedade ecologicamente sustentável. A sustentabi-
mento – ECO 92 – Rio de Janeiro – Brasil - aprovou um programa global,
lidade como paradigma na construção do Estado contemporâneo e da
denominado de Agenda 21, que passou a regulamentar o processo de
sociedade civil na contemporaneidade deve ser efetivada por meio da
desenvolvimento com base em princípios sustentáveis.
reinvindicação de meios alternativos e éticos, capazes de nos por em
Essa Conferência das Nações Unidas deu prosseguimento à discus-
ralação com a natureza de uma maneira bem mais justa.
são iniciada anteriormente, estabelecendo uma nova e equitativa parce-
É dever do Estado e da sociedade civil, observar o princípio da pre-
ria mundial por meio da criação de novos níveis de cooperação entre os
caução, que tem relação direta com o impedimento de uma ação que
Estados, os setores-chave das sociedades e os povos. Ela ratificou acor-
visa causar um impacto indesejável, e tem a ver com a ideia de ante-
dos internacionais em respeito aos interesses de todos, com a proteção
cipação, pois está inserida na tomada de decisão, motivada, após um
e a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento.
Ainda, reconheceu a natureza integral e interdependente da Terra e que
21 .  MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo: somente assim seria alcançado um desenvolvimento capaz de dar conta
Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002, p. 115 da sustentabilidade ecológica das atividades humanas.
22 .  AGAMBEN, Giorgio. O que é ser contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Ni-
castro Honesko. SC: ARGOS, Chapecó, 2009, p. 63 e 64. 24 .   MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19 ed. São Paulo: Ma-
23 .  Idem, p.63 e 64. lheiros, 2011, p. 58.

232 233
N N
Dessa forma, a proteção ao meio ambiente é reconhecida como uma
evolução dos direitos humanos, resultado da conscientização ocorrida
desde a metade do século XX quando passa a demandar uma nova ma-
neira de se relacionar com a natureza. Em seu caráter fundamental, os
direitos humanos têm por escopo a realização da sustentabilidade e de
uma ordem social justa, inseridos como elemento fundante da ordem
econômica ao Poder Público e não só à coletividade.
Portanto, o meio ambiente natural sendo objeto maior a ser prote-
gido vai surgir no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, como nor-
ma jurídica impositiva, que visa proporcionar, para presentes e futuras
gerações, as garantias de preservação da qualidade de vida, em qual-
quer forma que esta se apresente. Ao conciliar elementos econômicos,
sociais e ecológicos, a legislação brasileira evolui de acordo com a ideia
da sustentabilidade do desenvolvimento, cuja concretização vai propor-
cionar uma mudança dos valores éticos, pautados na solidariedade, res-
ponsabilidade, participação e precaução, o que particulariza os padrões
de consumo às características das sociedades.
Destarte, para se compreender um Estado contemporâneo e uma so-
ciedade civil na contemporaneidade, tem-se por meta novas estratégias
para a sustentabilidade do desenvolvimento que requer o enfrentamen-
to de desafios novos e emergentes a fim de alcançar um justo equilíbrio
entre as necessidades econômicas, sociais e meio ambiente das gerações
presentes e futuras.

234
N
13
Por mares nunca de antes navegados:
gestão do risco e investigação
científica no meio marinho

Carla Amado Gomes

1  Gestão do risco para o


ambiente marinho e precaução:
um mar de incerteza

A ssociar Camões a este texto não tem apenas a conotação óbvia com
a epopeia marítima portuguesa imortalizada n’Os Lusíadas. O des-
tino, sócio-económico e geográfico, desde muito cedo uniu Portugal ao
mar, aliança que de certa forma ganhou uma especial memória com a
designação pela ONU, por sugestão portuguesa, do ano de 1998 como
Ano Internacional dos Oceanos, com a inerente organização da Expo ‘98
sob a égide desse tema1. Na verdade, com a referência aos navegadores
portugueses quisemos também ressaltar a origem do termo “risco”, que
terá sido introduzido por aqueles, para expressar a incerteza que envol-
via as viagens de descobrimento de novas terras2. Mar, incerteza e risco:

1 .  Esta efeméride marcou uma renovada atitude para com a temática do mar, traduzida
num conjunto de iniciativas desde a elaboração do relatório O oceano, nosso futuro (Fun-
dação Mário Soares, Lisboa, 1998, da autoria da Comissão Mundial Independente para os
oceanos), passando pela criação da Comissão Estratégica dos Oceanos, em 2003, que teve
por missão produzir uma estratégia nacional para o mar (a qual veio a tomar corpo no re-
latório Oceano: Um desígnio nacional para o século XXI, após a entrega do qual, em 2004,
aquela se extinguiu), até à criação de uma Estrutura de Missão para os assuntos do mar,
através da Resolução do Conselho de Ministros 163/2006, de 12 de Dezembro, que apresen-
tou em 2006, a Estratégia nacional para o mar, para vigorar por um período de cinco anos,
e que se encontra actualmente em curso de revisão pelo Governo (http://ecosfera.publico.
pt/noticia.aspx?id=1543956).
2 .  Cfr. Anthony GIDDENS, Runaway world, 2ª ed., Londres, 2002, p. 21.

235
N
três conceitos ligados desde há séculos, que encontram na lógica da pre- pacidade de assimilação/aproveitamento era tendencialmente ilimita-
caução, em finais do século XX, um novo entrelaçamento. da (cfr. Convenções de Londres, de 1972 e 1973) — a qual justificava a
Na verdade, o “princípio da precaução” ganhou visibilidade através adopção de medidas preventivas apenas quando o risco para o ambien-
do Direito do Mar, em finais da década de 1980, na Declaração resultante te fosse iminente —, passou-se para um modelo de capacidade de assi-
da Segunda Conferência Ministerial do Mar do Norte, sobre poluição milação/aproveitamento tendencialmente limitada (cfr. a Convenção de
marítima3. Desta Declaração de Londres (1987) consta uma tomada de Montego Bay, Parte XII), com a implementação de uma atitude perma-
posição quanto à vinculação dos signatários a uma atitude de precau- nentemente preventiva por parte dos Estados6, e ter-se-á transitado, no
ção que, sem embargo de anteriores referências esparsas a esta noção4, final dos anos ‘1980 (cfr. a Declaração de Londres de 1987, supra mencio-
tem sido identificada como a primeira formulação do princípio. Assim, nada), para um quadro de tendencial incapacidade de assimilação/apro-
nos termos do artigo XVI/1: “[The ministers] accept the principle of safe- veitamento, que obriga à abstenção de intervenções potencialmente le-
guarding the marine ecosystem of the North Sea by reducing pollution sivas do meio marinho, mesmo que os dados científicos não permitam
emissions of substances that are persistent, toxic and liable to bio accu- estabelecer, com segurança, o nexo de causalidade entre a intervenção
mulate at source by the use of the best available technology and other projectada e o dano pressentido7.
appropriate measures. This applies especially when there is reason to O percurso da lógica de precaução, tanto no âmbito do Direito Inter-
assume that certain damage or harmful effects on the living resources nacional Ambiental geral como no especial — para o que aqui releva, no
of the sea are likely to be caused by such substances, even where there Direito do Mar —, tem sido tudo menos linear, apesar de algumas decla-
is no scientific evidence to prove a causal link between emissions and rações entusiásticas de alguma doutrina no sentido da sua ascensão a
effects («the principle of precautionary action»)”. princípio de Direito Internacional (Ambiental) geral8. A deriva termino-
Esta atitude antecipativa de gestão do risco prende-se com a evolu- lógica é grande, as reticências dos tribunais internacionais são conheci-
ção, promovida pela atenção emergente dos anos ‘1970 às questões am- das e a prática dos Estados não ajuda à consistência do princípio. Com
bientais, no tratamento das questões relativas à preservação do meio efeito, desde a fórmula forte da Carta Mundial da Natureza, de 1982 [cfr.
marinho5: de uma abordagem baseada num pressuposto de que a ca- o princípio 11/b)] até à fórmula fraca da Declaração do Rio de Janeiro, de
1992 (cfr. o princípio 15), há quem tenha contabilizado, logo em 1993, doze
3 .  Sobre a abordagem ao princípio da precaução nas Declarações das Conferências do diferentes definições9; o Tribunal Internacional de Justiça (=TIJ) negou-
Mar do Norte, L. GÜNDLING, The status in International Law of the principle of pre-
lhe a natureza de princípio, no Acórdão Gabcikovo-Nagymaros (1997),
cautionary action, in IJECL, 1990/1, 2, 3, pp. 23 segs; E. HEY, The precautionary approach.
Implications of the revision of the Oslo and Paris Conventions, in MP, 1991/7, pp. 244
segs; J. M. MACDONALD, Appreciating the precautionary principle as an ethical evolu-
tion in ocean management, in OD&IL, Vol. 26, 1995, pp. 255 segs, 267 segs; D. FREESTONE 6 .  Sobre a protecção do meio marinho na Convenção da ONU para o Direito do Mar,
e E. HEY, Origins and development of the precautionary principle, in The precautionary veja-se Carla AMADO GOMES, A protecção internacional do ambiente na Convenção de
principle and International Law, org. de D. Freestone e E. Hey, The Hague/London/Boston, Montego Bay, in Direito Ambiental: O Ambiente como objecto e os objectos do Direito do
1996, pp. 3 segs, 5 segs. Ambiente, Curitiba, 2010, pp. 143 segs.

4 .  É verdade que o baptismo de uma determinada fórmula linguística como “princípio 7 .  Na formulação de Malgosia FITZMAURICE (Contemporary issues in International
da precaução” ocorreu pela primeira vez na 2ª Conferência do Mar do Norte. Porém, indí- Environmental Law, Cheltenham/Northampton, 2009, p. 3), tal evolução parte de um mo-
cios de uma lógica de antecipação de riscos podem encontrar-se na moratória de 1970 con- delo curativo, passando para um modelo preventivo e configura hoje (pelo menos teorica-
tra a pesca da baleia e na Carta Mundial da Natureza (1982), concretamente no Princípio mente), um modelo antecipativo (curative; preventive; antecipatory).
II/11, b) — cfr. G. FULLEM, The precautionary principle: environmental protection in the 8 .  Neste sentido, entre muitos, E. HEY, The precautionary concept in Environmental
face of scientific uncertainty, in Willamette LR, 1995/2, pp. 495 segs, 502 —, bem como na policy and law: institutionalizing caution, in The GIELR, 1992, pp. 303 segs, 307; O. McIN-
Convenção-quadro para a protecção da camada de ozono, adoptada em Viena, em 1985, a TYRE e T. MOSEDALE, The precautionary principle as a norm of customary interna-
que seguiu, em 1987, o Protocolo de Montreal, que estabelece um calendário para a elimi- tional law, in JEL, 1997, nº 2, pp. 221 segs, 224 segs, 235; J. CAMERON, The precautionary
nação ou redução das emissões nocivas — cfr. P. MARTIN-BIDOU, Le principe de précau- principle in International Law, in Reinterpreting the precautionary principle, org. de T.
tion en Droit International de l’Environnement, in RGDIP, 1999/3, pp. 631 segs, 634, 635. O’Riordan, J. Cameron e A. Jordan, Londres, 2001, pp. 113 segs, 133.
5 .  Sobre esta evolução, veja-se Stuart M. KAYE, International fisheries management, 9 .  D. VANDERZWAAG, The concept and principles of sustainable development: “Rio-for-
The Hague/London/Boston, 2001, pp. 43 segs. mulating” common law doctrines and environmental laws, in WYAJ, 1993, pp. 39 segs, 46.

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preferindo a prevenção como base de medidas antecipativas de riscos, dúvida, age de modo a minimizar eventuais riscos, sopesando o custo
e o Tribunal Internacional para o Direito do Mar (=TIDM) furtou-se a das medidas de minimização e o benefício em prevenção de riscos para
utilizar a noção, antes falando em “prudence and caution” na decisão so- a saúde e ambiente, utilizando a melhor técnica disponível —, equivale
bre medidas provisórias Southern Bluefin Tuna (1999); a França negou a um alargamento da noção de prevenção, dos tradicionais perigos aos
à precaução a natureza de princípio, perante o TIJ, no âmbito do caso novos riscos, temperada pela concordância entre os valores em jogo.
dos ensaios nucleares II (1995) contra Austrália e Nova Zelândia, mas Como na sociedade de risco “a única certeza é a incerteza”12, o objecto da
alegou-o como fundamento do embargo à carne de vaca inglesa perante prevenção, actualmente, alarga-se a domínios de intensa incerteza, ou
o Tribunal de Justiça da União Europeia (=TJ), num caso que a opôs à seja, o seu objecto é sobretudo a antecipação de riscos — numa lógica
Comissão Europeia, em 200010. de equilíbrio entre a protecção de valores contextualmente antagónicos
A verdade é que da noção que ganhou amplificação mundial com num cenário de ausência de consensos científicos e com recursos escas-
a Declaração do Rio de Janeiro — enquanto approach, não enquanto sos. O “interface ciência-política” (science-policy interface) na constru-
principle… — é tarefa árdua extrair um sentido unívoco de aplicação, ção do desenvolvimento sustentável a que a Declaração da cimeira Rio
tantas são as “reservas” (muito diferentes “capabilities”; dificuldade de + 20 (The future we want) por várias vezes alude mais não é do que a
preenchimento dos conceitos “threat”, “serious” e “lack of full scientific concretização desta ideia.
certainty”; avaliação do que é “cost-effective”): “In order to protect the
environment, the precautionary approach shall be widely applied by
States according to their capabilities. Where there are threats of serious
2  Due diligence e precaução
or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used
as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environ-
mental degradation”.
A ambiguidade do conceito é tal que Malgosia FITZMAURICE defen-
N ão podendo, a partir dos dados disponíveis, caracterizar-se um
princípio (por ausência de conteúdo “normativo”) há, todavia, tra-
ços inovatórios que a lógica de precaução introduziu — essencialmente,
de que, mais que perseguir a definição da sua natureza (de princípio; de
apontando para uma diferença de grau, mas não de espécie, relativa-
máxima de orientação jurídica ou política; de duplicação da prevenção
mente à prevenção tradicional. Tais inovações prendem-se, justamente,
ou de aliud em face desta), mais útil parece ser analisar a sua configura-
com a gestão da incerteza e materializam-se em deveres procedimen-
ção em cada instrumento internacional, numa tentativa de apreender
tais que ganham uma noção de síntese no procedimento de avaliação
se daí resultam soluções originais, ou seja, diferentes — porque mais
de impacto ambiental13, a que a Declaração do Rio de Janeiro deu desta-
exigentes — daquelas a que se chegaria se se adoptasse uma pura lógica
que, no princípio 17 e que foi recentemente alçado a princípio geral de
de prevenção, de reacção apenas perante um risco iminente11. A verda-
Direito Internacional do Ambiente pelo TIJ (Caso das celulosas do rio
de é que a precaução, na sua versão forte, só em escassos e determina-
Uruguai, 2010) e pelo TIDM (Caso 17 – Parecer sobre a responsabilidade
dos domínios será operativa, porque a directriz na dúvida, abstém-te,
do Estado por concessão de operações desenvolvidas na Área — 2011).
em raros casos se justificará (diminutas serão as hipóteses em que um
Deve sublinhar-se, contudo, o relativismo desta “ascensão”: estas de-
risco sobre bens jurídicos fundamentais se traduz numa total incerteza
cisões consagram um instrumento, mas não identificam um padrão de
quanto à eclosão e efeitos, e numa ínfima estimativa de benefícios para
avaliação. Por outras palavras, ambos os tribunais internacionais men-
a saúde e para o ambiente). Em contrapartida, a sua versão fraca — na

10 .  Acórdão de 13 de Dezembro de 2001, Caso C-1/00. 12 .  Nicolas DE SADELEER, Environmental principles – From political slogans to legal
11 .  Malgosia FITZMAURICE, Contemporary issues…, cit., pp. 6-7. A autora chega a afir- rules, Oxford, 2002, pp. 17-18.
mar que “The endless analysing of the legal character of the norms of international en- 13 .  Cfr. Malgosia FITZMAURICE, Contemporary issues…, cit., p. 30 (“It appears
vironmental law is a somewhat fruitless exercise, which in fact has very little practical that the role of the precautionary principle is primarily in risk management and that it is
significance”. one of its few uncontested features”).

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cionados apontam para a necessidade de uma metodologia mas não es- ção e suficiência dos critérios utilizados no estudo de impacto ambien-
tabelecem critérios universais subjacentes a esta — o que fragiliza tal tal que esteve na base, em 2009, da primeira concessão de mineração
consagração mas constitui uma inevitabilidade, em face das múltiplas marinha a grande profundidade à empresa canadiana Nautilus, na
abordagens que a Ciência veicula aos problemas que analisa. Na verda- plataforma continental da Papua Nova Guiné17. O estudo apresentado
de, mesmo a Convenção de Espoo, de 1991 (em vigor desde 1997)14, sobre pela Coffee Natural Systems foi agora revisto por John Luick, do South
avaliação de impacto ambiental, nada avança sobre critérios de avalia- Australian Research and Development Institute (SARDI), tendo sido de-
ção, incidindo apenas sobre o procedimento e o conteúdo mínimo da do- tectados por este oceanógrafo graves erros e omissões, que terão alega-
cumentação a ter em consideração. Terá sido no sentido de aumentar a damente desconsiderado os efeitos colaterais da extracção do minério
fiabilidade desta metodologia que a Conferência de Partes aprovou, em para a qualidade da água e para a integridade da fauna piscícola. O facto
2004, um segundo aditamento a esta Convenção que modifica a alínea c) de a peer review que a Coffee Natural Systems proclama ter promovido
do artigo 11, que versa sobre a actualização permanente dos métodos de não ter sido tornada pública está a dividir a comunidade científica, que
implementação da avaliação de impacto ambiental. Na nova redacção considera que um projecto de impactos tão desconhecidos deveria ter
(ainda não em vigor), as Partes substituíram a consulta a organizações sido sujeito a uma avaliação de riscos mais criteriosa.
internacionais e a comités científicos pela consulta de quaisquer órgãos Estes exemplos atestam a importância que a avaliação de riscos re-
competentes com experiência científica relevante na matéria sob avalia- vela actualmente — bem assim como a sua complexidade. Com efeito, o
ção15. Reforça-se a credibilidade dos resultados, mas continuam a não se avolumar de riscos para o ambiente, induzidos pela técnica e que se tra-
fixar nem um conjunto de critérios de análise padronizado. duzem em alterações irreversíveis nos processos naturais, deve corres-
Nesta sede e sobre a questão da controvérsia potencialmente emer- ponder a uma avaliação e gestão desses mesmos riscos de forma cada
gente de um procedimento (de avaliação de impacto ambiental) à par- vez mais cientificamente antecipativa. Deveres como elaboração de es-
tida científico e passível de minimizar impactos adversos significativos tudos de impacto ambiental, fornecimento de informação, promoção de
para o ambiente marinho, deixam-se aqui duas notas: a primeira, para consultas, criação de estruturas de participação pública, notificação de
dar notícia do estudo realizado no contexto da protecção do ambiente acidentes, elaboração de planos de emergência, foram emergindo paula-
marinho do Mar Báltico, no quadro da Convenção de Helsínquia (1974), tinamente, da jurisprudência para declarações e convenções, do âmbito
no sentido de estabelecer um padrão científico tendencialmente homo- específico para o âmbito geral. Vejam-se os princípios 10, 17, 18, 19 da De-
géneo para a avaliação de riscos naquela região16. Este estudo, coorde- claração do Rio de Janeiro18, que trouxeram para o âmbito geral vários
nado por Bertil Hägerhäll e publicitado em 2001, destaca a necessidade deveres associados à prevenção, alguns transitados da Convenção de
de assessoria científica independente e assente no mais actualizado e Montego Bay — cfr. os artigos 198, 199, 200, 204 e 20619.
credível conhecimento no âmbito do procedimento de avaliação de im- Esta metodologia de cooperação preventiva espelha a due diligence
pacto ambiental e de gestão dinâmica de riscos, e apela à partilha de a que os Estados e entidades sob sua jurisdição estão vinculados no âm-
informação e contínua divulgação de relatórios sobre o estado do meio bito da realização de actividades que possam causar impactos significa-
marinho pelos Estados signatários da Convenção. tivos para o ambiente. Trata-se fundamentalmente de um conjunto de
A segunda nota prende-se com as dúvidas suscitadas pela adequa- obrigações de meios e não tanto de resultado, em razão da densa incer-

14 .  Cfr. http://www.unece.org/env/eia/eia.html 17 .  Cfr. A notíciahttp://www.scidev.net/en/agriculture-and-environment/land-water-


15 .  Na nova redacção, a alínea c) do artigo 11 passará a ser a seguinte: -pollution/news/review-claims-poor-science-in-deep-sea-mining-report-.html
“(c) Seek, where appropriate, the services and cooperation of competent bodies having 18 .  Respectivamente: participação pública em procedimentos de tomada de decisão am-
expertise pertinent to the achievement of the purposes of this Convention”. biental e acesso à justiça ambiental; avaliação de impacto ambiental; dever de notificação
16 .  Scientific information and knowledge for decision-making in international marine de eventos e factos lesivos do ambiente; dever de consulta.
conventions, particularly in the Baltic Sea Area, Bertil Hägerhäll (coord.), Ardea Miljö 19 .  Respectivamente: notificação de acidentes; elaboração e plano e emergência; troca de
AB, 2001 (disponivel em www.mare.su.se/dokument/convention_report.pdf). informação; monitorização de riscos; avaliação de impacto ambiental.

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teza que envolve as questões da protecção ambiental (e sanitária). Tam- ram acolhidas na primeira conferência sobre Direito do Mar promo-
bém por isso é essa a metodologia enunciada pela CDI nos Draft articles vida pela Liga das Nações em 1930 — não tendo sido, infelizmente,
on prevention of transboundary harm from hazardous activities (2001), devidamente incorporadas na regulação da pesca do arenque, hoje
porventura o mais completo padrão de cooperação preventiva com vis- espécie sobre-explorada20.
ta à protecção ambiental no Direito Internacional actual. A dinâmica do ambiente marinho e as contínuas descobertas de re-
A redução da incerteza só através da pesquisa científica e da expe- cursos, minerais e energéticos, nos fundos marinhos, pontuaram a se-
rimentação técnica pode ser prosseguida. Não podendo garantir-se os gunda metade do século XX e desembocaram numa intensa mediação
resultados num amplo conjunto de situações, em razão da dinâmica dos entre a ciência e a regulação das actividades no mar, desde a prevenção
fenómenos e da inconclusividade das avaliações, a obrigação de recolha, e controlo da poluição, à gestão da biodiversidade marinha, até ao apro-
tratamento, divulgação e actualização de dados constitui procedimento veitamento dos potenciais mineral e energético marinhos. Pode mesmo
incindível da observância dos deveres assinalados. A due diligence que afirmar-se que a determinação da adopção de medidas provisórias pelo
traduz a atitude de cooperação preventiva para a antecipação e redução TIJ, no sentido da ordem de suspensão dos ensaios nucleares france-
de riscos ambientais e sanitários materializa-se num devido procedi- ses à superfície nos mares do Pacífico, solicitada pela Austrália e Nova
mento avaliativo de tratamento da informação a partir da melhor base Zelândia e um conjunto de Estados austrais (caso Ensaios nucleares I,
científica disponível, no âmbito da qual o incentivo à criação científica, 1973), constitui um afloramento precoce da lógica de antecipação de ris-
o apoio à investigação, a formação de especialistas e o financiamento de cos, uma vez que ocorrendo a deflagração dos engenhos em alto mar,
novas tecnologias, assumem um papel decisivo. não havia certezas sobre a contaminação radioactiva extensível a es-
paços marinhos sob jurisdição daqueles Estados21 — mas na dúvida e
perante a urgência de evitar danos irreversíveis ao ambiente e à saúde,
o Tribunal decretou a suspensão.
3  Gestão antecipativa do risco Esta sensibilidade crescente à contribuição da ciência e da tecnologia
e ciência no Direito do Mar para a protecção do ambiente foi registada na Declaração de Estocolmo.
Conforme se lê no princípio 18: “Science and technology, as part of their

A pesar de a questão ambiental ter ganho eco mundial com a Con-


ferência de Estocolmo, em 1972, o século XX regista algumas to-
madas de posição anteriores, concretizadas em pontuais instrumen-
contribution to economic and social development, must be applied to
the identification, avoidance and control of environmental risks and to
the solution of environmental problems and for the good of mankind”.
tos internacionais — alguns deles, justamente, com incidência no Vinte anos mais tarde, a Declaração do Rio retoma o elogio da ciência
ambiente marinho. A ligação entre a ciência e o Direito Internacional na promoção da qualidade ambiental, mas acentua também o impera-
do Ambiente terá despontado na Convenção sobre a caça de focas no
Mar de Bering, de 1911, baseada na decisão do tribunal arbitral cons- 20 .  Cfr. Patricia BIRNIE, Law of the Sea and ocean resources: implications for marine
tituído em 1889, a qual, por seu turno, se fundou num extenso estudo scientific research, in IJM&CL, 1995/2, pp. 229 segs, 231-232.
sobre o habitat de espécies migratórias. Um segundo momento pode 21 .  Esta decisão gerou intensa controvérsia no Tribunal, tendo sido fruto de uma votação
de 8 juízes contra 6. A questão principal prendeu-se com a existência de jurisdição do TIJ
ser identificado na investigação iniciada em 1926 sobre poluição ma-
sobre uma zona de alto mar (e também de espaço atmosférico), ao cabo e ao resto, aquela
rinha, que culminou com a assinatura da Convenção de Londres sobre onde a actividade de experimentação francesa teria lugar. Os votos dissidentes dos juízes
prevenção da poluição por hidrocarbonetos, de 1954, com soluções vencidos focam extensamente este ponto, que está estreitamente ligado à caracterização
da legitimidade dos Estados austrais para defender (ainda que devido a uma relação fun-
fortemente filiadas em descobertas científicas. Em terceiro lugar, refi-
cional) bens situados em espaços fora de jurisdição. O Tribunal “atirou” a decisão sobre
ram-se as pesquisas levadas a cabo pelo Conselho Internacional para este pressuposto para a causa principal, em nome da urgência na prevenção de danos ao
a exploração do mar, constituído em 1902, por cientistas de Estados meio marinho e às pessoas, mas como a providência veio a caducar em virtude da altera-
ção da forma de realização dos ensaios pela França (de à superfície para subterrâneos), o
costeiros dos Mares do Norte e Atlântico norte, cujas conclusões fo-
Tribunal nunca chegou a pronunciar-se sobre tal magno problema.

242 243
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tivo de partilha do conhecimento, numa lógica de cooperação interna- 199922. Estava em causa rebater a prática de sobrepesca do atum azul
cional. O princípio 9 estabelece isso mesmo: “States should cooperate to por parte do Japão, contestada pela Nova Zelândia e Austrália em vir-
strengthen endogenous capacity-building for sustainable development tude de provocar exaurimento de stocks, mas defendida pelos nipóni-
by improving scientific understanding through exchanges of scienti- cos com base na alegação de que se trataria de um programa de pesca
fic and technological knowledge, and by enhancing the development, experimental a levar a cabo entre 1998 e 2000. O atum azul é espécie
adaptation, diffusion and transfer of technologies, including new and protegida por uma Convenção para a Conservação do atum azul, cele-
innovative technologies”. brada entre os três Estados em 1993, à qual acresceriam as normas da
Muito recentemente, a Declaração final da cimeira Rio + 20 ilumina CMB (ratificada pelos três Estados) sobre gestão racional da pesca em
a contribuição decisiva da comunidade epistemológica para a gestão ra- alto mar — nomeadamente, os artigos 64 e 116 a 119, que apontam para
cional dos recursos, acentuando a tónica das responsabilidades comuns a necessidade de salvaguarda do melhor nível de sustentabilidade ou
mas diferenciadas: “48. We recognize the important contribution of the regenerabilidade da espécie piscícola em causa (maximum sustainable
scientific and technological community to sustainable development. We yield, rendimento máximo sustentável).
are committed to working with and fostering collaboration among aca- A controvérsia científica sobre o estado dos stocks levou o Japão a
demic, scientific and technological community, in particular in develo- sustentar que se estaria perante uma controvérsia científica e não jurí-
ping countries, to close the technological gap between developing and dica (§42). No entanto, o TIDM considerou que, estando ambas as par-
developed countries, strengthen the science-policy interface as well as to tes de acordo quanto à severa depleção da espécie, que teria atingido
foster international research collaboration on sustainable development”. mínimos históricos e constituia razão de preocupação séria em termos
Também o TIJ, já na década de 1990, deixou bem clara a importância que biológicos (§72), qualquer tipo de actividade de captura, ainda que ale-
reconhece à componente científica no âmbito da protecção do ambiente. gadamente a título puramente experimental, poderia causar dano ir-
Conforme obtemperou no Acórdão Gabcikovo-Nagymaros (consid. 140), reversível e apelando à prudência e precaução (prudence and caution),
“The Court is mindful that, in the field of environmental protection, vi- preventivamente, deveria ser sustada — mesmo que os dados científi-
gilance and prevention are required on account of the often irreversible cos apresentados quanto às causas da depleção fossem contraditórios:
character of damage to the environment and of the limitations inherent “77. Considering that, in the view of the Tribunal, the parties should
in the very mechanism of reparation of this type of damage. in the circumstances act with prudence and caution to ensure that ef-
Throughout the ages, mankind has, for economic and other reasons, fective conservation measures are taken to prevent serious harm to the
constantly interfered with nature. In the past, this was often done wi- stock of southern bluefin tuna;
thout consideration of the effects upon the environment. Owing to new 78. Considering that the parties should intensify their efforts to coo-
scientific insights and to a growing awareness of the risks for mankind - perate with other participants in the fishery for southern bluefin tuna
for present and future generations - of pursuit of such interventions at an with a view to ensuring conservation and promoting the objective of
unconsidered and unabated pace, new norms and standards have been optimum utilization of the stock;
developed, set forth in a great number of instruments during the last two 79. Considering that there is scientific uncertainty regarding measu-
decades. Such new norms have to be taken into consideration, and such res to be taken to conserve the stock of southern bluefin tuna and that
new standards given proper weight, not only when States contemplate
new activities but also when continuing with activities begun in the past”. 22 .  Veja-se também o caso nº 7, decidido pelo TIDM em 2009, que opôs o Chile à União
No Direito do Mar, porventura a mais paradigmática jurisprudência Europeia devido à alegada pesca ilegal de peixe-espada no sudeste do Pacífico. Deste
caso, ressalte-se a injunção do Tribunal no sentido da constituição de Comité Técnico-
sobre a articulação entre conhecimento científico e protecção do meio
Científico Bilateral com as seguintes tarefas: promover a troca de informação e de dados
marinho é o Acórdão Southern Bluefin Tuna, do TIDM, prolatado em sobre capturas e esforço de pesca, bem como do estado dos stocks; fornecer assessoria
de base científica sobre gestão dos stocks do modo a assegurar a sustentabilidade destes;
fornecer assessoria sobre medidas adicionais de conservação — cfr. o ponto 4 do despa-
cho de 16 de Dezembro de 2009.

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there is no agreement among the parties as to whether the conservation particularmente a perspectiva abrangente e entrecruzada dos ecossis-
measures taken so far have led to the improvement in the stock of sou- temas entre si, e entre estes e a actividade humana: “The comprehensive
thern bluefin tuna; integrated management of human activities based on the best available
80. Considering that, although the Tribunal cannot conclusively as- scientific knowledge about the ecosystem and its dynamics, in order to
sess the scientific evidence presented by the parties, it finds that measures identify and take action on influences which are critical to the health
should be taken as a matter of urgency to preserve the rights of the par- of marine ecosystems, thereby achieving sustainable use and ecosystem
ties and to avert further deterioration of the southern bluefin tuna stock”. goods and services and maintenance of ecosystem integrity”.
A sustentação científica ganha, portanto, cada vez maior relevo nos Conforme realça TANAKA26, a abordagem científica dos ecossiste-
litígios ambientais23, ainda que por recurso às conclusões mais plausí- mas é especialmente relevante nos chamados grandes ecossistemas
veis e não às verdades incontestáveis. De realçar nesta sede é, identi- marinhos (“large marine ecossystems”), massas de água extensíveis por
camente, a representação da Comissão Oceanográfica Intergoverna- áreas de cerca de 200,000 metros quadrados desde a linha de costa e
mental junto do TIDM na fase oral do processo de consulta que lhe foi que albergam em torno de 95% das espécies piscícolas27, atravessando
submetido no caso 1724, a propósito da responsabilidade dos Estados por e entrecruzando áreas marinhas sob jurisdição de diferentes Estados,
actividades desenvolvidas por entidades por si patrocinadas na Área. cuja cooperação na investigação das suas características é decisiva. O
Este parecer — o primeiro a ser solicitado ao Tribunal de Hamburgo e a Conselho Internacional para exploração do mar tem vindo, desde 2001,
primeira vez que uma pronúncia reuniu a unanimidade — envolve ma- a assessorar os Estados no levantamento e partilha de informação so-
térias altamente complexas do ponto de vista técnico e científico, para bre estes ecossistemas.
além de jurídico, na medida em que se prende com a fixação de stan- Não se estranha, portanto, que a CMB esteja polvilhada de referên-
dards de gestão preventiva do risco para o ambiente marinho em razão cias à investigação científica, apoio indispensável de procedimentos
do desenvolvimento de actividades na Área25. credíveis de avaliação de riscos, como veremos de seguida.
Com efeito, no ambiente marinho — como no ambiente em geral —, a
dinâmica física e biológica recomenda uma atenção constante, um estu-
do atento, uma avaliação criteriosa. O conceito de “abordagem ecossis-
4  Investigação científica
témica” (ecosystem approach), que encontramos, por exemplo, na defini-
ção do Comité da Biodiversidade da Convenção OSPAR de 1992, reflecte e protecção do meio marinho na CMB
23 .  Refira-se que a Austrália propôs uma acção contra o Japão junto do TIJ, em 1 de Junho
de 2010, por alegada violação das normas relativas à proibição da pesca da baleia, generi-
camente vedada desde 1985/86 por uma moratória emanada da Comissão baleeira inter-
A investigação científica marinha é uma componente ineliminável do
objectivo de protecção do ambiente marinho. Pense-se desde logo
na controvérsia Bluefin tuna e nos métodos de avaliação do máximo
nacional, com base na Convenção Internacional sobre a pesca da baleia — que ambos os
Estados ratificaram —, e que se baseia na grande incerteza científica sobre o estado dos rendimento sustentável, pressuposto do exercício lícito da pesca de de-
stocks. O Japão justifica o programa de pesca que desenvolve na zona da Antártida (JARPA
terminada espécie piscícola; ou no estudo de aproveitamentos energéti-
II) por apelo à excepção de autorização da pesca para fins de investigação científica (cfr. o
artigo VIII da Convenção), e a Austrália contrapõe que um tão amplo programa foge total-
mente ao intuito restritivo da autorização excepcional previsto na Convenção, e que gera 26 .  Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate in marine scientific research and the
um sério risco de depleção da espécie. Em 18 de Maio de 2012 encerrou-se o período de apre- conservation of marine living resources, in ZaöRV, 2005, vol, 65, pp. 937 segs, 952 segs.
sentação das memória e contra-memória, estando o caso a aguardar julgamento no TIJ.
27 .  Foram já identificados 64 grandes ecossistemas marinhos no mundo, “regions of
24 .  Bem como a União Internacional para a Conservação da Natureza. ocean and coastal space that encompass river basins and estuaries and extend out to the
25 .  A participação de peritos nos litígios sobre questões de Direito do Mar que envolvam seaward boundary of continental shelves and the seaward margins of coastal current
componente técnica e científica é, de resto, expressamente prevista no artigo 289 da CMB, systems” — cfr. The UNEP Large Marine Ecosystem Report: A perspective on chang-
quer a pedido das partes, quer por iniciativa do tribunal que se ocupe da demanda, em nú- ing conditions in LMEs of the world’s Regional Seas, UNEP Regional Seas, Report and
mero não inferior a dois e escolhidos preferencialmente a partir de uma lista previamente Studies nº 182, Sherman, K. and Hempel, G. (Editors), United Nations Environment Pro-
elaborada, e sem direito de voto. gramme, Nairobi, Kenya, 2008, disponível em http://www.lme.noaa.gov/

246 247
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cos do potencial marinho, fundamentais para a reconversão energética samente, a da contribuição dos oceanos para a luta contra o aqueci-
decorrente da luta contra o aquecimento global e através da substitui- mento global, domínio onde o GOOS tem actuado em estreita cola-
ção dos combustíveis fósseis por fontes de energia renovável (energia boração com o Painel Internacional para as Alterações Climáticas,
das ondas, das correntes, geotérmica); ou na análise geográfica e geofísi- procedendo à monitorização da absorção de carbono pelos oceanos
ca dos fundos marinhos e das placas tectónicas em que assentam, com no âmbito do International Ocean Carbon Coordination Project
relevo na preservação da fauna de grande profundidade e na prevenção (IOCCP). De resto, a investigação científica marinha é também objec-
de maremotos; ou ainda na investigação meteorológica e climatológica to de atenção por parte de outras entidades na órbita da ONU, como
dos oceanos, que traz dados importantes para a compreensão dos meios a Food and Agriculture Organization (FAO)30, a World Meteorological
marinho e atmosférico e suas interacções. Organization (WMO), a International Hydrographic Organization
A investigação científica marinha tem antecedentes nas viagens do (IHO) ou o Joint Group of Experts on the scientific aspects of marine
Challenger, em finais do século XIX, sendo então encarada como uma environmental protection (GESAMP)31.
das liberdades dos mares — e assim permanecendo na Convenção de Em Portugal, merece destaque o papel da Universidade do Algarve e
Genebra de 1958 sobre o alto mar28. O marco determinante do início dos seus dois centros de investigação no domínio da investigação cien-
de pesquisas sistemáticas residirá, porventura, no estudo de métodos tífica marinha, um dos quais (CCMAR) com o estatuto de Laboratório
sonoros para detecção de submarinos, durante a II Guerra Mundial, Associado (à unidade de I&D CIIMAR, da Universidade do Porto). A
tendo vindo a desenvolver-se contínua e proficuamente desde então, pesquisa desenvolvida incide especialmente sobre recursos biológicos
e relevando hoje nos mais variados domínios, do puramente científi- (pesca e aquacultura), tecnologias alimentares, geociências marinhas e
co ao assumidamente comercial, do da alimentação ao energético, do ambiente marinho e costeiro32.
turístico ao geológico.
Com a criação da Comissão Oceanográfica Intergovernamental, em
1960, no âmbito da UNESCO, a investigação científica marinha institu- 4.1 A indefinição do conceito de
cionalizou-se. Como objectivo genérico, a Comissão promove a coopera- “investigação científica marinha”
ção internacional no âmbito da investigação científica marinha, desen- A doutrina do Direito do Mar converge em que não resulta da CMB ne-
volvendo neste vasto campo de acção diversos programas de espectro nhuma definição de investigação científica marinha33, apesar de a Parte
mundial — como o Global Ocean Observing System (=GOOS), um obser- XIII da Convenção a ter por objecto. TANAKA refere que a expressão
vatório mundial do estado dos oceanos —, bem como, a título regional tem um sentido amplo que se traduz em qualquer estudo ou investiga-
e sectorial, vários programas dedicados aos sistemas de gestão do meio
marinho e da orla costeira, à prevenção de riscos tecnológicos e naturais 30 .  De relevar é a aprovação, pela FAO, de um Código de Conduta sobre pesca responsá-
(como o incremento de sistemas de alerta precoce contra maremotos), à vel, em 1995, no qual se apela tanto à investigação científica dos Estados (costeiros), como
à cooperação internacional nesta sede — cfr. Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-ope-
observação e tratamento de dados sobre os efeitos das alterações climá-
rate…, cit.., p. 946 —, documento que veio, aliás, a constituir uma das bases de inspiração
ticas nos oceanos e seus ecossistemas29. do regime do 1995 Straddling and highly migratory fish stocks agreement, mais conhecido
Uma das áreas que mais atenção recente tem merecido é, preci- por Acordo de Nova Iorque.
31 .  Cfr. R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., pp. 415-416.
32 .  Cfr. João PINTO GUERREIRO, Investigação cientíifica marinha: um contributo para
28 .  Conforme explicam R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law of the Sea, 3ª ed., Man- o país, in Novas fronteiras, nº 20, 2006, pp. 61 segs, 66.
chester, 1999, p. 401, embora o artigo 2 da Convenção não mencione a liberdade de inves- 33 .  Cfr. Patricia BIRNIE, Law of the Sea…, cit., p. 241; M. STOLKER, Marine scientific
tigação científica marinha entre as liberdades do alto mar, o seu carácter de cláusula research and customary law – legal regime within the exclusive economic zone, in The-
exemplificativa permitia considerá-la como tal, e a prática dos Estados confirmava-o. Já saurus Acroasium, 1998, pp. 437 segs, 437; R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE (The Law…, cit.,
no caso da investigação conduzida na plataforma continental, bem assim como nas águas p. 405; Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit., pp. 938-940; Marko PAVLIHA
territoriais, o consentimento do Estado costeiro era necessário (pp. 402-403). e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ, Marine scientific research and the 1982 United Na-
29 .  Todos os programas estão descritos no sítio da Comissão: http://www.ioc-unesco.org/ tions Convention on the Law of the Sea, in O&CLLJ, 2010/1, pp. 115 segs, 117-118.

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ção que tenha por objecto o meio marinho (aí se compreendendo fun- essa questão — que pressupõe a assimilação da estreita ligação entre
dos marinhos e subsolo marinho, coluna de água e camada atmosférica investigação e protecção do ambiente marinho —, determinando a re-
sobre o mar). Para o Direito Internacional, contudo, a investigação cien- dução da amplitude de fundamentos de não oposição dos Estados cos-
tífica divide-se em “pura” e “aplicada”, consoante a sua finalidade seja teiros em face de pedidos de Estados ou Organizações Internacionais
o aprofundamento do conhecimento de um determinado meio, no pri- relativos a projectos de investigação na zona económica exclusiva ou
meiro caso, ou tenha por objectivo a análise desse meio funcionalmen- na plataforma continental “exclusivamente com fins pacíficos e com
te a um aproveitamento lucrativo, no segundo34. Dir-se-ia que parece o propósito de aumentar o conhecimento científico em benefício de
resultar da interpretação sistemática da Parte XIII que as actividades toda a Humanidade” (artigo 246/3)38.
de investigação aqui visadas são actividades, se não imediatamente Ou seja, para todas as actividades de investigação científica na
lucrativas, pelo menos com potencial económico35. No entanto, tal não zona económica exclusiva ou na plataforma continental do Estado
significa, segundo BIRNIE, que o regime se não aplique também a acti- costeiro vale a regra de solicitação da sua realização (ao Estado cos-
vidades de pesquisa pura36. teiro) com seis meses de antecedência relativamente ao início do pro-
O ponto principal a ter em conta no que tange à aplicação ou não jecto (artigo 248) e da possibilidade de manifestação de oposição até
da Parte XIII prende-se com a necessidade de consentimento do Es- quatro meses após o recebimento do pedido (artigo 252), sob pena de
tado costeiro relativamente a actividades de investigação realizadas consentimento implícito. Todavia, a discricionaridade dos Estados é
em áreas marinhas sob sua soberania ou jurisdição — ou seja, até ao prima facie limitada relativamente às actividades de pesquisa pura,
limite da sua zona económica exclusiva. Se se aceita que, no mar terri- desde logo porque o artigo 246/3 apela ao consentimento expresso
torial, qualquer actuação que se não traduza no mero atravessamen- e rápido (“…os Estados costeiros devem estabelecer regras e procedi-
to possa ser considerada passagem não inofensiva e, portanto, deva mentos para garantir que tal consentimento não seja retardado nem
ser expressamente autorizada (cfr. o artigo 19/2/j) da CMB)37, diferen- denegado sem justificação razoável”), e depois porque lhes é vedado,
temente se perspectiva a questão no que concerne a outros espaços em circunstâncias normais39, oporem-se a estas pesquisas, ao contrá-
de mar quanto a actividades de pesquisa pura. A CMB foi sensível a rio do que sucede face a pedidos de investigação aplicada, nos termos
do artigo 246/240. Em contrapartida, mesmo nos casos de investigação
científica pura, os Estados costeiros poderão recusar o seu consenti-
34 .  Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 939 (falando em “fundamen-
tal/pure research” e em “applied/resource oriented research”). Segundo Marko PAVLIHA e
Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific research…, cit., p. 122), os projectos de
investigação com “direct significance for resource exploration and exploitation” são aque-
les dos quais se possa esperar resultados quanto à localização, avaliação e monitorização 38 .  Esta formulação, desde logo presente no artigo 240/a) e reafirmada no artigo 301, poderia
de recursos com vista à análise do seu estatuto e viabilidade de exploração económica. levar a crer que a investigação científica para fins militares é interdita pela CMB. Conforme
35 .  Neste sentido, Patricia BIRNIE, Law of the Sea…, cit., p. 242. (M. STOLKER, Marine scien- explicam R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE (The Law…, cit., p. 411), trata-se apenas de proibir o
tific research…, cit., p. 441) considera que, comparando o regime da CMB com o regime ante- uso do alto mar para realização de acções agressivas, em violação do Direito Internacional.
rior, vertido na Convenção de Genebra sobre a plataforma continental, de 1958, o primeiro 39 .  Para Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific resear-
é mais voltado para os interesses económicos e menos para os objectivos de pesquisa pura. ch…, cit., pp. 121-122), circunstâncias não normais serão casos de conflito armado, mas tam-
36 .  A autora, citando A. Soons, admite que a investigação científica pura possa ainda ser bém, porventura, de pendência de uma questão de delimitação do espaço marinho entre
submetida aos cânones regulatórios da parte XIII, tendo em mente a sua instrumentali- o Estado costeiro e o Estado solicitante, sendo que será a este que cumpre fazer a prova
dade — Patricia BIRNIE, Law of the Sea…, cit., p. 242. da anormalidade. R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE (The Law…, cit., p. 407), por seu turno,
37 .  Conforme sublinha Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit., p. 942, o Es- falam em situações de “hostilidade ou tensão séria” entre o Estado costeiro e o Estado
tado costeiro goza de poderes decisivos sobre a actividade de investigação científica em dono/promotor do projecto.
zonas marinhas sujeitas a soberania territorial, facto que se reflecte quer no mar terri- 40 .  M. STOLKER, Marine scientific research…, cit., p. 444, louvando-se em Attard, afirma que
torial, quer em águas arquipelágicas, (cfr. o artigo 49) quer ainda nos mares fechados ou a diferença entre os regimes em razão do tipo de investigação se resume, quanto a projectos
semi-fechados — aqui com a particularidade de coordenação necessária das políticas de de investigação pura, a que cabe ao Estado costeiro justificar a não concessão de autorização,
investigação científica marinha entre os Estados costeiros que partilhem poderes de ju- enquanto que relativamente a projectos de investigação aplicada, cabe ao dono do projecto
risdição sobre tal espaço (cfr. o artigo 123/c) da CMB). caracterizar a desadequação dos fundamentos de recusa avançados pelo Estado costeiro.

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mento nas situações descritas no artigo 246/541, porquanto envolvem entidades concessionárias, levar por diante investigação aplicada44. O
metodologias altamente intrusivas42. regime de gestão internacional, particularmente tributário da lógica de
Além disso, existem (pelo menos) mais três obstáculos ao favoreci- equidade intra e intergeracional, delineia intensos deveres de coopera-
mento dos projectos de investigação científica pura: por um lado, o facto ção internacional, partilha de informação e transferência de tecnolo-
de o artigo 246/3 não estabelecer desde logo um prazo de consentimento gias entre Estados mais e menos desenvolvidos (cfr. os artigos 143 e 144).
implícito mais curto do que o previsto no artigo 252 (quase implicando, Não podemos deixar de formular uma derradeira observação, na
ao invés, um entendimento mais estrito, no sentido da necessidade de um linha de CHURCHILL e LOWE: as disposições que vimos assinalando
consentimento explícito); por outro lado, a utilização do conceito indeter- correm sério risco de obsolescência — se é que muitas o não sofreram
minado “circunstâncias normais”, propício a aproveitamentos indevidos já — em virtude do crescente recurso a satélites para a realização de
(ainda assim, cfr. o nº 4 do artigo 264); por fim e identicamente para pro- actividades de pesquisa científica marinha45.
jectos de pesquisa aplicada, as actividades não podem contundir com a
utilização dos espaços de mar em causa pelo Estado costeiro (artigo 246/8).
O Estado costeiro, mesmo que consinta implícita ou explicitamente 4.2 Os princípios que regem
na realização da actividade solicitada, pode ordenar a suspensão desta, a investigação científica marinha
nos termos do artigo 253, em razão de incumprimento de condições pre- Existe, como vimos, uma presunção de consentimento do Estado cos-
viamente estabelecidas entre o Estado costeiro e a entidade pesquisa- teiro em face de pedidos de investigação científica marinha, acentuado
dora ou de alteração unilateral das mesmas pela última. quanto a investigação pura na medida em que a discricionaridade do
Ainda uma nota relativamente à investigação científica na Área, sob Estado se vê reduzida em razão da relevância colectiva que a actividade
jurisdição da Autoridade Internacional para os Fundos marinhos. O ar- reveste. Tal não significa, porém, que a investigação científica marinha
tigo 143 dispõe que tal investigação deve pautar-se pela exclusiva pros- em prol do melhor conhecimento e protecção do mar se faça à margem
secução de fins pacíficos, estando submetida ao regime da Parte XIII43 da prevenção de riscos para o meio marinho. Tal preocupação decorre,
— o que não veda à Autoridade a possibilidade de, por si ou através de desde logo, da previsão ampla do artigo 192, concretizando-se relativa-
mente à Área (no artigo 145) e encontrando a sua pauta no artigo 240,
41 .  Ou seja, o Estado tem um mínimo incomprimível de discricionaridade, mesmo pe-
sede do lote de princípios gerais aplicáveis a quaisquer actividades de
rante pedidos de investigação científica pura, caso o projecto: possa ter uma influência
directa na exploração e aproveitamento de recursos naturais, vivos e não vivos; implique investigação marinha (que depois, algo tautologicamente e decerto em
perfurações na plataforma continental, utilização de explosivos ou introdução de subs- virtude da opção de não definição da noção, se vão repetindo nas dis-
tâncias nocivas no meio marinho; pressupuser a construção de estruturas ou ilhas arti-
posições seguintes): “Na realização da investigação científica marinha
ficiais; se basear em informação inexacta ou se o proponente tiver obrigações pendentes
para com o Estado costeiro decorrentes de um projecto anterior. devem ser aplicados os seguintes princípios: a) A investigação científica
42 .  Cfr. R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., p. 405. marinha deve ser realizada exclusivamente com fins pacíficos; b) A in-
43 .  A ampla actividade de promoção da investigação marinha pela Autoridade pode ser vestigação científica marinha deve ser realizada mediante métodos e
compulsada no Report of the Secretary-general of the International Seabed Authority
under article 166, paragraph 4, of the United Nations Convention on the Law of the Sea,
ISBA/10/A/3, 31 de Março de 2004, compilado em Selected decisions and documents of the 44 .  Desde que, sublinha-se, na sequência do texto e segundo a lição de Tullio SCOVAZZI,
10th session, Jamaica, 2004, pp. 10 segs — ponto 2 (“International collaboration in marine tal investigação seja sempre norteada por fins pacíficos e que o seu resultado seja equita-
scientific research”), pp. 47 segs, onde se enunciam os quatro aspectos sujeitos a debate tivamente repartido pela Humanidade. Nas palavras do Autor, “Yet the reading of Art. 143
num workshop realizado em 2002 sob os seus auspícios: in combination with Art. 246 contradicts the assumption that there is an absolute free-
“(a) Levels of biodiversity, species range and gene flow in abyssal nodule provinces; dom to carry out bioprospecting in the Area. States which are active in bioprospecting in
(b) Disturbance and recolonization processes at the seafloor following mining track this space are already bound to contribute to the benefit of mankind as a whole” — The
creation and plume resedimentation; conservation and sustainable use of marine biodiversity, including genetic resources,
(c) Mining plume impacts on the water column ecosystems (nutrient enrichment, en- in areas beyond national jurisdiction: a legal perspective, p. 13, disponível online, acesso
hanced turbidity, heavy-metal toxicity, enhanced oxygen demand); em 30 de Setembro de 2012.
(d) Natural variability in nodule province ecosystems”. 45 .  R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., p. 412.

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meios científicos apropriados compatíveis com a presente Convenção; cabo as pesquisas científicas50. Como vimos, no plano da pesquisa apli-
c) A investigação científica marinha não deve interferir injustificada- cada, o Estado costeiro deve autorizar ou pelo menos não se opor à rea-
mente com outras utilizações legítimas do mar compatíveis com a pre- lização destas, o que subentende uma atitude cooperante e sintonizada
sente Convenção e será devidamente tomada em consideração no exer- com o objectivo proposto. Por seu turno, a entidade que se propõe reali-
cício de tais utilizações; d) A investigação científica marinha deve ser zar a investigação deve fornecer toda a informação relevante ao Estado
realizada nos termos de todos os regulamentos pertinentes adoptados costeiro, detalhando as condições de execução do projecto — nos ter-
de conformidade com a presente Convenção, incluindo os relativos à mos do artigo 248 (natureza e objectivos; metodologia e meios de execu-
protecção e preservação do meio marinho”. ção; delimitação das áreas geográficas de incidência; datas de chegada e
A importância da ciência para a protecção do meio marinho leva-nos abandono dos locais; nome dos responsáveis pelo projecto; indicação da
a acrescentar aos princípios mencionados — e na lógica do princípio da possibilidade de apoio, participação ou representação do Estado costei-
cooperação preventiva em sede de investigação científica que se retira ro no projecto de investigação)51.
dos artigos 197 e 200 da CMB46 —, a pauta da Secção II da Parte XIII, re- Enfim, o Estado ou Organização internacional responsável pelo
lativa à Cooperação Internacional, nomeadamente o disposto no artigo projecto deve cumprir as condições estabelecidos pelo Estado costeiro,
242/247, que apela à disponibilização, entre Estados e Organizações In- conforme enunciadas no artigo 249, tanto no que toca a obrigações de
ternacionais, de dados resultantes das actividades de investigação cien- abstenção de perturbação do exercício dos poderes de jurisdição do Es-
tífica marinha que permitam evitar ou minimizar danos para a saúde e tado costeiro sobre a zona, como no que concerne a não obstrução de
para o meio ambiente48. O artigo 249/1/e) confirma que existe um dever possibilidades de uso do mar por outros Estados (na medida do possí-
de cooperação de boa fé na troca de informações científicas entre Esta- vel), como ainda no que tange a obrigações de prestação de informação
dos e Organizações internacionais, mesmo que tais informações resul- sobre a evolução da investigação, seus resultados e conclusões — dis-
tem de projectos de investigação científica marinha com propósito lu- ponibilizando-a ao Estado costeiro e a instâncias internacionais com
crativo, desde que a sua transmissão salvaguarde os direitos comerciais competências nos domínios em jogo —, como, enfim, no que respeita a
do Estado que a promove. A consistência e efectividade deste dever de obrigações de retirada de equipamentos quando a investigação estiver
cooperação tem sido, no entanto, bastante contestada, em virtude de se finalizada (ou caso o Estado costeiro tenha imposto a suspensão ou ces-
tratar essencialmente de uma obrigação de meios e não de resultado49. sação da actividade, nos termos do artigo 253).
Sublinhe-se que a cooperação internacional se realiza, antes de mais,
através da colaboração entre Estado costeiro e entidades que levam a
4.3 Gestão do risco e investigação científica
46 .  A propósito do caso Southern Bluefin Tuna, Yoshifumi TANAKA (Obligation to co- marinha na CMB: alguns exemplos
-operate.., cit., p. 956) realça a fundamentalidade da cooperação, desde logo no estabeleci-
A sustentação científica das medidas de preservação do meio mari-
mento de uma metodologia de avaliação baseada em critérios consensualmente obtidos,
sob pena de se abrir constante espaço à litigiosidade. nho e de gestão racional dos seus recursos tem na CMB duas grandes
47 .  Reza a disposição: “Neste contexto [investigação científica para fins pacíficos], e sem linhas de força no âmbito da gestão do risco. Por um lado, no plano da
prejuízo dos direitos e deveres dos Estados em virtude da presente Convenção, um Estado, gestão preventiva do risco de esgotamento de stocks promovida pelos
ao aplicar a presente parte, deve dar a outros Estados, quando apropriado, oportunidade
artigos 61 e 62 da CMB, relativos à pesca na zona económica exclusiva e
razoável para obter do mesmo, ou mediante a sua cooperação, a informação necessária
para prevenir e controlar os danos à saúde e à segurança das pessoas e ao meio marinho”.
48 .  Sobre a cooperação entre Estados através de organizações internacionais, Fernan- 50 .  Neste sentido, Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 942.
do LOUREIRO BASTOS, A internacionalização dos recursos naturais marinhos, Lisboa, 51 .  DE acordo com Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scien-
2005, pp. 667 segs; Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., pp. 958 segs. tific research…, cit., p. 125), a diferença entre participação e representação não é sempre
49 .  Cfr. Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 956, colocando a ênfase evidente, avançando os autores como critério distintivo da participação a integração de
na necessidade de assegurar a qualidade da informação bem como a credibilidade dos cientistas do Estado costeiro no projecto de investigação, enquanto que a observação se
métodos de tratamento da mesma. restringiria à designação de (meros) observadores.

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ao limite do “máximo rendimento sustentável” que aí se indica como re- gos 10 e 14 do mesmo Acordo aos imperativos de tratamento e actuali-
ferencial económico-ambiental. Esta metodologia de avaliação de risco zação de dados, tanto das espécies directamente visadas no seu objecto,
viria a ser sensivelmente alterada, para as espécies transzonais e alta- quanto das espécies que entram em interacção com as transzonais e al-
mente migratórias, com o Acordo de Nova Iorque, de 1995. Com efeito, o tamente migratórias. Acresce ainda a exortação, no Anexo I ao Acordo
artigo 6 deste Acordo, numa abordagem alegadamente precaucionista, de Nova Iorque, à colaboração entre Estados e organizações regionais e
admite a adopção de medidas cautelares com vista à salvaguarda dos sub-regionais54 no que toca à partilha de informação relativa a avaliação
stocks perante dúvidas razoáveis sobre a sua sustentabilidade, enquan- e gestão de risco de depauperamento de stocks (cfr. o artigo 3/2)55.
to que o artigo 61/2 da CMB aponta apenas para a fixação de quotas de Por outro lado, a CMB aponta também as baterias da investigação
pesca que não ameace perigosamente os níveis de reprodução das espé- científica para o combate e controlo da poluição no meio marinho (“pre-
cies (aplicável por remissão do artigo 64 da CMB)52. venir, reduzir e controlar”), como ficou bem expresso nos artigos 200
Os critérios em que se baseia a fixação dos limites devem atender à e 201, no âmbito da lógica de prevenção alargada que a caracteriza. O
melhor informação disponível e utilizar as melhores técnicas, confor- papel da ciência é aqui decisivo enquanto conformadora das regras, in-
me dispõem os artigos 61, 62 e também o artigo 119 (para a pesca em ternacionais e nacionais, sobre prevenção da poluição marinha, quer no
alto mar). Como expressamente decorre do nº 2 do artigo 119, “Periodi- estabelecimento de padrões de prevenção baseados na melhor informa-
camente devem ser comunicadas ou trocadas informações científicas ção disponível, quer na especialização e actualização destes.
disponíveis, estatísticas de captura e de esforço de pesca e outros dados Vale a pena iluminar o disposto no artigo 211/6/a), que admite que
pertinentes para a conservação das populações de peixes, por intermé- o Estado costeiro imponha limites mais apertados à navegação do que
dio das organizações internacionais competentes, sejam elas sub-regio- aqueles que constam das normas internacionais em vigor, caso particu-
nais, regionais ou mundiais, quando apropriado, e com a participação lares circunstâncias (oceanográficas ou ecológicas) o imponham e des-
de todos os Estados interessados.” Questionável é que nesta avaliação de que apoiado em provas científicas e técnicas bastantes. Ilustrativo
os critérios ecológicos não sejam suficientes para fundamentar os limi- da estreita ligação entre a ciência e a CMB é também o artigo 234, relati-
tes, entrando também em linha de conta os aspectos económicos… vo a áreas cobertas de gelo, especialmente perigosas para a navegação,
TANAKA sublinha a importância da cooperação neste âmbito, em ra- que remete os Estados costeiros para a melhor informação científica
zão da dinâmica do meio e do intenso trânsito de espécies de zona para disponível no tocante à preservação do ambiente marinho nos limites
zona, entre alto mar e zonas económicas exclusivas múltiplas. O nº 5 do da sua zona económica exclusiva.
artigo 61 estabelece a necessidade de entrecruzamento de informação, Estes exemplos de metodologia de gestão antecipativa e cooperati-
promovendo a protecção alargada e prevenindo manipulação unilateral va de riscos identificam aquilo a que poderíamos chamar obrigações
de dados53. De resto, o artigo 5/k) do Acordo de Nova Iorque faz eco desta principais. No entanto, no elenco da Parte XII encontram-se também
preocupação, estabelecendo a necessidade de promoção de investigação deveres acessórios, de que constitui exemplo o dever de publicitação
científica marinha e de desenvolvimento de tecnologias de conservação dos dados obtidos através da monitorização, plasmado do artigo 205. Se
e gestão. Esta disposição é complementada com as referências dos arti- é verdade que a actividade de gestão do risco se pauta pela tentativa de
redução da incerteza, certo é também que a investigação científica, ali-
52 .  Vejam-se também as Guidelines em anexo ao Acordo de Nova Iorque, que aditam dois mentada pela observação constante da dinâmica dos fenómenos natu-
pontos de referência típicos de uma antecipação de riscos em quadros de incerteza: por
um lado, o limite de conservação, que impõe a adopção de um padrão de um risco muito
baixo como base de fixação de quotas de pesca e, por outro lado, um objectivo de gestão 54 .  Sobre a cooperação no âmbito dos acordos regionais em sede de pesca, veja-se Yoshi-
racional que proíbe, em regra, a sobreexploração e apenas a admite num plano transitório. fumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., pp. 948 segs.
Sobre o Acordo de Nova Iorque, entre outros, Moritaka HAYASHI, The 1995 Agree- 55 .  A informação sujeita a partilha inclui: a) composição dos lotes capturados, tendo em
ment on the conservation and management of straddling and highly migratory fish conta o tamanho, peso e sexo; b) outra informação biológica relativa às avaliações de sto-
stocks: significance for the law of the Sea Convention, in O&CM, 1995/1-3, pp. 51 segs. cks; e c) outras pesquisas relevantes, incluindo análises de abundância, de biomassa, hi-
53 .  Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., pp. 943 e 947. dro-acústicos e outros estudos oceanográficos e ecológicos relevantes.

256 257
N N
rais, lhe vai servir de apoio decisivo, tanto no plano da criação de condi- foundations of the new régime”. É, afinal, o eco (utópico?59) das palavras
ções de inteligibilidade na avaliação de riscos como no plano de criação do Preâmbulo da Convenção de Montego Bay, quando convoca a coo-
de condições de operacionalidade na gestão/minimização do risco. peração internacional no âmbito do Direito do Mar com vista à conse-
Temos, portanto, uma associação necessária entre as obrigações de cução de uma “uma ordem económica internacional justa e equitativa
meios que compõem a metodologia de avaliação e gestão de risco: de uma que tenha em conta os interesses e as necessidades da humanidade, em
banda, obrigações principais — de elaboração de estudos de impacto, de geral, e, em particular, os interesses e as necessidades especiais dos paí-
troca de informação e consulta entre o Estado responsável pelo incre- ses em desenvolvimento, quer costeiros quer sem litoral”.
mento do risco e outros sujeitos potencialmente afectados, promoção da
participação pública, elaboração de planos de emergência; e incorporação
desses resultados nas regras e princípios convencional e legislativamente
aplicáveis — e, de outra banda, obrigações acessórias — de monitoriza-
ção de dados, publicitação dos mesmos e tratamento científico com vista
à melhoria contínua das técnicas de minimização de danos.
Constituindo o mar uma grandeza universal e cujas fragilidades
não são estanques, a avaliação científica de riscos deve ser uma tarefa
partilhada — o que implica custos consideráveis. Ineliminável é, pois, a
assistência de Estados desenvolvidos a Estados menos desenvolvidos
no financiamento de programas de investigação, na transferência de
tecnologia, na formação de peritos56. O artigo 202 da CMB57 é particu-
larmente ilustrativo dos desdobramentos desta concretização, avant
Rio, do princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas —
do qual, afinal, a Declaração de 1992 não é pioneira, uma vez que este
imperativo já está presente na Declaração de Estocolmo (princípios 12,
5 e 9). O apoio à investigação científica nos Estados menos desenvolvi-
dos não só assenta numa lógica de solidariedade intrageracional58 como
decorre identicamente da constatação de que os problemas ambientais
não reconhecem as fronteiras políticas, devendo ser atacados em todas
as frentes. A CMB dedica a Parte XIV à indicação de formas de concreti-
zação deste objectivo.
A promoção de condições de igualdade de investigação científica
marinha entre Estados é tão sensível que o Acto final da CMB afirma,
no seu Anexo VI (consid. 4º), que “unless urgent measures are taken, the
marine scientific and technological gap between the developed and the
developing countries will hidden further and thus endanger the very

56 .  Sobre este ponto, veja-se R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., pp. 416-419.
57 .  Complementado pelo Anexo VI à CMB. 59 .  Para Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific resear-
58 .  Cfr. também o artigo 8 da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, de ch…, cit., p. 129), as normas do Cap. XIV mais não são do que um pacto de contrahendo, que
1974 (Resolução da AG 3281, XXIX). a vaguidade condena à ineficácia.

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Alteridade e Ética
com Responsabilidade

261
N
14
A ÉTICA DA ALTERIDADE E DA
RESPONSABILIDADE E A HERMENÊUTICA
DIATÓPICA: Um diálogo entre Lévinas e
Panikkar e a busca pelo Reconhecimento
do Outro na Construção Intercultural
dos Direitos Humanos.

Heleno Florindo da Silva

INTRODUÇÃO

E m momentos onde a economia mundial se encontra fragilizada pelas


recentes crises financeiras, falar em ética, alteridade, hermenêutica e re-
conhecimento do outro, é extremamente difícil. Nestes contextos, referidas
discussões são remetidas para o futuro, pois no agora, antes de vermos o ou-
tro, pretendemos resolver o problema da escassez de recursos financeiros.
Desse modo, a criação de uma relação entre os diferentes, buscan-
do um reconhecimento recíproco, embasada na ética da alteridade e da
responsabilidade, bem como através da construção dos Direitos Huma-
nos por meio de uma hermenêutica diatópica, faz do diálogo entre Lévi-
nas e Pannikar um caminho para se evitar uma mitigação nos, já frágeis,
Direitos Humanos, em nome da salvaguarda econômica.
Assim, no presente artigo serão discutidos além das contribuições ci-
tadas, a realidade multicultural em que estamos inseridos e a necessidade
de reconhecimento dessa diversidade na busca de dias melhores, adotan-
do para tanto, as teorias de Emmanuel Lévinas e Raimon Pannikar, bem
como a visão do múltiplo dialético para corroborar tal empreendimento.
Portanto, a busca pelo reconhecimento daquele que nos é diferente
tratada aqui, contribuirá para as discussões na medida em que aborda-
rá duas visões recentes acerca da problemática do reconhecimento do
outro, a fim de realizar um diálogo entre os diferentes, aproximando,
assim, as várias culturas de um mesmo país ou de diferentes países.

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N
1  A ÉTICA DA ALTERIDADE E DA humanas, constituindo-se, assim, como ética da responsabilidade. A
ética, nesse ponto, é a reflexão crítica entre as possibilidades do fazer
RESPONSABILIDADE EM EMMANUEL ou não fazer (KROHLING, 2011, p. 29).
LÉVINAS E O OUTRO: Um Caminho para o Acerca dessa noção de ética da responsabilidade, se vê uma respon-
sabilidade pelo outro, ou seja, uma responsabilidade nossa, por aquilo
Reconhecimento entre os Diferentes. que o outro fez, que a princípio não me diz respeito, mas que possui um
laço subjetivo comigo, na medida em que participo, com aquele agente,

E mmanuel Lévinas1 é autor de diversos livros acerca da problemática


das teorias que descrevem conceitos e bases de discussão sobre alte-
ridade e, principalmente, sobre a ética, de modo que sua contribuição na
de um corpo social maior que nós.
Neste sentido, Lévinas aponta que a relação intersubjetiva é uma
relação não-simétrica, ou seja, serei responsável pelo outro sem es-
busca pelo reconhecimento do outro é valiosíssima, a um, pela claridade perar que a recíproca, ainda que isso venha me custar a própria vida
de suas ideias, a dois, pela atualidade de seu discurso. (LÉVINAS, 2007, p. 82).
Segundo Souza (2009), sua obra pode ser dividida em três períodos Vista sob estas premissas, a construção teórica abordada acerca da
distintos, quais sejam: o primeiro, entre 1929 e 1951, quando se interes- ética, sob a ótica atual, não passaria de elucubrações ou divagações, ten-
sou pelo estudo da fenomenologia em Edmund Husserl e Martin Hei- do em vista o fato de que o pensamento dominante nas diferentes cul-
degger, se doutorando em filosofia com tese voltada para a teoria da turas se coloca no sentido de que, antes de proteger o outro, estranho a
intuição na fenomenologia de Husserl; o segundo, entre 1952 a 1964, mim, eu devo proteger o eu, ou os meus.
quando deu início, de forma expressiva em sua produção filosófica Desta feita, a alteridade, ou seja, essa interação com o outro, o reco-
e, ao fim, o terceiro, de 1966 a 1979, onde se destacou a publicação do nhecimento de si, no diferente, e a ética, caminham lado a lado, tendo
livro Humanismo do outro homem. em vista que o eu só poderá se configurar na medida em que estabeleça
Nestes termos, antes de adentrarmos na contribuição de Lévinas um diálogo com os outros, pois sem eles não poderá definir-se como eu.
para o presente trabalho, ressalta-se que a proposta que será trabalha- Essa necessidade do outro é explicada por Lévinas a partir da
da aqui, longe de configurar uma utopia no sentido que lhe deu Thomas construção da ideia de Rosto ou Olhar, vindas de uma reflexão ju-
Morus, trata-se de uma descrição, através de um diálogo, da realidade daico-cristã e das leis do Talmude, de onde se extrai “o corpo é o fato
multicultural atual, bem como na necessidade de proteção dessa reali- de que o pensamento mergulha no mundo que pensa e que, por con-
dade a fim de salvaguardar os Homens e seus Direitos Humanos. sequência, exprime este mundo ao mesmo tempo que o pensa. (...)
Assim, a fim de marcar um primeiro ponto para a discussão acerca ele une a subjetividade do perceber, e a objetividade do exprimir”
da ética da alteridade tratada por Lévinas, cabe-nos determinar o que (Lévinas, 2009, p. 30), ou seja, nós somos sujeitos e partes, ao mesmo
seja ética em nossa visão. Desse modo, ética no contexto trabalhado tempo, do mundo em que vivemos.
aqui, deve ser entendida como a filosofia da moral, ou seja, a origem, o Ademais, a figura do rosto para Lévinas é importante no sentido de
primado em que se embasa a moral – produto das regras e normas cul- que, em suas palavras: “Não sei se podemos falar de fenomenologia do
turais de um povo (KROHLING, 2011, p. 19 e 37). rosto, já que fenomenologia descreve o que aparece. Assim, pergunto-
Vista sob tais aspectos, a consciência advinda desta ética, atua me se podemos falar de um olhar voltado para o rosto, porque o olhar
como um verdadeiro caminho de interligação entre todas as esferas é conhecimento, percepção. Penso antes que o acesso ao rosto é, num
primeiro momento, ético. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa,
um queixo e se o pode descrever, é que nos voltamos para outrem como
1 .  Emmanuel Lévinas nasceu em Kaunas, na Lituânia, em 1906. Faleceu em Paris em 1995.
Conforme acentua Carrara (2011), sua filosofia situa-se dentro do contexto da guerra fria, para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer
ou seja, a figura do outro, trazida por ele em suas discussões é, a priori, ignorado pelos fi- atentar na cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está
lósofos, haja vista estarem preocupados com a questão da totalidade, na qual o indivíduo,
em relação social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida,
o eu e o outro, encontravam-se em um lugar secundário.

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ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que lacionada com a cultura e a linguagem, sendo sua vivência uma construção
não se reduz a ele” (Lévinas, 2007, p. 69). histórica. Desses termos podemos retirar a noção levantada por Lévinas
Assim, necessitamos da figura do rosto, ou seja, do outro, para nos do Homem como Ser de Desejo, ou seja, a figura do outro é algo que serve
libertarmos da solidão do individualismo em que nos encontramos e para completar o que falta no eu desejante. Por ser incompleto, o eu deseja
que nos impede de efetivarmos os direitos criados para nossa própria o outro. É esse desejo que impulsiona o eu, incompleto, buscar do outro.
proteção. É com o diálogo entre os rostos do eu e do outro que surgirá a Neste sentido, o encontro com o outro, o seu reconhecimento, possi-
ética da alteridade e da responsabilidade, contribuindo para a efetiva- bilita o eu, egocêntrico, se completar, se reconhecer como eu. Elsa Bran-
ção do primado da justiça. der, em texto acerca da ética levinasiana como fonte de responsabilida-
Há que se ressaltar que esse rosto proposto por Lévinas não induz de com o outro2, aponta que: “Segundo Lévinas, a porta não se abre para
a formação anatômica do Homem, e sim, algo intransponível, ligado à o Outro como quando se abre a porta a um convidado. O Outro não é
ideia, construída por ele, de infinito. nenhum convidado. É o Eu que o é. O Eu é o convidado do Outro, porque
Portanto, a relação com o outro servirá para nos questionar, esva- o Outro está na própria origem da identidade do Mesmo. O Eu é convi-
ziar-nos de nós mesmos, possibilitando-nos descobrir novas possibili- dado pelo Outro para um possível encontro. Um encontro onde o outro
dades e visões. Ser eu, nestes termos, significa para Lévinas (2009, p. 49 não chega primeiro, mas já está lá há muito tempo.”
e 53), não poder me furtar da responsabilidade pelos outros, pois essa Portanto, em Lévinas, essa relação que ocorre, entre o eu e o outro, é
responsabilidade é que me tirará o individualismo, o egoísmo e o impe- uma relação de responsabilidade, haja vista que, no momento que estou
rialismo em que o meu eu está inserido. frente a frente com o outro, eu sou responsável por ele. Essa relação
Nestes termos, Lévinas (2007, p. 87), em seu projeto ético alteral prio- é totalmente desinteressada, pois não me relaciono com o outro alme-
riza a ética, fundamentando-a metafisicamente, sendo que, para tanto, jando algo em troca, mas sim pelo simples fim de estar com ele. É esse
adota a ideia do infinito, da intersubjetividade e da exterioridade do ser. desinteresse que permite a presença do outro ser na vida do eu, ou seja,
Para ele a ideia do outro como rosto significa o infinito, a constatação de o eu passa a ser um Ser para o outro.
uma exigência ética insaciável, haja vista que quanto mais justo se for, Ademais, essa responsabilidade pelo outro que Lévinas aponta como
mais responsável se é, de modo que nunca seremos livres dos outros. um atributo ético “não é a privação do saber da compreensão e da cap-
Diante dessas premissas, podemos tirar uma primeira conclusão no sen- tação, mas a excelência da proximidade ética na sua socialidade, no seu
tido de que Lévinas cria e aprofunda as categorias da ética como primeira amor sem concupiscência” (Lévinas, 2004, p. 196).
filosofia e como filosofia do outro, desenvolvendo, para tanto, o princípio Diante de tais apontamentos, podemos perceber que a construção
matriz da ética da alteridade e da responsabilidade, que estão relacionados da ética como princípio fonte de todos os demais princípios criada por
com os Direitos Humanos Fundamentais (KROHLING, 2011, p. 91 e 92). Lévinas nos possibilita ver que a relação intersubjetiva entre o Eu e o
Passando para a análise mais precisa acerca da ética da alteridade Outro é essencial para a construção de uma sociedade plural, que res-
e da responsabilidade em Lévinas, e a sua relação com a justiça, per- peita seus iguais, na medida de suas igualdades, e os desiguais, naquilo
cebemos que para ele a justiça se traduz na concretização e realiza- em que se desigualam (CRUZ, 2005, p. 210).
ção da ética, ou seja, como a ética em sua construção teórica encarna A Ética da Alteridade e da Responsabilidade de Lévinas é um cami-
a fonte de todos os demais princípios, a realização da justiça e, via de nho para o eu reconhecer o outro que habita em cada um de nós, ou seja,
consequência, a realização da ética. é a possibilidade de uma sociedade, heterogênea, construir suas bases
Com relação à construção do eu fundada no Uno, Lévinas critica tal culturais no reconhecimento da diferença. O outro passa de inimigo,
apontamento, haja vista o Uno se tornar uma espécie de monólogo filosó- àquilo que me completa como ser.
fico, preferindo, assim, a ideia do Múltiplo, tendo em vista corresponder
a verificação da existência de um multiculturalismo, ou seja, de vários eu.
2 .  Texto disponível em: <http://www.scribd.com/doc/7207601/Levinas-Etica-Como-Res-
Assim, a alteridade para Lévinas, segundo Krohling (2011, p. 106) está re-
ponsabilidade-Na-Filosofia-de-Emmanuel-Levinas>.

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Portanto, podemos perceber a partir de toda essa discussão, que Lé- ca Diatópica, possibilitando, assim, o reconhecimento do outro como
vinas trouxe um novo modo de vermos o pensamento filosófico, ou seja, sujeito de direitos e deveres.
um novo modelo de pensamento, evidenciando a ética em detrimento à Desta feita, uma das primeiras constatações feitas por Panikkar é a
filosofia. A partir de então, a responsabilidade pelo outro deve sempre de que povo algum possui o poder de dizer a verdade. Essa conclusão
permear o pensamento filosófico (PEREIRA, 2010, p. 89). nos permite perceber outro ponto por ele abordado, qual seja o fato de
Ao fim, devemos destacar que a ética para o reconhecimento do que nenhuma cultura é completa em si. Assim, a inter-relação entre as
outro, nos termos propostos por Lévinas, não somente é capaz de pre- diferentes culturas, os diferentes indivíduos é o caminho para se alcan-
servar a individualidade do eu, mas, também, ela mantém a alterida- çar uma construção justa e equânime de Direitos Humanos.
de de outro, ajudando, assim, a preservar a pluralidade cultural, e os Neste sentido, Panikkar abre os olhos para o fato de que hoje os
diferentes modos de vida presentes dentro de uma mesma sociedade, Direitos Humanos vem sendo pisoteados em todos os Continentes
ou entre diferentes nichos sociais. do Globo. Diante disso, ele pretende compreender o motivo pelo qual
Desse modo, o caminho de reconhecimento do outro proposto por tal fenômeno acontece, ou seja, o que leva diferentes culturas a des-
Lévinas é um passo na construção de uma sociedade multicultural glo- cumprirem, do mesmo modo, aquilo que conhecemos como Direitos
bal, por onde teremos a possibilidade de sermos diferentes, sempre que a Humanos Universais3. A resposta para essa imbricada questão está no
igualdade nos descaracterizar, mas, em contrapartida, também teremos a fato de que tais Diretos Humanos não representarem um símbolo uni-
possibilidade de sermos iguais, sempre que a desigualdade nos minimizar. versal (PANIKKAR, 2004, p. 206).
A partir dessas perspectivas a proposta de Panikkar perpassa o ca-
minho das análises multiculturais e interculturais dos Direitos Huma-
nos, ou seja, para a compreensão de seus apontamentos teóricos, cabe
2  A HERMENÊUTICA DIATÓPICA DE desvendar alguns aspectos acerca de tais fenômenos sociais que hoje,
RAIMON PANIKKAR E A CONSTRUÇÃO principalmente na América Latina, vem ganhando relevo, como se per-
cebe pelas novas Constituições Plurais da Bolívia e do Equador.
INTERCULTURAL DOS DIREITOS Neste sentido, Krohling aponta um ponto de partida que nos per-
HUMANOS: um passo para o mitirá repensar os Direitos Humanos, ou seja, a luz das contribuições
de Panikkar, como também de Christoph Eberhard, Boaventura de
Diálogo Entre os Diferentes. Sousa Santos e outros, determina o papel do que ele chama de antro-
pologia cultural, dispondo que: “O ponto de partida epistemológico

V ivemos em uma época singular na história da humanidade. Há


quem denomine, conforme Bittar (2008, p. 131 e 132) a nossa atua-
lidade de pós-modernidade, outros de supermodernidade (Georges
para se repensar os Direitos Humanos é a antropologia cultural e a
aproximação metodológica da hipótese de que só será possível uma fi-
losofia jurídica não etnocêntrica e em diálogo com todas as outras cul-
Balandier), ou ainda, de modernidade reflexiva (Ulrich Beck) ou de
turas, se tivermos como premissa o pluralismo cultural. O pluralismo
hipermodernidade (Gilles Lipovetsky). É nesse emaranhado de con-
e a multipolaridade provocados pela mundialização cultural hodierna
ceituações, onde prenomina o “não” consenso, que temos uma única
estão abertos à nova visão de aproximação e de teorizações intercul-
certeza: a falta de diálogo entre os povos na conformação de uma cul-
turais do direito”. (KROHLING, 2009, p. 67).
tura unívoca dos Direitos Humanos.
Desta feita, vê-se que a base dessa antropologia cultural é o outro,
É partindo desse contexto histórico cultural, que a reflexão de Rai-
ou seja, o reconhecimento no outro, de atributos que lhe permitem ser
mon Panikkar nos ajuda a criar caminhos seguros para alcançarmos
a concretização de uma cultura dos Direitos Humanos voltada ao diá-
3 .  Entende-se como sendo os Direitos Humanos conhecidos a construção elaborada pela
logo intercultural, a partir daquilo que ele denomina de Hermenêuti- Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 – Declaração Universal
dos Direitos Humanos.

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interlocutor na configuração de Direitos e Deveres. É a alteridade quem Ainda nesta conjetura da necessidade de perceber a multicultura-
embasa essa antropologia cultural. lidade dos Direitos Humanos, e a necessidade de salvaguarda dessas
Como exemplo de grupo de estudos voltados para essa antropologia várias culturas de direito a fim de construir um conceito pleno de
cultural, temos o Laboratório de Antropologia Jurídica de Paris que, se- Direitos Humanos, ou seja, diferente do atual imbuído de universa-
gundo Krohling, é um “grupo de pesquisa sobre Direitos Humanos e di- lidade, mas, ao contrário, de matiz ocidental, euro-norte americana
álogo intercultural que tem criado um espaço de reencontro, de diálogo e cristã, há que ressaltar a contribuição de Joaquim Herrera Flores
e de pesquisas sobre as problemáticas relativas aos Direitos do Homem e aquilo que ele denomina de racionalidade da resistência: “(...) nos-
e ao diálogo intercultural” (2009, p. 74). sa visão complexa dos direitos, aposta em uma racionalidade de re-
Desse modo, atento a essa conjectura multicultural da atualidade, sistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a
Panikkar, com sua teorização diatópica das equivalências homeomórfi- uma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos.
cas4, propõe uma visão cosmoteândrica da realidade, ou seja, uma reali- E tampouco descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento
dade formada a partir da visão do cósmico, do divido e do humano, que das diferenças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o
interligados formariam a base de uma busca pelos Direitos Humanos universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros.
através de um diálogo intercultural. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou conflu-
Dessas primeiras premissas, Panikkar percebe que os ditos Direitos Hu- ência – depois (não antes) de um processo conflitivo, discursivo de di-
manos Universais descritos na Declaração Universal dos Direitos Huma- álogo ou de confrontação no qual cheguem a romper-se os prejuízos
nos de 1948, na verdade não são universais, haja vista terem sido criados e as linhas paralelas” (HERRERA FLORES, 2003, p. 299).
sob a visão ocidental, euro-norte americana, cristã e do homem branco. Assim, a busca pelo universal deve partir de um diálogo com o outro,
Dentro dessa perspectiva, Krohling ressalta que “a atual concepção de com aquele que é diferente de mim, de modo a possibilitar um univer-
Direitos Humanos está inserida em um contexto de domínio cultural pelo salismo de confluência de ideias de conceitos, o que em Panikkar, como
fato de nem todas as tradições culturais terem atuado na formação dos visto, tem o nome de equivalências homeomórficas.
instrumentos internacionais de Direitos Humanos” (2009, p. 91), ou seja, Nesta esteira, podemos perceber que esse multiculturalismo re-
a atual visão que temos dos Direitos Humanos possui matiz ocidental. conhecido na atualidade atua como uma forma de reconhecimento
Desta feita, essa multiculturalidade ou policulturalidade5, demarca a de um pluralismo emancipatório, ou seja, um pluralismo que, fun-
necessidade de realização de um diálogo intercultural, ou seja, um diá- dado em uma democracia, expressa o reconhecimento dos valores
logo entre o Eu e o Outro, diferente de mim culturalmente, mas igual no coletivos corporificados pela dimensão cultural de cada grupo e de
tocante aos Direitos Humanos. cada comunidade.
Portanto, conforme trabalhado por Del’Olmo (2006, p. 51), a atual Diante de tais fatos, Wolkmer (2006, p. 125) aponta que é nesta
visão multicultural dos Direitos Humanos, reconhecida na pós moder- perspectiva de reconhecimento de um pluralismo cultural, e conse-
nidade, implica uma não-homogeneidade cultural e étnica, bem como quentemente, jurídico, de tipo comunitário-participativo, fundado
uma não imposição cultural, de modo a se preservar um visão diversifi- num diálogo intercultural, que deveremos definir e interpretar os
cada das várias formas de vida na sociedade contemporânea. limites de uma nova concepção de direitos humanos, que englobe
não só o eu, de natureza cristã, ocidental, euro-norte americano,
4 .  Essas equivalências homeomórficas tratadas por Panikkar tem o sentido de formas mas, também, o outro.
semelhantes, ou seja, são conceitos e símbolos que, tratados por diferentes culturas, de
Ademais, a necessidade de realizar uma construção, ou recons-
forma igual ou não, podem servir para criar um campo de diálogo entre elas. Um exem-
plo trazido por Panikkar é o da Dignidade da Pessoa Humana, que é tratada por todas as trução, dos Direitos Humanos à luz de diálogos interculturais, em-
culturas, mas não como sendo Direito Humano Fundamental, haja vista algumas não a basados no reconhecimento multicultural do outro, é premente.
reconhecerem como tal.
5 .  Essa expressão é tratada por BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. trad. por
PENCHEL, Marcus. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

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Casos como o “uso da burca” na França6 surgem em demasiado, prin- meno nada mais é do que “uma reflexão temática sobre o fato de que
cipalmente quando a economia do país não vai bem. os loci (topoi8) de culturas historicamente não-relacionadas tornam
Na tentativa de barrar a entrada de estrangeiros, muito mais, do que pro- problemáticas a compreensão de uma tradição com as ferramentas
teger direitos humanos dos diferentes, países como a França, atuam no sen- de outras e as tentativas hermenêuticas de preencher essas lacunas”
tido de criar legislações que desestimulem a migração ilegal, ou seja, quando (PANIKKAR, 2004, p. 208).
as taxas de desemprego aumentam entre os comuns, restringe-se a entrada Disso, podemos retirar a conclusão de que essa hermenêutica diató-
de diferentes, a fim de recuperar a ânimo econômico financeiro daqueles. pica se fundamenta na ideia de incompletude cultural, ou seja, por mais
Com o objetivo de trazer uma solução para casos como esse viven- forte que determinado topoi de uma cultura seja forte, não será comple-
ciado pelas mulçumanas em França referente ao uso da burca, Baez to, sendo que, tal sintoma poderá ser solucionado com os topoi de ou-
e Mezzaroba (2011, p. 255) ressaltam que “a solução para esse impasse tras culturas. Um diálogo entre o eu e o outro, para a formação do Nós.
não está, portanto, na tentativa de criação de uma moral universal”, Sob tais aspectos, Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 447) apon-
como querido pela França, “mas na utilização de um instrumento te- ta para a necessidade de realização desse diálogo, tendo em vista que
órico que permita o diálogo entre diferentes morais, para, a partir daí “compreender uma determinada cultura a partir dos topoi de outra cul-
se extrair os pontos de contato que podem ser utilizados como funda- tura é uma tarefa muito difícil”, de modo que para ele o caminho, assim
mentos dos direitos humanos”. como Panikkar, é a construção e realização de um diálogo intercultural
Desse modo, ao também criticar essa visão etnocêntrica, euro-nor- através da hermenêutica diatópica.
te americana, cristã, do homem branco, que embasa a Declaração Uni- Neste desiderato, o diálogo diatópico ocorrerá na medida em que os di-
versal dos Direitos Humanos de 1948 Martins (2009, p. 184) demonstra ferentes, reconhecendo-se como tal, reconheçam a incompletude de sua
que tal visão impede o direito à diversidade cultural, ou seja, impos- cultura, bem como de seus topoi, de modo que esse reconhecimento pro-
sibilita a compreensão do outro, bem como nos retira a possibilidade porcione um diálogo onde se queira, não impor uma cultura sob a outra,
de mudarmos de ideia. pois ambas são incompletas, mas sim, construir a partir das equivalên-
Assim, vistos todas essas discussões acerca da multiculturalidade cias homeomórficas, um conceito dual de Direitos Humanos, pois como
que permeia a noção de Direitos Humanos, ou que ao menos deve- aponta Krohling (2009, p. 118) “é impossível querer reduzir tudo ao uno”.
ria permear, Panikkar (2004, p. 210) aponta que os Direitos Humanos Exemplo de aplicação dessa hermenêutica diatópica pode ser cons-
funcionam como uma janela através da qual determinada cultura truído a partir do topoi dos Direitos Humanos na cultura ocidental, do
jurídica constrói uma ordem humana justa para seus semelhantes, topoi no Dharma da cultura hindu e do topoi do Umma da cultura islâ-
sendo que essas pessoas que vivem sob esta construção, não veem mica, ou seja, ambas as construções apontam para o fato de suas cons-
tal janela, necessitando do outro, de outra cultura, para auxiliar sua truções acerca dos “Direitos Humanos” serem incompletas.
percepção da realidade. É o que Krohling chama de teoria das janelas Neste sentido, Santos aponta que “vistos a partir do topos do dhar-
(KROHLING, 2009, p. 117). ma, os direitos humanos são incompletos na medida em que não esta-
É dessa concepção que Panikkar elaborará a noção daquilo que ele belecem a ligação entre a parte (indivíduo) e o todo (o cosmos)”, ou seja,
denomina de Hermenêutica Diatópica7, sendo que, para ele, tal fenô- a visão ocidental, estabelecida na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, sob a perspectiva do dharma e da umma, “está conta-
minada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos
6 .  A França criou um legislação para proibir o uso da burca pelas mulheres islâmicas no
e deveres, pois apenas garante direitos àqueles de quem pode exigir de-
argumento de que a obrigatoriedade desse uso seria uma afronta aos Direitos Humanos
dessas mulheres – Lei 524, de 13 de Julho de 2010 – sendo que as infratoras correm o risco veres” (SANTOS, 2010, p. 449).
de serem punidas com multa de 15º Euros e obrigação de frequentarem aulas de cida-
dania. Essa imposição francesa causou alvoroço entre as mulçumanas, que protestaram 8 .  Topoi segundo a construção teórica de Panikkar são conceitos fortes, lugares comuns
requerendo o direito de usar tal vestimenta, haja vista ser parte de sua cultura. retóricos, ou seja, locais dentro da cultura de cada sociedade que em que o contato com o
7 .  Hermenêutica Diatópica (dia = através + topos = lugar). outro fica restrito, sob pena de se descaracterizar culturalmente.

272 273
N N
Por outro lado, as visões da umma e do dharma acerca do que en- “exige uma produção de conhecimento coletiva, participativa, interati-
tendemos como Direitos Humanos, a partir da noção visão ocidental, va, intersubjetiva e reticular” (SANTOS, 2010, p. 454).
também são incompletas, haja vista a primeira, sublinhar mais deveres Contudo, cabe-nos ainda ressaltar que esse resgate intercultural do
do que direitos, o que justificaria desigualdades, tais como a existente outro, através de seu reconhecimento como sujeito de direitos e deve-
entre homens e mulheres no islamismo, e a segunda, preponderar, de- res pode, e deve, ocorrer tanto entre sociedades inteiras (por ex.: países),
masiadamente, o coletivo em face do individual. bem como dentro de um mesmo país.
Desta feita, como salientado por Boaventura de Sousa santos, am- Exemplo dessa construção interna de um diálogo intercultural para
bas as culturas, acerca dos direitos humanos, são incompletas, sendo a proteção dos Direitos Humanos é o que se constitucionalizou pelas no-
que: “A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamen- vas Constituições Latino Americanas, do Equador e da Bolívia, por onde,
tal da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado na primeira, o meio ambiente é tido como sujeito de direitos9, e na segun-
rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável da, as línguas indígenas são consideradas como sendo línguas oficiais10.
ao individualismo possessivo, ao narcisismo, á alienação e à anomia. De Essas Constituições são exemplos do novo constitucionalismo pluri-
igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica de- nacional latino-americano. Segundo Magalhães (2010, p. 204 e 205), esse
ve-se ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano novo Estado plurinacional demonstra uma ruptura com o antigo Esta-
tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequada- do Nacional Moderno, o que possibilita a existência e o reconhecimento
mente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada”. de uma pluralidade de identidades no seio social.
(SANTOS, 2010, p. 450). Desse modo, tais exemplos de Constituições Plurinacionais refletem
Portanto, o presente exemplo, de visões incompletas acerca dos Di- a necessidade de uma reformulação do conceito dos Direitos Humanos,
reitos Humanos, possibilita a realização de um diálogo intercultural, que perdura desde o surgimento da Declaração Universal dos Direitos
onde, através da disposição em sair do seu topoi, ir ao topoi do outro, Humanos em 1948, ou seja, hoje temos a necessidade de reconhecer o
e depois retornar ao seu – diálogo diatópico – possibilitará que o Eu vi- outro, de abrir espaço para o diálogo com a diferença a fim de conse-
sualize sua cultura sob o olhar do outro, percebendo as diferenças e as guirmos direitos e deveres que abarquem as várias concepções cultuais,
similitudes entre as culturas. sendo que, um dos caminhos para árdua tarefa, é pelo viés da herme-
Partindo disso, Pannikar aponta que em todas as culturas existe a nêutica diatópica de Panikkar.
ideia de Dignidade Humana, seja ela tratada como sendo um direito hu-
mano ou não. Tal ponto possibilitaria a realização de um daquilo que
9 .  CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR de 2008, art. 71 – La naturaleza o
ele chama de dialógico, ou seja, não simplesmente troca de argumen- Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integral-
tos como um diálogo normal, mas uma troca de saberes, onde as partes mente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura,
funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá
atravessam a fronteira para o lado oposto, veem seus fundamentos, e
exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para apli-
retornam ao lugar de origem. car e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en la Constitu-
Ademais, sob esse aspecto de vetor comum, entre os diferentes, da ción, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los
colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos
dignidade da pessoa humana, conforme salienta Melo Júnior (2011, p.
que forman un ecosistema. Disponível em <http://www.geocities.ws/direitoucb/frame/in-
139), “entre os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana é talvez ternacionais/constitu.htm>. Acessado em 14, de Junho de 2012.
o mais abrangente de todos, á medida que permite uma repercussão de 10 .  CONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL ESTADO BOLIVIANO. Artículo 5.I. Son idiomas
maiores dimensões na vida da sociedade, pois tutela as condições míni- oficiales del Estado el castellano y todos los idiomas de las naciones y pueblos indígena
originario campesinos, que son el aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño,
mas de existência (...)”.
cayubaba, chácobo, chimán, ese ejja, guaraní, guarasu?we, guarayu, itonama, leco, ma-
Desta feita, podemos perceber que a hermenêutica diatópica em chajuyaikallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mose-
Panikkar requer não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas tén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipa-
ya, weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco. Disponível em <http://www.geocities.
também um diferente processo de criação desse conhecimento, ou seja,
ws/direitoucb/frame/internacionais/constitu.htm>. Acessado em 14, de Junho de 2012..

274 275
N N
Por fim, reconhecer a Hermenêutica Diatópica como sendo um dos REFERÊNCIAS
meios necessários para o reconhecimento do outro, é extremamente
importante na busca pelo fortalecimento mundial de atitudes sociais BAEZ, Narciso Leandro Xavier e MEZZAROBA, Orides. Direitos Huma-
aceitáveis, ou seja, tais atitudes devem passar não pela imposição cul- nos Fundamentais e Multiculturalismo: a coexistência do universalis-
tural, mas sim na busca dos topois de cada uma das culturas, possibili- mo com o relativismo. In: Revista Pensar, Vol. 16. N. 1. P. 246 a 272. Janeiro/
tando cada uma delas completar as lacunas existentes em sua estrutura Julho de 2011.
através do diálogo com o diferente.
BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. trad. por PENCHEL, Marcus.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
CONSIDERAÇÕES FINAIS BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O Direito da Pós Modernidade. In: Re-
vista Seqüência, nº 57, p. 131-152, dez. 2008.
Visto todas as ponderações de Lévinas e outros, acerca da teorização
de uma Ética da Alteridade e da Responsabilidade, bem como a contri- BRANDER, Elsa Cristina de Lima Agra Amorim. Ética como Respon-
buição da Hermenêutica Diatópica proposta por Panikkar e do diálogo sabilidade na Filosofia de Emmanuel Lévinas. Disponível em: <http://
intercultural nela subjacente, o reconhecimento do outro é tarefa ár- www.scribd.com/doc/7207601/Levinas-Etica-Como-Responsabilidade-
dua, mas necessária no contexto multicultural em que vivemos. Na-Filosofia-de-Emmanuel-Levinas>. Acessado em: 13 de Junho de 2012.
Assim, à guisa de conclusão, percebemos que os conceitos de ética CARRARA, Ozanan Vicente. Ética e Política em Emmanuel Lévinas. In:
da alteridade e da responsabilidade trazidos por Lévinas corresponde a Revista Ethica. Vol. 18. N. 1. p. 71 a 81. 2011. Disponível em: < http://www.
um caminho necessário a percorrermos na busca pelo reconhecimento revistaethica.com.br/V18N1art4.pdf>. Acessado em 15 de Junho de 2012.
do outro, tendo em vista ser a ética a filosofia primeira, ou seja, aquilo
que servirá de embasamento para a moral e, consequentemente, para os CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O Direito à Diferença: as ações afirma-
atos dos indivíduos. tivas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homos-
Neste sentido, também se coloca a contribuição de Panikkar através sexuais e de pessoas portadoras de deficiência. 2ªed. Belo Horizonte:
da hermenêutica diatópica, haja vista sê-la a realização de um diálogo Del Rey, 2005.
em que ambos interlocutores se abrem ao outro, reconhecendo-o como DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Globalização e Multiculturalismo:
sujeito de direitos, o que os possibilita enxergar sua cultura pela visão Aproximações e Divergências na Atualidade. In: Revista Direitos Cul-
do outro, ou seja, reconhecer sua incompletude no tocante àquilo que turais, Vol. 1. N. 1, Dezembro de 2006. p. 49 a 72.
define como Direitos Humanos.
Desta feita, tais contribuições acima são mecanismos de reconheci- HERRERA FLORES, Joaquim. Human Rights, Interculturality and Re-
mento do outro, de melhoria da relação com os diferentes, meios de in- sistance Rationality. trad. por PRONER, Carol. In: Revista Direito e De-
teração entre culturas. Tanto Lévinas, quanto Panikkar, cada um a seu mocracia. Vol. 4. N. 2. 2º Semestre de 2003. p. 287 a 304.
modo e tempo, construíram um caminho para o encontro de dois Eu’s, a KROHLING, Aloísio. A Ética da Alteridade e da Responsabilidade. Curi-
fim de que desse contexto surja um Nós, não uno, mas múltiplo. tiba: Juruá, 2011.

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278 279
N N
15
O JULGAMENTO DA ADPF N. 132 PELO STF
COMO UM CASO MODELO DO USO DE UMA
INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO1¨

Flávio Quinaud Pedron

A ADPF n. 132 / RJ foi julgada em maio de 2011, tendo como ministro


relator Carlos Ayres de Britto. A petição inicial foi proposta pelo
Governador do Rio de Janeiro, sujeito processual legítimo, conforme o
art. 103, V, da Constituição de 1988, bem como o art. 2º, da Lei n. 9.882/99.
A pretensão, então, buscava uma definição sobre se haveria (ou não)
proteção constitucional para as uniões homoafetivas, sob a premissa
que as decisões judiciais lhes negam direitos constitucionais, como
igualdade, liberdade e dignidade humana.2 Dessa forma, pleiteava-se
uma interpretação ao art. 1.723, do Código Civil,3 que incluísse a união
homoafetiva dentro do conceito de entidade familiar união estável. Pe-
dia-se, ainda, que, em sede de medida liminar, fosse declarada a validade
das decisões administrativas que equiparam as uniões homoafetivas às
uniões estáveis, bem como a suspensão dos processos e decisões judi-
ciais em sentido oposto, até o julgamento final da ação. Fez-se, ainda, um
pedido subsidiário para que, caso não recebida a ADPF, esta seja conver-
tida em ADI, a ser processada com pedido de proferimento de interpre-

1 .  ¨ O presente texto é uma versão resumida de discussão que fora melhor e de modo mais
completa explorada em minha tese de Doutorado junto a UFMG e publicada sob a forma
do livro: QUINAUD PEDRON, Flávio. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Ju-
rídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012.
2 .  Em razão dessa problemática, por exemplo, pairava a dúvida sobre a aplicabilidade dos
art. 19, incisos II e V, que versa sobre os casos de concessão de licença, e do art. 33, incisos
de I a X, sobre benefícios previdenciários e assistenciais, do Estatuto dos Servidores Civis
do Estado do Rio de Janeiro (Decreto-Lei n. 220/1975).
3 .  “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família”.

281
N
tação, conforme a Constituição aos artigos 194 e 33,5 do Decreto-Lei n. define que a promoção do bem-estar de todos, sem discriminação, in-
220/75, do Estado do Rio de Janeiro, e ao art. 1.723, do Código Civil. clusive, de natureza sexual, é um dos objetivos da República brasileira; e
Dando continuidade ao processo, foram solicitadas informações ao que por sexo não se estaria apenas sinalizando para a diferença (fisioló-
Governador do Rio de Janeiro, bem como a Assembleia Legislativa da- gica) entre o gênero masculino e o gênero feminino, mas mais que isso: a
quele Estado e aos Tribunais de Justiça dos Estados. Os últimos mani- Constituição, ao consagrar a proteção ao pluralismo sócio-político-cul-
festaram-se, majoritariamente, a favor da equiparação.6 A Assembleia tural, afirma um direito fundamental de igualdade “civil-moral” (AYRES
Legislativa fluminense informou que está em vigor no Estado a Lei n. DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.25) e, por tal elemento normativo,
5.034/2007, que permite a averbação de companheiros do mesmo sexo determina a necessidade de efetivação de políticas públicas afirmativas
como dependentes de servidores públicos estaduais. Em parecer da Ad- para a plena e respeitosa convivência entre os cidadãos.
vocacia-Geral da União, o órgão também se posicionou pelo cabimento Além disso, invoca aqui uma fala que atribui – sem indicar sua fonte
das uniões homoafetivas dentro do conceito de família, o que também precisa – a Kelsen (1999, p.273-274), quando diz que “tudo que não estiver ju-
foi consonante com o parecer da Procuradoria-Geral da República. ridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (AYRES
O ministro relator identificou, ainda, coincidência de objeto com a DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.27), o que corresponderia à norma pre-
ADI n. 4.277, proposta pela Procuradoria-Geral da República, também sente no art. 5º, II, da Constituição de 1988.8 Logo, se não há nenhuma nor-
em curso, razão pela qual passou a processá-las conjuntamente. ma constitucional tornando ilícita a homossexualidade, o ministro enten-
Iniciando a votação, o Min. Carlos Ayres de Britto abriu sua decisão de que a conclusão deve assentar-se na sua permissão pela Carta Magna.
esclarecendo que conheceria da ADPF n. 132, convertendo-a em ADI e Em uma segunda parte de seu raciocínio, o Min. Ayres de Britto (voto
julgando-a em par à ADI n. 4.277. Dessa forma, a questão central estaria na ADPF n. 132, p.31) afirma que o direito de respeito à preferência sexu-
na fixação de uma interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723, al é fundamentado também no princípio da dignidade humana, enten-
do Código Civil brasileiro, sem restringir a discussão às normas referen- dido aqui como o direito à auto-realização e à felicidade. Sendo assim,
tes ao Estatuto do Servidor Público civil fluminense (que seria questão qualquer interpretação em sentido contrário ao reconhecimento de di-
prejudicada em virtude da Lei Estadual n. 5.034/2007 (AYRES DE BRIT- reito às uniões homoafetivas se fundaria em um preconceito, o que a
TO, voto na ADPF n. 132, p.20). própria Constituição busca reprimir.
O ministro lembra, então, que o art. 3º, IV, da Constituição de 1988,7 Como se está diante de direitos fundamentais, o ministro conclui pela
auto-aplicabilidade, sendo de plano entendido dentro do conceito de fa-
4 .  “Art. 19 Conceder-se-á licença: [...] II - por motivo de doença em pessoa da família, com mília as uniões homoafetivas; o que dispensa a necessidade do Legislati-
vencimento e vantagens integrais nos primeiros 12 (doze) meses; e, com dois terços, por
vo de regulamentar o caso por meio de edição de leis (AYRES DE BRITTO,
outros 12 (doze) meses, no máximo; [...] V - sem vencimento, para acompanhar o cônjuge
eleito para o Congresso Nacional ou mandado servir em outras localidades se militar, ser- voto na ADPF n. 132, p.32). É importante destacar que o min. Relator fecha
vidor público ou com vínculo empregatício em empresa estadual ou particular”. seu voto identificando o conceito de família como um conceito cultural,
5 .  “Art. 33 - O Poder Executivo disciplinará a previdência e a assistência ao funcioná- de modo que a linguagem jurídica não pode tecer nenhuma espécie de
rio e à sua família, compreendendo: I - salário-família; II - auxílio-doença; III - assistência
controle, nem pode ser reduzido para fomentar leituras preconceituosas
médica, farmacêutica, dentária e hospitalar; IV - financiamento imobiliário; V - auxílio-
moradia; VI - auxílio para a educação dos dependentes; VII - tratamento por acidente em e homofóbicas (AYRES DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.42).
serviço, doença profissional ou internação compulsória para tratamento psiquiátrico; O segundo a votar foi o Min. Luiz Fux, que acompanhou o min. Rela-
VIII - auxílio-funeral, com base no vencimento, remuneração ou provento; IX - pensão
tor ao receber a ADPF n. 132 como ADI e reconhecer a identidade de ob-
em caso de morte por acidente em serviço ou doença profissional; X - plano de seguro
compulsório para complementação de proventos e pensões. Parágrafo único - A família
do funcionário constitui-se dos dependentes que, necessária e comprovadamente, vivam outras formas de discriminação”.
a suas expensas”.
8 .  “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
6 .  Foram discordantes os Tribunais de Justiça do Distrito Federal, de Santa Catarina e da Bahia. se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
7 .  “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV - liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] II - ninguém
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

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jeto com a ADI n. 4.227. Preparando a discussão de seu voto, ele estabele- art. 226, § 3º, da Constituição de 1988, não podem ser tomados em sua li-
ce algumas premissas: (1) a homossexualidade é fato social no Brasil, já teralidade, sob pena de aniquilar a liberdade sexual dos homossexuais.
senso constatada no Censo de 2010 pelo IBGE (FUX, voto na ADPF n. 132, O Min. Ricardo Lewandowski abre seu voto apresentando um regis-
p.60); (2) não há qualquer normas jurídica – constitucional ou infracons- tro do tratamento constitucionalmente dado pelas Constituições ante-
titucional – que defina expressamente tal união como ilícita, inexistin- riores à família. Nas Cartas de 1937, 1946 e 1967, pode-se perceber que o
do vedações para suas constituições. Além disso, o Min. Fux, no mesmo conceito de família se compunha como desdobramento da relação de
sentido que o julgador anterior, entenderá que o Estado não pode ser casamento; o que é distinto da disciplina dada pela Constituição de 1988,
promotor – mas sim, opositor – de preconceitos, em qualquer das suas que busca desgarrar os dois conceitos, explicitando a existência de ou-
formas (FUX, voto na ADPF n. 132, p.62). Sob esse aspecto, ele argumenta tros modelos de família que não se constituem apenas pelo casamento
que não há nenhuma distinção ontológica entre a união homoafetiva, (daí decorrendo a união estável e a família monoparental).
o casamento e a união estável como espécies do conceito família (FUX, Dentro da própria história institucional inaugurada pela Constitui-
voto na ADPF n. 132, p.64). ção vigente, outro debate foi importante para alargar a compreensão
Citando Dworkin (2006), o Min. Fux lembra que a Constituição exige da proteção constitucional à entidade familiar: se a possibilidade de
de seu intérprete a assunção de uma leitura que consagre a todos iguais conversão da união estável em casamento constituiria – ou não – con-
direitos de respeito e de consideração (FUX, voto na ADPF n. 132, p.65). dição sine qua non para o reconhecimento de tal como entidade fami-
E, explicando melhor, o ministro defende a igualdade de oportunidades, liar (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.103).9 Voltando ao debate
trazida também por Dworkin (2005, p.xvii). Além disso, o desrespeito com- constituinte, o ministro busca justificar que o sentido do texto consti-
prometeria, ainda, a proteção da dignidade humana dos homossexuais. tucional da norma do art. 226, §3º, seria exclusivamente para definição
Logo, uma política de reconhecimento – o que envolve um programa de uma união entre homem e mulher, no sentido próprio. Ou seja, argu-
de políticas públicas – deve ser estabelecida para materializar tal igual- menta que o Constituinte intencionalmente haveria vedado o reconhe-
dade. O Min. Fux cita, então, como exemplo, a Portaria MPS n. 513, do cimento de união estável às uniões homoafetivas.
Ministério da Previdência Social, de 09 de dezembro de 2010, que prevê Assim, logo de plano o ministro descarta falar na aplicação de uma
que o conceito de dependentes para fins previdenciários deve abranger mutação constitucional ou na utilização de uma interpretação exten-
a união de pessoas do mesmo sexo. siva do dispositivo (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.105) para
Voltando-se para o pensamento de Hesse (1991), o Min. Fux (voto na modificar o sentido do conceito de união estável, e propõe como solu-
ADPF n. 132, p.73) afirma que as mudanças sociais – como fatos concretos ção a declaração de uma nova espécie – um quarto gênero – de entida-
– não podem ser ignoradas pelo mundo jurídico, mas, o que a princípio de familiar, a se designar por “relação homoafetiva”. A proteção cons-
poderia embasar um argumento favorável à afirmação de uma mutação titucional a essa espécie derivaria de uma leitura sistêmica do texto
constitucional, logo é abandonado, pois, na finalização de seu voto, o Min. constitucional – e não apenas do art. 226 – alinhando os princípios da
Fux deixa claro que a questão aqui é de reconhecimento do que já estava dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da intimi-
na própria lógica da Constituição, sem mencionar qualquer necessidade dade e da não-discriminação por orientação sexual (LEWANDOWSKI,
de alteração normativa. Ou seja, o art. 226 da Constituição, ao proteger a voto na ADPF n. 132, p.106). Ele alega, portanto, fazer uso de uma me-
família, já autoriza a declaração do direito à união homoafetiva. todologia de integração normativa, justamente por haver um vácuo
A Min. Carmen Lúcia segue na votação do processo. Seu argumento normativo que deve incorporar a realidade.10 Desse modo, ele sustenta
toma como ponto central a noção de que a Constituição é um conjunto
sistêmico de normas, que devem ser interpretadas de modo a produ- 9 .  Ver julgamento pelo STF do RE 397.762 / BA, Rel. Min. Marco Aurélio.
zir uma harmonia dos seus comandos. Assim, a largueza que a ministra 10 .  “Quer dizer, desvela-se, por esse método, outra espécie de entidade familiar, que se
atribui como própria das normas constitucionais, permite a ela (voto na coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um homem e
uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto constitu-
ADPF n. 132, p.93) afirmar que os termos homem e mulher, presentes no
cional” (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.112).

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que não está indo de encontro com a intenção original do Constituinte a partir das mesmas normas que formam a Constituição vigente, isto é,
de 1988, mas construindo entendimento a partir da lacuna que se for- a partir dos princípios da liberdade e da igualdade (MENDES, voto na
ma pela realidade social. ADPF n. 132, p.125). Mas, em uma nova assentada, o Min. Mendes registra
Dando continuidade ao julgamento, o Min. Joaquim Barbosa afirma que na prática a leitura que se faz da norma generaliza o entendimento
que a discussão toca exatamente em um descompasso entre o mundo da proibição das uniões homoafetivas, o que é equivocado, e que sobre
dos fatos e o mundo jurídico. Igual a outros ministros, irá reconhecer tal quadro é que se caberia falar em interpretação conforme (MENDES,
que há um “silêncio constitucional” sobre a matéria, mas entende que, voto na ADPF n. 132, p.160).
de modo algum, tal silêncio pode ser interpretado como negação (BAR- Logo, para o Min. Mendes, a questão deve ser recolocada sob o pris-
BOSA, voto na ADPF n. 132, p.117). Então, para a superação do problema, ma de proteção dos direitos fundamentais de uma minoria em cumpri-
lança mão da ideia de que uma ordem democrática tem de assegurar a mento àquilo que estaria na própria essência da jurisdição constitucio-
todos respeito e consideração iguais – citando, inclusive, Dworkin –, e nal (voto na ADPF n. 132, p.172). O Min. Gilmar Mendes destaca também
compreendendo que há, sob o pano de fundo da questão, todo um pro- que as tentativas de proteção dessa minoria pelo Estado tem sido insu-
cesso histórico que não pode ser negligenciado. Logo, ele também vota ficientes, pois não basta apenas uma ação no sentido de coibir o precon-
favoravelmente ao reconhecimento das uniões homoafetivas. ceito, mas um conjunto de políticas públicas voltadas para a promoção
O próximo voto é de autoria do Min. Gilmar Mendes. Sua primeira da dignidade desse grupo.13 Assim, ele entende que a decisão que o STF
observação é a de que a utilização da técnica de interpretação conforme deve tomar não pode representar uma solução definitiva, mas servir
a Constituição seria equivocada, pois não haveria múltiplos sentidos para estimular o debate e permitir que a atuação legislativa cuide de
na norma, dos quais o STF necessita assentar um e excluir os demais definir melhor a questão (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.182).
da validade jurídica (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.147). O §3º do art. O voto conduzido pelo Min. Marco Aurélio, por sua vez, toma o rumo
2226, em sua visão, prestaria exclusivamente à disciplina da figura da de uma reconstrução das transformações pelas quais o conceito de fa-
união estável, e influenciaria para permitir ou para proibir as uniões mília sofreu ao longo da história da humanidade, com incursões pelo
homoafetivas, pois seria conceito distinto. Logo, ele explicita que a ma- direito brasileiro no século passado. Sob a leitura da dignidade huma-
nutenção da linha de raciocínio que defende a aplicação da técnica de na, o ministro passa a defender que a finalidade do Estado é permitir a
interpretação, conforme querem os Ministros Ayres de Britto,11 Cármen cada cidadão a definição dos seus projetos pessoais de vida, o que inclui
Lúcia e Fux, acabaria por produzir uma alteração da normatividade o desenvolvimento de sua personalidade de forma livre. Logo, decorre
constitucional, o que ele entende não ser necessário – e nem legítimo12 –, uma obrigação constitucional de não discriminação e de respeito às di-
já que tal proteção não precisaria ser criada, mas poderia ser declarada ferenças na forma de um tratamento equânime, razão segundo a qual
ele julga procedente o pedido, aplicando o regime da união estável às
uniões homoafetivas.
11 .  O Min. Ayres de Britto (voto na ADPF n. 132, p.126) interrompendo a leitura do voto no
Min. Gilmar Mendes, irá explicitar que era exatamente a sua intenção dar ao texto do art. Na abertura de seu voto, o Min. Celso de Mello registra a pluralização
226, § 3º da Constituição um sentido ampliado, para além da sua literalidade, e, com isso, que o debate constitucional ganhou em razão justamente da participa-
incluir dentro do conceito de união estável a união homoafetiva. Sob tal linha de raciocí-
nio parece ficar evidenciado – sem que, contudo, o mesmo ministro tenha explicitado – a
tentativa de criação de uma mutação constitucional, já que os mesmos buscaram alterar 13 .  “Nesse sentido, diferentemente do que expôs o Ministro Relator Ayres Britto – ao
a norma jurídica para incluir a união homoafetiva no conceito de união estável, mas pre- assentar que não haveria lacuna e que se trataria apenas de um tipo de interpretação que
servando o texto original da Constituição. Mas esta não seria uma interpretação correta supera a literalidade do disposto no art. 226, § 3º, da Constituição e conclui pela paridade
da situação, pois na sequencia de seu voto o próprio Min. Ayres de Britto acaba reconhe- de situações jurídicas –, evidenciei o problema da constatação de uma lacuna valorativa
cendo que a decisão tem que levar em consideração uma interpretação construtiva do ou axiológica quanto a um sistema de proteção da união homoafetiva, que, de certa for-
Direito, citando inclusive, o pensamento de Dworkin. ma, demanda uma solução provisória desta Corte, a partir da aplicação, por exemplo, do
12 .  Importante, então, registrar essa preocupação com o limite da interpretação e da de- dispositivo que trata da união estável entre homem e mulher, naquilo que for cabível, ou
cisão sobre a Constituição assumida pelo Min. Mendes, bem diferente do voto proferido seja, em conformidade com a ideia da aplicação do pensamento do possível” (MENDES,
na Rcl. 4.335 / AC, anteriormente analisado (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.154). voto na ADPF n. 132, p.194-195).

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ção da sociedade na forma do amicus curiae. Em um segundo momento, do ser abandonada. Ao voltar-se para a história institucional, como fei-
ele tece observações sobre o tratamento discriminatório que a história to no Capítulo 1 da presente pesquisa, pode-se perceber que, na tradição
brasileira regista contra os homossexuais, e conclui no sentido de que brasileira, o recurso do STF a uma mutação constitucional não passou
tais práticas apoiadas exclusivamente em preconceitos injustificados de um modismo, no qual o conceito simplesmente foi transportado com
tem de acabar. No seu entender, a decisão a ser tomada pelo STF, então, um uso meramente retórico.
tem a função de Por isso mesmo, a assunção de uma postura comprometida com a le-
gitimidade decisória democrática passa pela via da incorporação da tese
"tornar efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à li- do direito como integridade e da defesa de uma interpretação construti-
berdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dig- va. Ora, no caso em discussão, deve ser entendido que o art. 5º, caput, da
nidade da pessoa humana e que, rompendo paradigmas históricos e Constituição de 1988, já traz, explicitamente, um princípio mais geral e
culturais, remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da abrangente de igual proteção, quando determina que “todos são iguais
felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discrimi- perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Trata-se de norma
natório (Min. Celso de Mello, no voto da ADPF n. 132, p.228)." constitucional veiculada por texto com redação original.14
Assim, não é que forças lassalleanas provocaram um primado do
Sendo assim, sua posição é a defesa da aplicação da figura da união fato sobre a norma, mas sim, que a própria comunidade brasileira, as-
estável também para as uniões homoafetivas, na esteira do voto do mi- sumindo-se sob a forma de uma comunidade de princípio, dentro de
nistro relator, pois, somente assim, poder-se-á efetivar o direito à busca um processo histórico de aprendizado, é capaz de reconhecer o dever
pela felicidade desses indivíduos. Um traço importante em seu voto é a de respeito e de igual tratamento aos homossexuais. As exigências aqui
constatação de que não se trata de ativismo judicial ou de criação por são morais no sentido dworkiano de igual respeito e consideração para
parte da jurisprudência do STF, mas da efetivação de um direito que já com todos os membros da comunidade, e decorrem da compreensão
se encontrava na ordem constitucional vigente, e que era negligenciado
pelos poderes públicos (Min. Celso de Mello, voto na ADPF n. 132, p.261). 14 .  A crítica que Streck (2011, p.265) faz à decisão da ADPF n. 132 parece desarrazoada.
O último a votar é o Min. Cezar Peluso. Seu argumento é no sentido Para o jurista, tal decisão cria uma “Constituição paralela”, forjada pela subjetividade dos
ministros do STF. Em seu entender, a solução do caso passaria pela improcedência do pe-
de compreender que a norma do art. 226, § 3º, da Constituição, não pode
dido, cabendo, exclusivamente, ao Congresso Nacional solucionar a atividade legiferante
ser lida como numerus clausus, razão pela qual as uniões homoafetivas à questão. O argumento da permissibilidade pela ausência de proibição explícita deveria
devem ser equiparas às uniões estáveis. Mas entende que o Legislativo ser afastado, no entender de Streck, pois, segundo o mesmo, se “[f]osse assim inúmeras
não proibições poderiam ser transformadas em permissões (STRECK, 2011, p.265, grifos
deve se mobilizar para regulamentar melhor tal equiparação.
no original). Ele afirma que a Constituição de 1988 também seria omissa quanto à possi-
Sob as luzes de tal julgamento, portanto, a justificativa de uma tese bilidade de propositura de ADI sobre lei municipal perante o STF – o que poderia gerar
da mutação constitucional parece ter passado distante. Nenhum dos um suposto argumento de algum município no sentido de que o princípio da isonomia
haveria sido violado. Entretanto, isso deve ser analisado com mais cuidado: (1) o exemplo
ministros procurou justificar seu argumento afirmando que os homos-
e a analogia trazida por Streck parece olvidar do fato de que a ADPF cuida de matéria
sexuais devem ser constitucionalmente protegidos a partir de um novo concernente à proteção de direitos fundamentais, ao passo que a situação de cabimento
arranjo da realidade social. Pelo contrário, a preocupação foi inteira da ADI para lei municipal é uma discussão acerca da competência, e objeto do controle
concentrado de constitucionalidade; (2) ao defender uma interpretação literal da Cons-
em demonstrar que não se tratava de uma inovação, mas que a ordem
tituição, Streck parece justamente esquecer a importância da interpretação construtiva
constitucional brasileira, em sua estrutura mais básica, já se mostrava do direito e os ganhos da teoria hermenêutica, que tanto defende. Ora, ele ignora que há
contrária ao tratamento discriminatório. um processo de aprendizado social subjacente, além do fato de que a defesa da união ho-
moafetiva é uma interpretação jurídica que melhor coaduna com um esquema de direitos
Isso pode indicar um importante caminho: o STF pode ter desenvol-
fundamentais, voltados a garantir a todos iguais respeito e consideração; (3) sua análise
vido um processo de aprendizado histórico que conduziu à percepção centra-se apenas no texto do art. 226, § 3º, da Constituição, nem ao menos se esforçando
de que a alternativa teórica da mutação constitucional simboliza uma para lançar uma interpretação sistêmica das normas constitucionais. Por isso, seu argu-
mento acaba caindo na redução da norma ao seu texto, que tanto critica, deixando de lado
prática que se adéqua bem a uma teoria dos erros institucionais, deven-
a dimensão (histórica) subjacente a uma compreensão principiológica do direito.

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hermenêutica de que o julgado trazido pela ADPF n. 132 busca ler à sua REFERÊNCIAS
melhor luz.
A conclusão a que chegou o STF não pode ser compreendida como DWORKIN, Ronald. A Conferência McCorckle de 1984: As Ambições do
um ato de criação ou de inovação dentro da ordem jurídica. A tese da Direito para si próprio. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 4, n. 8, p.
interpretação construtiva, explica Dworkin (2007, p.24), afirma que, mui- 9-31, jul./dez. de 2007.
tas vezes, o dever de colocar à sua melhor luz um direito deve envolver
um ato de aperfeiçoamento deste,15 apenas deixando explicitar uma ___________. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição nor-
compreensão que poderia se justificar em uma melhor leitura de um te-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins
princípio que já estaria assentado na ordem jurídica. Por isso, deve-se Fontes, 2006. [Direito e Justiça]
voltar ao esquema trazido pelo romance em cadeia de Dworkin. A nova ___________. A Virtude Soberana: teoria e prática da igualdade. Tradu-
decisão não é – nem pode ser – uma repetição da decisão anterior, mas ção Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
antes um novo capítulo para a história daquele direito.
Com isso, o conceito de uma mutação constitucional deve ser afas- HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar
tado, por não representar a melhor leitura que o próprio direito pode Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
fazer de si. Aliás, é na proposta de adoção de uma interpretação cons- KELSEN, Hans. Teoria Pura do direito. 6. ed. Tradução de João Baptista
trutiva, fazendo uso dos princípios jurídicos, que o direito pode cumprir Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Direito e Justiça].
suas próprias ambições. Aqui, ao invés de tratar os fatos como elemen-
tos externos e estranhos ao universo jurídico, Dworkin ensina que os STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e
fatos também são objeto de interpretação, e mais, as mudanças inter- Teorias Discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
pretativas na aplicação do direito aos moldes de um romance em cadeia,
na verdade, nada tem de novo.
Como ficou claro no caso da discussão da inconstitucionalidade de
discriminação aos homossexuais, a nova interpretação apenas marca o
desenvolvimento histórico de um princípio mais geral e mais abstrato
que já estava, desde a origem, previsto na própria Constituição.

15 .  “Uma vez que uma interpretação é melhor se possibilita uma melhor justificação em moralidade
política, então uma mudança guiada por uma melhor interpretação será apenas, por aquela razão, um
aperfeiçoamento” (DWORKIN, 2007, p.24).

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16
BULLYING E HOMOAFETIVIDADE:
necessidade de mudança de
paradigmas para a construção
do “cidadão do futuro”

Jackelline Fraga Pessanha


Marcelo Sant’anna Vieira Gomes

INTRODUÇÃO

P romover o bem estar de todos, sem preconceito de raça, sexo, cor, ida-
de e quaisquer outras formas de discriminação: isso é o que estabe-
lece o art. 3º, de nossa atual Carta Constitucional. Esse dispositivo foi
inserido pelo legislador constituinte, entre o rol de objetivos fundamen-
tais da República Federativa do Brasil, com o escopo de enunciar que as
ações praticadas em sociedade, devem visar o respeito à individualida-
de e à condição pessoal de cada cidadão. Ocorre que, muito embora na
literalidade o dispositivo pareça demonstrar um avanço em termos de
civilidade, na prática, não é isso que vem sendo vislumbrado. Agressões
físicas e psicológicas acabaram se tornando ações comuns, de modo que
o Estado passa, então, a perder o controle sobre a sociedade, e a conviver
com algo similar ao estado da natureza1 descrito por Thomas Hobbes,
em que se vive em constante guerra de todos contra todos, eis que o
poder da violência é tido como ilimitado.
É aqui que se torna preocupante o foco do presente estudo, a análise
do bullying praticado em sociedade e os transtornos que pode ele tra-
zer à formação do futuro cidadão. Como corte metodológico, se busca
analisar o fenômeno sob a perspectiva da discriminação decorrente das
orientações sexuais das próprias crianças e adolescentes, bem como de
um panorama em que elas sofrem discriminação por não estarem inse-

1 .  HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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ridas no “padrão familiar” que a sociedade espera. Em outras palavras, consagra-se pela união estável2 ou pelo casamento3, começaram a apa-
trata-se de analisar como a discriminação decorrente da homossexua- recer em sociedade cada dia mais, o que vem crescendo a possibilidade
lidade seja da própria criança ou adolescente, assim como de seus pais, de filiação e, por consequência, a inserção dessas crianças e adolescen-
vem trazendo problemas que merecem uma maior preocupação por tes nas escolas. Por isso, estabeleça-se que é dentro das escolas que as
parte dos operadores do Direito e da sociedade como um todo – devendo crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo durante sua
os educadores estar inseridos na condição de personagens essenciais. formação, razão pela qual é necessário que existam medidas efetivas e
A inclusão social de todas as entidades familiares, alicerçadas em eficazes para evitar a difusão de atos discriminatórios.
laços de afeto, independentemente, de matrimônio ou união estável, Nesta abordagem, utiliza-se do método hipotético-dedutivo, tendo em
como a família homoafetiva, que é formada por duas pessoas do mes- vista que se está a particularizar as questões do bullying dentro do cená-
mo sexo, com o intuito de formar uma entidade familiar, que vise à rio da família homoafetiva, a partir de dados colhidos na generalidade,
comunhão plena de vida e de interesses, de forma pública, contínua e ou seja, dados já amplamente difundidos em nosso contexto social. Nesse
duradoura, refletem o perfil da Constituição em proteger a família de sentido, é que o presente artigo está dividido em dois tópicos. O primeiro
maneira ampla. Por livre exercício da homoafetividade entenda-se o tópico faz uma análise da violência que vem sendo vislumbrada atual-
direito de casais homoafetivos de se apresentarem à sociedade como mente, fazendo alusão a uma completa barbárie decorrente da não-rea-
casal, da mesma forma que os casais heteroafetivos o fazem, sem dis- ção social às ações violentas que se tornam cada dia mais comuns.
criminações de qualquer natureza. Ademais, tem por escopo analisar o bullying de maneira a elucidar
Dessa forma, se é uma faculdade do ser humano a orientação da seu conceito, as formas como ele é praticado, como caracterizá-lo, assim
sua sexualidade, então, o exercício da homoafetividade é decorrência como fazer uma análise de dados estatísticos recentes que demonstrem
de direitos fundamentais, consagrados pela Constituição da República como tem esse fenômeno se difundido no ambiente escolar. O segundo
Federativa do Brasil de 1988, principalmente o da dignidade da pessoa tópico, busca demonstrar a necessidade de atuação dos vários setores
humana, ao livre exercício da afetividade, liberdade de orientação sexu- da sociedade civil, com o objetivo de incutir na cabeça das crianças e
al, igualdade e respeito às diferenças, para a plena busca por felicidade adolescentes uma mudança comportamental em relação a atos precon-
idealizada por todos da sociedade, livre de qualquer preconceito ou dis- ceituosos e, assim, evitar a difusão do bullying, quando se estiver a tra-
criminação. Com o passar dos séculos, foi aumentando a consciência co- balhar com essa nova concepção de entidade familiar.
letiva de que se deve ter um modelo familiar equilibrado, com o objetivo
de alcançar a felicidade, tendo, ainda, o pensamento preconceituoso de
que a família homoafetiva não é merecedora de ostentar tal felicidade,
totalmente equivocado e preconceituoso.
1  BULLYING: UM PANORAMA GERAL SOBRE
Afeto, portanto, significa sentimento de afeição ou inclinação para ESSA PRÁTICA RECORRENTE NA SOCIEDADE
alguém, amizade, paixão ou simpatia, e é o elemento essencial para a
constituição de uma família nos tempos atuais, pois somente com la-
ços de afeto consegue-se manter a estabilidade de uma família. Portan-
to, com a família homoafetiva baseada nos laços afetivos, temos que o
A violência já não é algo tão incomum em nossa sociedade. A todo o
momento somos bombardeados pelos meios de comunicação com
notícias e imagens que descrevem a força com que esse fenômeno tem
amor e o afeto são capazes de sustentar laços familiares, modificando os
conceitos de uma família, que somente poderia ser formada por homem
2 .  A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF, do Supremo Tribunal Federal, por
e mulher ligados pelo vínculo do casamento ou pela união estável, sen- intermédio da interpretação constitucional entende ser cabível a união estável entre pes-
do que o mais importante hoje nas famílias é o princípio da afetividade. soas do mesmo sexo, de forma igualitária aos pares heteroafetivos.
As famílias homoafetivas, com a sua aceitação e possibilidade de 3 .  Após a ADI nº 4.277/DF, o Conselho Nacional de Justiça editou Resolução nº 175/2013, impe-
dindo que os Cartórios de Registro Civil, recusem ou não aceitem habilitações e celebrações
de casamento civis ou conversão de união estável em casamento de pessoas do mesmo sexo.

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sido difundido e a ênfase que tem sido atribuída à publicidade de casos lisando as constatações de Dan Olweus5, percebe-se que o fenômeno
ligados a homicídios, roubos, sequestros e estupros, por exemplo. Dian- bullying foi adquirindo espaço em várias partes do globo, ao longo de
te desse cenário nada satisfatório, percebe-se que a educação das crian- algumas décadas, sendo que apenas, recentemente, os estudiosos passa-
ças e adolescentes vem sendo cada vez mais prejudicada pela banaliza- ram a observá-lo sob uma nova perspectiva, dando relevância ao tema,
ção da violência. Isso se dá em decorrência de elas estarem, constante haja vista a popularização dos casos, de acordo com o autor “O fato de
e cotidianamente expostas a toda essa barbárie social, internalizando que algumas crianças serem frequentemente e sistematicamente per-
esses fatos como se fossem absolutamente normais. E não são! seguidas e atacadas por outras crianças têm sido descrita em obras lite-
É nesse contexto que se observa a prática reiterada de violência den- rárias, e vários adultos têm experiências pessoais de seus próprios tem-
tro das instituições de ensino, entre crianças e adolescentes. Aquilo que pos de escola. Embora muitos tenham se familiarizado com o problema
inicialmente poderia ser considerado como uma simples brincadeira, agressor / vítima, somente no início de 1970 que foram feitos esforços
chacota ou zombaria, adquire, então, uma conotação de proporções para estudá-lo sistematicamente (Olweus, 1973. 1978). Por um tempo
maiores, trazendo transtornos de ordem física e/ou psicológica. A toda considerável, essas tentativas foram realizadas, em grande parte, na Es-
essa violência observada, dá-se o nome de bullying, que de acordo com candinávia. Na década de 1980 e início dos anos de 1990, no entanto, o
psicanalista Sônia Makaron4, se refere à prática de atos por um indi- bullying entre os estudantes tem recebido alguma atenção do público
víduo, em que o agressor porta-se como um “valentão” perante seu se- no Japão, Inglaterra, Austrália, Estados Unidos, e outros países. Na atu-
melhante, o agredindo física e/ou moralmente. Assim afirma a autora alidade, há indicações claras de um movimento crescente da sociedade,
“O termo anglo saxônico bullying é utilizado para descrever atos de para investigar sobre os problemas do agressor / vítima em várias par-
agressão física ou psicológica de caráter intencional, repetitivo e sem tes do mundo6 (tradução livre)”.
motivação aparente, provocados por uma ou mais pessoas contra um No Brasil, assim como nos demais países do globo, o fenômeno do
colega em desvantagem de poder, com o objetivo de causar dor e hu- bullying não foge a essa regra. Várias são as práticas vislumbradas
milhação. Insultos, exposição ao ridículo, difamação e agressões mais no âmbito escolar – e mesmo fora dele - que levam a crer que grande
veladas como rejeição e isolamento são exemplos dessa prática”. quantitativo de crianças brasileiras tem estado propensas a praticar
Desse excerto, constata-se que o tema é espinhoso e merece uma atos contra seus colegas, pelo simples prazer de zombar e humilhar. A
maior preocupação por parte dos operadores do Direito, assim como Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência7, descreve
dos profissionais diretamente ligados ao processo educacional (dire- o bullying como sendo qualquer ato inserido na relação abaixo, da se-
tores, professores, educadores, pedagogos). É necessário ter em mente guinte forma “colocar apelidos, ofender, zoar, gozar, escarnar, sacanear,
que o problema é grave e que há necessidade de compreendê-lo em sua
essência, com o escopo de buscar uma mudança efetiva e evitar que ca-
5 .  OLWEUS, Dan. Bullying at school: long-term outcomes for the victims an effective
sos desse tipo não voltem a ocorrer e entrem para a estatística de um school-based intervention program. In: HUESMANN, L. Rowell. Aggressive behavior: cur-
cenário desastroso. Não há como se admitir que crianças e adolescentes rent perspectives. New York: Plenum Press, 1994. p. 97.
continuem se agredindo mutuamente e não haja um movimento con- 6 .  “The fact that some children are frequently and systematically harassed and attacked
by other children has been described in literary works, and many adults have personal
trário à perpetuação dessas práticas seja na sociedade civil, seja dentro
experience of it from their own school days. Though many acquainted with the bully/ vic-
das próprias escolas: mudanças precisam ser realizadas urgentemente. tim problem, it was not until fairly recently, in the early 1970s that efforts were made to
Extraindo dados da literatura estrangeira, tem-se que práticas de study it systematically (Olweus, 1973. 1978). For a considerable time, these attempts were
largely confined to Scandinavia. In the 1980s and early 1990s, however, bullying among
violência no ambiente escolar não datam de período tão recente. Ana-
schoolchildren has received some public attention in Japan, England, Australia, the Unit-
ed States, and other countries. There are now clear indications of an increasing societal as
well as research interest into bully/ victim problems in several parts of the world”.
7 .  ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 2006.
4 .  MAKARON, Sandra. Bullying: como enfrentá-lo? Disponível em: www.bullying.pro.br. Programa de redução do comportamento agressivo entre estudantes. Disponível em:
Acesso em: 22. maio. 2013. <www.bullying.pro.br>. Acesso em: 22. Maio. 2013.

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humilhar, fazer sofrer, discriminar, excluir, isolar, ignorar, intimidar, prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, dominar, agredir, profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convi-
bater, chutar, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences”. vência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
Logicamente, não há como sobrelevar qualquer brincadeira à condi- negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
ção de bullying, ou seja, não há como estabelecer que qualquer atitude Veja, o próprio dispositivo constitucional é claro no sentido de que
praticada entre jovens e adolescentes possa ser enquadrada nesse fe- é dever de todos a salvaguarda de crianças, jovens e adolescentes de
nômeno pelo simples fato de se tratar de brincadeira de umas com as qualquer discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
outras. Por outro lado, perceba-se que na medida em que a brincadeira Se o próprio legislador constituinte consignou a necessidade de res-
passa a não mais “ter graça”, a prática reiterada dos atos de violência guardá-los desse tipo de prática, como podem existir tantos casos de
física ou moral passa a trazer transtornos àquela criança ou adolescen- bullying que chegam às vias de gerar, o “revanchismo” no oprimido de
te, que, fatalmente, inferirão na formação do cidadão que a sociedade forma a que ele pratique verdadeiras carnificinas com a finalidade de,
espera. É por esse motivo que se deve considerar, para efeitos deste tra- assim, poder amenizar seu sofrimento e dor?– veja o exemplo do ho-
balho, que crianças e adolescentes sejam denominadas de socialmente micídio de crianças em Realengo no Rio de Janeiro10. É por esse motivo
hipossuficientes, terminologia que, ao que parece, melhor se adéqua aos que importantes instrumentos legislativos são criados com o escopo de
padrões que aqui se pretende defender. regulamentar a proteção que tanto se almeja.
Diga-se socialmente hipossuficientes, tendo em vista que não pos- Nesse contexto, promulgado apenas dois anos após a Carta Consti-
suem, pelo menos ainda, o pleno exercício de seus direitos e deveres, tucional de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069,
o que inviabiliza sua autodefesa contra quaisquer ingerências estatais de 13 de julho de 1990) descreve, de maneira minuciosa, quais os direitos
e/ou de particulares. Por esse motivo é que o Estado deve a eles sua devidamente garantidos a essa parcela da população e o dever de todos
total proteção de forma que “no exercício da função administrativa o em zelar por sua garantia e manutenção. Em um primeiro momento, fri-
agente público não pode se esquivar de fazer prevalecer os interesses se-se que crianças e adolescentes, para efeitos legais (art. 2º da referida
socialmente hipossuficientes”8. Ao estabelecer essa premissa, tem-se lei), são divididos da seguinte forma: a) crianças: até doze anos de idade
que a proteção das crianças e adolescentes deve ser integral, ou seja, incompletos; b) adolescentes: entre doze e dezoito anos de idade.
crianças e adolescentes são sujeitos ativos na jurisdição, uma vez que Portanto, essa proteção se torna necessária, haja vista que são ci-
são apresentados como titulares de direitos perante a sociedade, pois “A dadãos em desenvolvimento, necessitando apreender parâmetros de
proteção integral é considerada uma expressão que demonstra um sis- ética, moral e bons costumes, para terem como conviver bem em socie-
tema na qual crianças e adolescentes são titulares de direitos e deveres dade. Com o intuito de estabelecer um desenvolvimento físico e mental
frente à sociedade, a família e ao Estado, podendo ser entendido como adequado, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece nos arti-
conjunto de normas jurídicas que dá direitos à criança e ao adolescente gos 3º e 4º, os direitos fundamentais desses indivíduos e os deveres da
de serem sujeitos ativos de direitos em sua totalidade”9. coletividade para com eles, a fim de que se tornem “cidadãos do futu-
Por isso, a junção do princípio da proteção integral dada à criança e ro” mais preparados “Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos
ao adolescente está concretizado na própria Carta Constitucional esta- os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da
belece em seu art. 227, afirmando que “É dever da família, da sociedade e proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou
do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes
facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
8 .  MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públi- condições de liberdade e de dignidade.
cos. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 165.
9 .  PESSANHA, Jackelline Fraga. AS MÃOS QUE AGASALHAM: uma análise da família ho- 10 .  Matéria jornalística disponível em: http://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo/no-
moafetiva e o princípio da proteção integral. Vitória: Revista Científica do curso de Direito ticia/2011/04/pare ntes-se-desesperam-ao-saber-da-morte-de-criancas-em-ataque-no-rj.
da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo, v. 5, nº 8, 2013, p. 08. html. Acesso em 02 de junho de 2013.

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Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do apenas uma vez na vida, algum ato relacionado ao bullying, é preocu-
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos di- pante. Tendo em vista que a amostragem utilizada pelo IBGE traba-
reitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, lhou com um quantitativo de 60.973 (sessenta mil, novecentos e se-
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liber- tenta e três) escolares, esses 30,8% que já sofreram bullying, totalizam
dade e à convivência familiar e comunitária”. um quantitativo, em média, de 18.779 (dezoito mil, setecentos e setenta
Pois bem. Talvez todos os direitos e deveres acima discriminados não e nove) escolares nas capitais brasileiras, o que deve ser interpretado
estejam sendo observados e garantidos de maneira adequada. A falta de como uma falha da sociedade civil na busca de coibir que essa violên-
preparo dos envolvidos no processo de educação de crianças e adoles- cia continue a ser difundida.
centes tem trazido consequências nada satisfatórias para as estatísti- Da mesma forma, importante mencionar que o grande problema
cas levantadas pelos órgãos de pesquisa. De acordo com dados divulga- atual que gera preocupação diz respeito aos casais homossexuais e
dos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE11, no que seus filhos. Em um contexto histórico em que as relações interpessoais
se refere à Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (Pense) constata-se passam por transformações, e que se torna cada dia mais comum o re-
o grande quantitativo de crianças e adolescentes que sofrem esse tipo lacionamento ancorado no afeto entre pessoas do mesmo sexo, vários
de agressão, informando que “Os resultados da PENSE mostraram que são os problemas relacionados à discriminação para com esse tipo de
69,2% não sofreram bullying. O percentual dos que foram vítimas deste composição familiar. Esse problema gerado decorre, principalmente,
tipo de violência, raramente ou às vezes, foi de 25,4% e a proporção dos daquilo que se denomina de homofobia. De acordo com a definição do
que disseram ter sofrido bullying na maior parte das vezes ou sempre termo, homofobia se caracteriza por ser “uma manifestação arbitrária
foi de 5,4%. O Distrito Federal com (35,6%) seguido por Belo Horizonte que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal;
com (35,3%) e Curitiba com (35,2 %) foram as capitais com maiores fre- por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do uni-
quências de escolares que declararam ter sofrido esse tipo de violência verso comum dos humanos. Crime abominável, amor vergonhoso, gosto
alguma vez nos últimos 30 dias. Foram observadas diferenças por sexo, depravado, costume infame, paixão ignominiosa, pecado contra a natu-
sendo mais frequente entre os escolares do sexo masculino (32,6%) do reza, vício de Sodoma – outras tantas designações que, durante vários
que entre os escolares do sexo feminino (28,3%). Quando comparada a séculos serviram para qualificar o desejo e as relações sexuais ou afeti-
dependência administrativa das escolas, a ocorrência de bullying foi vas entre pessoas do mesmo sexo”12.
verificada em maior proporção entre os escolares de escolas privadas A homofobia, portanto, surge a partir de uma concepção de intole-
(35,9%) do que entre os de escolas públicas (29,5%)”. rância por parte da sociedade em aceitar às diferenças. Não há como se
Analisando os dados acima, percebe-se que, muito embora haja a conceber que o simples fato de uma pessoa não seguir os padrões impos-
afirmação de que 69,2% dos escolares não tenham sofrido bullying, os tos pela sociedade, com relação aos relacionamentos heterossexuais, que
referidos dados devem ser observados com ponderação. Isso porque, o poderia ela ser considerada uma espécie de “alienígena em meio a terrá-
corte da pesquisa se restringiu a alunos do ensino fundamental das es- queos”. Ocorre que, infelizmente, o que se tem percebido é uma dificulda-
colas brasileiras localizadas nas capitais e no Distrito Federal, o que não de por parte dos pais e educadores em tratar com crianças e adolescentes
demonstra a totalidade do fenômeno, em todo o ambiente escolar (fora sobre essas novas entidades famílias que estão sendo constituídas.
que algumas crianças, de acordo com informação da própria pesquisa, Até certo ponto, não se podem culpar os pais ao terem dificuldade em
negaram-se a realizar o questionário). tratar do tema, pois até para eles próprios essa situação é nova. Até anos
Ainda assim, em uma perspectiva global, observar que os 30,8% es- atrás, sabia-se da existência de pessoas que tinham desejos por manter
colares inseridos nesse nível de ensino possam ter sofrido, ainda que relações com pessoas do mesmo sexo. Contudo, em uma sociedade ab-

11 .  INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA 2009. Pesquisa Nacional


de Saúde do escolar. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. p. 41. Disponível em: <www.bullying.pro. 12 .  BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:
br>. Acesso em: 01. jun. 2013. Autêntica, 2010. p. 13.

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solutamente machista como é a brasileira, esses sentimentos acabavam Ainda assim, deve-se deixar claro que a homofobia, em breve sínte-
ficando contidos. Ainda assim, em uma sociedade que prima pela igual- se, deve ser considerada como “disfunção psicológica, resultado de um
dade de todos, não há como manter-se inerte diante dessa situação. conflito mal resolvido durante a infância e que provocaria uma projeção
Assim é que, possivelmente, a escola seja um ambiente apropriado inconsciente contra pessoas, supostamente, homossexuais14”. Esse, por-
para esse tipo de debate. A intolerância já não pode ser deixada de lado, tanto, é o ponto de partida do leitor para entender o que se pretende ana-
entendendo-se como algo absolutamente normal. Ocorre que, estudos lisar acerca da participação da família homoafetiva e da escola, na busca
constatam que a homofobia pode não ser algo tão anormal do ponto de de alteração da realidade social e, assim, se evitando que casos decorren-
vista do agressor. De acordo com alguns dados pesquisados, “As reações tes de bullying, continuem a ser praticados de maneira descontrolada.
homofóbicas mais violentas provêm, em geral, de pessoas que lutam
contra seus próprios desejos homossexuais. Nesse sentido, chegou a ser
proposta uma explicação sobre a dinâmica psicológica segundo a qual
a violência irracional contra gays é o resultado da projeção de um sen-
2  A MELHOR FORMA DE GARANTIR A
timento insuportável de identificação inconsciente com a homossexua- FORMAÇÃO DO “CIDADÃO DO FUTURO”.
lidade, de tal modo que o homossexual colocaria o homofóbico diante
de sua própria homossexualidade experimentada como intolerável. A
violência contra os homossexuais é apenas a manifestação do ódio de si
mesmo ou, melhor dizendo, da parte homossexual de si que o indivíduo
P ara a construção, promoção e defesa do cidadão do futuro são
necessárias a adequação por parte do Estado e da sociedade, das
condições de mínimas de respeito às diferenças e mitigação de pre-
teria vontade de eliminar”13. conceitos. Desta feita, a cidadania tem como conceito “que compreen-
Assim sendo, esse sentimento contido por parte de quem pratica e/ de a indivisibilidade e a interdependência entre os direitos humanos,
ou demonstra atos contrários à homossexualidade, pode ter íntima rea- caminha em constante tensão com as ideias de liberdade, de justiça
ção com seus próprios desejos de estar inserido naquele contexto. Con- política, social e econômica, de igualdade de chances e de resultados,
tudo, da mesma forma que possui o desejo, há um conflito interno em e de solidariedade, a que se vinculam”15. O cidadão encontra diversos
que o indivíduo tenta extirpá-lo de sua personalidade, e não conseguin- obstáculos para a prática da cidadania real e participativa, pois são
do, utiliza-se de violência com seus pares, como se aquilo solucionasse tratados como coisas (objetos) e não entendidos como participantes
seu problema interno. ativos do Estado, sendo necessária para isso uma educação pautada
É diante disso que se percebe que o tema merece uma atenção e na cidadania e na democracia.
cuidado por parte da família e da sociedade, a fim de que seja possível A educação é elemento indispensável à consolidação do cidadão do
tratar das diferenças de maneira saudável, a fim de evitar a difusão de futuro, entendida como o desenvolvimento das potencialidades de cada
violência, sem que se estude as causas do problema. Tudo deve girar em indivíduo para o conhecimento, julgamento e escolha das maneiras
torno de se entender o problema e até que ponto cada setor da socieda- conscientes de viver em sociedade, bem como para a conservação de va-
de pode influenciar para a alteração desse grave problema. lores, costumes, práticas e mentalidades. É nesse ponto que os “valores
Importante, para tanto, compreender esses novos relacionamentos, do liberalismo e da democracia moderna, quais sejam, as liberdades ci-
a partir de uma análise da família homoafetiva e seus novos paradig- vis, a igualdade e a solidariedade, a alternância e a transparência no po-
mas, uma análise acerca da legislação atual sobre o tema e perceber der, o respeito à diversidade e a tolerância”16, são indispensáveis a educa-
como a sua participação pode ser fundamental para a mudança de pre-
conceitos até hoje existentes em nossa conservadora sociedade civil. 14 .  BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010. p. 97.
15 .  GUERRA, Sidney. Direitos humanos & cidadania. São Paulo: Atlas, 2012, p. 17.
13 .  BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: 16 .  BENEVIDES, Maria Victória. Educação para a democracia. Conferência proferida no
Autêntica, 2010. p. 97. âmbito do concurso para professor titular em sociologia da educação na FEUSP, 1996, p. 02.

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ção para o futuro e para a democracia. O cidadão pautado na formação na mentalidade das crianças brasileiras, a ponto de humilhares seus
e consolidação de valores indispensáveis, como liberdade, solidariedade colegas de sala de aula, pelo simples fato de zombar. Esse sentimento
e respeito às diferenças, estará consciente da sua dignidade com os seus homofóbico já parte do núcleo familiar dessas crianças e adolescentes.
semelhantes, o que para o futuro é necessário. Infelizmente, o cenário vislumbrado na atualidade é muito sério, na me-
Aqui, se observa uma necessidade importantíssima: a preocupação dida em que “Com os jovens gays, lésbicas e transgêneros a realidade “e
com o semelhante. Por esse motivo é que a menção ao pensamento de tragicamente oposta: pais e mães repetem o refrão popular – “prefiro
Emanuel Levinás se torna de importante nesse contexto. O autor trans- um filho morto do que viado!” ou “antes uma filha puta do que sapatão”.
parece a preocupação com o outro (com o semelhante), na medida em Muitos são os registros de jovens homossexuais que sofreram graves
que ações devem ser praticadas com uma preocupação ética de como constrangimentos e violência psíquica dentro do próprio lar quando
elas irão interferir na esfera do outro, haja vista que “mostra como de- foram descobertos: insultos, agressões, tratamentos compulsórios des-
pendência do eu com respeito ao outro é uma dependência existencial, tinados à “cura” da sua orientação sexual, expulsão de casa e até casos
mas também metafísica. O outro não pode ser reduzido a qualquer ou- extremos de execução. Recentemente, num bairro periférico de Salva-
tro tipo de categoria ou conhecimento. Na tradição do pensamento oci- dor, um avô espancou seu neto negro até à morte quando descobriu que
dental a realidade que existe pode ser conhecida e o conhecimento dita era gay, e um pai baiano de classe média ao ser informado que seu filho
a verdade sobre o real. Se aceita como verdadeiro aquilo que pode ser era homossexual, deu-lhe um revólver determinando “Se mate! Pois na
plenamente conhecido. [...] nossa família nunca teve viado”18”.
Mas o outro se nega a ser reduzido a conhecimento, não podemos re- O trecho acima demonstra o claro pensamento da grande maioria
duzir o ser do outro num saber. Conhecemos o outro sempre de forma da população brasileira. Há que se ter bem delimitado em nossa mente
parcial e fragmentária porque o outro sempre tem a potencialidade de que a população brasileira mantém arraigado há bastante tempo a ca-
ser diferente. Nunca se consegue conhecer plenamente o outro. O outro, racterística de ser machista. Tempos estes em que a mulher é submissa
por exigência da sua alteridade, é irredutível a qualquer forma de conhe- ao seu marido e que, sequer, possuía CPF- Cadastro de Pessoas Físicas
cimento. Isso não significa que não possamos conhecer aspectos do ou- próprio – necessitava utilizar de seu marido.
tro: sua personalidade, caráter, hábitos, modo de ser, etc., porém todos os Agora pense: se os homossexuais podem sofrer esse tipo de discri-
conhecimentos que possamos ter sobre o outro sempre serão insuficien- minação dentro de sua própria residência, é correto que a sociedade
tes para reduzi-lo a uma categoria ou a um sistema de pensamento”17. faça questão de rebaixá-los ainda mais? A resposta mais correta é a de
Em suma, o que se pretende inferir do trecho esposado é que, na que, obviamente, não. A criação das gerações passadas resultou nesse
medida se está a tratar do antigo tabu dos novos arranjos familiares, quadro desastroso que merece ser superado. Paradigmas merecem ser
hoje esses já são uma realidade. E, por serem uma realidade, necessi- alterados. Não é porque um pai criou seu filho com um pensamento ma-
tam que haja um respeito por parte de todos, sem qualquer tipo de chista que, necessariamente, precisará ele se utilizar deste pensamento
preconceito e/ou discriminação. para humilhar seus semelhantes. Trata-se de uma questão de educação
Analisando as premissas, vislumbram-se grandes entraves nas esco- e respeito às diferenças.
las quando se fala de filhos de famílias homoafetivas, bem como os da- Verifica-se que a desigualdade é fundamentada pela igualdade, pois
dos anteriormente avaliados, percebe-se que uma falha grave tem per- as partes são livres e iguais em direitos e obrigações. Entretanto, é pela
meado a formação de nossas crianças e adolescentes. Em pleno século diferença que o sistema de exclusão se manifesta o que gera a discri-
XXI, já não se pode mais admitir que haja tanto preconceito arraigado minação e preconceito, pois “É que, no Estado nacional moderno, o que
passa por universalismo é, de facto, na sua génese, uma especificidade,
17 .  RUIZ, Castro B. Emmanuel Levinás, Alteridade & Alteridades – Questões da moderni-
dade e a modernidade em questão. In: SOUZA, Ricardo Timm de; FARIAS, André Brayner;
FABRI, Marcelo. Alteridade e ética: obra comemorativa aos 100 anos de nascimento de 18 .  MOTT, Luiz. Raízes persistentes da homofobia no Brasil. In: Minorias Sexuais: direitos
Emmanuel Levinás. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 137. e preconceitos. Brasília: Consulex, 2012. p. 177.

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um particularismo, a diferença de um grupo social, de classe ou étni- minação”. Ora, se o Estado traz esse compromisso constitucional, deve
co, que consegue impor-se, muitas vezes pela violência, a outras dife- ele cumprir à risca com seu mandamento, sob pena de estar violando
renças de outros grupos sociais e, com isso, universaliza-se. Na maior frontalmente dispositivo constitucional. E não é bem o que vem sendo
parte dos casos, a identidade nacional se assenta na identidade da et- feito. Não se está a vislumbrar políticas afirmativas capazes de surtir o
nia ou grupo social dominante. As políticas culturais, educativas, de efeito de fazer cessar esse movimento homofóbico, que se espalha pelo
saúde e outras do Estado visam naturalizar essas diferenças enquanto país. Inclusive, a omissão é cada vez mais gritante que “Chega a ser cri-
universalismo e consequentemente transmutar o acto de violência im- minoso o descaso e omissão dos Poderes Executivo, Legislativo e Ju-
positiva em princípio de legitimidade e de consenso social. [...] Quan- diciário em reconhecer a urgência de propor medidas afirmativas que
to mais vincado é esse processo, mais distintamente estamos perante reduzam a violência homofóbica no país, viabilizando uma inadiável
um nacionalismo racionalizado ou, melhor, perante um racismo na- revolução nas mentalidades dos formadores de opinião, a fim de supe-
cionalizado. [...] as sociedades nacionais foram tomando consciência rar o preconceito e discriminação presentes em todas as esferas públi-
das suas crescentes características multinacionais e multiculturais, o cas de nossa sociedade. Do mesmo modo como existe FUNAI, Funda-
que colocou novas dificuldades à política de homogeneidade cultural, ção Palmares, Secretaria Nacional das Mulheres, urge que seja criada
tanto mais que muitos dos grupos sociais ‘diferentes’, minorias étni- uma Secretaria da Cidadania Homossexual, com vistas a erradicar a
cas e outros, começaram a ter recursos organizativos suficientemente homofobia em nosso meio”20.
importantes para colocar na agenda política as suas necessidades e É nesse contexto que as Instituições de Ensino têm o poder/dever
aspira mies especificas19”. (destacamos) para/de modificar essa realidade: sejam elas públicas ou particulares.
Por isso, as práticas sociais devem a todo tempo evitar a discrimina- A necessidade de se formar um cidadão desprovido de preconceitos é
ção, preconceito, exclusão ou desigualdade entre qualquer membro da função de todos os setores da sociedade. Contudo, a escola é o ambiente
sociedade, independentemente de sua orientação sexual, normalizan- em que as crianças passam a maior parte do tempo de sua formação.
do as diferenças e entendendo cada um e seu individual. As políticas Assim, importante que esse tipo de assunto seja tratado e preconceitos
sociais aplicadas não estão sendo suficiente para coibir a discrimina- consigam ser desatados.
ção e preconceito existente na família homoafetiva, o que desrespeita E nada mais consistente que esse tipo de assunto seja tratado dentro
os princípios constitucionais da igualdade e do respeito às diferenças, do ambiente escolar. Na medida em que a escola tem como papel funda-
pois cada cidadão tem direito de ser o que deseja, sem a interferência mental a formação do cidadão, é difundindo pensamentos desprovidos
de qualquer ente estatal. Logo, a existência de um princípio constitucio- de qualquer preconceito que será possível perceber como a sociedade
nal da igualdade, que veda qualquer discriminação, bem como pleiteia o passará a ter uma nova mentalidade acerca da realidade que é colocada
respeito à diferença, proclama uma ampla visão da homossexualidade à sua vista. Valdeciliana da Silva Ramos Andrade21 defende que “A esco-
enquanto orientação sexual específica, do qual não há qualquer funda- la é, portanto, o espaço ideal para que se desenvolva a cidadania, que
mento para a sua discriminação. é um processo de construção gradativo e contínuo e deve ser iniciado
E o mais importante, o Estado Brasileiro estabeleceu como objetivo no período escolar, especialmente no ensino fundamental, para que, à
fundamental o de não estabelecer qualquer tipo de diferença decor- medida que a criança e o adolescente obtenham conhecimentos gerais
rente de discriminação, como se percebe do dispositivo que, a seguir, nas mais diversas disciplinas, eles possam ter condições de ir assimilan-
se transcreve “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República do as noções básicas de cidadania e, a partir daí, construam valores e
Federativa do Brasil: [...] IV - promover o bem de todos, sem preconcei-
tos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri- 20 .  MOTT, Luiz. Raízes persistentes da homofobia no Brasil. In: Minorias Sexuais: direi-
tos e preconceitos. Brasília: Consulex, 2012. p. 180.
21 .  ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos Andrade. O direito vai à escola: a construção
19 .  SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura políti- da cidadania. In: ANDHEP - Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-
ca. São Paulo: Cortez, 2006, p. 284. Graduação. Anais do IV encontro anual da ANDHEP. Brasília: ANDHEP, 2008. p. 08.

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princípios que nortearão suas condutas como cidadãos comprometidos quar às novas realidades colocadas à sua apreciação. Essas mudanças
e responsáveis com a sociedade”. ocorrem, seja por intermédio da atividade judicial, para evitar que as
Só que de nada adianta educar as crianças se os pais não tiverem omissões estatais prejudiquem o exercício de direitos fundamentais,
uma parcela de influência nessa mudança almejada. Por esse motivo, é ou então, criando instrumentos normativos com foco na máxima efe-
importante que as Instituições de Ensino consigam estabelecer dinâmi- tividade dos direitos da sociedade.
cas com pais e alunos, a fim de que ambos compreendam a verdadeira No que diz respeito à adoção, também não se vislumbra qualquer
essência do não ter preconceito. Há que se ter em mente a relevância da óbice à sua efetivação, nos termos da legislação vigente. Apesar disso,
Escola dentro desse contexto, com o objetivo de difundir a não discri- o ordenamento é omisso quanto ao tema, o que gera os inúmeros pro-
minação “A escola, juntamente com a educação realizada pela família, blemas decorrentes, pois sempre são buscados motivos para evitar que
sociedade e estado são de fundamental importância para a mudança casais do mesmo sexo possam adotar crianças e adolescentes. De acor-
de rumos da sociedade, pois somente com cidadãos educados passa-se a do com Fabiana Marton Spengler23, “A vedação, ou melhor, a omissão
ter novos valores sociais e pluralidade de pensamentos para o debate e legal sobre o tema da adoção por casais do mesmo sexo talvez ocor-
crescimento intelectual de todos. ra pela preocupação com o bem-estar da criança ou adolescente que
Além disso, a escola acompanha as crianças e adolescentes durante vai ser colocado na família substituta, mas acontece muitas vezes por
horas diárias e anos da sua vida, o que precisa ser um ambiente acolhe- puro preconceito quanto á orientação sexual divergente dos padrões
dor, sem qualquer preconceito, para todos debaterem e famílias, educa- considerados “normais” pela sociedade. Assim, a possibilidade de que
dores e alunos conviverem em harmonia”22. o adotando venha a sofrer má influência de seus pais ou mães adoti-
Como tratado desde o início, a criação dos pais desses jovens e ado- vos, quanto ao seu desenvolvimento psicoemocional, é a deixa para que
lescentes foi regada por profundos sentimentos preconceituosos: é hora este tipo de situação jurídica não seja admitida. Veicula-se também a
de mudar essa sistemática social. Para que isso seja possível, a família possibilidade de o adotando sofrer discriminação, abalo moral e psico-
deve estar ainda mais integrada no seio escolar, com o intuito de contri- lógico ao ser conhecido na escola ou no clube que frequenta como filho
buir para o debate, apreender conhecimento e dialogar com professores de duas pessoas cuja sexualidade não se enquadra dentro dos padrões
e seus filhos, em conjunto. Pondere-se que o sistema normativo brasilei- socialmente considerados “normais””.
ro já vinha admitindo a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a Percebendo que há omissão legislativa, o Judiciário tem estabelecido
adoção por casais homossexuais. Após o julgamento da ADI 4.277/DF e meios com base na principiologia para efetivar esse tipo de adoção e as-
da ADPF 132/RJ, já não pairaram mais dúvidas quanto à possibilidade de sim garantir que haja um desenvolvimento adequado à criança e a esse
uniões estáveis homoafetivas, exatamente, em decorrência do estabele- adolescente, alicerçado no princípio da proteção integral, disciplinado
cido no art. 3º, inciso IV, da Carta Constitucional de 1988. no Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, para garantir a máxima
Importante consignar que as mudanças não se estagnaram no re- proteção dessas crianças, é possível inseri-las em lares de pessoas do
conhecimento da união estável homossexual. A Resolução n.º 175, de mesmo sexo, para que possam se desenvolver humanisticamente e com
14 de maio de 2013, disciplina, a partir do julgamento das duas ações toda a dignidade que deve ser inerente ao ser humano.
acima mencionadas que os cartórios passam a ser proibidos de recu- Ante essa constatação, se o próprio Estado possibilita a adoção por
sar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, assim como não casais homossexuais, o próprio tem o dever de estabelecer medidas para
podem proibir que haja a conversão das uniões homoafetivas em ca- que o ambiente geral que essa criança irá se desenvolver seja adequado
samento. Então, ainda que o Brasil ainda possa ser considerado como e totalmente afastado de discriminações e preconceitos. Infelizmente,
machista no seio familiar, o sistema normativo tem buscado se ade- não é isso que acontece.

22 .  PESSANHA, Jackelline Fraga. A educação inclusiva e as relações homoafetivas. In:


GERALDO, Pedro Heitor Barros; FONTAINHA, Fernando de Castro; MEZZAROBA, Orides. 23 .  SPENGLER, Fabiana Marion. Homoparentalidade e filiação. In: DIAS, Maria Berenice.
Direito, Educação, Ensino e Metodologia Jurídico. Florianópolis, FUNJAB, 2012. p. 260. Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 359.

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A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394, de 20 de CONSIDERAÇÕES FINAIS
dezembro de 1996), estabelece que “Art. 1º A educação abrange os pro-
cessos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movi-
O bullying é um problema real e latente. Da mesma forma que o
bullying vem trazendo muitos transtornos à formação psíquico-
social das crianças e adolescentes, o preconceito tem sido a “pedra no
mentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
sapato” da sociedade atual. Inseridos em uma sociedade machista, a
culturais”. Ora, se a formação do cidadão depende da integração dos vá-
dificuldade em se aceitar as diferenças tem sido algo não muito aceito.
rios setores da sociedade civil, é isso que vem faltando para que o qua-
Como vislumbrado no transcorrer deste trabalho, dados dão conta
dro do bullying seja revertido, pois “A responsabilidade solidária, como
de que pais chegam ao ponto de espancar seus filhos quando desco-
um fato, requer a devida compreensão dos poderes públicos de que
brem que possuem orientação sexual diversa da heterossexual. Se o
somos todos responsáveis pela construção histórica de violações, ex-
preconceito já se inicia dentro de casa, o problema toma proporções
clusões e discriminações humanas que reproduzem numa constante a
muito mais vultosas quando se está a tratar de relações interpessoais.
anticidadania, fenômeno extremamente redutor da dimensão humana
Crianças e adolescentes que já tem o costume de caçoar de colegas por
e foco de atos violentos num ciclo interminável e injusto. A participação
serem gordos, magros, altos, baixos, muito inteligentes, cheios de espi-
social é necessidade fundamental do ser humano e sua ausência cria e
nha, agora passam a assumir uma nova forma de assediar moralmen-
recria antagonismos espaciais, degenerando-se em violência tanto na
te: o filho do casal gay. Logicamente que não se afasta a razão disso
esfera pública quanto privada, pois são esferas absolutamente imbrica-
tudo, a criação de pais e avós sempre esteve direcionada para o rela-
das e que se retroalimentam constantemente mantendo um status quo
cionamento afetivo heterossexual. Diante disso, ainda é muito difícil
aparentemente imutável”24.
perceber que as relações se alteraram e que cada um pode assumir a
Campanhas governamentais mais antigas, planos de ensino mais
orientação sexual que melhor lhe aprouver.
adaptados, discussão sobre temas polêmicos dentro das Instituições de
Por esse motivo é que se entende que o cidadão do futuro deve ser
Ensino acabam sendo as maiores promessas para que seja possível a
um cidadão sem preconceitos. Sem preconceitos, exatamente, porque
criação de uma sociedade mais justa e igualitária e desprovida de pre-
entende que as diferenças existem e que eles devem respeitá-las, sob
conceitos. Nada mais atual, portanto, que a música de Gabriel O Pensa-
pena de agredir moralmente seu semelhante e ser sancionado por essa
dor, Até quando, na medida em que o cantor afirma: “Até quando você
conduta. Ainda assim, a sanção não é a solução.
vai levando? (Porrada! Porrada!!), até quando vai ficar sem fazer nada?,
O papel da escola se torna essencial, na medida que é naquele
Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!), até quando vai ser
ambiente que jovens e adolescentes passam a maior parte da sua
saco de pancada?”. Urge, claramente, a necessidade de mudança do pa-
vida infantil e juvenil, até se tornarem adultos. É ali que esses te-
radigma social atual, a fim de que se tenha a plena ciência de que a op-
mas merecem ser levantados e debatidos. Não que os outros setores
ção sexual de determinado indivíduo não pode ser determinante para
da sociedade não tenham responsabilidade por essa situação: tem e
torná-lo diferente dos demais.
precisam agir. O Estado tem se mostrado muito omisso em relação
Da mesma forma que a orientação sexual, qualquer discriminação
ao tema. A partir disso, releva mencionar que para que haja uma
que deturpe os preceitos estatuídos pela Carta Constitucional vigente
mudança efetiva, é necessário que os paradigmas sociais acerca do
devem ser extirpados. E mais, cabe à sociedade civil, aos Entes Gover-
que é família, se alterem.
namentais e às Instituições de Ensino - essa última com papel extrema-
É importante que se tenha em mente que família já não é somente a
mente sobrelevado em relação aos demais – que identifiquem possíveis
união entre homem e mulher com o objetivo de constitui prole. Famí-
problemas que ocorram em seu ambiente e incentivem, a partir do diá-
lia, conforme demonstrado, se une através de laços afetivos e são esses
logo, a quebra de qualquer preconceito.
laços que garantem que um casal homossexual possa adotar crianças,
constituir família e levarem uma vida normal aos padrões atuais.
24 .  GUERRA, Sidney. Direitos humanos & cidadania. São Paulo: Atlas, 2012, p. 14-15. Por esse motivo é que o Estado, que permite essas adoções por en-

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tender que elas são plenamente possíveis em busca da melhor prote-
ção da criança, também deve agir em prol da efetivação e garantia dos
direitos inerentes a essa família: principalmente que não sofram abusos
preconceituosos por parte de qualquer indivíduo.
Afinal de contas, a integração entre os setores, fará com que o indi-
víduo advindo de uma família homoafetiva, possa crescer e se desen-
volver sem que tenha passado por nenhum transtorno psíquico decor-
rente de sua condição. E à sociedade em geral, o paradigma deve ser
alterado para fazer constar que “Homossexualidade nunca foi e nunca
será doença”.

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N
17
Infância e a erotização precoce

Maria Beatriz Nader


Thaisa Nunes

A té o século XIX não havia a idade da vida que hoje conhecemos


como infância, muito menos a adolescência. Considerada como um
sentimento de compreensão que distingue essencialmente a criança do
adulto, a infância não existia como consciência e o tratamento destina-
do a ela era o mesmo que aos adultos, o que permitia a todos na comu-
nidade considerá-las como iguais.
Não se deve estimar com o sentimento de hoje que tenha havido
qualquer descaso ou indiferença em relação às crianças. O que ocorria
era um entendimento diferente do que era ser criança, uma vez que di-
versos contextos culturais foram capazes de criar noções próprias a esse
respeito. Na verdade, a concepção dessa idade teve seu entendimento va-
riadonão só ao longo da História, mas em pontos imprecisos do tempo.
Na Europa Ocidental, durante a Antiguidade e por todo o medievo,
as crianças participavam do convívio social dos adultos e não havia dis-
tinção entre sua atuação e a do adulto na contribuição com o trabalho,
doméstico ou agrícola, para a sobrevivência da comunidade.
Philippe Ariès, autor da obra História Social da Criança e da Família1,
foi pioneiro no estudo que mostrou como o sentimento de infância foi
inserido na História da Humanidade. Para ele, as idades da vida ocupam
um lugar importante nos estudos sobre a família na História, e suas pes-
quisas, que tem como base a Demografia Histórica, mostram que a cada
época uma idade específica correspondia à idade privilegiada, ou seja,
tinha uma periodização mais vantajosa, pautada na reação social dian-
te da duração da vida. No século XVII, a idade que predominava nos
trabalhos demográficos era a idade da juventude que, dependendo da
temporalidade e do local, poderia chegar até aos vinte e quatro anos;
no século XIX, predominava a infância, que até hoje tem uma idade que

1 .  ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio
de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.

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varia dos três aos doze anos de idade; e, no século XX, sobressaia a ado- do com sua posição social e seu sexo. Os meninos usavam calça como
lescência, que muitas vezes começa dos doze e termina aos vinte e um os homens adultos e foram os mais beneficiados com essas diferenças
anos. As outras idades, a fase adulta, a velhice e a senilidade, surgem em que definiram claramente a infância da fase adulta. As meninas foram
outros momentos e também sofrem variações entre as sociedades e a motivadas a se manterem mais tempo sem essa indiferenciação e eram
temporalidade histórica. vestidas como mulheres adultas, além de serem treinadas para se com-
As variações das idades e dos sentimentos que se relacionam com a portarem desde muito cedo como donas de casa.
infância se iniciam muito lentamente entre nos séculos XVI e XVII com O sentimento de infância foi assim assimilado ou aprendido por
a percepção da criança como um ser diverso do adulto, como uma fase várias sociedades, chegando ao Brasil, provavelmente em fins do sé-
particular de vida. Se na Idade Média, o aprendizado das crianças era culo XIX, momento em que a sociedade ainda estava refém de inte-
através do convívio com os mais velhos, na Idade Moderna começa a resses patriarcais, nos quais esposa e filhos dependiam totalmente
existir uma separação de ambientes, o que proporciona espaços especí- do pai. Apesar de as grandes transformações econômicas e políticas
ficos para a criança dentro da sociedade. Surgem lugares para guarda e estarem transcorrendo a todo vapor, somente no início do século XX,
abrigo dos pequenos e de entrega de sua educação às escolas, processo a sociedade brasileira inicia mudanças em seu comportamento no to-
que foi acentuado pela Revolução Industrial haja vista a necessidade da cante ao se pensar infância.
força de trabalho das mulheres nas fábricas. Nas regiões citadinas, as populações que ficaram à mercê do gran-
No século XVIII, a concepção da criança como indivíduo já é mais só- de surto da industrialização pouco a pouco foram perdendo os velhos
lida, mas somente no século XIX, especificamente na França, ela recebe valores nas relações entre pais e filhos. O modelo familiar, até então pa-
uma valorização como ser singular, tornando-se o centro da família2. A drão de prescrição de comportamento de toda a sociedade, agora sujeito
criança passou a ser objeto de investimentos econômicos, educacionais ao fenômeno da desorganização pessoal e social, sofre consequências
e afetivos. Tudo o que se referia às crianças e a família se tornara assun- das condições sob as quais vivem seus familiares. Na cidade, a urbaniza-
to sério e digno de atenção. ção incentiva o consumo e as famílias, cada vez mais reduzidas, adotam
A representação da criança nos calendários e nas pinturas, embora traços culturais característicos da convivência mais estreita. As escolas,
escassas, mas importantes como fontes de pesquisa, nos séculos ante- as igrejas, os clubes, as agremiações aproximam as pessoas e desperta
riores praticamente não existiam e a partir do dezenove passou a “in- nelas uma visão de sociabilidade até então pouco vista nos pais.
vadir” as pinturas, as tapeçarias e as artes religiosas que representavam A rua, o comércio e a animação desperta o interesse de homens e
crianças como anjos. Ao mesmo tempo, a nova visão sobre as crianças mulheres pela forma de se trajar, motivando abertura de novos espaços
privilegiava às inovações sociais incentivadas pelo liberalismo e pelo e publicidades que colaboram com a nova dinâmica de consumo. Nos
capitalismo, fazendo com que lentamente ela assumisse um lugar efeti- grandes centros do Brasil, abriram-se lojas de departamentos e nesses a
vo na sociedade, mormente, como consumidora. Nesta conjuntura, sur- mulher citadina moderna era seu público-alvo.
ge um mercado de produtos para infância, dentre outros, de alimentos, Em um pais político e economicamente voltado para o futuro, no
de brinquedos, de jogos, de roupas e de desenhos animados. período após a Segunda Guerra, os anúncios de moda, que sempre fo-
A partir dessa época definitivamente a infância distingue-se da fase ram direcionados para as classes mais prósperas, mostram a moda da
adulta. As vestimentas são as características mais marcantes dessa des- próxima estação, incentivando cada vez mais o consumo, notadamente
semelhança. As crianças com menos de cinco anos, independente do da mulher. E, na dinâmica das relações entre os membros da família e
sexo, eram vestidas com saias, costume esse que perdurou por muito as mensagens de progresso, as mulheres adquiriram um verniz de mo-
tempo. Após essa idade, os meninos e as meninas eram vestidos de acor- dernidade, emancipando-se econômica e sexualmente. Novos hábitos
e moda renovaram a valorização da juventude e muitas meninas, que
sempre foram incentivadas a se parecerem com as mães, continuaram a
2 .  BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Du-
usar trajes semelhantes aos delas.
tra.9.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 288-289.

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Após os anos de 1980, as meninas foram compelidas a usar maquia- nia moderna da perfeição física e, desde muito cedo as pequenas usam
gem, salto e penteados no cabelo para as fazerem se sentirem arruma- inúmeros produtos destinados elas, como se fosse mulheres adultas.
das como as mães, e quando não ficavam arrumadas eram tomadas Na história do século XX, encontramos várias meninas que recebe-
como ‘relaxadas’ e ‘desleixadas’ por outras meninas. E a produção das ram influência de suas mães para se parecerem como uma mulher em
indústrias de vestimentas e de cosméticos passou a fazer parte do uni- fase adulta. Principalmente na primeira metade desse século, período
verso das meninas que buscavam se espelhar nas mães. Bilhares de dó- em que as mulheres sofreram forte influência das películas hollywodia-
lares foram gastos na publicidade de produtos que expandem o merca- nas que alcançaram todo o mundo. Cita-se como exemplo Shirley Tem-
do consumidor infantil, levando as meninas cada vez mais cedo para a ple, atriz mirim que, na década de 1930, foi considerada a mais famosa
vida adulta na qual, além de consumidoras, elas próprias tornar-se-ão menina atriz de todos os tempos. Começou atuar com três anos de idade
objetos de consumo. e sua mãe, uma dona de casa, foi a grande estimuladora de sua carreira,
São essas práticas que nortearão a discussão central deste artigo, matriculando-a em classes de dança superior à sua idade. Arrumava sua
que de início envolve o paradoxo da infância que distingue a criança do filha semelhantemente às estrelas de cinema mudo, das quais copiava
adulto, do ponto de vista econômico, desafia e condiciona a menina, na os cachos que arrumava nos cabelos da menina. Aos três anos de idade
fase de vida da infância, a portar-se em condições sociais com a mesma Shirley já estava trabalhando no cinema e também fazendo propagan-
imagem de sua mãe, mulher. da para cereais matinais e outros produtos. Outras meninas, que des-
de muito jovens também foram estimuladas por suas mães a atuar no
cinema foram Rita Hayworth e Brooke Christa Camille Shields, sendo
A infância feminina e a indústria esta última, nos anos de 1980, musa de fotógrafos famosos que chega-
ram a vender uma foto dela por cerca de um milhão de dólares, na qual

U nhas pintadas, cílios alongados com cosmético para colorir e/ou


acentuar a curvatura dos cílios, lábios coloridos, pele amaciada
com creme hidratante, cabelos alisados por chapinha, salto alto e vesti-
ela aparecia em cenas de nudez explícita e maquiagem pesada quando
tinha dez anos de idade. Com pouco mais idade, Brooke Shields prota-
gonizou um filme no qual interpretava uma criança que vivia em um
do tomara que caia. Esta descrição seria natural se nos indicasse a for- bordel. Tal filme a levou a fama, chegando a fazer comerciais caríssimos
ma de uma mulher se arrumar para ficar bonita. No entanto, não é mais das calças jeans da marca Calvin Klein, quando ela tinha quinze anos.
surpresa que uma criança possua tal aparência. No século XXI, a indústria têxtil e de cosméticos, aliadas ao merca-
A historiadora Mary Del Priore (2000), no livro Corpo a corpo com a do consumidor, ainda continuam a serem as maiores responsáveis por
mulher: pequena das transformações do corpo feminino no Brasil3, ao es- motivar meninas a se parecerem com as mães, uma vez que para vender
crever sobre as transformações ocorridas no corpo das mulheres brasi- não distinguem idade e tratam todos como consumidores. Por seu tur-
leiras ao longo da história, destaca que a identidade do corpo feminino se no, a mídia propaga ideias de que as meninas devem adquirir produtos
baseia, nos dias de hoje, na tríade beleza-saúde-juventude. Este é o para- produzidos por apresentadoras de programas de TV e por mulheres que
digma estético contemporâneo veiculado na atualidade, o que dá a opor- desfilam sua beleza juvenil em passarelas que irradiam riqueza e inveja.
tunidade de as meninas cada vez mais se parecerem com as suas mães. Marcas de roupas, de calçados e de cosméticos também promovem
Não seria forçoso afirmar que a histórica associação entre beleza e concursos de beleza infantil com o intuito de estimular as meninas a
feminilidade, tão intensamente cobrada das mulheres, está sendo trans- serem cada vez precoces e utilizarem objetos de adultos. Muitos con-
mitida às meninas, chegando quase que impondo às pequenas a obriga- cursos são produzidos por empresas que conseguem apoio do Estado
ção de imitar suas mães. Na realidade, as meninas estão vivendo a tira- e obtém licença exclusiva para realizar a confrontação entre crianças,
estimulando uma admiração exagerada em sua marca. É o fetichismo
estimulado nas meninas com certificação governamental.
3 .  DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena das transformações do cor-
Assim, a precocidade na utilização de objetos e de atitudes adultas
po feminino no Brasil. São Paulo, SENAC, 2000, p.12-13.

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faz com que as meninas fiquem cada vez mais motivadas a participa- Alana6, defensor do projeto de Lei 5.921/2001, que trata da regulação da
rem de disputas de beleza. Um exemplo recente, no Brasil, foi o “Concur- publicidade dirigida às crianças, e responsável pelo Projeto Criança e
so Beleza infantil criança da capa 2013”, promovido pela revista Kids. Consumo, vem fazendo importantes apontamentos sobre a erotização
Os prêmios foram estimuladores, pois, além dos prêmios que os 90 (no- precoce, sobretudo de meninas, tão sensíveis aos apelos de consumo.
venta) semifinalistas e os 30 (trinta) finalistas deveriam ganhar, os ven- Nesse diapasão, há um desafio a ser desvendado em relação ao futu-
cedores fariam ensaios fotográficos no Shopping Del Rey, na cidade de ro do sentimento de infância, com todas as suas implicações. As meni-
Belo Horizonte. Centenas de crianças foram inscritas e no dia do desfile nas têm realidades sociais diferentes, com histórias múltiplas. Enquan-
o shopping estava repleto de famílias que torciam por suas crianças. to algumas estão batalhando por uma vida digna e por uma educação
As meninas, assim motivadas, tornam-se alvo da publicidade da te- de qualidade, outras estão enclausuradas em condomínios rodeadas de
levisão, pois vivem cercadas de mensagens que insistem em inseri-las bonecas, maquiagens, e sendo educadas mães interessadas na perpe-
em um mundo de consumo, despertando-as e estimulando-as a querer tuação de conceitos restritos ao seu padrão social.
a satisfação imediata. Em outras palavras, a indústria, incentivada pela
mídia, patrocina a inserção precoce de meninas no mundo adulto, com-
prometendo a etapa que hoje se tornou, pelo víeis da saúde, necessária
às suas vidas, que é a idade da infância.
Talvez, por força da propaganda e da cobrança social, seria um tanto
normal que as meninas quisessem copiar o comportamento das mães, as-
sim como essas últimas influenciar na formação dos hábitos de consumo
das filhas. Todavia, estimular meninas a usar roupas, sapatos, maquiagem
e acessórios de adultos, pode afetar a experiência da infância e estabelecer
a ordem de as meninas necessitarem desde muito cedo a ficarem maquia-
das e arrumadas como mulheres para serem consideradas bonitas.
Essa preocupação com a beleza, de acordo com a Associação Brasilei-
ra da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC),
faz com que o Brasil ocupe o terceiro lugar no ranking mundial de paí-
ses que mais utilizam cosméticos e o segundo com maior consumo de
cosméticos voltados para o mercado infantil4. Além disso, o fenômeno
de erotização precoce compromete a identidade das crianças e oferece
um estímulo ao desejo. Por mais que uma menina tenha desenvolvido
precocemente um “corpo de mulher adulta” na fase da infância, falta-
lhe maturidade para a defesa aos assédios e abusos sexuais, assevera M.
Cunico, no artigo Os cosméticos e o risco da vaidade precoce5.
Visando garantir a proteção da criança contemporânea, o Instituto

4 .  Dados da Associação brasileira da Industria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosmé-


ticos (Abihpec) http://www.abihpec.org.br 6 .  Instituto Alana é uma organização da sociedade civil que trabalha para encontrar
5 .  CUNICO, M. M. e LIMA, C. P. Os cosméticos e o risco da vaidade precoce. In: TREBIEN, caminhos transformadores que honrem a criança. Para tanto, atua em um amplo espec-
Herbert Arlindo. (Org.). Medicamentos: benefícios e riscos com ênfase na automedicação. tro em busca de garantir condições para a vivência plena da infância, fase essencial na
Curitiba: Imprensa da UFPR, 2011, v. 1, p. 294. formação humana.

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18
O DEVER DE EDUCAR E O ENSINO DOMICILIAR

Ronaldo L. B. Segundo
Daury Cesar Fabriz

1  INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro reservou espaço importante para


tratar do tema educação, abordando-o a partir de diferentes pers-
pectivas. Desde o texto constitucional, passando pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, pelo Código Penal, chegando, finalmente, ao Esta-
tuto da Criança e do Adolescente, o tema é cercado de cuidados e bus-
ca fundamentalmente garantir o acesso de todos – especialmente, de
crianças e adolescentes – ao ensino e à educação.
Apesar de todo o cuidado mencionado e de estar o tema constantemen-
te na pauta do dia de nossos representantes parlamentares – acrescido da
existência de dispositivos constitucionais que vinculam obrigatoriamente
parte do orçamento público aos programas que buscam ampliar o acesso
e melhorar a qualidade dos serviços prestados pelo Estado neste campo
–, é de conhecimento geral que a qualidade da educação pública continua
muito aquém do que seria desejável para atingir índices civilizados de al-
fabetização, situação que não é nova1 e que foi reafirmada recentemente.2
No campo da educação privada, o quadro é apenas um pouco
menos desolador, mas igualmente preocupante, existindo, na ver-
dade, pequenas ilhas de excelência no meio de um oceano de ins-
tituições que, a muito custo, conseguem atingir padrões minima-
mente aceitáveis de qualidade.

1 .  BRASIL tem 75% de analfabetos funcionais, diz Ibope. 9 set. 2005. Educacional. Dispo-
nível em: <http://www.educacional.com.br/noticias/noticiaseduc.asp?id=226926>. Acesso
em: 24 nov. 2010.
2 .  O ALFABETISMO juvenil: inserção educacional, cultural e profissional. Disponível em:
<http://www.ipm.org.br/download/inaf_jovens_diagramado_final.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2012.

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N
Nesse contexto, surge o questionamento quanto à possibilidade de giu o que atualmente se denomina cultura7 – o conjunto de experiências
atender ao dever constitucional de prover a educação dos filhos sem, e soluções encontradas por um grupo humano, visando à superação
necessariamente, proceder à matrícula em instituições regulares de en- dos problemas enfrentados na vida cotidiana, a princípio transmitido
sino, mas por meio do que será denominado neste trabalho de educação de forma oral, mais tarde com o auxílio de símbolos escritos em subs-
domiciliar – expressão que será empregada como forma de evitar a uti- tratos mais ou menos duráveis (pedra, argila, papiro etc.) – que tem na
lização desnecessária do estrangeirismo “homeschooling”. educação – entendida como “[...] conjunto de métodos empregados no
processo de desenvolvimento físico, moral e intelectual do ser huma-
no[...]”,8 – uma de suas mais importantes ferramentas.
“A educação pode ser vista sob duas óticas: estrita e ampla; em sen-
2  EDUCAÇÃO tido estrito, ou formal, tem por finalidade ‘o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação

A expressão “educação” pode ser compreendida, num primeiro mo-


mento e a título de brevíssima introdução, a partir da análise de seu
significado vernacular como “[...] processo para o desenvolvimento físico,
para o trabalho’, conforme explicitam o art. 205 da Constituição Federal
e o art.2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. É conhecida como
‘educação escolar’. Em sentido amplo, por sua vez, abrange ‘os processos
moral e intelectual de um ser humano [...]” e também como “[...] conjunto
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência huma-
de métodos empregados nesse processo; instrução, ensino [...]”.3
na, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos
“Derivada do latim – educatio, do verbo educare (instruir, fazer cres-
sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais,
cer, criar), próximo de educere (conduzir, levar até determinado fim) -, a
como dispõe o art.1º da Lei 9.394/96’”.9
palavra educação sempre teve seu significado associado à ação de con-
A história brasileira propiciou as condições para que educação aca-
duzir a finalidades socialmente prefiguradas, o que pressupõe a existên-
basse por ser associada, obrigatoriamente, com a ideia de educação
cia e a partilha de projetos coletivos”.4
formal ou escolar – resultante da ausência, para a esmagadora maioria
Desde que, há milênios, o homem deu o primeiro de seus inúmeros
das pessoas, de quaisquer recursos voltados a proporcionar formação
passos no processo de vitória sobre a passagem do Tempo, adquirindo
intelectual fora das instituições formalmente organizadas – e imper-
a capacidade de falar – e, dessa forma, de transmitir os conhecimentos
ceptivelmente tal percepção terminou por consolidar-se em toda a so-
adquiridos por uma geração à outra5 – a educação sempre teve des-
ciedade, terminando por repercutir nos textos normativos e nas nor-
taque no conjunto de interesses de todas as comunidades humanas,
mas oriundas de sua interpretação10, embora os textos legais também
desde as mais simples – nas quais a educação consistia, basicamente,
possam fazer referência, complementarmente, à educação informal ou,
na transmissão oral e empírica de técnicas de trabalho e tradições do
em sentido amplo, na medida em que a educação pode ser compreendi-
grupo – até as mais sofisticadas, nas quais surgiram – fruto de um la-
da como um sistema “[...] que tem como objetivo o desenvolvimento das
borioso esforço intergeracional – os primeiros rudimentos de escrita,
capacidades cognitivas do indivíduo”.11
que pode ser definida como o registro físico das ideias e conceitos for-
mulados por uma comunidade.6
Desse processo de criação, acumulação, transmissão e registro, sur- 7 .  ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1999. p. 20.
8 .  HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello.
3 .  HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004
Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. 9 .  PEREIRA, Tania da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdis-
4 .  MACHADO, Nilson Jose. Educação: projetos e valores. São Paulo: Escrituras, 2002. p. 20. ciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 486.
5 .  GRAY, John. Cachorros de palha. Rio de Janeiro: Record. 2009. p. 72-73. 10 .  PEDRA, Adriano Sant´Ana. Mutação constitucional: interpretação evolutiva da cons-
6 .  ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, tituição na democracia constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.26.
1999. p. 21. 11 .  RABAÇA, Sandra, V.C. O direito de aprender vs. o dever de ensinar. Revista de Direito

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É justamente no campo da educação formal que surgem as questões Não são raras, atualmente, as decisões judiciais que, verificando au-
às quais a presente pesquisa pretende responder, uma vez que é nesta sente o dolo específico, ou seja, a mencionada vontade de realizar de ma-
modalidade de educação que se acumulam as dúvidas referentes aos neira consciente a conduta típica acrescida de uma finalidade especial
limites dos deveres dos pais ou responsáveis, no tocante à obrigatorie- de deixar propositadamente de prover a educação dos filhos em idade
dade de matrícula de crianças e adolescentes em estabelecimentos de escolar, deixam de aplicar as penas previstas no dispositivo legal em si-
ensino regular e quanto à possibilidade de ministração de educação do- tuações em que, apesar de ausente o dolo, a instrução deixa efetivamente
miciliar ou, em outras palavras, às formas de fazer frente ao dever de de ser provida, reconhecendo, dessa maneira, a existência do que se po-
prover a educação – este, sim, de existência indiscutível, na medida em deria denominar de justificativas para o descumprimento da obrigação.
que se encontra expresso de forma objetiva no texto constitucional. Resta, entretanto, necessário observar ser possível sustentar a im-
A análise da Constituição Federal no Capítulo III, do Título VIII, espe- posição de restrições legais por meio de normas infraconstitucionais,
cialmente o art. 205, (que estabelece ser a educação “[...] direito de todos e desprovidas, no entanto, de natureza de dever fundamental e, portanto,
dever do Estado e da família [...]”, devendo ser “[...] promovida e incentiva- na melhor das hipóteses, passíveis de alteração por decisão legislativa,
da com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da como, a título de exemplo, o art. 22 do Estatuto da Criança e do Adoles-
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para cente, cujo teor estabelece que “[...] aos pais incumbe o dever de susten-
o trabalho[...]”) aponta no sentido de existência da referida obrigação; o to, guarda e educação dos filhos menores”; o art. 55 do mesmo diploma
art. 206, por sua vez, ao estabelecer os princípios relativos à educação – legal determina, de forma enfática e bastante clara, a “[...] obrigação de
merecendo destaque o disposto no inciso II que afirma a “[...] liberdade matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” (no que é
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” secundado pela lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
– assim como o estabelecido no inciso III – que trata do “[...] pluralismo de que em seu art. 6º, estabelece a determinação de maneira detalhada,
idéias e de concepções pedagógicas” – indica a existência de ampla liber- afirmando ser “[...] dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícu-
dade na concretização da obrigação por parte de pais e responsáveis. la dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamen-
Necessário destacar nesse contexto o fato de o art. 246 do Código tal[...]”), sendo importante chamar atenção que o descumprimento do
Penal criminalizar a conduta de “[...] deixar, sem justa causa, de prover dispositivo constante do mencionado Estatuto é, nos termos do art. 249
à instrução primária de filho em idade escolar [...]”, estipulando pena da mesma lei, mera infração administrativa.
de detenção ou multa e de a doutrina, por sua vez, reconhecer, como Não é demais lembrar, neste ponto, que as questões enfrentadas na
elemento subjetivo do delito, o dolo – doutrinariamente definido por presente pesquisa resultam do advento do que é conhecido por socieda-
“[...] a vontade de concretizar as características objetivas do tipo [...]”,12 de moderna, na medida em que, até o seu surgimento, a educação esteve
consubstanciado na vontade, livre e consciente, de deixar de prover a entregue, basicamente, a três instituições – comunidade, igreja e família
referida instrução primária, donde é possível concluir, sem qualquer – às quais competia preparar os indivíduos para a vida em sociedade
dificuldade, que, nos casos de ausência de dolo, não haverá o crime – por meio da transmissão, respectivamente, em apertada síntese, dos va-
entendimento que vem sendo aplicado pacificamente pelos tribunais, lores éticos, da educação moral e da capacitação profissional.13
formando uma maciça jurisprudência a respeito do tema. O advento da modernidade, com sua proposta cada vez maior de es-
O texto do referido artigo não faz qualquer referência à matrícula pecialização das atividades humanas, criou a separação mencionada –
em instituição de ensino, mas apenas à obrigação de prover a instrução os campos da educação em sentido estrito e da educação em sentido
primária do filho em idade escolar, sem fazer qualquer alusão à forma amplo – correspondendo à família (e, em menor proporção, à igreja e a
por intermédio da qual deve ser cumprida essa obrigação. outras instituições análogas) a educação em sentido amplo, ou seja, a

Educacional, São Paulo, ano 2, v. 4, p. 193-203, jul./dez. 2011. 13 .  RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educa-
12 .  ESUS, Damásio Evangelista. Direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 243. ção. São Paulo: Cortez Editora, 1993. p. 63.

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preparação do indivíduo para a vida em sociedade por meio da trans- Em certo sentido, é possível afirmar, portanto, que a “educação fami-
missão de valores éticos e morais, sendo reservada com exclusividade à liar” – em destaque neste ponto apenas para ressaltar que a educação
escola – a par do papel de complementar a transmissão dos valores aqui não ocorria exclusivamente no seio da família, embora esse fosse um
citados – a função de concretizar a educação em sentido estrito, espe- espaço privilegiado para sua concretização – foi regra durante a maior
cialmente no que tange à transmissão de elementos destinados a possi- parte da história humana, enquanto a educação centrada primordial-
bilitar a qualificação profissional e a inserção no mercado de trabalho. mente na escola é uma realidade mais recente.15
Ocorre que o surgimento de novas ferramentas e tecnologias, acres- “O ensino fundamental obrigatório é um produto tanto da Revolu-
cido do barateamento e popularização do acesso a elas e aliado ao ele- ção Francesa, com seu ideal de promover a igualdade de oportunidades
vado número de pessoas dispostas a partilhar por essa via seus sabe- de ascensão social e de acesso ao trabalho produtivo, quanto da Revolu-
res e conhecimentos, vem diariamente desafiando a exclusividade da ção Industrial, com sua necessidade de impor aos indivíduos uma con-
escola em executar a mencionada tarefa de concretizar a educação em duta social padronizada. Como por outros já foi lembrado, entre nós a
sentido estrito, condição que, tudo indica, tende a se consolidar com o freqüência obrigatória da escola básica jamais saiu do papel, ou seja, do
aumento cada dia mais vertiginoso do volume de informação disponí- plano jurídico-constitucional, para a realidade social concreta. Contudo,
vel e dos meios de acessá-la. em que pese às críticas que a ela se fazem, ainda não se encontrou um
Nesse contexto, natural que se discuta a validade de preservar o mo- instrumento alternativo de ajustar as massas à sociedade industrial,
delo de educação tradicional e também alternativas a ele, entre as quais antes, e ao mundo globalizado, agora. É por isso que a alfabetização, que
pode ser alinhada a educação domiciliar. é a essência do ensino fundamental, mais do que o domínio neutro e
apolítico das técnicas de ler e escrever, é um ‘formidável instrumento de
controle das relações sociais’ e de transmissão da cultura”.16
Durante boa parte da história do Brasil, o ensino domiciliar foi admi-
3  O ENSINO DOMICILIAR tido e considerado uma opção para as famílias abastadas, o que talvez
explique a indisfarçável má vontade com o instituto, em razão de suas

S uperada a questão relativa ao aspecto jurídico e demonstrado que


não há qualquer dispositivo de natureza legal que vincule de forma
indiscutível o direito à educação ao dever de matrícula nas instituições
raízes – ao menos no contexto brasileiro – elitistas e segregadoras.
“O Brasil do século XVIII entendia o direito à educação como per-
tencente aos pais, reflexo da estrutura patriarcal que entendia o geni-
de ensino regular, resta analisar, mesmo brevemente, as questões extra-
tor como detentor absoluto das personalidades dos membros de sua
jurídicas a respeito do assunto, buscando demonstrar a inexistência de
família. De acordo com essa concepção, os pais poderiam optar pela
fundamentos de outra natureza que impeçam que essa forma de educa-
escola pública ou pela particular, assim como decidir se o seu filho te-
ção seja regularmente empregada em nosso país.
ria o direito de frequentar a escola”.17
Seja como for, ainda que “aos trancos e barrancos”, o fato é que a
educação domiciliar foi responsável pela formação cultural de signi-
3.1 Antecedentes
Como já mencionado, a ideia de educação em instituições especifi-
camente criadas com essa finalidade é relativamente recente na his- 15 .  RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educa-
ção. São Paulo: Cortez Editora, 1993. p. 63.
tória humana, existindo consenso de que, antes disso, a educação
16 .  BOUDENS, Emile. Ensino em casa no Brasil. Disponível em: <http://www2.camara.
ocorria por meio de uma atuação articulada entre família, sociedade
gov.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/tema11/pdf/100157.pdf>. Acesso
e instituições religiosas.14 em: 13 ago. 2012.
17 .  VIEIRA, Gláucia Maria Pinto. Limitação à autonomia privada parental na educa-
14 .  RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educa- ção dos filhos. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_Viei-
ção. São Paulo: Cortez Editora, 1993. p. 63. raGM_1.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2012.

326 327
N N
ficativa parcela da população brasileira, num período em que a estru- um num ambiente em que a atenção do professor deve ser obriga-
tura educacional, pública ou privada, era praticamente inexistente, toriamente dividida entre todos os alunos, a aplicação de um mo-
excludente – na medida em que as poucas escolas que existiam não delo padronizado de ensino que não respeita particularidades dos
eram destinadas aos componentes de todos os estratos sociais, mas indivíduos,20 até a exposição ao “bullying”, à violência em geral e a
apenas aos mesmos abastados, que podiam optar por educar os filhos comportamentos e hábitos considerados, por qualquer motivo, ina-
em casa – e até mesmo a ideia de acesso à educação tinha indiscutível dequados pelos pais.21
conotação elitista. Embora as pesquisas consultadas para a elaboração deste trabalho
Se, durante parte da história brasileira, a educação formal esteve a se refiram a outros países que não o Brasil, parece fora de dúvida que
cargo das organizações religiosas – com destaque para os jesuítas, que as mesmas razões que estimulam a opção pelo ensino domiciliar em
desempenharam esse papel até sua expulsão do Brasil – parece indiscu- terras estrangeiras podem ser usadas como justificativa pelos pais e
tível que, na maior parte do tempo, a educação foi negligenciada e que responsáveis brasileiros, na medida em que são, público e notoriamen-
apenas a partir da década de 1930, após a edição do “Manifesto de 1932”, te conhecidos, problemas análogos nas escolas brasileiras, bastando
o Brasil buscou, pela primeira vez em sua história, construir um sistema para tanto lembrar, a título de exemplo extremo de violência, do caso
educacional fundamentado em uma “[...] autêntica e sistematizada con- ocorrido em uma escola pública localizada em Realengo, no Estado do
cepção pedagógica [...]”,18 primeiro passo na direção da criação de uma Rio de Janeiro, em abril de 2011.22
estratégia de longo prazo, buscando a massificação e a popularização
do acesso ao ensino formal, requisito indispensável para o abandono do
modelo de ensino domiciliar, que se tornaria, ao menos em tese, tanto 3.3 Objeções
mais desnecessário quanto maior fosse a oferta de vagas na rede regu- As principais objeções que são apresentadas em relação ao ensino
lar – pública ou privada. domiciliar não são de aspecto jurídico – embora estes sirvam para re-
forçar os argumentos dos que pretendem manter fechada essa via de
acesso à educação por meio da manutenção de empecilhos de ordem
3.2 Atualidade jurídica –, mas da área pedagógica e sociológica, com especial destaque
Atualmente, a opção de educar em casa não está mais fundamentada na para a alegação de prejuízos à socialização dos estudantes.
inexistência de vagas em instituições regulares de ensino ou numa pre- “O projeto que regulamenta o ensino domiciliar coloca em xeque
tensão de determinados grupos sociais de segregar seus filhos, impe- a escola como mediadora do processo de aprendizagem. Esse traba-
dindo seu contato com membros de grupos considerados inferiores ou lho demanda um ensino sistemático e metódico de conhecimento e
com os quais o convívio seja considerado por qualquer motivo indese- profissionais especializados para organizar meios adequados à forma-
jável, mas sim na esperança de oferecer às crianças e adolescentes uma ção [...]. O objetivo é garantir a educação escolar apropriações de bens
educação de melhor qualidade e fora dos moldes pedagógicos adotados culturais e a formação de sujeitos que respeitem as diferenças no que
pelas instituições regulares.19 tange à diversidade de raça, credo, gênero, etnia, opção sexual, nível
As principais críticas ao modelo de ensino regular adotado vão socioeconômico, etc. [...]. A escola é, sem dúvida, lugar de diferenças e,
desde a degradação do ambiente escolar, a incapacidade das ins-
tituições de explorar as melhores qualidades individuais de cada 20 .  NOGUEIRA, Fernanda. Condenado pela justiça, casal de MG mantém filhos fora da
escola. G1. São Paulo, 16 fev. 2011.
18 .  GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. Filosofia e história da educação brasileira. São Paulo: 21 .  GOULART, Frederico. Pais e mestres: eles estudam na própria casa. A Gazeta. Vitória, 29
Manole, 2003. p. 31-32. jul. 2012.
19 .  BAUMAN, Kurt J. Home schooling in the United States: trends and characteristics. 22 .  SECRETÁRIO de saúde do Rio confirma 13 mortes em tiroteio em escola. 7 abr. 2011.
Disponível em: <http://www.census.gov/population/www/documentation/twps0053/ G1. Disponível em: < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/secretario-de-sau-
twps0053.html>. Acesso em: 2 ago. 2012. de-do-rio-confirma-13-mortes-em-tiroteio-em-escola.html>. Acesso em: 2 ago. 2012.

328 329
N N
portanto, local privilegiado de aprendizagens de conhecimento e de 3.4 Revolução tecnológica
convívio com diferenças e com a pluralidade de ideias”.23
Embora os argumentos apresentados até este ponto já sejam sufi-
Descontado o fato de que nas escolas brasileiras já ocorre uma segre-
cientes para justificar ao menos a tolerância do ensino domiciliar, é
gação social, oriunda da opção por parte dos mais abastados por matri-
possível – e também necessário – acrescentar mais um elemento a ro-
cular seus filhos em escolas particulares – muitas delas completamente
bustecer essa linha de pensamento, ligado às recentes e vertiginosas
inacessíveis, em virtude dos valores cobrados a título de mensalidades,
transformações observadas no campo das comunicações e do acesso
à esmagadora maioria da população (nas quais a convivência fica restri-
às informações cujos impactos são perceptíveis na vida cotidiana e
ta aos membros da mesma “aristocracia” local) situação que, salvo enga-
têm o potencial de influenciar de forma radical a educação – tanto
no, não parece preocupar os detratores do ensino domiciliar – o que há
genericamente considerada, quanto especificamente a questão do
é uma preocupação de que essa modalidade de educação termine por
ensino domiciliar.
produzir pessoas incapazes de se relacionar socialmente, insensíveis às
“Não há dúvida de que vivemos cada vez mais numa sociedade co-
demandas alheias, individuais e coletivas, e incapazes de aceitar con-
nectada pelas redes de comunicação e de informação. Com a inter-
viver pacificamente com valores e comportamentos diversos daqueles
net móvel proporcionada pelos telefones celulares e computadores,
existentes no meio em que foram criadas e educadas.
tornamo-nos os nós da rede, configuramos e reconfiguramos a web.
Embora sejam preocupações legítimas, são, de acordo com dados objeti-
As ferramentas da chamada Web 2.0 (Blog, Orkut, Facebook, Flickr,
vos colhidos em países que adotam, já há algum tempo e de forma sistemá-
etc.) permitem aos usuários deixar de ser apenas consumidores de
tica, a educação domiciliar, infundadas, existindo claros indícios de que essa
informação, para também produzi-la. As pessoas hoje escrevem, fo-
modalidade de educação não prejudica o estudante, seja no âmbito acadê-
tografam, filmam, compõem textos com imagens, áudio e vídeo e
mico, seja no âmbito de socialização e convívio em comunidade, de acordo
compartilham suas produções, às vezes sem o menor pudor ou com
com o que se pode deduzir de análise de pesquisa realizada no Canadá, onde
valores estéticos duvidosos, sem se importar muito com isso: estão
a prática é adotada há mais de uma década e meia24 e da qual é possível
mais interessadas na manutenção de suas redes de relacionamento,
deduzir que indivíduos submetidos à educação domiciliar atingem padrões
na expressão de seus pensamentos, ideias e sentimentos. Enfim, as
aceitáveis – em muitas situações, sensivelmente acima da média – nos que-
pessoas fazem, hoje, os mais variados usos sociais da escrita no meio
sitos relativos ao grau de educação formal obtido, ocupação profissional, ga-
digital extrapolam as propostas, mesmo as mais arrojadas, das aulas
nhos financeiros, participação em atividades políticas e cívicas, estabilidade
de redação e leitura das escolas. São inúmeras as comunidades de
familiar e grau de satisfação geral com sua condição de vida.25
prática, nas quais seus participantes trocam informações, ensinam e
Dessa forma, é possível concluir que, a par da inexistência de ar-
aprendem uns com os outros”.26
gumentos jurídicos dotados de suficiente densidade para sustentar a
Se, no passado, a escola formal tinha o papel de única mediado-
vedação apriorística da possibilidade de adoção do modelo de ensino
ra do saber e de concentradora do conhecimento, atualmente esse
domiciliar na realidade brasileira – dependendo sua implementação de
papel vem sendo gradativamente erodido em função da rápida dis-
simples edição de norma jurídica, regulamentando-a –, não há também
seminação de informação na rede mundial de computadores, que,
argumentos de ordem sociológica ou pedagógica suficientes para consi-
num ritmo cada vez mais vertiginoso, vem sendo disponibilizada por
derar descabida a opção.
meio de diferentes tecnologias, plataformas e modelos, tornando a
possibilidade do autodidatismo uma realidade ao alcance de qual-
23 .  GOULART, Frederico. Pais e mestres: eles estudam na própria casa. A Gazeta. Vitória, quer pessoa dotada dos instrumentos necessários para a compreen-
29 jul. 2012.
são dos temas que decida estudar.
24 .  VAN PELT, Deani A. Neven; ALLISON, Patricia A.; ALLISON, Derek. J. Fifteen years
later: home-educated Canadian adults. Canadian Centre for Home Education. 2009.
25 .  VAN PELT, Deani A. Neven; ALLISON, Patricia A.; ALLISON, Derek. J. Fifteen years 26 .  GOMES, Luiz Fernando. Redes sociais e contracultura: a escola fora da escola. Disponível
later: home-educated Canadian adults. Canadian Centre for Home Education. 2009. em: <http://www.nehte.com.br/simposio/anais/simposio2012.html>. Acesso em: 10 jun. 2013.

330 331
N N
Não é exagerado afirmar que, atendidos os requisitos mínimos justificar o sacrifício de parte considerável do tempo que poderia
de alfabetização – compreendida como a capacidade real de ler e ser empregado de forma mais produtiva em um projeto de ensino
entender um conteúdo escrito em vernáculo (missão na qual, não domiciliar, no qual, a par da obtenção de habilidades de comunica-
custa lembrar, a escola formal vem falhando dramaticamente em ção e expressão – que poderia constituir, entre outras, parte de um
nosso país) – qualquer pessoa é capaz, nos dias de hoje, de obter um currículo mínimo a ser respeitado pelos que optassem pelo ensino
grau bastante satisfatório de informação a respeito dos mais varia- domiciliar – haveria a liberdade de pesquisar os temas considerados
dos assuntos, suficiente para permitir a compreensão dos elemen- mais relevantes para sua formação.
tos básicos referentes a um determinado tema pesquisado, a busca
orientada por novas fontes de conhecimento dotadas de qualidade
acadêmica e o diálogo com estudantes mais avançados, num proces-
so cumulativo de conhecimento com potencial para atingir índices
4  CONCLUSÕES
bastante elevados de qualidade.
É possível afirmar atualmente que, mais importante que a frequên-
cia a aulas presenciais é o papel de orientação das pesquisas que pode
A título de conclusão, é possível afirmar, a par da inexistência de qual-
quer dispositivo constitucional que estabeleça a obrigatoriedade
da matrícula de crianças e adolescentes em instituições de ensino regu-
ser desempenhado por bons “professores” – que, dentro do contexto
lar, como única via para que pais ou responsáveis atendam ao seu dever
de autodidatismo inerente ao modelo de ensino domiciliar, nada mais
de proporcionar a educação formal a crianças e adolescentes, a existên-
são que estudantes mais avançados de determinados conteúdos.
cia de deveres de natureza infraconstitucional, oriundos de lei – a Lei de
Nesse novo contexto de acesso democratizado e descentralizado
Diretrizes e Bases da Educação, assim como o Estatuto da Criança e do
à informação, parece contraditório e contraproducente querer rea-
Adolescente – não havendo qualquer empecilho à alteração desses e de
firmar o papel central da escola no processo de formação pessoal e
outros diplomas legais que também criem embaraços à adoção de mais
acadêmica, especialmente para aqueles dotados de qualidades ca-
essa modalidade de ensino.
pazes de permitir o autodidatismo e instalados em ambientes que
Sendo assim, inexistindo o dever constitucional, ou se está diante
estimulem essa forma de aprendizagem.
de um caso de inconstitucionalidade das leis – na medida em que a lei
“Em se opondo a essa atitude, Rilke traça os princípios de uma edu-
cria um dever (que é instrumento de diminuição do campo das liberda-
cação escolar que merecesse o nome: ‘Cada pessoa deveria ser condu-
des individuais) não previsto constitucionalmente – ou, na melhor das
zida apenas até o ponto em que é capaz de pensar sozinha, trabalhar
hipóteses, de leis que podem, sem qualquer problema de ordem técnico-
sozinha, aprender sozinha’ (Rilke, 2007, p. 126). Ou seja, a escola deveria
jurídica, ser alteradas, visando a abrir caminho para a adoção formal
estar menos preocupada em ensinar coisas aos outros do que em aju-
do ensino domiciliar em nosso país, bastando, para tanto, a propositura
dar a encontrar o lugar onde o pensar do outro possa se fortalecer a si
de projeto de lei que regulamente essa prática e estabeleça a forma de
próprio, para que possa aprender por si o que ninguém pode lhe ensi-
fiscalizar os resultados de sua implementação, mediante, por exemplo, a
nar; a escola deveria estar mais atenta a deixar que a infância se faça a
submissão dos estudantes a avaliações periódicas de desempenho, com
si própria em vez de pretender fazer da infância algo predeterminado,
base, também a título de exemplo, no conteúdo constante do programa
diferente do que ela é”.27
ministrado aos alunos matriculados no ensino institucionalizado.
Obrigar a presença na escola regular representa para tais pes-
Por outro lado, parece anacrônico e contraproducente que, em tem-
soas um injustificado desperdício de tempo e talento em um pro-
pos de acesso rápido, relativamente barato e maciço a fontes de informa-
jeto pedagógico desprovido de atrativos e qualidades capazes de
ção sobre os mais variados temas, permaneça a ideia da escola formal
e institucionalizada como único ambiente capaz de propiciar adequada
27 .  KOHAN, Walter Omar. Vida e morte da infância entre o humano e o inumano. Educ.
Real., Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 125-138, set./dez., 2010. formação pessoal e cívica a uma geração que, mais e mais, enxerga a es-
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/edu_realidade>. Acesso em: 10 jun. 2013.

332 333
N N
cola como incapaz de atender aos seus anseios de conhecimento sobre
os mais variados temas – muitos dos quais ignorados solenemente pe-
las instituições e órgãos governamentais de promoção da educação – e
também incapaz de atingir satisfatoriamente os objetivos mais singelos
que dela se espera, como, entre outros que poderiam ser mencionados, o
domínio satisfatório das habilidades de comunicação e expressão.
Finalmente, as objeções de ordem extrajurídica, referentes a um de-
feito de origem do modelo de educação domiciliar que predisporia a for-
mação de pessoas com graves problemas de relacionamento, incapazes
de conviver com a diversidade de opiniões, comportamentos e opções,
tendentes ao egoísmo e individualismo, não se sustentam quando con-
frontadas com pesquisas realizadas em países em que esse modelo de
ensino é adotado e que dão notícia de que o ensino domiciliar propicia
a formação de indivíduos bem ajustados e, tanto quanto possível, por-
tadores de alto grau de satisfação pessoal, sendo possível afirmar que
apenas, em primeiro lugar, o desconhecimento e, em segundo lugar, o
preconceito, sustentam argumentos contrários à formalização do ensi-
no domiciliar em nossa realidade.

334
N
19
a construção social do Criminoso:
um diálogo entre o direito
penal e a psicanálise a partir da
perspectiva dos direitos humanos

Jovacy Peter Filho


Filipe Knaak Sodré

1  A construção da diferença
e o surgimento do
estrangeiro/estranho

D izer que os seres humanos são diferentes entre si nada acresce ao


empreendimento científico. Isso porque a diferença pura e simples
não é nem nunca será uma condição, em si mesma, nociva.
Pelo contrário, se bem trabalhada, a diversidade pode acarretar cres-
cimento social, moral e intelectual, possibilitando ao indivíduo a expan-
são de suas fronteiras cognitivas em direção ao desejo de conhecer e
compreender uma realidade que não lhe é própria. As diferenças, nesse
sentido, acabam se tornando o ingrediente necessário para o desenvol-
vimento do sentimento de tolerância1 para com os demais, e neste as-
pecto não há como levantar quaisquer críticas sobre o conceito.
Na verdade, não é o próprio conceito de diversidade que preocupa,
eis que a pluralidade é um atributo louvável e necessário e, nos dias

1 .  Em interessante escrito no qual dissertam acerca da insuficiência do termo tolerância,


Mario Sergio Cortella e Yves de La Taille (Nos labirintos da moral. Editora Papirus. São
Paulo: 2005. pg 28-29) ponderam: “(...) eu me rebelo porque acho que a palavra tolerância
produz quase um seqüestro semântico, pois quando alguém a usa está querendo dizer
que suporta o outro. Afinal, tolerar é suportar.” Mais à frente, e dando continuidade a este
mesmo tema, agora com ênfase na indiferença que o termo tolerância carrega, pontificam
os autores: “Eu o suporto, agüento. Você não é como eu, aceito isso, mas continuo sendo eu
mesmo. Não quero ter contato, só respeito a sua individualidade”.

335
N
atuais, fundamental para a construção de sociedades democráticas e feito por extirpação. Dever-se-ia, diferentemente, buscar a cessação da
solidárias. O problema está no tratamento do conceito, isto é, na forma resistência para permitir a livre circulação da idéia recalcada por um
como os indivíduos efetivamente – e não apenas no plano retórico – re- caminho até então barrado.”
conhecem e lidam com um cenário de diversidades cada vez mais evi- Conforme já salientado, o corpo estranho sempre esteve dentro de
dente; enfim, como conduzem esta situação real, tentando extrair dela nós, e mesmo que inicialmente apontado como um elemento patóge-
os acréscimos já mencionados. no, não era passível de ser extirpado, eis que se encontrava enraizado
Da mesma forma que não é novidade a constatação de diferenças no psiquismo humano5. Ou seja, era o estranho algo repleto de sentido,
interindividuais, também não o é o fato de que os homens sempre se fonte, por vezes, de um sofrimento do qual não se tinha livre acesso, e
depararam com a dificuldade de extrair desse conceito os elementos talvez por isso, erigia-se como necessário a noção de aceitação e compa-
que, em sua inteireza, poderiam torná-los seres mais virtuosos peran- tibilização deste corpo aflitivo.
te os outros, importando na própria construção de si mesmo, uma vez Intolerância, recalcamento do corpo estranho e sofrimento faziam
que, para o filósofo e psicólogo suíço Jean Piaget2, a construção (moral) parte de um contexto singular, seguindo as trilhas da psicanálise e,
de si mesmo passaria, indubitavelmente, pelo processo de socialização diante da impossibilidade de se extirpar o corpo estranho, a única solu-
enquanto ato de cooperação. Do contrário, o indivíduo conservaria um ção recomendada estava voltada à cessação da resistência.
egocentrismo impeditivo de possibilitar o conhecimento próprio e, em A proposta é de extrema relevância: dever-se-ia abandonar as armas
conseqüência, do mundo exterior. erigidas diante do corpo estranho (o estrangeiro, aquele que é rotulado
Neste contexto, as diversidades sempre foram conduzidas enquanto como “outro diverso do si mesmo”), a fim de compreendê-lo com parte
um significante de algo desconhecido3, um temor daquilo que difere dos integrante do próprio espectador, de sua projeção e do papel simbólico
demais e que, no plano da consciência, não está no ser e por isso é hostil, que oferta na construção do real. È dizer: o outro somente é outro quan-
exatamente pelo fato de ser estranho. Como se notará, o “estranho” é mais do se lhe atribui tal alcunha, traço este que não é um dado em si mesmo,
familiar do que se imagina, e está tão perto que chega a causar angústia. senão que uma construção a ele atribuída6.
Catarina Koltai4, traçando um percurso a respeito das primeiras Esse dilema (viver com o estranho que angustia não podendo, sem
acepções psicanalíticas de corpo estranho e estrangeiro, assevera que maiores perdas, se livrar dele) muito bem se coaduna com a leitura so-
o termo já aparecia no texto freudiano Estudos sobre histeria (1893), ao cial que buscamos empreender. Todavia, uma questão de fundo se colo-
que arremata a autora: ca. É possível transmudar essa análise metapsicológica para o contex-
“Freud e Breuer prosseguem afirmando que a histeria se forma por to social? A psicanálise se permite dialogar em outros planos que não
meio do recalque de uma idéia intolerável, como modo de defesa. A re- aqueles meramente individuais?
presentação recalcada permaneceria sobre a forma de um traço mné-
sico tornando-se, então, pelo próprio recalque, a causa dos sintomas
mórbidos. Tudo isso para concluir que os materiais patógenos desem-
penham o papel de um corpo estranho, cujo tratamento não poderia ser
5 .  Koltai, Catarina. Op. cit. pg. 80-81.

2 . Yves de La Taille (Desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria de Jean Pia- 6 .  Renata Conde Vescovi, psicanalista e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de
get. In: La Taille, Oliveira & Dantas. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em Vitória/ES, em debate realizado no Cartel (grupo de estudos) “Psicanálise e Direito”, no dia
discussão. Summus Editorial. São Paulo:1992, pg. 67), debruçando-se sobre a tomada de 18 de outubro de 2013, ofertou uma importante contribuição ao tema ao afirmar que: “Z.
consciência na obra de Jean Piaget, aduz que: “(...) tal tomada de consciência não depende Freud, no texto intitulado unheimleich abordou frontalmente esta questão. Em alemão
apenas de uma ‘vontade’ inata do sujeito. Antes são solicitadas pelo meio social, contanto un-heimleich representa aquilo que é estranho/familiar. Freud então desenvolve este ar-
que as relações deste meio sejam de cooperação.” tigo para mostrar que aquilo que nos causa estranhamento na verdade é o que temos de
mais familiar. Projetamos no outro a  nossa própria violência e  o chamamos de inimigo/
3 .  Zygouris, Radmila. De alhures ou de outrora ou o sorriso do xenófobo. In: Koltai, Cata- outro. Esta prática inerente ao mal estar na civilização  tem ultrapassado cada vez mais os
rina (org). O estrangeiro. Escuta/Fapesp. São Paulo: 1998, pg. 196. limites de um pacto simbólico necessário para vivermos nossas conquistas democráticas, o
4 .  Koltai, Catarina. Política e psicanálise. O estrangeiro. Escuta. São Paulo: 2000, pg. 79-80. que tem nos levado cada vez mais a praticas de segregação”.

336 337
N N
2  Psicanálise e contexto cultural: ponderado por Catarina Koltai9, foi a partir do século XVII que o termo
estrangeiro aparece na linguagem. A partir daí, o termo deixa de repre-
uma proposta para o dilema sentar unicamente alguém advindo de outros territórios além das fron-
teiras, alguém vindo de outro país, para se tornar mais recentemente

A preocupação ora levantada não é nova, mas, nem por isso, ainda
hoje deixa de guardar importância lapidar junto aos grandes cen-
tros de estudo que se enveredam pela intersecção científica entre psica-
um lugar de exclusão interna10.
O recorte sobre a figura do estrangeiro, assim, transcende uma
acepção ligada à nacionalidade ou a qualquer outro elemento do Esta-
nálise e política. do. Vale-se do sentido mais vulgar e amplo do termo, a fim de utilizá-lo
Enfrentando a questão já nas primeiras páginas de sua obra, Ca- como elemento ou circunstância que diferencie qualquer outro de si
tarina Koltai tratou de dirimir a querela7, abordando diretamente a mesmo, ou melhor, trata-se de um termo capaz de cindir o corpo social
questão do estrangeiro: “Abordar o conceito de estrangeiro como con- ao meio11: de um lado se tem o “nós”, parcela do qual o si mesmo supos-
ceito limite entre psicanalítico e político, permanecendo atenta ao tamente faz parte juntamente com aqueles em que identifica/projeta
lugar que ocupa em cada um desses discursos, assim como aos seus um laço de semelhança; de outro lado tem-se um “eles”, considerados
cruzamentos possíveis, me permitirá abordar o mal-estar na civiliza- como “outros” (outlanders ou ausslander), ou seja, grupo de pessoas do
ção. (...) O social é múltiplo e essa pluralidade entra em tensão com o qual o si mesmo não se projeta nem se identifica, e pelo qual surgem os
particular da subjetividade de cada um.” sentimentos de ambivalência12.
Muito valiosa é a contribuição de Jurandir Freire Costa8, a quem “Sempre existiram e ainda existem lugares no mundo onde homens,
não poderíamos deixar de mencionar, especialmente pelo pioneirismo mulheres e crianças são vistos como ‘estrangeiros’ por outros e, por isso
e pela grandeza de sua obra. Neste sentido, pontuou o psiquiatra e psi- mesmo, condenados à morte ou a uma sobrevivência miserável, mais
canalista carioca: “Quando decidimos estudar a questão da psicoterapia maltratados que animais.”13
de grupo, sabíamos que o risco era grande. O solo era movediço. Mesmo A indagação que surge neste ponto é a seguinte: qual o sentimento
assim decidimos enfrentá-lo, por várias razões. Razões da razão e razões produzido em relação a este estrangeiro que nos é tão próximo? Quando
do coração. As razões da razão, as razões intelectuais, são mais fáceis e como é formado este sentimento? Para respondermos estas e outras
de ser explicadas e, acreditamos, entendidas. Tratava-se de saciar uma questões, nos valeremos das lapidares lições da psicanalista francesa
curiosidade que, bem sabemos, é insaciável. Até onde pode ir a psicaná- Radmila Zygouris. Segundo a autora, o sentimento de aversão ao outro,
lise? Como se comporta ela, extramuros? Será que a teoria de Freud só
sai de casa para fazer turismo e trazer de volta impressões de viagem?
9 .  Koltai, Catarina. Op. cit. pg. 22.
Ou será que numa dessas excursões, quem sabe, ela volta impressiona-
10 .  “Existem, também, formas suaves de rejeitar e excluir de ‘nossa casa’ o outro, o estran-
da pela paisagem nova?” geiro. Seja ele estrangeiro ao país, estrangeiro pela cor de pele, religião, miséria, loucura ou
Saliente-se que para o esforço aqui empreendido importa compreen- doença. Existem, seguramente, diferenças de nível e natureza. Existem, seguramente, dife-
dermos a natureza psíquica da relação com o outro, bem como algumas renças de nível e natureza entre um racismo virulento e o desejo manifesto dos privilegia-
dos em evitar os espetáculos da miséria. Fala-se muito pouco da miséria em nossos doutos
formas de resolução de possíveis conflitos, tendo em vista o posterior discursos. Será que não poderíamos dizer que o estrangeiro por excelência nos meios da
fornecimento e subsídio de informações ao atual estágio em que trafe- psicanálise é o pobre, o deserdado, tanto pelo dinheiro quanto pela cultura?” (Zygouris. Op.
ga o direito penal. Cit. pg. 194).

Desta feita, a primeira ponderação que deve ser considerada é a res- 11 .  Na verdade, o termo “ao meio” não é representativo de quantidade, senão que é marca
de ruptura. Em verdade, os campos do “nós” e do “eles” não podem ser rigidamente medi-
peito do conceito de estrangeiro que estamos manejando. Conforme dos, eis que a complexidade da teia social exige que os homens transitem constantemente
em cada uma dessas esferas, apesar deste trânsito se encontrar cada dia mais comprometi-
do, especialmente pela escassez do diálogo e da cooperação entre os campos.
7 .  Koltai, Catarina. Op. cit. pg. 24. 12 .  Cf. Baumann, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Jorge Zahar. Rio de Janeiro: 1999.
8 .  Costa, Jurandir Freire. Psicanálise e contexto cultural. Campus. Rio de Janeiro: 1989, pg. 1. 13 .  Zygouris, Radmila. Op. Cit. Pg. 196.

338 339
N N
a alguém que nos é diferente ou não nos é familiar (o que ela denomina tisfazendo’ o superego) e estará expulsando e mantendo longe de si, ‘sob
de “xenofobia ordinária”), é algo aprendido e apreendido do mundo: “O ferros’, todas as suas coisas ruins. Permanecerá dentro dela somente o
bebê, ao nascer, não rejeita o estrangeiro, nem é xenófobo, mas acaba que é bom, formando-se então dois mundos distintos e separados: o dos
por se tornar com o tempo14, e tal sentimento surge a partir do momen- bons (cidadãos justos e honestos) e o dos maus (‘bandidos’). A sociedade
to em que a criança aprende a diferenciar os rostos e faces mais presen- tem muito medo de manter dentro dela, como um problema seu, os seus
tes e comuns, como da mãe e do pai, de outros não tão presentes.” membros por ela tidos como criminosos, não só pelo perigo real que eles
Assim, “o medo e a rejeição do não familiar aparecem após o reconhe- possam representar (o que pode ser uma verdade da parte de um grupo
cimento da própria imagem no espelho, portanto, após a constituição deles), mas também pelo risco que ela corre de vir a se deparar com o
do narcisismo secundário. A xenofobia se torna possível com o reconhe- crime como uma realidade inerente a ela, a todos os seus membros.”
cimento do ‘eu’ e se desenvolve com a constituição do ‘nós’.”15. Noutras Assim, o criminoso exerceria um papel fundamental na engrenagem
palavras, arremata a autora, em alguma fase da vida, e em graus diferen- social: seria ele o destino de sentimentos e ideais comuns, mas forjada-
ciados de intensidade, fomos apaixonadamente xenófobos. mente negados; encarnaria, portanto, a figura do anti-herói, aquele que se
É dizer: o desconforto da diversidade teria raízes numa não aceitação odeia, mas que, em torno do qual, há uma dose de admiração velada, não
de si mesmo perante os demais; não é propriamente o outro que inquieta dita, mas existente. Isso ajudaria a compreender o interesse comum que
o espectador, mas o desassossego irrompe quando as dessemelhanças que se observa em torno de temas afeitos ao crime e ao criminoso, quase que
se percebe são reforçadas socialmente como elementos/valores de que o apontando para um elemento simbólico comum que não pode ser assu-
“si mesmo” deve fugir, se afastar. E, não raro, essa fuga se relaciona com o mido, sob o risco de ser com ele confundido. Há um medo, portanto, de se
temor na própria identificação com a diversidade que se vitupera. Desta reconhecer tão criminoso quanto aquele que é apontado como tal, e daí a
feita, a xenofobia – que no caso presente é figura que marca a rejeição ao necessidade de um depositário do que nos é insuportavelmente comum.
diferente do si mesmo, a alguém com quem não se traça relações de iden- É exatamente o medo18 ponto central do processo desagregador entre
tidade e semelhança – tem a sua origem no sentimento infantil de medo16. o “nós” e o “eles”, entre os nativos e os estrangeiros. Será o medo o elemen-
O medo primitivo, raiz das sensações de desamparo e insegurança, to que marcará a construção dos rótulos de selvagens, de criminosos, de
acaba por se configurar no fio condutor da construção social do crimi- diferente (enquanto alguém potencialmente nocivo e em confronto com
noso, tido como um alguém que não satisfaz os standards culturalmen- os interesses estabelecidos). Medo manejado enquanto busca de uma
te estatuídos e, por isso, deve ser observado sob todas as cautelas. Há, certeza ideal, de uma estabilidade perdida, ou seja, um placebo de segu-
na rotulação negativa do outro, uma estratégia em torná-lo depositário rança social que impõe sanções antes mesmo da ocorrência dos fatos e,
daquilo que nos é insuportavelmente comum, mas que precisa ser nega- neste sentido, circunscreve o perigo desconhecido (móvel do medo e da
do, expurgado. Como ressalta Alvino Augusto de Sá17, “o criminoso passa insegurança perenes) em algo conhecido e bem delimitado.
a ser um concentrado de todos os males da humanidade, e a sociedade A sociedade pós-moderna, marcadamente insegura e alicerçada
tem necessidade urgente de puni-lo severamente, prendê-lo, segregá-lo, na liquidez decorrente do medo19, passou a buscar vias de solução na
pois assim estará punindo o que existe de ruim dentro dela (e assim ‘sa- personificação do inimigo, na construção do outro enquanto aque-
le ser que é diferente e nocivo, um transgressor em potencial das
normas sociais. Neste sentido, o discurso de construção do estran-
14 .  Zygouris, Radmila. Op. Cit. Pg. 194.
geiro, do inimigo, coincide com o grande rol de excluídos do sistema
15 .  Zygouris, Radmila. Op. Cit. Pg. 194.
capitalista, isto é, aqueles que não fazem parte do grupo de consu-
16 .  Todavia, ressalta Radmila Zygouris que a noção de estrangeiro, diferente, possui um
duplo registro subjetivo, inscrito no tempo e no espaço, e representado pelos afetos e pelas
pulsões. Neste jogo, a angústia e a agressividade seriam, respectivamente, seus aspectos 18 .  Vale revisar o interessante estudo acerca do sentimento de medo na pós-modernidade,
essenciais. ( Op. Cit. Pg. 197). realizado pelo sociólogo polonês Zygmunt Baumann. Cf. Baumann, Zygmunt. Medo líqui-
17 .  Sá, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 2ª ed. São Paulo: RT, do. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janwiro: Zahar, 2008.
2010, p. 140. 19 .  Utilizando como referencial teórico a obra já citada de Z. Bauman.

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midores devidamente inseridos e domesticados, pacíficos e passivos 3  Direito Penal do Cidadão e Direito
perante as normas de dominação, bem como fiéis cardeais de uma
ordem que apesar de ser-lhes pouco particular, paradoxalmente é Penal do Inimigo: a construção
assegurada como única salvaguarda possível. simbólica do criminoso
A ambivalência presente no seio da sociedade pós-moderna tem sido

P
diariamente intensificada, ao passo que o distanciamento entre o “nós” or todo exposto, já temos condição de afirmar que o criminoso, na
e o “eles”20 tem engendrado a criação de rótulos identificatórios, qua- qualidade de estrangeiro, de indivíduo não enquadrado aos pa-
se sempre atribuídos ao grupo oposto ao do si próprio enquanto ins- drões, em geral, não passa de um personagem socialmente forjado, de
trumento de qualificação negativa. Tal situação pode ser comprovada uma figura simbolicamente representada, de um estrangeiro cultural-
quando crianças e adolescentes de um determinado grupo distinguem mente rotulado. O crime, enquanto entidade jurídica, apenas confirma
os outros pela região onde residem, pelo estilo de música que apreciam, (para os que com ele se identificam) uma condição criminógena que já
pelos hábitos que cultivam e, principalmente, pelos objetos que adqui- é firmada previamente.
rem enquanto consumidores. Noutras palavras, o personagem preferencialmente selecionado
No âmago de uma sociedade do tédio e da vaidade21, onde a integra- pelo sistema penal já existe antes mesmo que a cena ou o ato crimino-
ção no “nós” apresenta como critério decisivo a intensidade da inserção so ganhe vida e, nesta esteira, a figura do criminoso assume uma face
no mercado de consumo, sendo dirigida pelos valores de vaidade que tal ontológica, na qual é possível atribuir sanções ou, ao contrário, elidi-
situação engendra (valores tidos como entediantes, pois que abstraem o -las à medida que este personagem se aproxima ou se afasta do modelo
ser, o plano da construção interior, para sobrelevar o ter, enquanto mera de “bom cidadão” socialmente construído. É dizer: o status de cidadão,
exteriorização de imagens, sem a necessária reflexão das condições de assim como o de estrangeiro, acaba por diferenciar e rotular, e ambos
possibilidade deste status). estão na raiz de um processo de exclusão que em última instância cria e
Neste sentido, todos aqueles que não atendem a determinados pa- reproduz a criminalidade.
drões de consumo afinado às regras de mercado e ordenados conforme Exceto nas situações de atestada patologia do agente, não parece ser
as normas e padrões da “boa cidadania” e da etiqueta social (os “eles”) o crime o fator desencadeante de condutas desviadas, senão que antes
serão peremptoriamente alocados numa zona cinzenta de transição, na dele, algo fez desequilibrar ou cindir a ordem interna e intermédia do
qual a transição entre o rótulo e a reclusão não basta de uma questão de indivíduo, levando-o a um estado de vulnerabilidade22 para com as nor-
conveniência e oportunidade. mas sociais (fragilização da heteronomia perante as leis), e, conseqüen-
temente, perante o Estado policial23.
O direito penal, enquanto instrumento de poder (por certo, utiliza-
20 .  Mister asseverar que a relação entre os conceitos de “nós” e “eles” marca uma verdadei-
ra via de mão-dupla: todos, absolutamente todos, são “nós” e “eles” para uns e para outros, e
tal configuração está sempre na dependência do ponto de vista do observador , cujo marco
se dá em face de um grupo que lhe é próximo e familiar (“nós”), e assim é adotado como 22 .  Utiliza-se como referência o conceito daquilo que E. Raul Zaffaroni denominou de
referência. Tudo aquilo que de certa maneira se aproxima das características desse núcleo clínica da vulnerabilidade em sua clássica obra Criminología – aproximación desde um
se enquadra ao conceito de “nós”, ao passo que a diferença passa a formatar o conceito de margen. 3ª reimpressão. Bogotá: Editorial Temis, 2003.
“eles”. É certo que a sociedade ocidental adotou um padrão de ação que surge como cartão 23 . e' Não estamos apregoando uma concepção tutelar do criminoso, nem mesmo justifi-
de fidelidade aos que pretendem ser considerado um “nós” dessa cultura. Por isso, quando cando as agressões porventura perpetradas à ordem e aos cidadãos. Todo cuidado é pouco
aqui utilizarmos genericamente esse pronome estamos a nos referir a este grupo formado nesta seara, sob pena de incorrermos nas mesmas premissas deterministas defendidas
enquanto massa, e cuja estrutura, funcionamento e regras acaba por sofrer um controle pelo positivismo criminológico, relegando toda a responsabilidade pelo ato criminoso a
mais presente de uma “mão-invisível”diligente. Estar neste grupo significa assumir suas algo fora do controle do indivíduo. Não negamos que os criminosos normais tenham liber-
regras e seus valores maiores (notadamente o consumo), assim como impõe a cessão de dade de consciência, isto é, livre-arbítrio da ação, contudo, não tão livre é o agir quando já
considerável parcela de autonomia, a ponto de prevalecer o caráter heterônomo num gru- se imputa um rótulo a alguém, eis que a ação está circunscrita aos condicionamentos a ela
po que se expressa a partir de uma liberdade apenas retórica. imposta e não pode fugir das condições de possibilidade que lhes são oferecidas, especial-
21 .  Cf. De La Taille, Yves. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Artmed. São Paulo: 2008. mente quando tais condições apresentam caráter desagregador, pejorativo e infamante.

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do pelo que os detém – o “nós” – em face dos que nada tem, isto é, pacto de sociabilidade justificaria a derrocada e flexibilização de todas
o “eles”), tem cumprido de maneira exemplar a execução do projeto as garantias processuais e materiais27.
segregador anuído pela parcela da sociedade que se considera um Como bem lembrou Luiz Flávio Gomes, o que Jakobs denomina de
“nós”. Por meio dos instrumentos técnicos dispostos pelo direito, o direito penal do inimigo nada mais é do que um exemplo claro de direito
Estado Policial vem criando leis flagrantemente desproporcionais, penal do autor, que pune o sujeito pelo que ele é, em oposição ao direito
cujo objeto está em tutelar condutas, ou recrudescer a punição sobre penal do fato, que pune o agente pelo que ele fez. Ademais, lembra o imi-
as já existentes, que sobremaneira vem cumprindo a função de am- nente jurista, a desproporcionalidade do direito e das sanções penais
pliar a distância entre as duas faces de uma singular moeda social. se une a um direito antecipatório, eletivo de seus destinatários que já
No campo do direito, as construções teóricas de Günther Jakobs24 estão sempre em vias de sofrer com o peso da punição28.
lançaram luzes sobre a temática atinente ao direito penal do inimigo. Em obra magnífica acerca do tema, Eugênio R. Zaffaroni afirma que
Por tudo, a teoria de Jakobs comprova a tese ora lançada: o inimigo o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos, conferindo-
(ou estrangeiro) não passa de uma construção social, alguém que já lhes um tratamento que tira sua condição de pessoas e substitui pela
recebe um rótulo, uma marca que o torna distinto, potencialmente de entes perigosos29. Analisando a teoria política de Carl Schmitt e
apto a receber a chancela das sanções penais. também a própria teoria penal de Jakobs, Zaffaroni demonstra que
Nesta seara, uma primeira indagação. Quem são e como devem ser esse tratamento diferenciado é próprio do Estado absoluto, e introduz
tratados os criminosos? Inimigo seria aquele que se afasta de modo noções que fatalmente conduzem à derrocada do Estado de Direito e
permanente do direito (leia-se, do modus operandi esperado pelo às liberdades individuais.
direito), sem oferecer garantias de que vai continuar fiel à norma. A teoria política schimittiana consiste, em termos muito genéricos,
Nesta esteira, sobra o rótulo, aprioristicamente, para os criminosos na formação de identidade nacional em oposição à de um “inimigo”,
econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delito que poderia ser externo ou não. Contemporaneamente, esse tipo de
sexual e outras infrações penais tidas como perigosas25. pensamento foi reintroduzido nos Estados nacionais após a crise de
O tratamento a ser dispensado aos inimigos é o daqueles que não legitimidade gerada pelo neoliberalismo, reforçando-se nos cidadãos
ingressaram validamente na cidadania, deixando, por isso, de serem a ideia de um Estado protetor, não mais na esfera econômica e social,
considerados pessoas. Neste sentido, o inimigo não é sujeito proces- mas na criminal, proliferando-se a formação da imagem de “grupos
sual, e contra ele são admissíveis toda e qualquer forma de flexibili- produtores de risco”, com tendências ao “desvio”.30 Como não poderia
zação das normas processuais penais, tais como prisões arbitrárias, deixar de ser, passaram a ser perseguidos cada vez mais aqueles que
inobservância de prazos, incomunicabilidade com defensores, entre fazem parte da população excedente - o surplus da força de trabalho.
outras seguranças que lhes seriam tolhidas26. Grupos inteiros de pessoas que deixaram, na prática, de cometer cri-
Em verdade, a ruptura da sociedade entre o “nós” e o “eles” é tão mes para se tornarem, elas mesmas, crime31.
presente e real que, para se sustentar normativamente, acaba por Ao autorizar o Estado a declarar certos indivíduos como sujeitos a um
propor a criação de dois direitos penais: (i) um direito penal para os tratamento penal e processual penal diferenciadamente mais gravoso,
cidadãos, os “nós”, cujo respeito a todas as garantias seria a pedra de frequentemente em contextos supostamente de “emergência”, Zaffaro-
toque, haja vista a identidade do legislador com este grupo; (ii) um
direito penal dos inimigos, os “eles”, na qual a deliberada ruptura do 27 .  Gomes, Luiz Flávio. O direito penal do inimigo ou os inimigos do direito penal. In:
<www.revistajuridicaunicoc.com.br>. Acessado em 17.11.2008.
24 . Jakobs, Günther & Cancio Meliá, Manuel. Derecho penal del enimigo. Civitas. Madrid: 2003. 28 .  Gomes, Luiz Flávio. Op. Cit. pg. 3.
25 . Jakobs, Günther et al. Op. Cit. pg. 39. 29 .  ZAFFARONI, Eugénio. R. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Revan. 2007. Pág. 11.
26 .  Para os que esbravejam ser esta teoria distante da realidade brasileira, qualquer seme- 30 .  BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005, p. 36.
lhança de seus postulados com o denominado RDD (regime disciplinar diferenciado), não 31 .  GIORGIO, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Ja-
passaria de uma infeliz coincidência. neiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 98.

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ni (e também Giorgio Agamben) adverte que se abrem as defesas contra É preciso lembrar que as conquistas de um direito penal e de um di-
o autoritarismo, pois o conceito de inimigo não admite limitações, nem reito processual penal democráticos foram custosas para nossa socie-
o Estado que incorpora um conceito como esse, vez que este sempre dade, e reclamam vigilância para que não sejam jogadas fora diante do
dependerá do juízo subjetivo do ocupante do poder32. Guantánamo é temor daquilo que é diferente que leva à emergência que nunca tem
um exemplo claro da perda de limites desse conceito, mas também tudo fim. A função do direito penal em um Estado de Direito (um Direito
aquilo que, num regime de exceção é qualificado como “subversivo”. Penal que tem como norte os Direitos do Homem) tem de ser a redução
Ademais, Luigi Ferrajoli demonstra magistralmente o perigo destas e a contenção do poder punitivo dentro de limites racionais – e se ele
diferenciações para a democracia, evidenciando como a interiorização permite que cidadãos deixem de ser considerados pessoas para serem
do conceito de “inimigo” no direito penal envenena a solidariedade so- considerados apenas entes perigosos, ele assim abre espaço para o avan-
cial, fragilizando as relações democráticas. Para tanto, ilustra especifi- ço do poder punitivo sobre todos.
camente o caso italiano, onde houve a adoção de leis penais criminali- Como muito bem ressaltado por René Ariel Dotti34, há um equívo-
zando a imigração ilegal: “... a perda de uma autorização de residência, co (conscientemente reproduzido) em se associar o âmbito de proteção
por razão de demissão, por exemplo, não é absolutamente um ato da- aos direitos humanos tão somente à salvaguarda de pessoas encarcera-
noso, e menos ainda é atribuível à responsabilidade do imigrante, cuja das, acusadas, condenadas, torturadas ou que sofrem maus tratos sob
simples culpa é ser estrangeiro irregularmente na Itália: em suma, um a tutela do Estado. Quando muito, estendem o conceito de direitos hu-
diferente, um estranho. Este é o aspecto mais grave de todas essas leis, manos à proteção de presos e dissidentes políticos e ideológicos. E há
além da violação dos princípios garantistas clássicos: o veneno racista uma razão de ser para tanto: reduzindo o campo de atuação dos direitos
injetado por elas no senso comum. Essas leis, com efeito, não apenas humanos a um grupo reconhecidamente rotulado da sociedade, sabi-
refletem o racismo difundido na sociedade, senão que são elas mesmas damente estigmatizado e marginalizado, pretende-se realizar em torno
leis racistas, que servem para legitimar, apoiar e alimentar aquele racis- do campo dos direitos humanos uma mesma estratégia de rechaço, de
mo. A estigmatização criminal - como sujeitos perigosos, como poten- violação e redução de sua carga axiológica.
ciais e tendenciais delinquentes, como portadores de uma culpa ligada A luta dos direitos humanos não é apenas para que se respeite a di-
à sua identidade – não atinge na verdade simples indivíduos com base versidade, para que haja um ambiente de compreensão entre os huma-
nos crimes que cometeram, mas grupos inteiros de pessoas com base nos, sintetizados que devem estar ao principio reitor da dignidade da
em sua condição pessoal. É o mecanismo típico da demagogia populista: pessoa humana, senão que ainda resta aos direitos humanos uma luta
constroém-se inimigos potenciais - os imigrantes, os ciganos, os islâmi- pelo reconhecimento de sua disciplina enquanto ferramenta plural, que
cos – que são marcados como sujeitos perigosos e possíveis criminosos, busca a ruptura de paradigmas de dominação de uns face a outros e
expondo-os à diferença, à suspeita, à questão da expulsão ou da repres- mesmo do saber que não raro se erige como estratégia de poder. Talvez
são, e depois, como já aconteceu, à violência homicida.”33 a tomada de consciência, o diálogo franco e aberto, possa ser uma via
de harmonização das diversidades e afirmação dos direitos humanos.
32 .  ZAFFARONI, Eugénio. R. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Revan. 2007. Pág. 159. Loic Wacquant bem sintetizou o desafio que a sociedade brasileira
33 .  FERRAJOLI, Luigi. El populismo penal em la sociedade del miedo. In: La emergencia enfrenta, e a difícil (porém corajosa) postura de escolher uma sociedade
del miedo. Buenos Aires. EDIAR. 2012. p. 69 (“...la pérdida del permiso de estadía a causa,
por ejemplo del despido, no es para nada un acto dañoso, ni tanto menos es atribuible a
la responsabilidad del inmigrante, cuya simples culpa es ser extranjero irregularmente en cometidos, sino enteros grupos de personas sobre la base de su condición personal. Es el
Italia: en breve, un diferente, un extraño. Es éste el aspecto más grave de todas estas leyes, mecanismo típico de la demagógica populista: se construyen potenciales enemigos – los
más aún de la violación de los clásicos principios garantistas: el veneno racista inyectado inmigrantes, los rom (gitanos), los islámicos – y se los señala como sujetos peligrosos y po-
por ellas en el sentido común. Estas leyes, en efecto, no se limitan a reflejar el racismo di- sibles delincuentes, exponiéndolos a la diferencia, a la sospecha, a la pregunta de expulsión
fundido en la sociedad, sino que son ellas mismas leyes racistas, que sirven para legitimar, o represión, y entonces, como ha sucedido, a la violencia homicida.”).
secundar y alimentar aquel racismo. La estigmatización penal – como sujetos peligrosos, 34 .  Dotti, René Ariel. O processo penal constitucional: alguns aspectos de especial relevo.
como potenciales y tendenciales delincuentes, como portadores de una culpa ligada a su In: Moreira Alves, Leonardo Barreto; Araújo, Fábio Roque. O projeto do novo Código de
identidad – no golpea en efecto simples individuos sobre la base de los delitos por ellos processo penal. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 24.

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aberta e ecumênica ao oceano de desprezo pelo outro que nos é cotidia- o enfrentamento cada vez mais colérico entre aqueles pretensamente
namente oferecido35, mas talvez o lembrete mais forte do risco que vi- inseridos na parcela denominada “nós”, face aos excluídos, estrangeiros
vemos ao deixar o “outro”, transformar-se no “inimigo” esteja registrado e inimigos inseridos no grupo do “eles”.
no Intertexto, de Bertolt Brecht: É imperioso que sejam construídos pontes de acesso entre as ilhas
formadas no corpo social, na tentativa de fundir algo outrora cindido
“Primeiro levaram os negros e que, caso assim permaneça, em nada convergirá para os sentimentos
Mas não me importei com isso que a própria ação excludente busca aquilatar. Noutros termos, o diá-
Eu não era negro. logo, a cooperação e a aceitação do diferente enquanto algo ou alguém
Em seguida levaram alguns operários que, em verdade, nos é tão próximo e particular, pode ser o passo ini-
Mas não me importei com isso cial para a construção efetiva de uma sociedade fraterna e solidária,
Eu também não era operário. apta a potencializar na diferença a igualdade, e de fazer do pluralismo
Depois prenderam os miseráveis a afirmação maior da isonomia.
Mas não me importei com isso Concluímos com algumas palavras de otimismo, asseverando a im-
Porque eu não sou miserável. portância de tudo o que fora exposto, da lavra do Professor José Leon
Depois agarraram uns desempregados Crochik36: “Mas, claro que seria ilusório se supor que a frieza presente
Mas como tenho meu emprego naquele desinteresse se dissolva facilmente. Talvez, a criação de um
Também não me importei. clima cultural geral que promova a importância do diálogo e da refle-
Agora estão me levando. xão possa auxiliar na questão. Evidentemente isso não deve ser feito
Mas já é tarde. da mesma forma que o combate às drogas neste século e a atual per-
Como eu não me importei com ninguém seguição ao fumante, posto que se culpabiliza o consumidor sem se
Ninguém se importa comigo.” perguntar o que leva alguém a se drogar ou a fumar. Como diz Ador-
no, para se combater a frieza reinante deve-se procurar pelos motivos
que a geraram e a conseqüente reflexão sobre ela.”
É exatamente esta procura, mencionada por Adorno e referenciada
Conclusão por Crochik, que nos permitirmos iniciar. Por certo, os preconceitos
e as rotulações não serão bem trabalhadas se se fizer uso do direito

O trabalho, longe de pretender depurar a questão, tratou de elucidar


uma situação factível, apesar de presente apenas em discursos
sediciosos e subliminares, qual seja, as relações de rotulação e prévios
penal como via de resolução das fissuras sociais; ao contrário, quanto
mais direito penal tivermos, quando mais a sociedade simbolizar nes-
te campo a tábua de salvação, tão maior será o distanciamento social
conceitos atribuídos antes mesmo de qualquer ação. Trata-se de uma e as diferenças que, na essência, se encontram na raiz da violência sin-
conduta defensiva, cuja origem está no seio de uma “sociedade” ambiva- tomática que tanto inquieta.
lente e marcada pelo temor ininterrupto.
A permanência deste quadro impede a cooperação efetiva entre os
cidadãos, e fomenta uma igualdade meramente retórica, recrudescendo
cada vez mais o medo, a insegurança e, conseqüentemente, a violência.
Pelo exposto, a manutenção deste estado de coisas marca uma roda
viva de medo e violência endógenos, travando o caldo de cultura para

35 .  WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. 2ª ed. Rio de janeiro Zahar. 2011. Pág. 15. 36 .  Crochic, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editoral, 1995, p. 208.

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Democracia
Participativa
20
Participative Democracy
and the Fiscal Issue

Katia Blairon

1  Introduction: How political


regimes build their finances

D irect democracy and budget are never associated. Citizens had yet
never been asked to intervene, at least in basic economic, budget-
ary and financial national matters1. Parliamentarism, together with the
representative modern system, has come forward by its power to de-
cide tax issues and discuss their use. Representation has quickly found
shape in the level of acceptance from the tax-payers. However, if we
recall one of the first texts thereof, two sides of budgetary authorisa-
tion were established: “All citizens have a right to assess, either person-
ally or by their representatives, the necessity of public contribution, to
grant it freely, to follow its use, and to fix the proportion, the mode of
assessment and of collection, as well as the period, of the taxes”2. Prac-
tice has mainly shown its preference for “representatives”. More than a
preference, it is rather something exclusive: the time of direct expres-
sion of the budgetary authorisation has so to speak never existed. “The
government of the people, by the people and for the people” seemed
to exclude budgetary and financial decision. Yet, the solutions to the
economic and financial crisis raise democratic and constitutional ques-
tions. They have been as various as the means and shapes of the crisis
itself. That the measures taken– and particularly the most binding ones
for the citizens – were met as fate comes as remarkable surprise. Their

1 .  The experience of the participative budget of Porto Alegre has most certainly gradual-
ly spread worldwide, but it remained confined to the local level. Cf. infra.
2 .  Article XIV of the Declaration of the Rights of the Man and of the Citizen, 1789.

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designers are well-known: although written by the executive power, the ations. To be or not to be direct, that was the question asked to past and
law is traditionally voted by parliament. But it is difficult to trace their present democracies. To be or not to be (only) representative anymore,
origins. If the direct source is national, another source, not to say an in- that is the question asked to future democracies. Direct democracy is tra-
fluence, is partly found in markets, partly in various international, gener- ditionally opposed to representative democracy. British, American and
al or specialized organizations (or in other states, as in Europe). Economic French revolutions left a long-standing mark on constitutionalism. But
and financial considerations are obviously at stake. But the consequenc- a median way seems to appear. Representative democracy must stand,
es, which are logically economic and financial, are also social and consti- but not exclusively or at the expense of direct democracy. The latter is
tutional. If some parliaments have voted (that is ratified) grim measures, often considered as a competitor to the former. Current representative
others may have been reluctant and hesitated. The latest case of Cyprus democracies (whatever their form, parliamentary, presidential…) do not
is a perfect illustration. The national representatives had first opposed offer the necessary conditions to a viable economic and financial envi-
the European Union’s guidance, consisting in the taxation of private sav- ronment for the citizens any more, all the more as crucial issues remain
ings. But the emergency situation eventually made them give in to the and are being met by a variety of answers corresponding to that of soci-
European sirens, under a few conditions. Not so far away, the cradle of eties and States: the redistribution of wealth and solidarity on the one
democracy was renouncing its institutional claims. The Greek situation hand; equality before the (fiscal) law and the fiscal pressure on the other.
is notorious. Yet one proposal was incidentally left aside in the recent In any case, “the ‘political’ and the ‘economic’ points of view cannot be
history of the country although it would have deserved a particular at- clearly separated as most of the economic issues have some political im-
tention: it was suggested by the then Prime Minister George Papandreou portance and most of the political issues having some economic impor-
and it consisted in submitting the economic and financial plan designed tance”5. A consensus arises around the necessary conciliation between
to “save” the country to a referendum. Strong words were heard: “a dan- representative and participative democracies.
gerous one”, this decision would have put the country “in jeopardy”, and
the Eurozone and the international financial system at that. Some Euro-
pean officials had quickly reacted, considering the proposal as premature 1.1. Fiscal effects of direct democracy
or inconsiderate. The negative outcome of such a public consultation Although stemming from the budgetary authorization (defence of the
was obvious. Tax-payers would have never agreed to it, shaking a fragile taxpayers), the parliamentary government came along the Wagner
edifice with little democratic foundations. The Prime minister’s attempt law of the continuous increase of public spending, willy-nilly. If some
seemed desperate; it relied on a people who had not been directly con- spending was “imposed” – the financing of war, starvation and climat-
sulted since the fall of the colonels in 1974. Though politically and eco- ic disasters for instance –other forms of spending were not saved for
nomically hazardous, the solution was legally founded: asking taxpayers electoral and political reasons – like the social demand for services. In
their opinion – consent – about fiscal measures. Besides it was nothing France, the inflation of spending – which could be put together with
new. Iceland had made the Greek dream true, several times in a short that of laws – “partly comes from… parliamentary hyperboles which the
time period3. This country most certainly fulfils the prerequisite condi- governments only opposed with inadequate energy”6. Solutions were
tions for the development of direct democracy, geographically-speaking various, but mainly consisted in the suppression of the parliamentary
mainly. It has been maintained for centuries that only small states may power to propose spending, or at least in the strict surveillance of that
develop direct democracy, and therefore bigger states must necessarily
resort to representative democracy. The choice of the political regime
was almost naturally guided by geographical (or climatic4) consider- political decision was equally an important argument in the constitution of the repre-
sentative democracy at the expense of the direct one. Infra.
5 .  H. KELSEN, La démocratie, sa nature, sa valeur, Economica, Paris, 1988 (2d edition of
3 .  Supra. 1929), p. 52.
4 .  MONTESQUIEU, L’Esprit des lois, part III, Livre XIV, chap. X. The capacity to make a 6 .  J. BARTHELEMY, Valeur de la liberté et adaptation de la République, Sirey, Paris, 1935, p. 171.

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power7. The budgetary power was de facto progressively transferred Political regimes make their own finance. Whether they are represen-
to the executive. But this was not enough to contain the increase of tative or direct, political systems aim at providing useful tools to the polit-
spending, and neither was a set of binding measures upon the public ical decision-making. If one or the other may be picked, we have to admit
finance of the States8. The financial situation of the vast majority of that, for financial reasons, democratic institutions, owing to the defects
States is not new (40 years of deficit in France), but it was highlighted of the representative system, need renovation. These defects were for a
by the global crisis and its tragic consequences upon the individuals long time structural, but are now becoming cyclical. The illusion of frugal
(Argentina in 2001, Greece since 2010, Cyprus this year). We can there- assemblies13 made way to fiscal illusions, generated by the fiscal institu-
fore wonder how a political regime, in particular the representative tions, to which fiscal reactions were brought14. For all that, the absence of
system, impacts national public finances. instruments of direct democracy does not necessarily involve corruption,
Several works have dealt with financial and budgetary implications of embezzlement, tax fraud etc., and conversely financially virtuous States
direct democracy, and more globally with the prevision of fiscal referen- are not necessarily the ones to guarantee these instruments. It will be
dum. Some demonstrate the effects of the right to an initiative on fiscal simply argued here that participative democracy constitutes one of the
policy. For the United States, Matsusaka finds that states that have that useful instruments to restore confidence in the political system, the fi-
institution have lower expenditures and lower revenues than states that nancial system and the establishment of certain tax morals.
do not9. The defence of the representative democracy in this field argues
that it has to remain free from every kind of constraints, mainly popular,
otherwise it couldn’t work: for instance, initiatives dedicate public funds 1.2. Fiscal neglect of direct democracy
to certain uses and prevent tax increases that legislatures do not have Generally, the referendum and the instruments of direct and partici-
enough degrees of freedom left to budget responsibly. However, Matsusa- pative democracy are not diffuse. They are our most unpopular insti-
ka estimates for California that at most 32% of the state budget is tied up tutions. Democracies are mostly representative, but there are always
by initiatives and that initiatives do not prevent tax increases, except on exceptions. Various forms of popular participation, at the local level as
property, to any significant degree10. The fiscal referendum has globally well as at the national one (Switzerland, Italy, Sweden, Norway, and at
decreasing effects on expenditures, because “the fiscal referendum forces the infra-national level of federal States: United-States, again Switzer-
governments to ask the citizens for approval of their budget proposals”. land…) may indeed be found. However, budgetary and financial matters
On the other hand, Blume, Müller, Voigt and Wolf11 notice that “broad ini- are often considered as sensitive, dedicated to representation for sev-
tiative rights could lead to more government spending whereas the in- eral reasons (infra). It is the reason why, even when the referendum or
stitution of (fiscal) referendums could cause the exact opposite”. Indeed, popular initiatives are planned and organized, the fiscal field is exclud-
mandatory referendums particularly on debt issues reduce borrowing12. ed from their scope, directly15 or indirectly16.
We may wonder about this exclusion of the referendum and of the
7 .  Comp. article 40 of the French Constitution: “Private Members’ Bills and amendments
other instruments of direct democracy from the financial and fiscal is-
introduced by Members of Parliament shall not be admissible where their enactment
would result in either a diminution of public revenue or the creation or increase of any sues. Two arguments are mainly suggested that will be analysed: on the
public expenditure”.
8 .  Mainly and for instance: balanced budget, transparency. years”, op. cit., L. P. FELD, G. KIRCHGÄSSNER, “The political economy of direct legislation:
9 .  J. G. MATSUSAKA, “Fiscal effects of the voter initiative: evidence from the last 30 direct democracy and local decision-making”, Economic Policy, 16(33), 2001, p. 331-367.
years”, Journal of Political Economy, 103(3), 1995, p. 587–623. 13 .  J. BARTHELEMY, Valeur de la liberté et adaptation de la République, op. cit., p. 169.
10 .  J. G. MATSUSAKA, “The eclipse of legislatures: Direct democracy in the 21st century”, 14 .  J. M. BUCHANAN, Public Finance in Democratic Process. Fiscal Institutions and Indi-
Public Choice (2005) 124, p. 157-177. vidual Choice, The University of North Carolina Press, 1987, p. 109.
11 .  L. BLUME, J. MÜLLER, S. VOIGT, C. WOLF, “The economic effects of constitutions: 15 .  Cf. article 75 of the Italian Constitution concerning fiscal and budget acts.
replicating—and extending—Persson and Tabellini”, Public Choice (2009) 139: 197–225. 16 .  In France, art. 11 of the Constitution allows referendum on the economic policy of
12 .  J. G. MATSUSAKA, “Fiscal effects of the voter initiative: evidence from the last 30 the Nation, but the question is to determine whether it could include tax matters or not.

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one hand, the bigger the country, the costlier the democracy (2); on the becoming informed and of negotiating with other parties); external
other hand democratic decision-making requires a certain skill, knowl- costs arise when public decisions are harmful to a person’s interests.
edge and capacity to explain that it has been reserved for some and/or An optimal public choice process in this framework would minimize
according to a procedure of particular selection (3). the sum of the two costs. More specifically, being involved in the po-
litical system, tax-payers have a higher intrinsic motivation to pay
taxes20. In some cases, direct democracy could be linked to the ab-
sence of tax evasion, and therefore raises tax morale21. The difficulty
2  Costs and benefits of lies in the position of the cursor: when is direct democracy less ex-
(direct) democracy pensive than the representative one and conversely, when had rep-
resentative democracy better intervene? The cursor is even double
2.1. Democracy at all costs when telling the internal costs from the external ones on the one

S ome argue that democracy has a cost, in particular direct democ- hand, and direct democracy from representative democracy on the
racy17. Significantly, it is the “excessive” cost18 of the 2005 French other hand. One answer was given by Matsusaka22: “Direct democra-
referendum on the ratification of the Treaty establishing a Consti- cy is worse than representative democracy in terms of internal costs.
tution for Europe which was estimated: 130 millions Euros, approx- Direct democracy involves the entire population in the policymaking
imately 3 € per each registered voter. This sum covered the printing process, incurring large decision making costs […]. Direct democracy
and the routing of documents, the official campaign and the electoral outperforms representative democracy when it comes to external
operations, as well as secondary expenses: the credits of the Ministry costs. For one thing, representatives may not be fully accountable to
of Foreign Affairs for civil training, the financial efforts of the gov- their constituents (there may be agency problems, in modern jargon)
ernment as early as spring to contain the rise of the “no”. This is the and may choose policies that are harmful to many of them. […] The
Gordian knot: the parliamentary majority feared a popular negative conventional conclusion is that the internal cost of direct democracy
vote to the ratification of the Treaty which it had earlier approved. outweighs the external cost of representative democracy”.
The result was irrevocable and significant: the treaty had been rati- The estimation of the democratic cost is not a mere question of
fied by 92% of the Congress and rejected by 55% of the voters. What mathematical and economic calculus: it is related to the legitimacy of
would however have been the cost of the absence of democracy, in the political decision, which was damaged by the crisis suffered by the
other words of an unpopular legislation? It is a political cost, but an main author of this decision.
administrative one too (the reluctant implementation of unpopular
measures); an economic one (reluctance turning into opposition).
Although politically costly, this democratic expression could have 2.2. Efficiency of democracy through its legitimacy
presented benefits, in particular political ones. In other words, it is Sintomer picked several structural causes of the crisis of political rep-
a question of estimating the direct and indirect costs, as well as the resentation: its inability to face the socioeconomic crisis since the 70s;
external and internal ones. It is the Public Choice model19 : internal the political disconnection of the lower classes which take refuge in ab-
(or “decision-making”) costs are the time and effort that individuals stention or far-right politics; the crisis of the bureaucratic public action
expend when they participate in the public choice process (costs of
20 .  B. S. FREY, “A Constitution for knaves crowds out the civic virtues”, Economic Journal,
107, 1997, p. 1043-1053; Not just for the Money. An Economic Theory of the Personal Motiva-
17 .  J. M. BUCHANAN, G. TULLOCK, The Calculus of Consent: Logical Foundations of tion, Edward Elgar, Cheltenham, 1997.
Constitutional Democracy, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1962. 21 .  L. BLUME, J. MÜLLER, S. VOIGT, C. WOLF, “The economic effects of constitutions:
18 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, Guibert, Paris, 2006, p. 119. replicating—and extending—Persson and Tabellini”, op. cit.
19 .  J. M. BUCHANAN, G. TULLOCK, The Calculus of Consent, op. cit. 22 .  J. G. MATSUSAKA, “The eclipse of legislatures: Direct democracy in the 21st century”, op. cit.

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privatizing “public services [which] are less and less in the service of financial bills. “In the direct democracy system, there are as many elect-
the public”23; and internal causes of an elitist political system which is ed representatives as voters”32. But this is no more than going back to
not spared by corruption. Participative democracy would constitute an the foundations of democracy: “Good command takes its roots in good
answer, “in spite of” the limits it may also meet24. It would strengthen obedience, and the citizen’s “virtue consists exactly in knowing these
the legitimacy of the public decision by various aspects: by bringing two opposite faces of power”33. The turnover of public offices justified
the citizens closer to the political power, it would act as a lever to so- itself as far as the one who was ruling-dominating one day would be
cial justice; it would furthermore constitute an instrument of control ruled-dominated another34. That is why the local level could act more
of public action and political acknowledgment25. By taking several legal as a laboratory or “a do-it-yourself, allowing the national rules to adapt
forms, it would act as a psychological catalyst. When it comes to the than a space of democratic creativity” whereas “on a national scale, an-
referendum, it is sometimes argued that « the voters do not feel (or not other type of legitimacy [is] necessary”35.
so much) the sensation of frustration, of alienation which they might On the whole, the criticisms against direct democracy really aim at
feel at the second round of a classical election, when neither of the two democracy as such. Such an argument is not without danger: we could
candidates mirrors their aspirations”26. A popular initiative “would even then as well demonstrate that elections in the universal suffrage con-
more legitimize the development of associations” by giving to the peo- stitute an economically absurd method of appointing leaders36. Think
ple “a legal ability to express itself”, by allowing it to participate direct- of the financing of political life (parties, associations) and of elector-
ly to the elaboration of legal rule27. That is why performance shall not al campaigns in some States? Democracy has cost which is diversely
(only) be estimated by results28 to appreciate its success: participation appreciated among the various States. Besides, the particular cost of
allows all members to participate fully in the decision process and “in direct democracy is openly related to the access to information (and
turn, participating individuals appreciate the responsibility entrusted therefore the high information costs). More than information, the po-
to them”29. In this sense, legal rules are less constraints than tools allow- litical knowledge and skills could not be generalized: at least, this was
ing a more efficient action30. the main argument which consolidated for a long time representative
The financial field is a major target: if the law is the expression of the democracy to the detriment of the direct one, generally and in particu-
general will31, it is because it (also) aims at being applied to everyone. lar in the budgetary field.
The legitimacy of the political decision is all the more important when
the norm applies to the largest number. This is the case of budget and

23 .  Y. SINTOMER, Petite histoire de l’expérimentation démocratique, Tirage au sort et po-


litique d’Athènes à nos jours, La Découverte, Paris, 2011, p. 18 sqq.
24 .  L. BLONDIAUX, “La démocratie participative, sous conditions et malgré tout. Un plai-
doyer paradoxal en faveur de l’innovation démocratique”, Mouvements, 2007/2 n° 50, p. 118 sqq.
25 .  L. BLONDIAUX, “La démocratie participative, sous conditions et malgré tout. Un plai- 32 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 61. We put aside in this paper the problem of
doyer paradoxal en faveur de l’innovation démocratique”, op. cit.. the subjects of the referendum or direct democracy, but we have to take into account
the fact that the electoral body may vary (citizens-voters/tax payers). The electorate does
26 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 132. not always fit in with the one concerned by a political decision; either this one is more
27 .  Cf. S. RIALS in F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 135. restricted (only a part of a territory is implied), or it is larger (tax payers are also non-na-
28 .  J. M. BUCHANAN, The Economics and the Ethics of Constitutional Order, The Univer- tional). Therefore there is a difference between the one who applies the legal rule and the
sity of Michigan Press, 1991, p. 38. one who decides it (beyond the representatives).

29 .  N. B. MACINTOSH, “Participative Budgeting: For and Against”, Sonderheft 1/2003 I 33 .  ARISTOTLE, Politics, III, 4, 1277, §10.
Controlling & Management. 34 .  B. MANIN, Principes du gouvernement représentatif, Flammarion, Paris, 1996 (2008),
30 .  Cf. F. HAYEK, Droit, législation et liberté, Paris, PUF, 1980 (1973), p. 75. p. 41 sqq.

31 .  Cf. J.-J. ROUSSEAU and article VI of the Declaration of the Rights of the Man and the 35 .  Y. SINTOMER, Petite histoire de l’expérimentation démocratique, op. cit., p. 135.
Citizen. 36 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 120.

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3  Access to fiscal direct democracy organized and particularly composed assembly. Representation would
have allowed “the refining and enlarging of the public views by passing

T he classical picture by the defenders of representative democracy them through the medium of a chosen body of citizens whose wisdom
is that of “an ignorant, uneducated, unreasonable and passionate may best discern the true interest of the country, and whose patriotism
people, the easy prey of the demagogues and the flatterers”37. The ar- and love of justice will be least likely to sacrifice it to temporary or par-
guments which founded political representation in the 18th century do tial considerations”42. SIEYES justified representation on the basis of a
not take into account several factual data allowing a first incursion of sensible division of labour: once busy with their economic affairs, the
direct democracy into the financial and tax domain. citizens cannot all dedicate themselves completely to the public affairs;
that is why some of them will assume the latter. Criteria had to be given
to representation and were consecrated by texts: take for instance the
3.1. Fiscal contract revisited French Revolution with ability, virtues and talents43. In the budgetary
field, part of the doctrine is even more radical to deny any competence
It is sometimes argued that direct democracy creates deficits by allow-
to the people, to the ordinary citizen, to the non-professional politicians:
ing myopic voters to appropriate spending while cutting taxes38. Incom-
owing to the complexity of tax issues and their technical nature, the
petence is the main argument. It is necessary to go back to the concepts
people’s “ability” to vote a budget is strongly questioned44. But this same
for a short while. Competence is the legal basis of the action of public
doctrine paradoxically fears the people’s inability “to consent to the
authority. Power is the capacity to exercise the competence. It therefore
most necessary sacrifices”45 and owns that a Constitution which “has
completes the latter: “competence without power is inefficient. Power
pushed to the limits the respect for skills and the principle of technical-
without competence is illegal”39. The people is theoretically competent:
ity is also the least free”46.Yet, it was shown that this very people could
it is sovereign, its sovereignty is primary and determines other compe-
lead, by popular initiative, to the growth of public expenditure’ (supra).
tences. The budgetary authorization has a democratic basis. Democra-
During the revolution, the “abilities” referred to the “persons able,
cy being the people’s affair, the budgetary authorization should be the
by their education or position, to exercise political rights”47. In practice,
people’s direct affair. But the people in its unity cannot express itself. Its
politics was reserved to some, which confirmed Siéyès’s division of la-
unity would by the way be fiction, because it would essentially consist
bour and vindicated the necessary ability required by Madison. Today,
in the aggregation of several individual wills40. Public opinion at large
the inability argument seems old-fashioned in many practical various
“has no proper consistency”; “at the most” it has a “state of mind that
ways. Firstly, the representative system undergoes increasing direct
is a trend towards forming opinions”41. In order to exercise such com-
criticisms. Some aim in particular at the generated inequality: unequal
petence, representation was instituted: some exercise power for all, in
the name of all. We know the practical reasons: they are mainly geo-
graphical, the largest states cannot manage direct democracy. They are 42 .  J. MADISON, “Federalist 10”, Federalist papers, November 22, 1787.

therefore political too: the political decision may only be made by an 43 .  Comp. article VI of the 1789 French Declaration: “The Law is the expression of the
general will. All citizens have the right to take part, personally or through their repre-
sentatives, in its making. It must be the same for all, whether it protects or punishes. All
citizens, being equal in its eyes, shall be equally eligible to all high offices, public positions
37 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 61. and employments, according to their ability, and without other distinction than that of
38 .  J. G. MATSUSAKA, “The eclipse of legislatures: Direct democracy in the 21st cen- their virtues and talents”.
tury”, op. cit. 44 .  J. BARTHÉLÉMY, Le problème de la compétence dans la démocratie, op. cit., p. 27.
39 .  Cf. V. CONSTANTINESCO, Compétences et pouvoirs dans les communautés européennes: 45 .  Ibidem.
contribution à l’étude de la nature juridique des communautés, LGDJ, Paris, 1974, 492 p. 46 .  J. BARTHÉLÉMY, Le problème de la compétence dans la démocratie, op. cit., p. 75
40 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit. about the French Constitution of the Year VIII.
41 .  J. BARTHÉLÉMY, Le problème de la compétence dans la démocratie, Librairie Félix 47 .  Dictionary Littré, quoted by Y. SINTOMER, Petite histoire de l’expérimentation démo-
Alcan, Paris, 1918, p. 23. cratique, op. cit.

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access to public offices, unequal social conditions which are not all rep- tional debates on the online social networks), Iceland has demonstrated
resented, unequal access to the expression of the general will. The criti- that the people is involved in the decision making processes (legislative
cism of majoritarian rule and of elections, which representative democ- as well as constitutional) which are therefore not reserved to some po-
racy is structured by, is nothing new. Jean-Jacques Rousseau already litical professionals53. Even more in the financial and economic domains,
considered that the election process was only a short-lived expression Icelanders had been twice asked to have their say on the bank-saving
of the freedom of the people48. That is why, when defending the neces- plans (“Icesave agreements”) in an original way. Indeed the constitution
sary protection of the minorities, Kelsen justified the qualified majori- of Iceland includes resorting to a referendum procedure in order to set-
ty, “if possible unanimity”, considered by him “as guarantees for person- tle a conflict between the assembly and the president of the republic54.
al freedom”49. Kelsen adds that, “our modern democracies were forced If such a disposition aims at being applied to any act, it was dramatically
to forego unanimity”; yet “by contenting itself with decisions by the applied in economic and financial circumstances as voters twice reject-
majority, democracy gets along with a mere approximation of its pri- ed the proposals adopted by the parliament (in 2010 and 2011). The com-
mary ideal”50; “it is truly the absolute majority rule – unlike the qualified parative law argument widens its frontiers beyond Iceland: the people
majority one – which represents the major approximation of the con- has the right to intervene at various levels and on various matters. On
cept of freedom. The majority rule can only arise from it, and not – as budgetary issues for instance, the Irish have been the only ones to dis-
it wrongly does – from the idea of equality. No doubt the majority rule cuss the Treaty on Stability, Coordination and Governance in the Eco-
fully supposes that the equality of individual wills is taken for granted. nomic and Monetary Union (“fiscal compact”) whereas the people vote
But this equality is only an image; it does not mean that the wills or the would have been possible in other European States (France for example)
individuals may effectively be measured and added”51. that favoured parliamentary ratification. In the financial domain, the
Secondly, the criticism against the professionalization of the rep- people may also intervene, as in Italy in the financing of political parties
resentatives goes with the inner weakness of the representative sys- (1993); or more generally at the local level (Switzerland, California…). The
tem. They are no longer the traditional political professionals. Politics people may also intervene in the economic domain55 although this right
is nowadays less and less the business of a chosen few, in particular in is denied for the vote of some taxes or budget acts (for example Italy).
the economic domain. Representatives are submerged from all sides52 : The historical and political reasons of this general denial of direct and
specialists (economists) roam the corridors of Parliament. They take on participative democracy in the financial and budgetary domains are
various forms (individual experts, organisms, public institutions) and well-known. But this trend could nowadays be reversed, without basi-
different statuses (independents or linked to public authorities); but tax cally questioning the representative system.
payers and citizens have similar access to the economic and political in-
formation through various means of communication. From this point of
view, Iceland constitutes a particularly useful laboratory. By combining 3.2. Horizontal subsidiarity reformulated
various democratic instruments of participation (referendum, constitu- The representative system could even provide interesting food for
thought in order to reconsider democracy in general, and the partici-
48 .  J.-J ROUSSEAU, The social contract, book III, chap. 15: “The people of England regards pative one in particular, when it comes to taxes. The division of “polit-
itself as free; but it is grossly mistaken; it is free only during the election of members of
parliament; as soon as they are elected, slavery overtakes it, and it is nothing. The use it
makes of the short moments of liberty it enjoys shows indeed that it deserves to lose them”. 53 .  Election of 25 citizens without political affiliation among the 522 who presented their
candidacies, under the condition to be of age and to have collected the support of at least
49 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 19. 30 persons.
50 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 20. 54 .  Article 26 of the Constitution of Iceland.
51 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 21. 55 .  Cf. article 11 of the French Constitution which could be modified (according to a pos-
52 .  Besides, it was never asked to the parliaments to be experts. At least it is the argu- sible referendum in application of the article 89 of the Constitution) in order to extend
ment today held, in economic field. direct democracy in this field.

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ical” labour – together with the criteria of the abilities – could lay the question the ability (through their objectivity) of the media today to
foundations of representation at the expense of direct democracy. It is build up the sufficient framework for an enlightened public judgement
the same for the constitution (or not) of a popular jury which can also in view of the concentration of the main press companies57. But the role
fuel the debate. The laymen are indeed denied a judicial education be- of Parliament should also be reconsidered: it should no longer only be a
cause of their incompetence. To be a judge, it is argued, means complete representative, an authority of deliberation, but a cog in the democratic
training as well as acknowledged legal competence. Lack of knowledge machinery, a transmission channel of the political (and therefore eco-
is why some purely and simply reject the idea of the popular jury. But nomic) information, among others like associations. The latest trends
as in budgetary referendum in some States, exceptions often exist: pro- of current constitutionalism have not reinforced the Parliament’s role
fessional courts (in labour or business law), criminal jury… In criminal in the decision-making process but rather its role of control of the ex-
matters, the institution of the popular jury is an old story: the main ar- ecutive power by improving its information, in particular the financial
gument has been justice by someone’s peers. But in general, the popular one. This tendency deserves to be extended towards participative de-
jury is on the one hand a clear manifestation of the de-professional- mocracy. It is however related to the modalities of participative democ-
ization of justice; and on the other hand of the political decision-mak- racy and its institutional engineering.
ing process. The model of the criminal jury in particular consolidates Several issues must be taken into account, whether they are directly
a certain division of labour insofar as the professional judge brings to or indirectly connected to participative democracy. This means repre-
mind the boundaries of the law. Again, de-professionalization does not sentation should be reconsidered, so that it might better correspond to
necessarily imply destitution (of the judge or the representative). It is a its democratic basis and respond to its constant criticisms. The repre-
combination of both systems. The jury would even have an additional sentative principle has received an extreme solution: the prohibition of
virtue: an educational function. “The jury, which is the strongest path any imperative mandate. With the exception of the recall in some coun-
to people’s rule, is also the most effective way to teach it how to rule”56. tries, constituents may not give instructions to their representatives.
“Ignorance” is fought by way of an education, of a training, either from It was argued that as soon as they were elected, they would represent
the first age (as is the case of the participative budget in NY schools), one nation, one people, and not the portion of a bigger group. But most
or all along the citizen’s life (popular jury, local participative budget). democracies have given also to the representative a long term mandate
This can only be made possible by means of a true right to informa- (5 years for instance). Therefore, by the election, the voters give a free
tion (and protection) and therefore, to education. The latter must still hand to the representatives in order to manage public affairs. At the
be developed and organized. The former is already active thanks to most, the voters are called to other ballots (local, professional…) which
the expansion of social networks, new technologies and the Internet give them an opportunity to express their disagreement with the na-
in general. But it is far from being global and accessible to all, above tional representatives. Moreover, in the modern representative democ-
all in financial matters. The internet access and education are early in- racies, “mid-term” elections are the only opportunities for the voters to
struments, but they imply a subsidiary question: that of the source of express themselves. As a matter of fact, long before the existence of the
the information, and of the budgetary information. Who should pro- Internet, of new technologies and of new means of public participation
vide and analyse it? Information should be plural, and may be public as (such as social networks), the idea “that the people should come with
well as private. The right to information is therefore contingent to the some suggestions that would enable the Parliament to direct its legis-
acknowledgement of the pluralism of the media, of the freedom of the lative activity”58, has already been advanced. Among such suggestions,
press, and more globally of the right to free association (labour unions, some of which are implemented: shorter mandates – in order to secure
for instance). Pluralism is essential insofar as the contemporary press a better turnover of public offices and thus fight against the profes-
is increasingly dependent on private corporations. We may therefore

57 .  L. BLONDIAUX, “La démocratie participative, sous conditions et malgré tout…”, op. cit.
56 .  A. DE TOCQUEVILLE, De la démocratie en Amérique, I, 2, chap. VIII. 58 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 48.

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sionalization of politics – or links between the representatives and the collective interest. The question no longer deserves to be confined to
constituents, that is direct decision-making mechanisms that would the local level but to be brought to the national one. Even the supra-
not jeopardize the mandate of the former (otherwise the referendum national (European) level has jumped on this question61. The point is to
becomes a plebiscite). Another more institutional path consists in es- deal more globally and in new terms with the protection of the civil as
tablishing new places or modes of representation (and therefore of par- well as the economic rights, and to consider participative democracy
ticipation): depending on time, on places (States) and/or on the subjects as a potential lever of public finance, as a means to rebalance it. Partic-
concerned, professional (and socio-economic) representation is often ipative democracy is one solution to the repercussions of the economic
mentioned. Territories are usually consecrated through important in- and financial crisis on the taxpayers and the citizens, if not to the crisis
stitutions such as second parliamentary assemblies like the Senate, but itself. This is a new answer to an old question – of sovereignty, its bearer
it is time other bodies or places took into account the other interests and its modalities – but it brings a new light on political regimes. One
of individuals within the society59. If it is traditionally based on an eth- day maybe will their classification and definition depend on new vari-
nic group, a religion or gender in some cases, representation could also ables, and within the traditional executive-legislative-judicial trilogy of
be based on other categories and for instance take age into account: the division of powers will the participative democracy and its econom-
the least experienced would take part in the decision-making process ic implications become integrated.
under various modalities, like the most experienced, each one bringing
their own points of view or appreciation on a policy, a text or a project.
The shapes of participative democracy are many. But a material
common point consists in the repartition of competences between rep-
resentatives on the one hand and participative democracy institutions
on the other. A new sort of horizontal subsidiarity could base itself on
this repartition for participative democracy. It would indeed combine
representative and participative democracies by binding the latter to
certain fields of intervention, depending on time (space) and subjects.
The principle of representative democracy could be maintained while
laying out wider and more systematic spaces for the citizens’ interven-
tion in public decision60.
The evolution of economy makes it necessary to revise the process
of the political and obviously budgetary decision making. The global-
ization of economy and its new developments imply a reconsideration
of the traditional question about the way to deal with and build up the

59 .  Cf. article 2 of the Italian Constitution: “The Republic recognises and guarantees the
inviolable rights of the person, both as an individual and in the social groups where hu-
man personality is expressed […]”.
60 .  This distribution of the competences between the representatives and the people
could be modelled on the territorial distribution of the competences, often organized by
Constitutions or laws. Lists of subjects could be made. The popular consultation (or other
forms different from the parliamentary one) could be done in application of those com-
petences lists and/or on the initiative of some traditional institutions – like the executive
chief of the parliament’s speaker – or groups of persons – petition, popular initiative, cit- 61 .  Cf. the European citizens’ initiative at article 11 of the Treaty on European Union,
izen and representative initiative etc. since the Treaty of Lisbon.

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N N
21
O “CORONELISMO” E A DEMOCRACIA
BRASILEIRA: um breve ensaio reflexivo
sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre
o financiamento das campanhas
eleitorais, sob as luzes do magistério
doutrinário de Victor Nunes Leal.

Luís Carlos Martins Alves Jr.

Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da


evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos
maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de
outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública
nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplaudo de quantos an-
seiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos dema-
siadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em
conseqüência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo
às intenções mais nobres.
(VICTOR NUNES LEAL, Coronelismo, enxada e voto – o município e o regi-
me representativo no Brasil).1

INTRODUÇÃO

O presente texto (ensaio reflexivo) tem com objeto o processo e o jul-


gamento, perante o Supremo Tribunal Federal - STF, acerca da vali-
dade jurídica da Lei da “Ficha Limpa” (Lei Complementar n. 135, 4.6.2010),
que acrescentou preceitos normativos à Lei Complementar n. 64., de
18.5.1990, que estabeleceu condições mais rígidas para que o indivíduo
possa participar, como candidato, do processo eleitoral. Também é objeto
desta reflexão o processo que tramita no STF, nos autos da Ação Direta
de Inconstitucionalidade n. 4.650, que analisa a validade constitucional

1 .  LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo
no Brasil. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 239-240.

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N
do financiamento, pelas empresas privadas, das campanhas eleitorais. nho4, foi publicada em 1949, fruto de sua Tese para a cátedra de Ciência Po-
A finalidade do texto consiste em refletir sobre a crença brasileira lítica na Faculdade Nacional de Filosofia, obtida em 1948, que é tido como
no poder mágico das leis e das decisões judiciais, especialmente em ma- o primeiro trabalho moderno de ciência política produzido no Brasil.
téria constitucional eleitoral, segundo a qual modificações normativas Segundo Victor Nunes Leal, a compreensão dos fenômenos políti-
seriam suficientes e bastantes para mudar a realidade, sem embargo da cos nacionais necessitava de uma análise além dos textos normativos
teimosia dos fatos. A justificativa desta reflexão descansa no aspecto e das promessas jurídicas neles estampadas, pois nem sempre as leis
simbólico tanto da legislação questionada quanto dos julgamentos do conseguem domesticar a rebeldia dos fatos. Victor Nunes Leal fez um
STF, reveladores da tensão entre os princípios da soberania popular, da trabalho de realismo político e jurídico.
democracia, da liberdade, da república e da moralidade, pois a depender Com efeito, o conjunto de preceitos normativos e de práticas sociais
das concepções adotadas haverá o sacrifício de interesses, tanto indivi- e estatais que regulam o acesso, o funcionamento, a estrutura e a di-
duais quanto coletivos. nâmica do Poder é o que se denomina de direito político. 5 No Brasil,
As hipóteses levantadas são basicamente duas. A Lei da “Ficha Lim- em matéria eleitoral, têm-se os preceitos normativos contidos no tex-
pa” não foi uma vitória da sociedade, mas a demonstração de que o po- to da Constituição, nos textos das leis (ordinárias e complementares),
vo-eleitor brasileiro não é da confiança do Estado (legislador, adminis- nas resoluções e provimentos emanados dos tribunais eleitorais e nas
trador, julgador e demais órgãos e instituições estatais) nem de setores decisões judiciais em matéria constitucional eleitoral, especialmente as
organizados da sociedade civil (Igrejas, sindicatos, partidos políticos, en- produzidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais – TREs, Tribunal Supe-
tidades e corporações de classe, grande imprensa etc.). rior Eleitoral - TSE e Supremo Tribunal Federal - STF. Portanto, textos
A outra hipótese, no tocante ao financiamento privado de campa- normativos eleitorais brotam às mancheias.
nhas eleitorais, consiste na ideia de que excluir as empresas do processo O modelo brasileiro, em sede de justiça eleitoral, é constituído pelo
político eleitoral é medida antidemocrática e que vai na “contramão” de STF, TSE, TREs, juízes e juntas eleitorais. No Brasil, como é curial, a ple-
uma democracia que deixou de ser atomizada no indivíduo isolado e se tora normativa é gigantesca, e o direito, que deveria ser um instrumento
tornou uma complexa realidade que a todos interessa, tanto a indivídu- (tecnologia) normativo redutor de complexidades, se torna um elemen-
os como às corporações, sejam públicas ou privadas. to amplificador dessas complexidades.
Na construção deste ensaio, além da leitura dos textos normativos e A vida é difícil e complexa. O direito deveria ser fácil e simples. No mo-
das decisões judiciais, bem como das peças jurídicas contidas nos autos mento em que o sistema jurídico normativo se torna difícil e complexo,
dos processos que serão examinados, também se utilizará das categorias ele nega a sua essência e perde o seu sentido social. Em face dessa abun-
lançadas por Victor Nunes Leal no citado livro “Coronelismo, enxada e dância normativa (textos legais, decisões judiciais, práticas sociais etc.) e
voto: o município e o regime representativo no Brasil”, que demonstrou perspectivando que a realidade político-eleitoral é demasiadamente com-
que na experiência política nacional, a partir das eleições municipais, a plicada, é necessário discernir o que deve ser levado em consideração.
causa dos males políticos reside basicamente na miséria econômica do Portanto, não é minguado o “ordenamento jurídico normativo elei-
indivíduo eleitor e na imoralidade de políticos que se beneficiam dessa toral”. Não faltam leis para resolver os problemas políticos eleitorais
situação social, aproveitando-se dessa estrutura nociva aos interesses do brasileiros. A rigor, há um número excessivo e abundante de preceitos
Brasil, apesar de todas as leis moralizadoras das práticas eleitorais. normativos regulando o fenômeno político eleitoral, de modo que os
“Coronelismo...” será o farol a iluminar nesse percurso, pois essa obra, partícipes do processo político eleitoral necessitam gastar muito tem-
que já nasceu clássica (perene e atual), segundo o autorizado magistério de po e esforços com o sistema normativo, em vez de canalizarem energia
José Murilo de Carvalho2, Alberto Venâncio Filho3 e Barbosa Lima Sobri-

4 .  LIMA SOBRINHO, Barbosa. Prefácio à segunda edição. Coronelismo..., 1975.


2 .  CARVALHO, José Murilo. Prefácio à sétima edição. Coronelismo..., 2012. 5 .  COÊLHO, Marcus Vinícius Furtado. Direito eleitoral e processo eleitoral. 3ª ed. Rio de
3 .  VENÂNCIO FILHO, Alberto. Prefácio à terceira edição. Coronelismo..., 1997. Janeiro: Renovar, 2012.

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com o processo político eleitoral em si. Situação tipicamente brasileira.6 da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm con-
É facilmente perceptível o caráter ingênuo desse conjunto normati- seguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.
vo e legislativo. Essa ingenuidade (quase infantilidade) decorre de uma “Por isso mesmo, o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma
crença na força “mágica” ou “mística” das normas jurídicas. Com efeito, troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido,
no Brasil é forte no imaginário social e coletivo que a positivação de de- e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos se-
sejos e interesses nos textos normativos será suficiente para lhes tornar nhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem refe-
realidade. Em vez de se atacar e enfrentar as raízes sociais, econômicas, rência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das
culturais ou científicas dos problemas, criam-se leis e estatutos norma- manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.
tivos. O direito seria a solução mágica para todos os dramas da vida, Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são ali-
segundo essa visão ingênua e infantil.7 mentados pelo poder público, e isso se explica justamente em função do re-
Essa visão fantasiosa dos poderes metafísicos do direito leva à frustra- gime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescin-
ção de expectativas, pois a realidade fática, supercomplexa e difícil, não dir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável.
se rende facilmente aos encantos das “leis de papel”, como sucede com a Desse compromisso fundamental resultam as características se-
realidade política brasileira e a sua difícil relação com as leis eleitorais. cundárias do sistema ‘coronelista’, como sejam, entre outras, o man-
É sobre esse tema que passaremos a refletir. donismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos
serviços públicos locais”. (2012, pp. 43-44).
Uma das facetas do “coronelismo” consiste no voto de “cabresto”,
decorrência da extrema pobreza das massas rurais dominada pela
1  O “CORONELISMO” POLÍTICO opulência econômica do chefe político, que faz daquele dependente
desse (2012, p. 56). Logo, podemos inferir que a miséria econômica é a

N o último parágrafo de sua obra-prima, Victor Nunes Leal, modes-


tamente, revelou que não teve o propósito de apresentar soluções
para o problema do “coronelismo”, esforçando-se, apenas, para com-
causa das misérias políticas.
Outro aspecto que ensejou o “coronelismo” foi o aumento das despe-
sas eleitorais, com a ampliação substantiva do corpo eleitoral, constituí-
preender uma pequena parte dos males que afligem o Brasil e os brasilei-
do, em sua esmagadora maioria por eleitores necessitados (2012, p. 57). O
ros. Segundo ele, outros, mais capacitados, deveriam empreender a tare-
“coronel” encarna e personifica as melhorias públicas, as prestações dos
fa de indicar o remédio. Na posologia política nacional, vários remédios
serviços e a feitura de obras, pois, não raras vezes, graças ao seu empenho
foram prescritos, quase sempre por pessoas bem menos capacitadas que
e prestígio, é que essas melhorias alcançam a comunidade (2012, p. 58).
Victor Nunes Leal, para curar as enfermidades políticas e eleitorais.
Mas essa atuação do “coronel” tem uma fatura. Vários preços são
Mas o que era (é) o “coronelismo” para Victor Nunes Leal? A resposta do
pagos: o “paternalismo”, o “filhotismo” e o “mandonismo”. Aos amigos e
citado autor merece ser transcrita integralmente, nada obstante seja longa:
parentes, as benesses do poder e das leis. Aos adversários (inimigos) os
“Como indicação introdutória, devemos notar, desde logo, que concebemos
rigores da lei e as perseguições abusivas do poder (2012, p. 60).
o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas
Essa relação de reciprocidade (aos aliados os favores, aos adversá-
do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada.
rios os rigores) do chefe político municipal se repete nas relações com
Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia consti-
os chefes políticos estaduais e federais, pois o apoio do Estado, com o
tuiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma pecu-
“cofre das graças e o poder da desgraça”, faz com que o “coronel” consiga
liar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude
manter a sua predominância política. Cuide-se que os compromissos
têm uma ética especial, porquanto não são forjados na base de princí-
6 .  O Tribunal Superior Eleitoral tem uma publicação oficial intitulada “Código Eleitoral
pios políticos, mas em torno de coisas concretas, e prevalecem para uma
anotado e legislação complementar”, disponível na página virtual da Corte: www.tse.jus.br.
ou para poucas eleições (2012, pp. 61-63).
7 .  OLIVECRONA, Karl. Linguagem jurídica e realidade. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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N N
Essa dependência em relação ao poder do Estado decorre da fra- Sem receios, podemos dizer que quase 90% dos municípios brasilei-
queza financeira dos municípios. O município não tem autonomia ros sobrevivem graças às transferências de verbas federais e estaduais,
alguma. O “coronel” é governista, é situacionista. Ele não se sente à sem qualquer autonomia econômica e financeira. Quanto ao modelo
vontade “nem tem o direito de impor aos amigos o sacrifício da oposi- eleitoral, pode-se dizer que os candidatos, salvo honrosas exceções, à
ção”. O “coronel” deve ter à sua disposição a caneta para beneficiar os deputância estadual e federal não necessitam de sólidas bases político-
aliados e o porrete para fustigar os inimigos. Daí porque o maior mal -eleitorais, bastando ter dinheiro suficiente para suas eleições.9
que pode acontecer a um chefe político municipal é ter o governo do Mas, como dizia Victor Nunes Leal há quase 70 anos (2012, pp. 137-
Estado como adversário (2012, pp. 64-67). 139), o município é a peça básica das campanhas eleitorais no Brasil, pois
Eis a denúncia de Victor Nunes Leal (2012, p. 68): “A essência, portanto, do uma vez convocado o povo para as urnas, em uma estrutura agrária
compromisso ‘coronelista’ – salvo situações especiais que não constituem a como a brasileira, o “coronelismo” ressurgirá das próprias cinzas.
regra – consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio Victor Nunes Leal (2012, pp. 189-204) denuncia o papel da Polícia, do
aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da Ministério Público e do Judiciário na consolidação e fortalecimento do
situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o “coronelismo”, especialmente com as nomeações discricionárias e com
líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao municí- as promoções por merecimento que empolgam os carreiristas dessas
pio, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar”. instituições, “pois as garantias legais nem sempre podem suplantar as
Victor Nunes Leal (2012, pp. 70-71) faz contundente ataque à “autêntica fraquezas humanas”.
mistificação do regime representativo”, que segundo ele não representa a Victor Nunes Leal (2012, pp. 213-229), após apresentar as várias mo-
verdade social e política da Nação. Para ele, a “vista grossa” que os governos dificações eleitorais que visavam corrigir e melhorar o modelo repre-
estaduais sempre fizeram sobre a administração municipal, especialmen- sentativo brasileiro, revela que muitas delas foram baldas, pois não se
te em relação à corrupção, deixando de empregar sua influência política atacou a raiz do problema: a corrupção eleitoral e as misérias sociais
para moralizá-la, fazia parte do sistema de compromisso do “coronelismo”. e econômicas dos eleitores. O papel das leis não era forte o suficiente
Essa omissão (ou incentivo) ao descalabro governamental, por parte para enfrentar as realidades e necessidades materiais da vida. Segundo
das autoridades estaduais e federais, servia para livrar os pleitos muni- o citado autor, apesar dos esforços dos bem intencionados, não se con-
cipais dos riscos de uma derrota e predispunha o eleitorado em favor seguiu erradicar a manipulação dos votos pelos chefes políticos locais,
dos candidatos governistas, graças ao poder de coesão do governo, espe- especialmente do eleitor miserável das “grotas”, das zonas rurais.
cialmente junto ao eleitorado dos municípios rurais. (2012, p. 73). O autor faz uma crítica aos partidos políticos, que, segundo ele, não
Segundo Victor Nunes Leal (2012, p. 74) o “coronelismo” se assenta na passam de legendas ou rótulos destinados a atender às exigências téc-
fraqueza econômica do dono da terra, que se ilude com o prestígio do nico-jurídicas do processo eleitoral, à vista das múltiplas alianças para
poder, obtido à custa da submissão política, e na fraqueza econômica as eleições estaduais e municipais, reveladoras da ausência de progra-
dos eleitores rurais, que se encontram em situação quase sub-humana. mas e princípios ideológicos e políticos, garantidoras de um perene “ca-
Certeira essa crítica de Victor Nunes Leal. Com efeito, se observar- ciquismo” político, fundado na ignorância e no desamparo do trabalha-
mos a realidade brasileira atual, mesmo com a diminuição da população dor dependente dos favores dos poderosos (2012, p. 226).
rural e aumento dos centros urbanos, perceberemos que dois aspectos Nas suas considerações finais (2012, pp. 230-240), o autor assenta que
são relevantes para uma manutenção dessa dependência municipal em o “coronelismo” é um sistema que se alimenta na miséria social e econô-
face dos governos federal e estadual: a quantidade absurda de municí-
pios e o sistema eleitoral proporcional.8
9 .  Tomemos, à guisa de exemplo, o estado de Minas Gerais, com os seus 853 Municípios.
Nas eleições de 2010 teve candidato eleito com 40.093 votos para deputado federal e com
8 .  No Brasil há 5.570 Municípios. Logo são 5.570 Prefeitos e Vice-Prefeitos. 5.570 Câmaras 31.180 votos para deputado estadual. Para se eleger deputado federal bastava obter 47 vo-
de Vereadores, com no mínimo 9 Vereadores em cada uma delas. Informações obtidas tos por município e para se eleger deputado estadual bastava obter 37 votos por cidade.
junto ao IBGE: www.ibge.gov.br Informações obtidas junto ao TSE: www.tse.jus.br

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mica do eleitor, na necessidade de poder político do chefe local, também enfrentou a questão da aplicabilidade da Lei da “Ficha Limpa” para
ele fraco economicamente, e no acordo entre os chefes políticos esta- as eleições ocorridas no ano de 2010, ano de edição da referida Lei. No
duais e federais com os “coronéis” na garantia dos votos de cabresto. julgamento das ações concentradas de constitucionalidade (ADCs ns.
A solução apontada por Victor Nunes Leal consiste na independência 29 e 30, e ADI 4.578), o Tribunal enfrentou a questão da validade inte-
econômica, social, cultural e moral do eleitor. Para isso, seria necessá- gral da citada Lei da Ficha Limpa.
ria a mudança da estrutura social e econômica do Brasil, especialmente Na primeira ocasião, no julgamento do citado RE 630.14716, o Tribunal
com a urbanização e industrialização. não chegou a um consenso, pois 5 ministros (Ayres Britto, Cármen Lú-
Com absoluta razão Victor Nunes Leal. Indivíduos independentes e au- cia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie) votaram no
tônomos, com uma sociedade maior e mais forte que o Estado, inibiriam sentido da aplicabilidade imediata da Lei, enquanto outros 5 ministros
os políticos “coronelistas”. Logo, a melhor maneira de acabar com a pobre- (Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Pelu-
za dos eleitores consiste no aumento e na produção de riquezas para que so) votaram no sentido de que a Lei não poderia ser aplicada no mesmo
todos possam se beneficiar. A pobreza econômica e a miséria moral são as ano, em face do disposto no art. 16, CF, que preceitua que a lei que alterar
principais causas dos problemas sociais e políticos brasileiros. o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se
aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência.
No segundo julgamento, RE 631.10217 (caso Jáder), ainda com sua

2  A LEI DA “FICHA LIMPA”


Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Confederação Nacional das Profissões Liberais.
Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br.

O STF enfrentou o tema da validade normativa da Lei da “Ficha


Limpa” basicamente em quatro julgamentos. No Recurso Extraor-
dinário n. 630.14710 (caso Joaquim Roriz), no Recurso Extraordinário n.
16 .  EMENTA DO ACÓRDÃO: ACÓRDÃO – REDAÇÃO – ÓPTICA VENCIDA –PROCLAMA-
ÇÃO. Ante proclamação do redator na assentada de julgamento, fica em plano secundário
o fato de o designado haver ficado vencido em determinadas matérias, no que se tornaram
prejudicadas em face da perda de objeto do recurso. REPERCUSSÃO GERAL – CONFIGU-
631.10211 (caso Jader Barbalho), no Recurso Extraordinário n. 633.70312
RAÇÃO – PROCESSO ELEITORAL – LEI – RETROAÇÃO. Surge a repercutir, além dos muros
(caso Leonídio Bouças) e no julgamento das Ações Declaratórias de subjetivos do processo, controvérsia sobre aplicar-se lei que, de alguma forma, altere o
Constitucionalidade ns. 2913 e 3014 e da Ação Direta de Inconstitucio- processo eleitoral a certame realizado antes de decorrido um ano da respectiva edição,
presente ainda eficácia retroativa impugnada na origem. Considerações. CONTROLE
nalidade n. 4.57815. Nos referidos recursos extraordinários a Corte
DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE – RECURSO – CONHECIMENTO E JULGAMEN-
TO DE FUNDO. Na dicção da ilustrada maioria, descabe, mesmo que na apreciação de
fundo do recurso, adentrar a análise da harmonia, ou não, da lei – da qual se argui certo
10 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 630.147. Redator Minis- vício – com a Constituição Federal. Considerações. REGISTRO – CANDIDATURA – LEI DE
tro Marco Aurélio. Recorrentes: Joaquim Domingos Roriz e outros. Recorridos: Antonio REGÊNCIA – CONTROVÉRSIA – RENÚNCIA – PREJUÍZO DO EXAME. Vindo o candidato
Carlos de Andrade e outros. Informações: www.stf.jus.br. a renunciar à candidatura, acaba prejudicado o exame do recurso voltado ao deferimento.
11 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 631.102. Relator Minis- Informações: www.stf.jus.br.
tro Joaquim Barbosa. Recorrente: Jader Fontenele Barbalho. Recorrido: Ministério Públi- 17 .  EMENTA DO ACÓRDÃO: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO
co Eleitoral. Informações: www.stf.jus.br. GERAL RECONHECIDA. ART. 14, § 9º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE,
12 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 633.703. Relator Minis- PROBIDADE ADMINISTRATIVA E VIDA PREGRESSA. INELEGIBILIDADE. REGISTRO DE
tro Gilmar Mendes. Recorrente: Leonídio Henrique Correa Bouças. Recorrido: Ministério CANDIDATURA. LEI COMPLEMENTAR 135/2010. FICHA LIMPA. ALÍNEA K DO § 1º DO
Público Eleitoral. Informações: www.stf.jus.br. ART. 1º DA LEI COMPLEMENTAR 64/1990. RENÚNCIA AO MANDATO. EMPATE. MANU-
13 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 29. TENÇÃO DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. RECURSO DESPROVI-
Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Partido Popular Socialista. Requeridos: Presiden- DO. O recurso extraordinário trata da aplicação, às eleições de 2010, da Lei Complementar
te da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br. 135/2010, que alterou a Lei Complementar 64/1990 e nela incluiu novas causas de inelegibi-
lidade. Alega-se ofensa ao princípio da anterioridade ou da anualidade eleitoral, disposto
14 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 30. Re- no art. 16 da Constituição Federal. O recurso extraordinário objetiva, ainda, a declara-
lator Ministro Luiz Fux. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. ção de inconstitucionalidade da alínea k do § 1º do art. 1º da LC 64/1990, incluída pela LC
Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br. 135/2010, para que seja deferido o registro de candidatura do recorrente. Alega-se ofensa
15 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.578. ao princípio da irretroatividade das leis, da segurança jurídica e da presunção de inocên-

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composição incompleta, a Corte, em face da repetição do empate, resol- Bouças), o Tribunal, com sua composição plena, por 6 votos a 5, tendo
vendo questão de ordem, decidiu aplicar analogicamente o seu Regi- em vista o voto de desempate do Ministro Luiz Fux, decidiu que a Lei
mento Interno (art. 205, parágrafo único, II), e decidiu pela manutenção da “Ficha Limpa” não se aplicaria nas eleições ocorridas no mesmo ano
do ato normativo impugnado, no caso, a decisão recorrida emanada de sua edição (2010), em face do citado artigo 16, CF.
do Tribunal Superior Eleitoral que determinou a aplicação da Lei da A corrente vencida, composta dos referidos 5 ministros, defendia o
“Ficha Limpa” em relação ao candidato Jader Barbalho, de modo que afastamento do referido artigo 16, CF, sob o argumento de que a lei não
ele não poderia se candidatar e, uma vez candidato, não poderia tomar alterava o processo eleitoral, pois cuidava apenas de condições de ele-
posse, pois os votos que lhe foram dirigidos deveriam ser anulados. gibilidade e o fazia com apoio no § 9º, art. 14, CF, que preceitua que Lei
Na terceira oportunidade, nos autos do RE 633.70318 (caso Leonídio complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidades e os pra-
zos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a
moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa
cia, bem como contrariedade ao art. 14, § 9º da Constituição, em razão do alegado desres-
peito aos pressupostos que autorizariam a criação de novas hipóteses de inelegibilidade. do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a in-
Verificado o empate no julgamento do recurso, a Corte decidiu aplicar, por analogia, o art. fluência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo
205, parágrafo único, inciso II, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, para
ou emprego na administração direta ou indireta.
manter a decisão impugnada, proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral. Recurso despro-
vido. Decisão por maioria. Informações: www.stf.jus.br. Ante esse quadro de instabilidade normativa e jurisprudencial, o Tri-
18 .  EMENTA DO ACÓRDÃO: LEI COMPLEMENTAR 135/2010, DENOMINADA LEI DA bunal foi instado a se manifestar, definitivamente, acerca desse aludido
FICHA LIMPA. INAPLICABILIDADE ÀS ELEIÇÕES GERAIS 2010. PRINCÍPIO DA ANTE- diploma legislativo nos autos das citadas ações constitucionais concen-
RIORIDADE ELEITORAL (ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). I. O PRINCÍPIO
tradas e abstratas (ADI n. 4.578 e ADCs ns. 29 e 30) 19.
DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candida-
tos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que
conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. III. O PRINCÍPIO DA
que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, es- ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS E
sas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA DEMOCRACIA. O princípio da ante-
estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao subme- rioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar
ter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões
fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. de conveniência da maioria, o Poder Legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo,
Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do pro- as regras e critérios que regerão o processo eleitoral. A aplicação do princípio da anterio-
cesso eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com ridade não depende de considerações sobre a moralidade da legislação. O art. 16 é uma
a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria, e dessa forma deve ser aplicado por
das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente esta Corte. A proteção das minorias parlamentares exige reflexão acerca do papel da Ju-
entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo risdição Constitucional nessa tarefa. A Jurisdição Constitucional cumpre a sua função
político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria quando aplica rigorosamente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de
filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que moralidade, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição, pois
trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das conven- essa norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação
ções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação sempre ameaçadora da maioria. IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PRO-
de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Su- VIDO. Recurso extraordinário conhecido para: a) reconhecer a repercussão geral da ques-
perior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das tão constitucional atinente à aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010, em face
eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas do princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da Constituição), de modo a permitir aos
regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso. II. O PRINCÍPIO DA AN- Tribunais e Turmas Recursais do país a adoção dos procedimentos relacionados ao exercí-
TERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DE cio de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que
CHANCES. Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer restrição as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. b) dar
legal à elegibilidade do cidadão constitui uma limitação da igualdade de oportunidades provimento ao recurso, fixando a não aplicabilidade da Lei Complementar n° 135/2010 às
na competição eleitoral. Não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja eleições gerais de 2010. Informações: www.stf.jus.br.
a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberda- 19 .  EMENTAS DOS ACÓRDÃOS: AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDA-
de para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fun- DE E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM JULGAMENTO CONJUNTO.
damentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações no sistema eleitoral LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10. HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 9º, DA

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N N
A Corte, por maioria, chancelou integralmente a validade da citada
Lei da “Ficha Limpa”, excetuando-se, apenas, em sua aplicabilidade para
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATOS ELETI-
as eleições de 2010, conforme o referido precedente do RE 633.703.
VOS. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À IRRETROATIVIDADE DAS LEIS: AGRAVAMENTO
DO REGIME JURÍDICO ELEITORAL. ILEGITIMIDADE DA EXPECTATIVA DO INDIVÍDUO Todos esses julgamentos foram marcados por grande expectativa,
ENQUADRADO NAS HIPÓTESES LEGAIS DE INELEGIBILIDADE. PRESUNÇÃO DE INO- pois a citada Lei da Ficha Limpa, conquanto tenha nascido formalmen-
CÊNCIA (ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL): EXEGESE ANÁLOGA À REDUÇÃO
te de um projeto de lei de autoria do Poder Executivo (PLP n. 168/1993)
TELEOLÓGICA, PARA LIMITAR SUA APLICABILIDADE AOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO
PENAL. ATENDIMENTO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONA-
20
, foi materialmente provocado por força de uma intensa campanha
LIDADE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: FIDELIDADE POLÍTICA AOS de mobilização popular, capitaneada pelo Movimento de Combate à
CIDADÃOS. VIDA PREGRESSA: CONCEITO JURÍDICO INDETERMINADO. PRESTÍGIO
Corrupção Eleitoral – MCCE, pela Conferência Nacional dos Bispos do
DA SOLUÇÃO LEGISLATIVA NO PREENCHIMENTO DO CONCEITO. CONSTITUCIONA-
LIDADE DA LEI. AFASTAMENTO DE SUA INCIDÊNCIA PARA AS ELEIÇÕES JÁ OCORRI- Brasil – CNBB, pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e várias
DAS EM 2010 E AS ANTERIORES, BEM COMO E PARA OS MANDATOS EM CURSO. 1. A outras entidades da sociedade civil organizada, que obtiveram a subs-
elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal com-
crição de quase 1.600.000 (um milhão e seiscentos mil) eleitores, como
plementar – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº
135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade projeto de iniciativa popular. 21
vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito ad-
quirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic
prejuízo das situações políticas ativas. 9. O cognominado desacordo moral razoável impõe
stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz
o prestígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do con-
a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito). 2. A razoabili-
ceito jurídico indeterminado de vida pregressa, constante do art. 14, § 9.º, da Constituição
dade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigên-
Federal. 10. O abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibilidade dos detentores de
cia constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada
mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibi-
em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício
lidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o art. 55, § 4º,
da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da per-
da Constituição Federal e o art. 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta
da de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever
transposição dos limites da boa-fé. 11. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos
ético-profissional. 3. A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição
§§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja
Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodolo-
verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer,
gia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua
e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos, cujas hipóteses são pre-
própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal
vistas no art. 15 da Constituição da República, e que importa restrição não apenas ao di-
(que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilida-
reito de concorrer a cargos eletivos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius su-
de), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.
fragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade
4. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação
e a suspensão de direitos políticos. 12. A extensão da inelegibilidade por oito anos após o
de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na
cumprimento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionali-
existência de consenso básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a exten-
dade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado,
são da presunção de inocência para o âmbito eleitoral. 5. O direito político passivo (ius
cumprindo, mediante interpretação conforme a Constituição, deduzir do prazo posterior
honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser
ao cumprimento da pena o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o
consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigência constitucional da razoabili-
trânsito em julgado. 13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga impro-
dade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social, sob os enfoques da violação
cedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes,
à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder
mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituídas
político. 6. O princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela Lei Complementar nº
pelas alíneas “c”, “d”, “f”, “g”, “h”, “j”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complemen-
135/10, na medida em que: (i) atende aos fins moralizadores a que se destina; (ii) estabelece
tar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, vencido o Relator em parte
requisitos qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de
mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração,
candidatar-se a cargo público eletivo que não supera os benefícios socialmente desejados
do prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo
em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus publico. 7. O exer-
de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado. 14. Inaplicabi-
cício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos), em um juízo de ponderação
lidade das hipóteses de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os
no caso das inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 135/10, opõe-se à própria
mandatos em curso, à luz do disposto no art. 16 da Constituição. Precedente: RE 633.703,
democracia, que pressupõe a fidelidade política da atuação dos representantes populares.
Rel. Min. GILMAR MENDES (repercussão geral). Informações: www.stf.jus.br.
8. A Lei Complementar nº 135/10 também não fere o núcleo essencial dos direitos políticos,
na medida em que estabelece restrições temporárias aos direitos políticos passivos, sem 20 .  Informações: www.camara.gov.br.
21 .  MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL - MCCE. Informações:
www.mcce.org.br.

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Para muitos, inclusive para vários Ministros do STF, a quantidade Essas preocupações estiveram presentes nas ideias inspiradoras dos
de assinaturas é um elemento relevante. Mas esse número de assina- “Federalistas” (James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) 23 quan-
turas não é tão impressionante assim, pois no Brasil há quase 130 mi- do defenderam que as leis republicanas deveriam servir de proteção em
lhões de eleitores, de modo que apenas 1,23% dos eleitores brasileiros face das paixões irracionais do povo, próprio das democracias. Era preci-
manifestaram, por escrito, sua adesão e preocupação com a “limpeza” so encontrar um ponto ótimo de equilíbrio entre a “emoção” democrática
do processo eleitoral. Assim, os grandes entusiastas desse “projeto de e a “razão” republicana. Eis perene advertência dos “Federalistas” (Artigo
lei” eram as entidades organizadoras e a grande imprensa, pois a es- 51): “A grande garantia contra uma concentração gradual dos vários po-
magadora maioria dos brasileiros (98,77%) não estavam interessados deres no mesmo braço, porém, consiste em dar aos que administram cada
nesse pleito político-legislativo. poder os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para
Nada obstante, essa mobilização popular impressionou a vários mi- resistir aos abusos dos outros. As medidas de defesa devem, neste caso
nistros da Corte, pois em alguns deles, em suas manifestações, mencio- como em todos os outros, ser proporcionais ao perigo de ataque. A am-
naram esse fato de que 1 milhão e 600 mil eleitores subscreveram inicia- bição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve
tiva popular. Mas vejamos a curiosidade dos números. estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo. Talvez não seja li-
O candidato ao senado Jader Barbalho, que foi inicialmente alcan- sonjeiro para a natureza humana considera que tais estratagemas pode-
çado pela Lei da “Ficha Limpa”, obteve, segundo informações do TSE22, riam ser necessários para o controle dos abusos do governo. Mas o que é
1.799.762 votos, quase 200 mil “chancelas” superiores à citada Lei da “Fi- o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os
cha Limpa”. Evidentemente que os votos não anulam as leis, mas se o homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens
número de apoiadores de uma lei é relevante no julgamento, como su- fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles ex-
cedeu com a “Ficha Limpa”, o número de votos obtidos pelos alvos da ternos nem internos. Ao moldar um governo que deve ser exercido por ho-
citada Lei também deveria ser levado em consideração. mens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: é preciso primeiro
Fenômeno similar ocorreu com a candidatura de Joaquim Roriz para capacitar o governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a
governador do Distrito Federal. O eleitor do Distrito Federal foi priva- se controlar a si próprio. A dependência para com o povo é, sem dúvida, o
do do direito de votar (ou de não votar) no candidato Joaquim Roriz. O controle primordial sobre o governo, mas a experiência ensinou à huma-
povo/eleitor candango não pode, ele mesmo, escolher se queria Roriz ou nidade que precauções auxiliares são necessárias”. (1993, p. 350).
outro candidato. A Justiça Eleitoral decidiu pelo povo. Nas democracias, Tenha-se que o STF, no julgamento da Ficha Limpa, afastou jurispru-
ninguém tem o direito de decidir pelo povo/eleitor. dência confirmada no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Cuide-se que a OAB, Ministério Público, Defensoria Pública, Advoca- Preceito Fundamental n. 14424. Nesse julgamento, a Corte entendeu que
cia Pública, Poder Judiciário, imprensa, igreja, não são representantes
do povo/eleitor. Não obstante sejam importantes instituições sociais e
23 .  MADISON, James e outros. Os Artigos Federalistas. Tradução de Maria Luiza Borges.
estatais, essas instituições não são as porta-vozes da Nação. O povo fala Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
pelo voto, como eleitor, ou se manifesta pelas ruas, como cidadão. 24 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fun-
Em que pese esse caráter antidemocrático da Lei da “Ficha Limpa” e damental n. 144. Relator Ministro Celso de Mello. Arguente: Associação dos Magistrados
Brasileiros. Arguido: Tribunal Superior Eleitoral. EMENTA DO ACÓRDÃO: ARGÜIÇÃO DE
das decisões judiciais que excluem candidatos do processo eleitoral, há
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - POSSIBILIDADE DE MINISTROS
indubitável aspecto republicano nessas medidas. É que a República é DO STF, COM ASSENTO NO TSE, PARTICIPAREM DO JULGAMENTO DA ADPF - INO-
o “filtro” da Democracia. A República, por meio das leis e decisões judi- CORRÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE PROCESSUAL, AINDA QUE O PRESIDENTE DO
TSE HAJA PRESTADO INFORMAÇÕES NA CAUSA - RECONHECIMENTO DA LEGITIMI-
ciais, condiciona o poder soberano do povo, de modo a torná-lo racional,
DADE ATIVA “AD CAUSAM” DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - EXIS-
refreando-se as paixões das massas. É um aparente paradoxo. TÊNCIA, QUANTO A ELA, DO VÍNCULO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA - ADMISSIBILIDA-
DE DO AJUIZAMENTO DE ADPF CONTRA INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DE QUE POSSA
RESULTAR LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL - EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA
22 .  BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Informações: www.tse.jus.br. RELEVANTE NA ESPÉCIE, AINDA QUE NECESSÁRIA SUA DEMONSTRAÇÃO APENAS

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N N
somente decisão transitada em julgado teria força para impedir o direi-
to de pessoa condenada, mas sem o trânsito em julgado, tivesse o direito
NAS ARGÜIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE CARÁTER INCIDENTAL - OBSERVÂNCIA,
de postular cargo eletivo.
AINDA, NO CASO, DO POSTULADO DA SUBSIDIARIEDADE - MÉRITO: RELAÇÃO EN-
TRE PROCESSOS JUDICIAIS, SEM QUE NELES HAJA CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL, E Com efeito, à luz das leis e das decisões judiciais, pode-se inferir
O EXERCÍCIO, PELO CIDADÃO, DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA - REGISTRO DE que o Estado não confia no eleitor (povo). O Estado, via suas institui-
CANDIDATO CONTRA QUEM FORAM INSTAURADOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS,
ções, órgãos e agentes, e parcela da sociedade civil organizada (OAB,
NOTADAMENTE AQUELES DE NATUREZA CRIMINAL, EM CUJO ÂMBITO AINDA NÃO
EXISTA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO - IMPOSSIBILIDA- partidos políticos, igrejas, sindicatos, imprensa, organizações não-go-
DE CONSTITUCIONAL DE DEFINIR-SE, COMO CAUSA DE INELEGIBILIDADE, A MERA vernamentais etc.) também não confia no discernimento do eleitor.
INSTAURAÇÃO, CONTRA O CANDIDATO, DE PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, QUANDO
O eleitor, para essas instituições e pessoas, não sabe votar. Vota mal.
INOCORRENTE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO - PROBIDADE
ADMINISTRATIVA, MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DO MANDATO ELETIVO, “VITA Escolhe os piores candidatos. É preciso vigiar o povo/eleitor. Ele não é
ANTEACTA” E PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - SUSPENSÃO DE DI- de confiança. É preciso escolher antes em quem o eleitor pode votar
REITOS POLÍTICOS E IMPRESCINDIBILIDADE, PARA ESSE EFEITO, DO TRÂNSITO EM
ou deixar de votar. Essas instituições se apresentam como “superego
JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL (CF, ART. 15, III) - REAÇÃO, NO PONTO, DA
CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988 À ORDEM AUTORITÁRIA QUE PREVALECEU freudiano” da sociedade.
SOB O REGIME MILITAR - CARÁTER AUTOCRÁTICO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDA- Todavia, democracia é uma experiência de tentativas, erros e acer-
DE FUNDADA NA LEI COMPLEMENTAR Nº 5/70 (ART. 1º, I, “N”), QUE TORNAVA INELE-
tos. A experiência de se substituir ao povo já foi exercida várias vezes,
GÍVEL QUALQUER RÉU CONTRA QUEM FOSSE RECEBIDA DENÚNCIA POR SUPOSTA
PRÁTICA DE DETERMINADOS ILÍCITOS PENAIS - DERROGAÇÃO DESSA CLÁUSULA e nunca funcionou bem para o povo. Daí porque atribuir-se a Winston
PELO PRÓPRIO REGIME MILITAR (LEI COMPLEMENTAR Nº 42/82), QUE PASSOU A Churchill o dito segundo o qual a “democracia é pior forma de governo
EXIGIR, PARA FINS DE INELEGIBILIDADE DO CANDIDATO, A EXISTÊNCIA, CONTRA
imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”.
ELE, DE CONDENAÇÃO PENAL POR DETERMINADOS DELITOS - ENTENDIMENTO DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O ALCANCE DA LC Nº 42/82: NECESSIDADE Nessa perspectiva, a Lei da Ficha Limpa, chancelada pelo STF, e ce-
DE QUE SE ACHASSE CONFIGURADO O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO lebrada por muitos como uma vitória da sociedade e da democracia,25
(RE 99.069/BA, REL. MIN. OSCAR CORRÊA) - PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INO-
pode ser vista, na verdade, como remédio de uma sintomática doença
CÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA - EVOLU-
ÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA - O do eleitor que não sabe votar. Ela revela a desconfiança do Estado em
TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES relação ao discernimento do eleitor. Ao invés de uma vitória, foi uma
INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CA-
derrota do povo, pois um eleitorado que necessita de uma lei para di-
RÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL - O PROCESSO PENAL COMO
DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE zer que não deve votar em candidatos “sujos” é um eleitorado incapaz.
INOCÊNCIA - EFICÁCIA IRRADIANTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - POSSIBILIDA-
DE DE EXTENSÃO DESSE PRINCÍPIO AO ÂMBITO DO PROCESSO ELEITORAL - HIPÓTE-
SES DE INELEGIBILIDADE - ENUMERAÇÃO EM ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART.
14, §§ 4º A 8º) - RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO
NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR “OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE” - NE-
CESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI
COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) - IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLE-
MENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR
A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR
FUNDAMENTAL, VERDADEIRO “CORNERSTONE” EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA
QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDA-
DES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA - PRIVAÇÃO DA NA LC 64/90 (ART. 1º, I, “G”) - NOVA INTERPRETAÇÃO QUE REFORÇA A EXIGÊN-
DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL, POR IM- CIA ÉTICO-JURÍDICA DE PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE MORALIDADE PARA O
PROBIDADE ADMINISTRATIVA - NECESSIDADE, TAMBÉM EM TAL HIPÓTESE, DE CON- EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO - ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEI-
DENAÇÃO IRRECORRÍVEL - COMPATIBILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 (ART. 20, “CAPUT”) TO FUNDAMENTAL JULGADA IMPROCEDENTE, EM DECISÃO REVESTIDA DE EFEITO
COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, c/c O ART. 37, § 4º) - O SIGNIFICADO PO- VINCULANTE. Informações: www.stf.jus.br.
LÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA - RELEITURA, PELO 25 .  CAVALCANTE JUNIOR, Ophir e outro. Ficha Limpa: a vitória da sociedade – breves
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, DA SÚMULA 01/TSE, COM O OBJETIVO DE INIBIR comentários à Lei Complementar n. 135/2010. Prefácio Senador Demóstenes Torres. Brasí-
O AFASTAMENTO INDISCRIMINADO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDA- lia: OAB, Conselho Federal, 2010.

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N N
3  O FINANCIAMENTO DAS Nessa aludida ADI requer-se, em suma, que o STF declare inconsti-
tucionais as leis e provimentos normativos que permitam a doação por
CAMPANHAS ELEITORAIS pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e aos partidos políticos, e que
seja determinado aos Poderes competentes a edição de atos normativos

O STF, nos autos da ADI 4.65026, proposta pelo Conselho Federal da


OAB, julgará a validade constitucional do financiamento privado,
feito por empresas ou pessoas jurídicas de direito privado, às campa-
reguladores das doações feitas por pessoas físicas. A premissa da OAB
consiste na tese segundo a qual a participação das pessoas jurídicas, via
financiamento econômico, no processo eleitoral é inadmissível e que as
nhas eleitorais. O tema é sensível e relevante, razão pela qual o relator doações privadas viciam o processo eleitoral. Segundo a OAB, essa in-
Ministro Luiz Fux convocou audiências públicas para amplo debate da tervenção das pessoas jurídicas no pleito eleitoral viola os princípios
questão constitucional controvertida. 27 constitucionais da igualdade, da democracia, da república, da moralida-
de e da vedação do abuso de poder econômico
26 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.650. Re- A PGR opinou favoravelmente ao postulado pela OAB. O Presiden-
querente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requeridos: Presidente da te da República, o Congresso Nacional e a Advocacia-Geral da União se
República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Luiz Fux. Informações: www.stf.jus.br.
manifestaram em sentido contrário ao postulado pela OAB, sob o fun-
27 .  DESPACHO DO MINISTRO RELATOR: FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEI-
TORAIS. MODELO NORMATIVO VIGENTE. LEIS Nº 9.096/95 e Nº 9.504/97. DESIGNAÇÃO
DE AUDIÊNCIA PÚBLICA NOS DIAS 17/06 E 24/06 DO ANO CORRENTE. DIVULGAÇÃO trapassa os limites do estritamente jurídico, vez que demanda para o seu deslinde aborda-
DE PRETENDENTES A FIGURAREM COMO EXPOSITORES. Despacho: Trata-se de Ação gem interdisciplinar da matéria, atenta às nuances dos fatores econômicos na dinâmica
de Direta de Inconstitucionalidade, com pedido cautelar, ajuizada pelo Conselho Federal do processo eleitoral e às repercussões práticas deste modelo normativo de financiamento
da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, contra diversas disposições da Lei nº 9.504/97 das campanhas em vigor para o adequado funcionamento das instituições democráticas.
(Lei das Eleições) e da Lei nº 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), que, ao possi- Segundo levantamento feito na base de dados do sítio eletrônico do Tribunal Superior Elei-
bilitarem doações financeiras por pessoas naturais e jurídicas a campanhas eleitorais e a toral, candidatos a prefeitos e vereadores, comitês eleitorais e partidos políticos arrecada-
partidos políticos, teriam contrariado os princípios da isonomia (CRFB/88, art. 5º, caput, ram, apenas no primeiro turno, mais de R$ 3,5 bilhões com doações para suas campanhas
e art. 14), democrático, republicano e da proporcionalidade, na sua dimensão de vedação das eleições em 2012. Tais números evidenciam que a discussão concernente ao financia-
à proteção insuficiente (“Untermassverbot”). Em linhas gerais, o Requerente alega que o mento das campanhas situa-se nos estreitos limites dos subsistemas econômico e político,
arcabouço normativo impugnado maximiza os vícios da dinâmica do processo eleitoral impactando diretamente no funcionamento das instituições democráticas. Considera-
que, na atual quadra histórica, se caracteriza por uma intolerável dependência da política se, assim, valiosa e necessária a realização de Audiência Pública acerca dos temas contro-
em relação ao poder econômico. Para o Conselho Federal da OAB, um desenho institucional vertidos nesta ação, de sorte que a Suprema Corte possa ser municiada de informações im-
como o vigente subverte a lógica do processo eleitoral, gerando uma assimetria entre seus prescindíveis para o melhor equacionamento do feito, e, especialmente, para que o futuro
participantes, porquanto exclui ipso facto cidadãos que não disponham de recursos para pronunciamento judicial se revista de maior legitimidade democrática. A oitiva de espe-
disputar em igualdade de condições com aqueles que injetem em suas campanhas vultosas cialistas, cientistas políticos, juristas, membros da classe política e entidades da sociedade
quantias financeiras, seja por conta própria, seja por captação de doadores. Por outro lado, civil organizada não se destina a colher interpretações jurídicas dos textos constitucional
a proeminência do aspecto econômico, como condicionante do (in)sucesso nas eleições, ou legal, mas sim a trazer para a discussão alguns pontos relevantes dos pontos de vis-
cria, segundo alega o Requerente, um ambiente vulnerável à formação de pactos pouco re- ta econômico, político, social e cultural acerca do financiamento vigente, em especial por
publicanos entre candidatos e financiadores de campanha, em especial durante o exercício meio de estudos estatísticos e/ou empíricos. As audiências públicas serão realizadas nos
dos mandatos eletivos, ocasião em que surgiriam atos de corrupção e favorecimentos aos dias 17 e 24 de junho de 2013, tendo cada expositor o tempo de quinze minutos, viabilizada
doadores. Outro problema diagnosticado pelo Conselho Federal da OAB reside na débil ca- a juntada de memoriais. Os interessados, pessoas jurídicas com ou sem fins lucrativos,
pacidade dos limites ao financiamento privado de campanhas previsto na legislação pátria mas de adequada representatividade, e pessoas físicas de notório conhecimento nas áreas
atual para impedir essa cooptação, que potencializa esse cenário já conspurcado. envolvidas, poderão manifestar seu desejo de participar e de indicar expositores na futura
Diante disso, postula o Requerente a modificação do marco normativo vigente, com o Audiência Pública até às 20h do dia 10 de maio de 2013. Os requerimentos de participação
propósito de impedir que as desigualdades econômicas existentes na sociedade conver- deverão ser encaminhados EXCLUSIVAMENTE para o endereço de e-mail financiamento-
tam-se, agora de forma institucionalizada, em desigualdade política. Contudo, ante a decampanhas@stf.jus.br até o referido prazo. Solicite-se, nos termos do art. 154, parágrafo
possibilidade de se criar uma “lacuna jurídica ameaçadora”, em caso de declaração da in- único, inciso I, do Regimento Interno do STF, a divulgação, no sítio desta Corte, bem como
constitucionalidade dos critérios de doação vigentes, pugna pela modulação dos efeitos, através da assessoria de imprensa do tribunal, da abertura de prazo, até o dia 10 de maio
exortando a atuação do Poder Legislativo para, no prazo máximo de 18 (dezoito) meses, de 2013, para o requerimento de participação nas Audiências Públicas a serem oportuna-
elaborar o regramento constitucionalmente adequado acerca do financiamento privados mente realizadas. À Secretaria para que providencie a elaboração de Edital de Convocação
das campanhas eleitorais, atribuindo-se ao Tribunal Superior Eleitoral a regulamentação para a presente Audiência Pública. Após, deem ciência do teor desta decisão ao Procura-
provisória da matéria. Como visto, a temática versada nesta ação reclama análise que ul- dor-Geral da República e aos demais integrantes da Corte. Informações: www.stf.jus.br.

388 389
N N
damento de que não há incompatibilidade entre as normas impugna- O outro candidato promete o oposto. Que irá reduzir o papel do Estado
das e o texto constitucional. Há vários “amici curiae” no feito. Alguns nas atividades econômicas e que irá incentivar o desenvolvimento na-
defendem a reivindicação da OAB. Outros entendem que a ação deve cional por meio de incentivos e estímulos à iniciativa privada, por meio
ter o pedido julgado improcedente. de um ambiente seguro para os negócios. Indaga-se: as empresas não
A postulação da OAB, sem embargo da respeitabilidade dos funda- teriam interesse no resultado do pleito? Deveriam ser proibidas de fi-
mentos e da sinceridade de propósitos, e conquanto tenha condições nanciarem o candidato que defendesse o seu interesse?
de ser acolhida pelo STF, não é juridicamente amparada nem é politica- Há mais. Na luta das oposições contra a situação se faz necessário
mente desejável. Não é juridicamente sustentável porque a Constitui- o aporte de contribuições. A situação, dominante da máquina gover-
ção Federal não veda que as empresas financiem campanhas privadas. namental, já tem o poder político. A oposição deve ter pelo menos a
O que a Constituição veda é o abuso de poder econômico. Não é politi- possibilidade de ter o apoio econômico. É bem verdade, todavia, que
camente desejável porque exclui da dinâmica eleitoral instituições que as empresas “preferem” doar para os candidatos situacionistas. Mas o
podem ter legítimos interesses nos destinos políticos da sociedade. principal beneficiário da impossibilidade de doações privadas seriam os
A democracia contemporânea não é exclusiva do indivíduo-eleitor candidatos situacionistas.
atomizado. Ela é um regime supercomplexo de formação de decisões, Eis porque fere a liberdade democrática a proibição de empresas de
em um ambiente de dissensos e múltiplos valores e interesses. Demo- doarem para as campanhas políticas. A rigor as doações deveriam ser
cracia é a convivência plural no dissenso. É a busca pelo consenso pos- transparentes e lícitas, de modo que todos soubessem quem doa e quan-
sível e desejável, mas admitindo-se o dissenso no seio da comunidade. to se doa de dinheiro para as campanhas eleitorais. A ilicitude não está
Ao excluir a participação das empresas privadas, com esteio no pre- na doação, mas na doação clandestina. Essa deve ser combatida.
conceituoso argumento da “safadeza” das doações, a OAB presta um Por essa razão, acredita-se que o STF não dê razão à postulação
desserviço à Nação, sem embargo da sinceridade de seus propósitos da OAB e decida favoravelmente à liberdade democrática, ampla,
morais e da corretude ética dos instrumentos utilizados. geral e irrestrita. 29
Malgrado esse desejo ético moralizante da OAB, os fundamentos
normativos e os argumentos jurídicos esgrimidos pela Ordem exigirão
dos ministros da Corte eventualmente simpáticos a essa tese um con-
torcionismo interpretativo, pois, insista-se, no texto constitucional não
4  CONSIDERAÇÕES FINAIS
há vedação a essa prática. 28
Outro inconveniente da postulação da OAB. Tornar ilícitas as do-
ações às campanhas induziria à clandestinidade. Nada mais nocivo à
O “coronelismo” é chaga que permanece na estrutura e na dinâmi-
ca político-eleitoral brasileira, pois assenta-se em situações ainda
existentes: a miséria econômica de parcela substantiva do eleitor e na
democracia e à limpidez das eleições. Assim, o remédio pode se tornar o
fragilidade moral dos envolvidos no processo político-eleitoral.
veneno. Em vez de salvar o paciente (a democracia) pode matá-lo.
A Lei da “Ficha Limpa”, malgrado a nobreza de propósitos, repre-
Imagine-se a seguinte situação hipotética. Dois candidatos a pre-
senta a derrota do eleitor, pois em vez de ele decidir em quem votar ou
sidente da República estão em acirrada disputa no segundo turno do
deixar de votar, votará apenas naqueles que foram chancelados pelos
pleito. Um dos candidatos tem como plataforma de campanha aumen-
órgãos da justiça eleitoral, pois o Estado não confia no discernimento
tar o papel do Estado na economia, reduzindo o papel das empresas.
do cidadão-eleitor.
Esse candidato promete que se for eleito irá desapropriar empresas
e estatizar vários ou quase todos os setores da economia nacional.
29 .A OAB deveria lutar pela redução dos municípios, pela unificação dos pleitos eleitorais,
pela unificação dos mandatos políticos, pelo voto distrital puro para os cargos legislati-
28 .  NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules – regras e princípios constitucionais. São vos, pela redução do número de cadeiras nos Parlamentos, dentre outras medidas profilá-
Paulo: Martins Fontes, 2013. ticas de higiene político eleitoral.

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N N
A proibição de financiamento privado de campanhas eleitorais, pos-
tulada pela OAB perante o STF, se confirmada, induzirá à clandestinida-
de e excluirá ilegitimamente do processo democrático empresas e insti-
tuições que têm legítimos interesses no processo político.
A democracia é um regime político arriscado, complexo, mas dentre
todas as alternativas imaginadas e já experimentadas, é a melhor, pois
força o povo/eleitor a agir com responsabilidade, pois o povo não deve
transferir para ninguém o seu destino, por melhores e mais nobres que
sejam as intenções.

392
N
22
SUBMISSÕES, PERMISSÕES E PACTOS:
DEMOCRACIA, CONSTITUIÇÃO E A
ALTERNATIVA DO ESTADO PLURINACIONAL.

José Luiz Quadros de Magalhães

Introdução

V amos refletir neste artigo sobre a relação entre democracia e consti-


tuição; liberalismo e constituição e a alternativa democrática dialógi-
ca, não hegemônica e pluridiversa do estado plurinacional com a ajuda de
Slavoj Zizek, que por sua vez nos traz Jean-Claude Milner: “Jean-Claude
Milner sabe muito bem que o establishment conseguiu desfazer todas as
consequências ameaçadoras de 1968 pela incorporação do chamado ‘espí-
rito de 68’, voltando-o, assim, contra o verdadeiro âmago da revolta. As exi-
gências de novos direitos (que causariam uma verdadeira redistribuição de
poder) foram atendidas, mas apenas à guisa de ‘permissões’ - a ‘sociedade
permissiva’ é exatamente aquela que amplia o alcance do que os sujeitos
têm permissão de fazer sem, na verdade, lhes dar poder adicional. (...) É o
que acontece como direito ao divórcio, ao aborto, ao casamento gay e assim
por diante; são todos permissões mascaradas de direitos; não mudam em
nada a distribuição de poder.”
Zizek cita Jean-Claude Milner1: “Os que detém o poder conhecem muito
bem a diferença entre direito e permissão. Talvez não saibam articular em
conceitos, mas a prática esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito,
da acesso ao exercício de um poder em detrimento de outro poder. Uma
permissão não diminui o poder, em detrimento de outro poder. Uma per-
missão não diminui o poder de quem outorga; não aumenta o poder daque-
le que obtém a permissão. Torna a vida mais fácil, o que não é pouco coisa”2

1 .  Jean-Claude Milner, L’arrogance du présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris,
Grasset, 2009), p.233.
2 .  Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragé-

393
N
A partir destas ideias podemos refletir sobre o “sucesso” (depende e permissões de “jouissance”3. Aquele bife a milanesa especial (assim
para quem) da “democracia” liberal representativa e as operações cons- como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor
tantes que este sistema tem feito de conversão de direitos frutos de lu- único da vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas po-
tas em permissões que esvaziam e desmobilizam a luta por poder em demos comer a hora que quisermos. Igual o suco de laranja caseiro, in-
uma acomodação decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento dustrializado, que vem com gominhos e com carinho, de “verdade”.
de permissões para atuar, fazer e até mesmo ser feliz desde que não se O problema da “jouissance” é que ela se tornou obrigatória na cultura
perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso apro-
manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural, militar e veitar de alguma coisa, experimento isto como uma obrigação de não
especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras vertentes). perder a oportunidade de aproveitar tudo o que me é oferecido. Daí tan-
O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbo- ta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consu-
los e discursos de rebeldia e luta em mercadorias para serem consumidas. mo: uma sociedade do desespero.
Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia A diferença entre conquistar um direito e uma permissão ocorre nas
controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabe- relações de poder e não, necessariamente, na existência ou não de de-
los são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido terminados processos formais institucionalizados. Em outras palavras,
na Champs-Élisées e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte a democracia representativa pode ser meio de conquista de poder e de
de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A “diversidade” direitos, e isto os exemplos da América do Sul tem nos demonstrado. As
está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Cen- transformações constitucionais na Venezuela, Equador e Bolívia, têm
ter, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com um representado ganho de poder para aqueles que foram historicamente
sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona alijados deste poder durante séculos.
a democracia parlamentar (democracia liberal ou liberal social represen- A questão essencial que ocorre nas democracias liberais represen-
tativa e majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da tativas (e os países acima citados não se enquadram mais neste con-
esquerda “radical” a direita “democrática”, se parecem com a diversidade ceito), é em que medida, a luta por direitos resulta em ganho de poder,
de comidas com tempero parecido dos Shopping Centers. Escolher entre ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em ganho
esquerda e direita, especialmente nas “democracias” “ocidentais” da Europa da possibilidade de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma trans-
e EUA (ou Canadá e Austrália) resulta no mesmo. Muda o marketing, as ferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido
caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante. e concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão
Este aparato “democrático” representativo, parlamentar e partidá- de exercício de um direito. O poder continua com quem permite. Outra
rio, processa permanentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, coisa e conquistar este direito para si, o que implica que quem detinha
como uma grande maquina de empacotar alimentos ou enlatar peixes e este poder de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso
feijoadas. Esta absorção da revindicações de poder democrático trans- de uma mudança de mãos do poder. O que podemos perceber, e precisa-
formando-as em permissões bondosas do poder “democrático” repre- mos ter atenção, é para o fato de que, a recente e precária “democracia”
sentativo desmobiliza e perpetua as desigualdades e violências ineren- representativa, pode ser precária enquanto instrumento efetivamente
tes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal criação. de democracia, mas cumpre muito bem, com efetividade e competência,
As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se a sua função de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras pa-
transformaram em processadores de revindicações, esvaziando o po- lavras, mudar para manter as coisas como estão.
der popular. Os direitos, a conquista do poder pelo povo se transformou Percebendo que esta, já precária democracia, é apenas tolerada para
quem detém o poder moderno, são comuns as rupturas. Toda vez que
dia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita pelo autor a partir
do texto de Jean-Claude Milner no livro “La arrogancia del presente - miradas sobre una
década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires, Manantial, 2010. 3 .  No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.

394 395
N N
está democracia serve como canal de conquista de poder daqueles que 1  Constituição e democracia
não tinham, assistimos uma ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as vá-

C
rias e constantes tentativas de golpes e pequenos golpes diários); Chile omo já dito, constitucionalismo não nasceu democrático. E demorou
(1973); as ditaduras da Argentina e Uruguai na década de 1970; a tentati- muito tempo para se democratizar. Precisamos recuperar algumas
va de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o golpe em Honduras em 2011 informações históricas para entender este processo. Vamos procurar
e em 2012 o golpe parlamentar no Paraguai, são exemplos. entender em poucas palavras a lógica histórica da formação do estado
Assim, após o constitucionalismo liberal não democrático, a conquis- moderno que permite o desenvolvimento do capitalismo, duas marcas da
ta da democracia representativa vem acompanhada dos constantes gol- modernidade. Vamos entender estes parágrafos que se seguem como uma
pes que geram ditaduras e, por vezes, totalitarismo. pequena introdução básica da modernidade, compreensível para todos.
A relação de poder nestas duas formas alternativas de manutenção de O Estado moderno (a partir de 1492) foi construído a partir de uma
poder no estado moderno ocorrem de formas distintas. Enquanto o poder aliança entre nobreza, burguesia e o rei. Das três esferas de poder ter-
nas democracias liberais sociais representativas permanece nas mesmas ritorial (império, reino e feudo) o estado moderno é construído a partir
mãos por meio de permissões, nas ditaduras e totalitarismos ocorre uma da afirmação do poder do rei sobre os senhores feudais (nobres), e da
submissão que funciona em forma de concessões ou permissões paterna- aproximação dos burgueses que, necessitando da proteção do rei, aju-
listas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da dam a financiar a construção do estado moderno. A insurreição dos
total submissão ideológica no totalitarismo onde o poder concede, mesmo servos ameaça o poder e posição de nobres e burgueses, que passam a
não havendo possibilidade de pedir. No totalitarismo o poder, além de criar necessitar da proteção do poder real, ou seja, de um poder centralizado,
o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, hierarquizado e uniformizado.
àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo poder). Assim, o capitalismo moderno se desenvolve a partir da necessária
Portanto temos nestas duas estruturas de poder, formas de submis- proteção do rei (do estado) para crescer. Não é possível capitalismo sem
são agressivas. A primeira, um ditador paternalista pode ou não atender estado. O estado moderno cria o povo nacional, o exercito nacional, a
aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos inaceitáveis. Esta submissão moeda nacional, os bancos nacionais, a polícia nacional. Sem isto não
se funda em relações de amor e ódio à figura do poder encarnada no líder. teria sido possível o desenvolvimento da economia capitalista. A ex-
O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às demandas ocultas pansão militar, a conquista do mundo, a exploração de recursos natu-
do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que efetivamente rais com a escravização de milhões de pessoas consideradas inferiores,
detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo. Não há é fator fundamental para o desenvolvimento da economia capitalista. A
concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a par- polícia como mecanismo de repressão dos excluídos do sistema é outro
tir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas. fator primordial. Forças armadas para buscar recursos naturais para
Diferente de submissões (ditadura e totalitarismo) e de permissões alimentar a indústria e polícia para reprimir os excluídos do sistema e o
(democracia representativa liberal social), um espaço comum de con- explorados que produzem e não se conformam com a exploração..
quista de direitos, não hegemônico, significa que o poder é dividido, O segundo passo do estado moderno será o surgimento do constitu-
compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum, onde o cionalismo. As revoluções burguesas representam o amadurecimento
direito comum é construído por meio da construção de consensos, sem- da classe burguesa que se desenvolve sob a proteção do rei. Importante
pre provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritários. perceber esta aliança que está presente até hoje nos estados contem-
Para compreendermos o significado desta democracia consensual porâneos (ainda modernos). A burguesia se desenvolve sob a proteção
comum, não hegemônica que se constrói hoje na Bolívia e Equador, va- do poder do rei, e é justamente quando esta classe consegue mais po-
mos, a seguir, estudar a relação entre democracia e constituição na Teo- der econômico que a nobreza que então passa a buscar o poder político.
ria da Constituição moderna, para, posteriormente estudarmos a ideia Este poder político é conquistado com as revoluções burguesas. A partir
de democracia e constituição no estado plurinacional. deste período vamos assistir alianças ou rupturas provisórias com uma

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N N
posterior acomodação do poder entre nobres e burgueses que se sus- democracia majoritária se apresentava como incompatível com o libe-
tenta na Europa até hoje. ralismo. Neste período, as constituições garantem direitos individuais
O constitucionalismo moderno surge da necessidade burguesa de de homens brancos, proprietários e ricos, criando uma ordem segura
segurança nas relações econômicas, nos contratos. Constitucionalismo para os proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas expressivas
significa, portanto, “segurança”. da população. As constituições liberais estabelecem o voto censitário.
O constitucionalismo nasceu liberal e logo, não nasceu democrático. O século XIX assiste um processo de transformação importante. A
Constitucionalismo e democracia são palavras e ideias incompatíveis formação da identidade operária (o sentimento de classe operária) faz
para o pensamento liberal na época. Convém neste momento explicitar parte das novidades surgidas neste século. A situação de milhões de
os significados históricos dos termos. trabalhadores, depositados em fábricas, trabalhando todos os dias, a
Os burgueses, agora com poder político, conquistado a partir do maior parte de suas horas de “vida” diária, permite que gradualmente,
poder econômico, necessitavam de uma ordem jurídica estável, que estas pessoas, compartilhando a mesma situação de opressão e explora-
lhes garantisse estabilidade, respeito aos contratos e a propriedade ção no mesmo espaço (a fábrica) se organizem e comecem a reivindicar
privada. A essência do constitucionalismo liberal será a “segurança” juntos melhores condições de vida.5 Este é o momento de proliferação
nas relações jurídica por meio da previsibilidade, respeito aos contra- de sindicatos, considerados ilegais pela ordem liberal que os reprimia
tos e proteção a propriedade privada. Agora, pela primeira vez, existia com direito penal e polícia, assim como é o momento de surgimento de
uma lei maior que o estado: a constituição. A função da constituição boa parte dos partidos políticos modernos, especialmente os partidos
liberal é de afastar o estado da esfera privada, das decisões individuais de esquerda, vinculados aos sindicatos e ao movimento operário como
dos homens proprietários. Assim, os burgueses, que cresceram sob a os partidos socialistas, trabalhistas, sociais democráticos e comunistas
proteção do rei e do estado moderno, agora construíam uma ordem (muitos postos na ilegalidade pelo sistema liberal).6
jurídica que lhes garantia liberdade (para eles) para expansão segura Aos poucos, os operários começavam a sentir as profundas contradi-
de seus negócios. Mais uma vez lembramos: não há capitalismo sem ções do liberalismo. A promessa de uma ordem social e econômica sem
estado moderno. É o estado moderno que permite o desenvolvimento privilégios hereditários (que aparecia no senso comum do discurso li-
da economia capitalista com o exército (para conquista de territórios beral) não se concretizou e a nova ordem mostrava-se cada vez mais
com a finalidade de exploração de recursos e de mão de obra)4 ; com a próxima à ordem anterior. Os grandes proprietários copiavam os costu-
polícia para reprimir os excluídos; com a moeda nacional e os bancos mes e práticas da nobreza. As leis produzidas nos parlamentos eleitos
nacionais; com o direito nacional para padronizar, homogeneizar, e pelo voto censitário7 eram sempre contrárias aos interesses da maioria.
logo, coibir toda crítica, toda alternativa.
Este primeiro passo do constitucionalismo é muito importante. Ago-
5 .  ELLEY, Geoff. Forjando a democracia, ob.cit.
ra existia uma ordem jurídica constitucional superior a todo poder do
6 .  SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo: Imprensa
estado. Entretanto esta ordem não era democrática. Os liberais, defen- Oficial do Estado, 2000. DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
sores da propriedade privada, da decisão individual, não podiam aceitar 7 .  Georges Burdeau comentando a Constituição burguesa francesa de 1814 comenta que
a democracia majoritária. O liberalismo, elitista e não democrático em não esteve em questão em nenhum momento a adoção do sufrágio universal pelos libe-
rais. Estes consideravam o sufrágio universal como algo grosseiro. O direito de sufrágio
sua essência, não podia admitir que a vontade do coletivo majoritário
não é considerado um direito inerente a qualidade de homem. O voto depende da capa-
prevalecesse sobre a vontade do coletivo minoritário e logo sobre a von- cidade dos indivíduos e a fortuna aparecia como uma forma de demonstrar atitude in-
tade de cada um. O liberalismo vitorioso das revoluções burguesas viria telectual e maturidade de espírito, além de garantir uma opinião conservadora típica (é
claro) dos ricos. Neste período o direito de voto depende de uma condição de idade (30
garantir a liberdade de escolha individual de homens proprietários. A
anos) e uma condição de riqueza. Para poder votar era necessário pagar 300 francos de
contribuição direta, o que para época era uma quantia considerável. Para se candidatar
as exigências eram ainda maiores: 40 anos de idade e pagar 1.000 francos de contribuição
4 .  CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad Na- direta. Em toda França o numero de eleitores não passava de 100.000 (1 eleitor para cada
cional Autonóma de México, México D.F., 1994. 300 habitantes) e o numero de pessoas que podiam se candidatar não passava de 20.000.

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O trabalhador era sistematicamente punido e a pobreza era crimina- zoável, desde que conheçamos os limites à nossa liberdade (sem a inocên-
lizada. A conquista do voto igualitário masculino teve a participação cia primária do livre arbítrio liberal). De uma perspectiva da psicologia, o
determinante do movimento operário. É a partir deste momento que que nos faz viver, o que nos coloca em pé todos os dias é a perspectiva de
começa a ser construída uma relação (dentro do paradigma moderno) transformação, a busca do novo. Logo, uma sociedade livre e democráti-
entre constituição e democracia. ca, onde os destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das pessoas
Importante ressaltar que não de trata de uma fusão de conceitos: que integram esta mesma sociedade, será uma sociedade em permanente
democracia e constituição são e não podem deixar de ser, conceitos processo de transformação. A sociedade democrática é uma sociedade de
distintos. Um existe sem o outro e a importante convivência entre es- risco na medida em que é uma sociedade em mutação permanente.
tes dois conceitos é (em uma perspectiva da democracia representati- Temos então a equação do constitucionalismo democrático moder-
va majoritária e do constitucionalismo moderno) sempre tensa. Uma no: a tensão permanente entre democracia e constituição; entre segu-
convivência difícil (no paradigma moderno) mas necessária. Isto é o rança e risco; mudança e permanência; transformação e estabilidade.
que vamos discutir agora. A busca do equilíbrio entre estes dois elementos, aparentemente con-
traditórios, é uma busca constante e necessária para o paradigma mo-
derno constituição democrática. Democracia constitucional passa a ser
construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança; risco
2  Democracia “versus” constituição minimamente previsível; mudança com permanência.
Importante lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e

V imos que a função primeira de uma constituição liberal era de ofe-


recer segurança aos homens proprietários, e esta segurança era
conquistada pela pretensão de permanência e superioridade da consti-
constituição, se constrói sobre conceitos específicos: constituição como
busca de segurança e, portanto, como limite às mudanças e democracia
representativa majoritária. O papel da constituição moderna é reagir às
tuição, o que geraria estabilidade social e econômica para o desenvolvi-
mudanças não permitidas e a democracia, é entendida como democra-
mento dos negócios dos homens proprietários.
cia majoritária e representativa.
Ao contrário da constituição, democracia significa transformação,
A base da teoria da constituição “democrática” moderna se funda-
mudança, e logo risco. Uma pergunta é necessária neste momento: por-
menta sobre esta dicotomia: a constituição deve oferecer segurança
que democracia significa transformação, mudança?
nas transformações decorrentes do sistema democrático. Como é ofe-
A dicotomia entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma di-
recida esta segurança?
cotomia ocidental, que se encontra na raiz de nossas vidas. Ao contrário de
Para que a Constituição tenha permanência foram criados meca-
uma perspectiva contraditória (que é cultural) entre busca do novo (risco)
nismos de atualização do texto constitucional: reforma do texto por
e busca de segurança, a transformação é, talvez, inerente a toda a forma de
meio de emendas e revisões. As emendas constitucionais, significando
vida conhecida. Todo o universo de vida que conhecemos está em perma-
mudança pontual do texto, podem ser aditivas, modificativas ou su-
nente processo de transformação (até os minerais, e por que não os con-
pressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto. As duas
servadores). O próprio universo está em processo de expansão e transfor-
formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem
mação permanente. O ser humano, como ser histórico, contextualizado, é
ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em
um ser em processo de transformação permanente, independentemente
determinado sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a
de sua vontade. Entretanto temos outra característica essencial. Somos
constituição não pode ser reformada como durante o estado de defesa
seres históricos e logo, vitimas e sujeitos da história. Podemos construir
ou intervenção federal); processuais (mecanismos processuais relativos
nossa vida e nossas sociedades com um grau de autonomia racional ra-
ao processo de discussão e votação que dificultam a alteração do texto).
Desta forma, a teoria da constituição moderna, procurou equilibrar a
(BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie
segurança com a mudança necessária para que a constituição acompa-
Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316).

400 401
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nhe as transformações ocorridas pela democracia representativa ma- Este é o momento de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica de-
joritária. É justamente esta possibilidade de mudança constitucional mocrática constitucional esta ruptura só será legitima se radicalmente
com dificuldade (limites) que permite maior permanência da constitui- democrática. Só por meio de um movimento inequivocamente demo-
ção e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico constitucional. crático será possível (ou justificável) a ruptura. Além disto, se só uma
A constituição não pode mudar tanto que acabe com sua pretensão de razão e ação democrática justifica a ruptura com a constituição, está
permanência e logo com a ideia de segurança, nem mudar nada, o que ruptura só será legitima se for para, imediatamente, estabelecer uma
nega a democracia. Daí que não pode a teoria da constituição, admitir nova ordem constitucional democrática.
que as mudanças formais, por meio de reformas (emenda ou revisão), Assim a democracia só poderá legitimamente superar a constitui-
sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição. Isto repre- ção se for, para, imediatamente, elabora e votar uma nova constitui-
sentaria destruir a essência da constituição: a busca de segurança. De ção democrática. A democracia acaba com a constituição criando uma
outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou ainda, a nova constituição a qual esta democracia se submete. Esta é a lógica
não transformação da constituição por meio das mutações interpretati- do constitucionalismo democrático moderno. Veremos mais adiante
vas (interpretações e reinterpretações do texto diante do caso concreto como a democracia consensual plurinacional não hegemônica pode
inserido no contexto histórico), pode significar a morte prematura da romper com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco mais
constituição destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetan- a lógica contra-majoritária.
do sua essência, a busca de segurança.
Este é o equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno de-
mocrático, considerando democracia enquanto representativa e ma-
joritária, e constituição enquanto limite e garantia de um núcleo duro
3  Os problemas da
imutável, contramajoritário, que protege os direitos fundamentais das democracia majoritária
maiorias provisórias. É a partir desta lógica que se pode compreender
as teorias modernas da constituição.
Permanece ainda uma questão fundamental: como a constituição
não pode mudar tanto que comprometa a segurança e de outra forma,
A relação entre constituição e democracia significa, na prática, que
existem limites expressos ou não às mudanças democráticas. Em
outras palavras, existem assuntos, princípios, temas que não poderão ser
não pode impedir as mudanças (se se pretende democrática), de forma deliberados. Há um limite à vontade da maioria. Existe um núcleo duro,
que comprometa sua permanência, haverá sempre uma defasagem en- permanente, intocável por qualquer maioria. A lógica que sustenta estes
tre as transformações da sociedade democrática e as transformações mecanismos se sustenta na necessidade de proteger a minoria, e cada um,
da constituição democrática. O que decorre desta equação é o fato contra maiorias que podem se tornar autoritárias, ou que podem descon-
inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade democrática siderar os direitos de minorias (que poderão se transformar em maiorias).
mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de Assim, o constitucionalismo significa mudança com limites, transforma-
acompanhar. E isto não pode ser mudado pois comprometeria a essên- ção com segurança. Estes limites se tornaram os direitos fundamentais.
cia da constituição e da democracia (permanência x transformação; se- O núcleo duro de qualquer constituição democrática (moderna, democrá-
gurança x risco). Assim, inevitavelmente chegará o momento em que a tica representativa e majoritária) são os direitos fundamentais.
sociedade mudará mais do que a constituição foi capaz de acompanhar. Assim, os direitos fundamentais construídos historicamente, são pro-
Neste momento a constituição se tornará ultrapassada, superada: é o tegidos pela constituição contra maiorias provisórias que em determi-
momento de ruptura. A teoria da constituição democrática apresenta nados momentos históricos podem ceder às tentações autoritárias. Uma
uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário, so- pergunta comum seria a seguinte: pode a população, majoritariamente e
berano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e obviamente limitado no livremente, escolher um regime de governo não democrático? O exemplo
que se refere a realidade social, cultural, histórica, econômica). não é pouco comum, mas, geralmente é mal trabalhado. Muitas vezes a

402 403
N N
escolha de sistemas que não correspondem ao padrão ocidental de “de- ção das opiniões está cada vez mais reduzido. Seja no parlamento, seja
mocracia” é vista como uma escolha não legitima uma vez que nega a na sociedade, como mecanismo de democracia semidireta, o espaço de-
“democracia”. Entretanto, o conceito de democracia é diverso, e as formas dicado ao debate de ideias e proposta se reduz. Cada vez mais cedo o
de organizações históricas, assim como as formas de participação e cons- debate é interrompido pelo voto de maneira que em algumas situações
trução da vontade comum em uma sociedade também, o que confere vota-se sem debate como acontece com o surgimento de mecanismos de
uma maior complexidade a este debate, na maioria das vezes, travado a voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no orçamento
partir de uma pretensa e falsa universalidade dos conceitos ocidentais. participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que
Mas voltando a discussão realizada dentro do paradigma moder- é o debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto
no de democracia constitucional ocidental8 (europeia), a resposta para importante do mecanismo majoritário é o fato de se escolher um ar-
a pergunta acima, a partir da compreensão da democracia constitu- gumento, projeto, ideia. A opção por um “melhor” argumento, por um
cional, é que, não pode a maioria decidir democraticamente contra a argumento vitorioso por meio do voto pode se constituir em um meca-
democracia. A estes mecanismos de proteção às conquistas históricas nismo totalitário. Se todo o tempo somos empurrados a escolher o “me-
de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contramajori- lhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto, ideia, política)
tários. Em momentos de crise podem os cidadãos ceder às tentações derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o tempo
autoritárias e reacionárias e a função da constituição é reagir a estas o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento
mudanças não permitidas. Há uma perspectiva evolucionista linear ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de
que sustenta esta tese: a proibição do “retrocesso” parte de uma pers- argumentos vitoriosos e derrotados.
pectiva evolutiva muito confortável, e por isto, talvez, muitas vezes, Assim, tanto no legislativo como no judiciário, a exposição de argu-
falsa. Lembremos que um dos mitos que sustenta a modernidade eu- mentos não visa a construção de uma solução comum, mas sim, a esco-
ropeia, o direito internacional e todas as invasões, genocídios e guer- lha do argumento melhor. A pretensão de vencer o argumento do outro
ras modernas, de uma história linear, ou em outras palavras, na falsa (no parlamento e no judiciário) cria uma impossibilidade da construção
ideia de que as civilizações estariam em graus de evolução distintas e de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo que inspira os deba-
a Europa (do norte, segundo Hegel) seria o seu auge. tes no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca de uma solução
Um exemplo claro disto seria, por exemplo, considerar o direito fun- comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que passa a
damental à propriedade privada como um direito intocável. O retrocesso ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o proces-
para alguns liberais seria a tentativa de limitar ou condicionar este direi- so judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a
to. É claro que a discussão é contextualizada, e não é tão simples quanto parcialidade e muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente,
parece. O que é um retrocesso? Sobre qual perspectiva teórico-filosófica algumas vezes. Se o importante é vencer, se o importante é que o melhor
podemos considerar a transformação ou até mesmo a superação de um argumento vença não há nenhuma disposição para a composição, para
direito fundamental como um retrocesso? ouvir o outro. No lugar de um diálogo direto entre duas perspectivas vi-
Outro aspecto que é necessário ressaltar sobre a democracia majori- sando a composição, o aprendizado com o outro, ou a construção de um
tária: o voto, confundido muitas vezes com a própria ideia de democra- consenso onde todos ganhem, no processo majoritário estas perspecti-
cia, é na verdade um instrumento de decisão, ou de interrupção do de- vas passam a ser mostradas, apresentadas de forma isolada, de forma
bate, de interrupção da construção do consenso, e logo, um instrumento a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará pelo voto.
usado pela “democracia majoritária” para interromper o processo demo- Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no parla-
crático de debate em nome da necessidade de decisão. mento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial.
Interessante notar que cada vez mais, o tempo do debate, da exposi- A democracia consensual, dialógica e não hegemônica parte de ou-
tros pressupostos e outra compreensão do papel da democracia e da
constituição, assim como dos direitos fundamentais.
8 .  O ocidente é hoje a OTAN.

404 405
N N
4  A democracia consensual plural ser inauguradas. A postura não hegemônica deve ser seguida por uma
postura de construção comum de novos argumentos. Não se trata, por-
do novo constitucionalismo tanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de uma simples fusão
latino-americano. de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no debate.
Não é possível compreender uma democracia consensual com os ins-

U ma vez compreendida as bases do constitucionalismo moderno trumentos, pressupostos e posturas de uma sociedade de competição
fica mais fácil compreender a alternativa plurinacional de demo- permanente. Nenhum consenso se pretende permanente, não só pela
cracia, constituição e direitos fundamentais. dinamicidade da vida como pela necessidade de decidir sem que haja
Comecemos pela democracia. Ao contrário da democracia moderna um vencedor, ou seja, sem que seja necessária a construção de maiorias.
essencialmente representativa, a democracia do estado plurinacional Compreendidos os mecanismos de construção destes consensos
vai além dos mecanismos representativos majoritários. Não quer dizer democráticos, não majoritários, não hegemônicos, não hierarquiza-
que estes mecanismos não existam, mas, sim, que devem ceder espa- dos, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos
ço crescente para os mecanismos institucionalizados de construção de compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva
consensos não hegemônicos. para os direitos fundamentais.
A proposta de uma democracia consensual deve ser compreendida, Como a democracia implica em mudança, transformação, o novo
com cuidado, no paradigma do estado plurinacional. Primeiramente é reside na ideia de que estas mudanças não são construídas por maio-
necessário compreender que esta democracia deve ser compreendida a rias, mas, sempre, por todos. A constituição não necessita mais ter um
partir de uma mudança de postura para o diálogo. Não há consensos pré- papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de
vios, especialmente consensos lingüísticos, construídos na modernidade mecanismos contramajoritários uma vez que não há mais a vitoria da
de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno homogeneizou a maioria como fator de decisão.
linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do vitorioso mili- Assim, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como
tarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de do- consensos construídos e reconstruídos permanentemente. O estado e a
minação. Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que constituição no lugar de reagir a mudanças não previstas ou não permi-
tidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente às mudanças desde que es-
são utilizados como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma
tas sejam construídas por consensos dialógicos, democráticos, logo não
pertence a todos nós e não a um grupo no poder. A linguagem, é claro,
hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não permanentes.
contem todas as formas de violência geradas pelas estruturas sociais e
Trata-se de uma nova compreensão capaz de romper com o paradig-
econômicas. Logo, o diálogo a ser construído entre culturas e pessoas
ma moderno de estado, constituição e democracia.
deve ser despido de consensos prévios, construídos por esses meios he-
gemônicos. Tudo deve ser discutido levando-se em consideração a neces-
sidade de descolonização dos espaços, linguagens, símbolos e relações so-
ciais, pessoais e econômicas. O dialogo precisa ser construído a partir de 5  CONCLUSÃO
posições não hegemônicas, e isto não é só um discurso, mas uma postura.

O
A partir desta descolonização da linguagem, das instituições e das estado plurinacional, como visto, representa uma ruptura com a
relações, o diálogo se estabelece com a finalidade de construção de modernidade e logo, com a teoria da constituição moderna. Esta
uma nova verdade provisória, um novo argumento. Ninguém deve pre- ruptura pode ser encontrada na ideia que sustenta o estado plurinacio-
tender vencer o outro. nal presente nas constituições do Equador e da Bolívia.
Os consensos construídos são, portanto, sempre, provisórios, não O processo de transformação em curso, especialmente na Bolívia
hegemônicos, e não majoritários. A necessidade de decisão não pode apresenta um potencial transformador radical e representa um desafio
superar a necessidade da democracia. Daí posturas novas precisam para os estudiosos do tema.

406 407
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É fundamental que a Universidade, que as pessoas que se dedicam de democracia consensual não hegemônica para o qual as construções
a estudar e compreender o mundo em que vivemos se dediquem na ta- teóricas modernas dos direitos fundamentais, sobre a necessidade de
refa de decifrar, entender, o que acontece. O mundo moderno (os últi- mecanismos contramajoritários e da existência de vitórias temporárias
mos quinhentos anos europeus) está se esgotando, e com este mundo de argumentos debatidos, não são, muitas vezes, aplicáveis.
muitas de suas construções. É obvio que uma ruptura, uma mudança Finalmente, outros eixos devem ser mencionados e já foram ou serão
paradigmática no campo da história e das ciências sociais nunca será tratados em outros artigos e livros. Assim, um aspecto importante para a
total. É claro que o presente está impregnado de passado, assim como o compreensão da modernidade será a uniformização “versus” a diversida-
futuro estará impregnado do presente. Não estamos negando as contri- de.11 O Estado moderno é uniformizador, normalizador. Desta uniformi-
buições da modernidade europeia e suas revelações de encobrimentos zação depende a efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica)
passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito antes de uma identidade nacional para os estados nacionais é uma necessidade
de acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a histó- do Estado. Para que os diversos grupos que integram e habitam os ter-
ria (não linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos pro- ritórios dos novos estados, que começam a se constituir no século XVI,
cessos, revela e encobre, transforma. Estamos em um momento de re- reconheçam agora o único poder central do Estado, é fundamental que se
velações, de “desocultamento”. Muitos dos encobrimentos promovidos crie uma nova identidade por sobre as identidades pré-existentes. Esta é
pelo mundo moderno estão agora se revelando. a principal tarefa deste novo poder, e logo do direito construído a partir
O que pretendemos neste texto (o que já fizemos em outros já publi- daí, o direito moderno. Esta modernidade uniformizadora decorre de du-
cados e que ainda faremos em outros que se seguirão sobre o tema) foi plo movimento interno nestes novos estados que pode ser representado
buscar entender as rupturas possíveis no campo da Teoria da Constitui- com clareza na expulsão dos mais diferentes (por exemplo os mouros e
ção e da Teoria do Estado promovidas pela ideia de uma Constituição judeus da península ibérica (simbolizada pela queda de Granada em 1492)
Plurinacional. Para isto desenvolvemos reflexões sobre determinados e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma nova
eixos que acreditamos são essenciais para compreender o processo em identidade nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de
curso na Bolívia com a Constituição Plurinacional. um projeto narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o es-
Neste estudo analisamos a relação histórica moderna entre consti- trangeiro inferior, selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X
tuição e democracia e sua superação a partir de uma nova construção eles”) e da uniformização de valores por meio da religião obrigatória que
desta relação. O estudo deste aspecto do constitucionalismo moderno se reflete no direito moderno com a uniformização do direito de família e
é muito importante para entender uma das contribuições mais impor- do direito de propriedade que permite e sustenta o desenvolvimento do
tantes do constitucionalismo plurinacional (que supera a modernida- capitalismo como essência da economia moderna (com a criação de uma
de europeia). Como foi visto, constitucionalismo moderno não nasceu moeda nacional, um banco nacional, um exército nacional e uma polícia
democrático e sua democratização ocorreu por meio de processos de nacional essencial ao capitalismo). Todo o direito moderno segue este pa-
muita luta, especialmente do movimento operário no decorrer do sé- drão hegemônico e uniformizador. Isto se reproduz no direito internacio-
culo XIX.9 O liberalismo se mostrou inicialmente incompatível com a nal (essencialmente hegemônico e europeu como se pode ver por exemplo
democracia majoritária e mesmo após a construção de uma relação en- em documentos e instrumentos como o Tratado de Versalhes e a Carta
tre constituição e democracia representativa majoritária a resistência da Nações Unidas com a previsão do Conselho de Tutela e o Conselho de
do liberalismo à democracia sempre foi muito grande.10 O “novo cons- Segurança). Daí a enorme dificuldade em se admitir o direito a diferença e
titucionalismo” que surge na América do Sul trouxe consigo o conceito o direito a diversidade enquanto direitos individuais e a dificuldade ainda
maior em se admitir o direito a diversidade como direito coletivo.
9 .  ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000,
Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
10 .  LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Ga- 11 .  MAGALHAES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional,
ribaldi, São Paulo, 2008. Editora Juruá, Curitiba, 2012.

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O constitucionalismo plurinacional rompe com isto. A sua propos- te e certamente voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça,
ta não é hegemônica, mas ao contrário, defende e constrói espaços de busca decisão rápida, pode fazer com que os conflitos não soluciona-
diálogos não hegemônicos para a construção de consensos. Como re- dos, mas simplesmente terminados, voltem de forma mais violenta no
sultado do diálogo não há um argumento vencedor, nem uma fusão de futuro. Daí que a mesma lógica pode ser construída no Judiciário: o
argumentos mas a construção de um novo argumento. Não há unifor- lugar de argumentos vitoriosos, de um lado vitorioso, a justiça se fará
mização mas, ao contrário, este constitucionalismo parte da compreen- pela composição do conflito por meio de consensos construídos em
são de um pluralismo de perspectivas, um pluralismo de filosofias, de uma perspectiva plural e não una ou uniformizada e logo hegemônica.
formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo, também, de um plu- Outros eixos de discussão deverão ser enfrentados a partir dos ei-
ralismo epistemológico12. A enorme dificuldade do direito moderno em xos teóricos acima enumerados: a unidade latino-americana (ou indo-
reconhecer a diversidade é ao contrario, a essência do constitucionalis- -afro-latino americana) não pode passar pelos mecanismos uniformiza-
mo plurinacional: este constitucionalismo se constrói sobre a diversida- dores do direito constitucional e internacional modernos; a superação
de radical, que é seu fundamento. do debate tradicional entre culturalismo e universalismo pela solução
Um outro eixo também precisa ser estudado: o pluralismo epistemoló- dialógica não hegemônica do direito “plurinacional” e a necessidade de
gico. Alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva busca de um universalismo possível como um desafio teórico filosófico
filosófica que acredito ser sustentação deste novo constitucionalismo.13 final (provisório) o que buscaremos construir com a ajuda do filósofo e
Em um quarto eixo de discussão devemos discutir a possibilidade psicanalista Alain Badiou.14
de superação de um sistema monojurídico ou bijurídico por sistemas
plurijurídicos que podem ser caracterizados especificamente pela
existência de vários direitos de família e de propriedade e da existên-
cia de tribunais (judiciários locais) capazes de solucionar estes confli-
tos além da constituição de tribunais (pluriétnicos e ou plurirepresen-
tativos de grupos sociais distintos) enquanto espaços de construção
de acordos, de promoção de mediações que promovam soluções con-
sensuais para os conflitos, superando as soluções que marcam vitórias
de argumentos de uns sobre outros. Assim um judiciário que tenha a
função primeira de promoção de uma justiça plural (uma justiça de
múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido,
aponte o argumento vencedor interrompendo o conflito sem solucio-
ná-lo. Esta é uma perspectiva também muito interessante. Cada vez
mais, assim como o voto interrompe o debate e a construção de con-
sensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um argu-
mento interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso pois o
conflito “terminado” pela sentença sem uma solução permanece laten-

12 .  OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico. La Paz, Bolivia: Muela del Diablo, 2009.
13 .  OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico. La Paz, Bolivia: Muela del Diablo, 2009;
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pensar el estado y la sociedad: desafíos actuales, Buenos
Aires: Wadhuter, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha. La Paz, Boli-
via: Muela del diablo, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro –hacia el 14 .  BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain.
origem del mito de la modernidad. La Paz, Bolivia: Plural, 1994. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.

410 411
N N
Identidade
Cultural
23
CONTROVERSIAS SOBRE EL RECONOCIMIENTO
DE LA IDENTIDAD CULTURAL COMO DERECHO

J. Alberto del Real Alcalá

1  CONTROVERSIAS SOBRE LA
TITULARIDAD DEL DERECHO A LA
IDENTIDAD CULTURAL: TITULARIDAD
“RESTRINGIDA” A GRUPOS Y TITULARIDAD
“GENERALIZADA” A INDIVIDUOS.

E n relación a la articulación jurídica de la identidad cultural como


derecho, hay que decir que lo que se protege y se asegura en el dere-
cho que analizamos, y a modo de “bien jurídico”1, es la “identidad cultu-
ral”, y la identidad cultural de la “persona”. Pero eso no es decir mucho
porque esta noción no posee un significado unívoco sino controver-
tido, el cual, además, debe ser reinterpretado en nuestro tiempo con-
temporáneo desde la aceptación de la diversidad cultural. La identidad
cultural de la persona como bien jurídico protegido2 incluiría al conjun-
to de “bienes culturales” que una persona hace suyos y estima como
propios, a los que, como tales, pretende libremente acceder, y desarro-

1 .  C. SANTIAGO NINO, Consideraciones sobre la dogmática jurídica, UNAM, México DF,
1974, pp. 55-77; especialmente, p. 63 sobre el “bien jurídico” de la libertad.
2 .  C. SANTIAGO NINO, Consideraciones sobre la dogmática jurídica, cit., p. 66: “Para algu-
nos… ‘bien jurídico’ se identifica con ‘norma’… con lo cual decir que se ha lesionado un bien
jurídico es lo mismo que afirmar que se ha infringido una norma que prescribe determi-
nado comportamiento”. Otras definiciones de bien jurídico son “equivalente[s] a ‘interés’ [a
garantizar], ‘expectativa’ [a proteger], ‘derecho subjetivo’, etcétera”, para “sostener que un
acto será antijurídico si, y solo si, lesiona un bien jurídico.” Aunque el autor propone, p. 67:
“la hipótesis de que ‘bien jurídico’ es un término teórico” y, como tal, “los términos teóricos
no pueden ser entendidos en forma aislada de una teoría que los define implícitamente.”

415
N
llarse a través de ellos, sin obstáculos ni de los poderes públicos, ni de los individuos garantizadas al máximo nivel; y b) la de su conexión con
los grupos, ni de los particulares. A este respecto, los bienes culturales los valores superiores que caracterizan al Ordenamiento6. A partir de lo
que protege el derecho a la identidad cultural estarían definidos por un cual, el derecho a la identidad cultural de la persona se configura nor-
haz de “libertades culturales” de la persona, vinculadas directamente a mativamente en mayor medida:
la realización del valor moral universal de la dignidad humana, y a su
ŠŠ a) A través de la categoría de “derecho subjetivo” en sentido es-
dimensión de la igual dignidad de todos que hace de la libertad cultu-
tricto: el derecho a la identidad cultural se presentará como un
ral una “libertad igualitaria” y, por consiguiente, sin restricciones en la
derecho subjetivo “cuando frente al titular del derecho –sujeto
titularidad de la misma (generalidad).
activo– aparece un sujeto identificado con una obligación jurídi-
Por supuesto, los contenidos morales de libertad y de igualdad en
ca consecuencia de ese derecho –sujeto pasivo–”. Se dice que A
el ámbito de la cultura que incluye el derecho a la identidad cultural
es titular de un derecho subjetivo a la identidad cultural cuando
de la persona han de ser configurados “normativamente” por cada so-
puede exigir X de B, o cuando B tiene obligación X ante A. Como
ciedad para poder hablar de que verdaderamente existe en una deter-
puede verse, “el derecho tiene como correlativo un deber o una
minado legislación un derecho tal. Y, sin duda, en dicha configuración
obligación” concreta de B7.
normativa tendrán un papel muy destacado las garantías que consti-
tuyen el armazón del derecho, que “con carácter general suelen ser de ŠŠ b) También, el derecho a la identidad cultural se configura norma-
dos tipos: legislativas y judiciales”, siendo normalmente “al legislador tivamente a través de la categoría de “libertad jurídica”: el derecho
a quien corresponde, en principio, el desarrollo” de las mismas3. Tarea a la identidad cultural es una libertad “si su titular A es libre frente
que habitualmente presenta, como dice R. Alexy, un “máximo grado de a B de hacer o no hacer X. Ello equivale a decir que… nadie tiene
indeterminación”, tal como es característico de los derechos fundamen- derecho a interferirnos. En este caso, la otra parte [B] no es titular
tales4, necesitando de la interpretación a través de las decisiones de los [pasivo] concreto e identificable sino genérico”, dado que las liber-
tribunales5, especialmente del Tribunal Constitucional de cada Estado tades son derechos “erga omnes”8.
singular, para determinar cuál es el significado concreto que en una par- La diferencia entre una y otra configuración jurídica del derecho a
ticular sociedad asume ese desarrollo normativo. la identidad cultural reside en el sujeto pasivo de la obligación jurídica
En este sentido, no hay que olvidar que el derecho a la identidad cul- que genera: sujetos individual o grupal (derecho a la identidad cultural
tural como “derecho de la personalidad” participa de la doble naturaleza como derecho subjetivo en sentido estricto) o sujeto genérico (derecho a
jurídica que G. Rolla atribuye a esta clase de derechos: a) la de consti- la identidad cultural como libertad jurídica erga omnes).
tuir un conjunto de garantías y de situaciones jurídicas subjetivas de De lo anterior puede deducirse que desde el punto de vista jurídi-
co-normativo, el derecho a la identidad cultural de la persona viene a
3 .  R. de ASÍS ROIG, Sobre el concepto y el fundamento de los derechos: una aproximación constituir un mecanismo que pretende asegurar y hacer efectivas un
dualista, cit., pp. 7-10; añade en p. 10: “El intérprete emplea criterios para la atribución de conjunto de libertades culturales significativas, y que además preten-
significado, pero muchos de éstos en realidad no están expuestos ni reflejados en el Or-
de hacerlas efectivas para todos, concretando con ello exigencias de los
denamiento jurídico siendo su adopción una clara toma de postura en relación con una
forma de entender los derechos, con un concepto o un fundamento.” valores jurídicos de libertad e igualdad. De esto resulta, que el ejercicio
4 .  R. ALEXY, “Los derechos fundamentales en el Estado Constitucional democrático”, eficaz de dicho derecho deberá conducir a un contexto de “tolerancia cul-
trad. de A. García Figueroa, en M. CARBONELL (ed.), Neoconstitucionalismo(s), Trotta,
Madrid, 2003, pp. 32-37.
5 .  Cfr. J.A. DEL REAL ALCALÁ, Interpretación jurídica y neoconstitucionalismo, Cua- 6 .  G. ROLLA, Derechos fundamentales, Estado democrático y justicia constitucional,
dernos de Filosofía del Derecho Contemporáneo núm 3, Instituto de Derechos Humanos UNAM, México DF, 2002, pp. 116-124.
Bartolomé de las Casas de la Universidad Carlos III de Madrid, Universidad Autónoma
de Occidente de Cali, Bogotá, 2011, pp. 26-43 y 74-93 acerca de las singularidades de las 7 .  G. PECES-BARBA, Derechos sociales y positivismo jurídico, Cuadernos Bartolomé de las
decisiones judiciales en el sistema jurídico del Estado Constitucional de Derecho frente al Casas, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Dykinson, Madrid, 1999, p. 144.
Estado de Derecho legalista. 8 .  G. PECES-BARBA, Derechos sociales y positivismo jurídico, cit., p. 144.

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N N
tural”9 y, consiguientemente, de “paz cultural”10, a modo de un valor social “beneficios” sociales como vehículo de tolerancia y de paz colectivas13.
e institucional11 que se realiza por medio de la normación –y en mayor Ahora bien, no hay más remedio que asumir que el reconocimiento
medida si es normación constitucional–12. Si ocurre así, estaremos en la y desarrollo del derecho a la identidad cultural es escaso, aunque en los
mejor disposición para evitar el conflicto cultural entre la institucionali- últimos tiempos ha evolucionado a mejor. Por ejemplo, recientemente
dad y la sociedad civil o la colisión en el interior de la misma sociedad ci- a nivel mundial ha tenido lugar la Declaración de las Naciones Unidas
vil. En este sentido, además de su conexión con la realización de determi- de 2007 sobre el derecho a la diferencia y a la identidad cultural de los
nados aspectos de la dignidad humana, el derecho a la identidad cultural derechos de los pueblos indígenas. O también puede citarse en este sen-
es un derecho de gran utilidad en tanto que generador de importantes tido al Comentario General (nº 21) sobre el derecho a tomar parte en la
vida cultural, adoptado en 2009 por el Comité de Naciones Unidas so-
bre los derechos económicos, sociales y culturales. O, por ejemplo, en el
ámbito regional latinoamericano, el pronunciamiento de Junio de 2012
9 .  M. WALZER, “La política de la diferencia. La estatalidad y la tolerancia en un mundo
de la Corte Interamericana de Derechos Humanos en el caso Sarayaku
multicultural”, cit., pp. 84-85: “Con frecuencia, los grupos [culturales] serán competiti-
vos entre sí, buscando conversos o partidarios entre los individuos no comprometidos vs. Ecuador, reconocedor del derecho a la identidad cultural del pueblo
o comprometidos sólo de forma somera, pero su principal objetivo será conservar un indígena de la comunidad de Sarayaku.
modo de vida entre sus propios miembros, reproduciendo su cultura o su fe en las su-
Sin embargo, es verdad que, en general, la configuración normativa
cesivas generaciones […]. Ahora bien, ¿qué significa tolerar a grupos de este tipo? Si se la
comprende como una actitud o como un estado de ánimo (de la que se siguen unas prác- del derecho a la identidad cultural está mayormente ausente de los tex-
ticas características), la tolerancia hace referencia a un cierto número de posibilidades. tos constitucionales. Pero, también es cierto que sí ha existido un reco-
La primera de ellas, que refleja los orígenes de la tolerancia religiosa en los siglos XVI y
nocimiento parcial e implícito de un “derecho a la diferencia cultural”, y
XVII, consiste simplemente en una resignada aceptación de la diferencia por el bien de la
paz [1. resignación]. […] Una segunda actitud posible es la actitud pasiva, relajada, benig- que este reconocimiento parcial ha tenido lugar, como afirma G. Ruiz-Ri-
namente indiferente [2. indiferencia]. […] Una tercera expresa apertura hacia los demás, co, sobre todo a través de “regulaciones sectoriales” acerca de “aquellas
curiosidad, respeto y disposición de escuchar y aprender [3. curiosidad]. […] Y, por último,
materias sensibles en las que conviene ofrecer un trato desigual a aque-
“yendo un poco más allá, un respaldo entusiasta [4. entusiasmo] a la diferencia: un respal-
do estético, si se considera que la diferencia representa, en forma cultural, la magnitud llos individuos y grupos sociales colectivos con marcadas diferencias
y la diversidad de la creación –ya sea de autoría divina o ya emane del mundo natural–, culturales respecto de la mayoría social: leyes en materia lingüística y
o un respaldo funcional, si se considera que la diferencia es una condición necesaria del
de enseñanza, derecho civil, leyes sobre libertad religiosa, etc.”. En este
florecimiento humano, al que brinda a los individuos […] las opciones que hacen que su
autonomía tenga pleno significado.” reconocimiento parcial/sectorial, “todo este tipo de regularizaciones de
10 .  Acerca de la comunidad obligatoria como obstáculo para la realización del derecho la diversidad cultural obedecen a una serie de mandamientos consti-
a la paz, véase J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Derecho a la paz frente a la nación obligatoria”, tucionales, sin los cuales carece de legitimidad el reconocimiento de
en Mª.I. GARRIDO GÓMEZ (ed.), El derecho a la paz como derecho emergente, Editorial
determinadas exenciones, privilegios, modulaciones interpretativas de
Atelier, Colección Atelier Internacional, Barcelona, 2011, pp. 87-104.
derechos o derechos específicos que se otorgan a grupos colectivos deli-
11 .  M. WALZER, “La política de la diferencia. La estatalidad y la tolerancia en un mundo
multicultural”, cit., p. 85, en relación a la tolerancia como “valor social” opina que: “Yo diría mitados por razones territoriales, nacionales, étnicas o religiosas que se
que todo el mundo que acepte la diferencia […] con independencia de su posición [ante ella] otorgan a una minoría de ciudadanos”. Siendo “a partir de estas especia-
[…] de resignación, indiferencia, curiosidad y entusiasmo, posee la virtud de la tolerancia”;
lidades jurídicas [cuando] se configura una categoría nueva de derecho
y en relación a la tolerancia como “valor institucional” afirma: “Todas las disposiciones
sociales mediante las cuales incorporamos la diferencia, coexistimos con ella o le asigna- a la diferencia cultural”, que es “un derecho por lo general no positiviza-
mos una parte del espacio social, son las formas institucionalizadas de esa misma virtud”. do como tal derecho autónomo, pero que surge y deriva de la aplicación
12 .  Cfr. E. DÍAZ, “Legitimidad y justicia: la Constitución como zona de mediación”, Doxa,
núm 4, 1987, p. 350: “la Constitución, el gran pacto social constitucional, sintetiza así, puede
decirse […] ese espacio de convergencia entre legitimidad democrática y justicia material 13 .  M. WALZER, “La política de la diferencia. La estatalidad y la tolerancia en un mundo
(una cierta justicia material)”; y p. 352: “Tanto la regla procedimental [principio de la so- multicultural”, cit., p. 99, siendo la conclusión a la que llega el autor: “La diferencia ha de
beranía popular y regla de la mayoría] como la justicia material [los valores superiores ser doblemente tolerada [por los grupos y por los individuos disidentes de los grupos], me-
de ella] son, pues, expresión de la libertad; y ambas, a su vez, están incorporadas en la diante una mezcla cualquiera –no tiene por qué ser la misma mezcla en ambos casos– de
Constitución como norma básica o principio determinante de ella.” resignación, indiferencia, curiosidad y entusiasmo.”

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del parámetro del pluralismo cultural o religioso sobre otros derechos identidad cultural como derecho de los pueblos (y no como derecho de
fundamentales”; cuyo “soporte último de este derecho fundamental a la persona individual). En este sentido, se trataría de un derecho des-
ser diferente se encontraría en el valor mismo de la dignidad”14. En todo tinado únicamente a un número reducido de colectividades culturales17.
caso, lo que muestra lo descrito son las “lagunas y carencias que evi- Y, por otro lado, frente a la titularidad restringida antepuesta, tam-
dencian los textos constitucionales nacionales” en relación al reconoci- bién es posible distinguir la concepción de este derecho como un dere-
miento expreso de este derecho15. cho “genérico” (derecho a la identidad cultural de la persona). A diferen-
Precisamente, el reconocimiento en mayor medida sólo sectorial cia de la noción colectivista, se habla ahora de un derecho completo en
del derecho a la identidad cultural permite hablar, por un lado, de la relación a la titularidad de ejercicio, esto es, que extiende la titularidad
configuración normativa de este derecho sólo en sentido “parcial”, a a todas las personas, ya pertenezcan a minorías o ya pertenezcan a la
modo de un “derecho específico” para minorías (derecho a la diferen- mayoría, predicando el derecho de cada persona a su identidad cultural,
cia cultural) y, por tanto, armado como un derecho restringido a la cuya base es la igual dignidad atribuible a todos. Esta última concep-
legislación sectorial sobre las mismas. Desde esta perspectiva, la lógi- ción puede estimarse más sofisticada o más elaborada, y en todo caso
ca de una normación así es que de este derecho queden privados los se trata de una noción “individualista” de las libertades culturales, cuya
miembros de la mayoría cultural. Esta forma de abordar el derecho es protección a todos está garantizada a través del contenido de “igualdad”
útil únicamente como criterio con el que gestionar sociedades multi- que incluye este derecho18, consistente precisamente en no negar a nin-
culturales no en el sentido amplio de la palabra, sino sociedades con- guna persona el derecho a su (auto) identificación cultural.
formadas por una cultura central/mayoritaria y por dos, tres o cuatro En mi opinión, esta noción es más compatible con un multicultura-
–a lo sumo– culturas minoritarias bien delimitadas territorialmente lismo amplio, referido a las personas; y no con un multiculturalismo res-
(multiculturalismo restringido). Aquí nos encontraríamos con la con- tringido a ciertas colectividades. Como puede fácilmente deducirse, la
cepción más primitiva o inicial en la génesis de este derecho, cuya titu- concepción amplia es la que se hila en estas páginas. Y aunque las dos
laridad se impregnaría de la concepción más colectivista que dicho de- nociones han convivido en el siglo XX, sin embargo, la noción restringida
recho es susceptible de presentar16, configuradora de un derecho a la del derecho es cronológicamente anterior, pues la completa o más amplia
arranca con posterioridad, a partir de las últimas décadas del siglo XX.
14 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Derechos de la personalidad como elementos de articulación de En todo caso, generalidad como “igual titularidad” significa que
la Constitución Política y la Constitución Civil”, cit., pp. 22-23. Añade en p. 22: “un análisis
son titulares del derecho a la identidad cultural todas las personas,
comparativo de las legislaciones nacionales demuestra que resulta excepcional la utili-
zación de un sistema de codificación donde se regulen todas las particularidades jurídi- derivándose dicha generalidad de la común dignidad, cuya traducción
cas que exige el pluralismo cultural. Por el contrario, la técnica habitual con la que se da consiste en poner este derecho a disposición de todos19. Confirma L.
respuesta al problema del multiculturalismo consiste en regulaciones ‘sectoriales’ sobre
Ferrajoli que “la igualdad jurídica no será otra cosa que la idéntica titu-
aquellas materias sensibles”.
laridad” para todos, por lo que considerando estas palabras del autor
15 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Identidad cultural y derechos constitucionales de la persona-
lidad. El problema de la integración jurídica de la multiculturalidad”, cit., p. 395, añade:
“En contraste… el derecho internacional ofrece unos indicadores normativos mucho más
específicos con los que abordar el fenómeno del multiculturalismo. Un examen básico de 17 .  En buena medida, la concepción restringida de este derecho es la que se ha desarrol-
las principales declaraciones que pertenecen al orden jurídico convencional suministra lado preferentemente en España a partir de la Constitución de 1978, aunque no como de-
ya algunos de los parámetros y –límites– más relevantes a los cuales deberían ajustarse recho codificado de las minorías culturales sino como reconocimiento de particularismos
luego los legisladores estatales en el momento de regular las condiciones en que se ejerci- culturales de base territorial, garantizados a través del derecho a la autonomía política.
tan los derechos culturales.” 18 .  Sobre la problemática que supone el concepto de igualdad y su concreción, véase A.E.
16 .  Sobre la problemática de los derechos colectivos, véase F.J. ANSUÁTEGUI ROIG (ed.), PÉREZ LUÑO, Dimensiones de la igualdad, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto
Una discusión sobre derechos colectivos, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de de Derecho Humanos Bartolomé de las Casas, Dykinson, Madrid, 2007, especialmente Ca-
las Casas, Universidad Carlos III de Madrid, Dykinson, Madrid, 2001; y asimismo, N.M. LÓ- pítulos I y II.
PEZ CALERA, ¿Hay derechos colectivos? Individualidad y socialidad en la teoría de los 19 .  Cfr. M.C. BARRANCO AVILÉS, Diversidad de situaciones y universalidad de los dere-
derechos, Ariel, Barcelona, 2000; y A. GARCÍA INDA, Materiales para una reflexión sobre chos, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto de Derecho Humanos Bartolomé de las
los derechos colectivos, Dykinson, Madrid, 2001. Casas, Dykinson, Madrid, 2011, pp. 31-40.

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italiano, eso mismo es lo que ha de significar la igualdad jurídica en el “obliga a reconocerlo a cualquier persona” en el Estado Constitucional
derecho a la identidad cultural de la persona: la extensión de la titula- de Derecho23, de lo que resultará (e integrará) una noción de “ciudadanía
ridad de este derecho a todas las personas (titularidad generalizada) compleja” acorde con nuestro tiempo24. Lo opuesto, supone admitir que
en virtud de la igual dignidad predicable de todos y para todos, y eso existen aquellas personas aculturales, respecto de las que se niega que
“independiente del hecho, e incluso precisamente por el hecho de que posean libertades culturales y, en consecuencia, que no tiene sentido
los titulares entre sí son diferentes”20. que sean titulares de un derecho a la identidad cultural. Todo lo cual
Hay dos razones de peso para apoyar, en mi opinión, esta última no- conduce no sólo a un absurdo jurídico, y también social y político sino, a
ción del derecho (noción amplia). Se trata de dos razones morales, que, a lo que es más grave, también a un absurdo antropológico.
mi entender, son las que vuelcan la titularidad jurídica del derecho a la En el caso del Tribunal Constitucional español, a partir de que la doc-
identidad cultural hacia la generalidad. La primera razón es, como indi- trina constitucional asume que “la dignidad está reconocida a todas las
ca Ansuátegui, que “el individuo es el protagonista del discurso moral” personas con carácter general”25, éste ha ido estableciendo un marco de
en virtud de su “valor moral en sí mismo”21 y, como tal, lo es también del derechos vinculados a la dignidad humana, a la que se considera “valor
discurso de los derechos y, en consecuencia, lo ha de ser del derecho a espiritual y moral inherente a la persona, que se manifiesta en la auto-
la identidad cultural que aquí examinamos. Y la segunda razón es que determinación consciente y responsable de la propia vida y que lleva
el hecho de que la identidad cultural de la persona tenga su raíz moral consigo la propensión al respeto por parte de los demás”26. Se trata de
en el valor universal de la dignidad humana no es ni mucho menos ba- un marco de derechos de la persona “que no constituyen una lista cerra-
ladí desde el punto de vista jurídico, y esto lo ha puesto de manifestó da y exhaustiva”27, y por ejemplo ahí se incluyen contenidos de los que
muy acertadamente Peces-Barba. Al contrario, tiene significativas con- participa el derecho a la identidad cultural, tales como, sea el caso, “el
secuencias de carácter “jurídico-normativo” e “interpretativo”. Una de derecho a no ser discriminado por ninguna condición o circunstancia
estas consecuencias jurídicas afecta precisamente a la titularidad del personal o social”28. Y en relación a otros nuevos derechos, el Tribunal
derecho que observamos. Significa que anclar el derecho a la identidad Constitucional ha dejado, en general, libertad de configuración norma-
cultural en la dignidad humana va determinar, en su configuración ju- tiva al legislador democrático a la hora de concretar el contenido de este
rídica, que si este derecho está incluido dentro del grupo de “derechos tipo de derechos de la persona, aunque establece la condición de que su
pertenecientes a las personas en cuanto tal”, dicha titularidad no pue- titularidad no sea restringida29.
de restringirse a la ciudadanía nacional de un país, por ejemplo frente Pues bien, en tanto que puede afirmarse de manera sólida que el de-
a los inmigrantes22, o restringirse a las minorías culturales, por ejem- recho a la identidad cultural pertenece al ámbito de los derechos de la
plo, frente a los miembros de la mayoría; porque a todos a los que no se
les atribuye se les supone entonces jurídicamente aculturales. Lo cual
constituye un sin sentido. Téngase en cuenta que como derecho per- 23 .  Esta posición jurídica sobre la titularidad de los derechos anclados en la dignidad
de la persona es doctrina del Tribunal Constitucional español, véase, entre otras, STC
teneciente al grupo de derechos de la persona, dicha fundamentación
236/2007, de 7 de noviembre, FJ 3 y STC 95/2000, de 10 de abril, FJ 3.
24 .  Cfr. O. SALAZAR BENÍTEZ, “El derecho a la identidad cultural como elemento esen-
20 .  L. FERRAJOLI, Derechos y garantías. La ley del más débil, Trotta, Madrid, 2004, p. 82. cial de una ciudadanía compleja”, Revista de Estudios Políticos, núm 127, enero-marzo 2005,
21 .  F.J. ANSUÁTEGUI ROIG, “Derechos humanos; entre la universalidad y la diversidad”, pp. 297-322; asimismo, cfr. F. LLANO ALONSO, El humanismo cosmopolita de Immanuel
cit., pp. 28 y 35, cuyo criterio forma parte de una “estrategia de mínimos” para seguir ha- Kant, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto de Derecho Humanos Bartolomé de las
blando de derechos universales. Casas, Dykinson, 2002, especialmente Capítulo II.

22 .  Cfr. J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Del Estado-nación de Derecho al Estado de Derecho 25 .  STC 53/1985, de 11 de abril, F.3
postnacional. Análisis de la tesis de L. Ferrajoli sobre la desnacionalización de la teoría de 26 .  STC 53/1985, de 11 de abril, F.3
los derechos”, Derechos y Libertades, núm 13, Enero-Diciembre 2004, pp. 361-381.; asimismo, 27 .  STC 236/2007, de 7 de noviembre, FJ 3.
J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Del Estado-nación de Derecho al Estado de Derecho postnacio-
nal”, en M.A. LÓPEZ OLVERA y L.G. RODRÍGUEZ LOZANO (coords.), Tendencias actuales 28 .  STC 137/2000, de 29 de mayo FJ 1.
del Derecho Público en Iberoamérica, Editorial Porrúa, México DF, 2006, pp. 153-171.  29 .  Por ejemplo, STC 236/2007, de 7 de noviembre, FJ 17.

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personalidad30 y que es un derecho encuadrable dentro de los “derechos cho afecta resultan insatisfechas, el Ordenamiento jurídico deberá aquí
‘cultuales’ de la personalidad” por afectar a dimensiones relevantes y proporcionar asistencia a la persona, facilitándole los mecanismos y las
significativas de la persona moral en su dignidad como tal, no podemos garantías pertinentes que posibiliten remover la discriminación negati-
sino concluir que sus titulares legítimos son las personas individuales31, va y eliminar la desigualdad de hecho y, en definitiva, suministrándole
todas las personas individuales, en razón de que por la igual dignidad los instrumentos que posibiliten reponer a la persona en el disfrute de
de todos no tendría sentido reconocer este derecho a algunas personas sus libertades culturales a las que tiene derecho fundamental.
y negarlo a otras. Sin embargo, estos datos de individualidad y genera-
lidad son combatidos sobre todo por las concepciones más colectivistas
del derecho a la identidad cultural, que se encuentran más ancladas en
la praxis y fundamentación característica del siglo XIX que en la de fi-
2  ARGUMENTOS SOBRE EL
nal del XX o en el XXI, concibiéndolo como un “derecho de los pueblos” CONTENIDO DEL DERECHO
versus de la persona individual32.
La individualidad y generalidad en la titularidad del derecho que
examinamos en virtud de su naturaleza jurídica como derecho de la
personalidad significa que este derecho pueda ejercerse de dos modos
E n la teoría jurídica de los derechos, las categorías jurídicas de los va-
lores, de los principios y de los derechos vienen a constituir la con-
creción, a efectos de su realización, del deber ser de la dignidad humana
generales. Uno, de un “modo autónomo”, cuando la persona no encuen- como “criterio fundante” de aquellas categorías34 y como vértice del Or-
tra obstáculos para realizar sus libertades culturales y, por tanto, puede denamiento constitucional –y de todo el sistema jurídico– del país. O di-
satisfacer las necesidades humanas que este derecho afecta. Dos, de un cho con otras palabras, la dignidad humana genera, en relación al Dere-
“modo asistido”, cuando, por el contrario, la persona sí encuentra obs- cho (objetivo), valores, principios y derechos subjetivos que concretan
táculos para realizar alguna de (o todas) sus libertades culturales por –a efectos de su realización– el contenido de aquella35. La dignidad hu-
sí misma, generándose una situación de “discriminación negativa” a mana es, pues, “el deber ser básico del que emanan los valores y los dere-
modo de “discriminación cultural”, que sitúa a la persona en cuestión chos que sostienen la democracia”36. Frente a posiciones posmodernas
en una “posición de desigualdad” en relación a los demás titulares y de pragmatismo político que pregonan “la democracia sin fundamentos
que, tal como explica I.M. Young, “deriva en exclusión”33. Como en estos teóricos”37, para Peces-Barba, la dignidad humana es “fundamento de or-
supuestos, alguna de (o todas) las necesidades humanas que este dere- den político y jurídico” y es “fundamento del deber ser que constituye
la norma básica material que conforman los cuatro valores de la ética
pública política que se convierten en valores de la ética pública jurídica:
30 .  R. SORIANO, Compendio de teoría general del Derecho, Ariel, Barcelona, 1993, p. 172
en la que afirma que los derechos de la personalidad “tienen por objeto los elementos libertad, igualdad, seguridad y solidaridad, que a su vez se desarro-
constitutivos de la personalidad del sujeto en sus múltiples aspectos de desarrollo, con- llan en principios de organización del sistema institucional demo-
cretamente las facultades y las cualidades de la persona.”
31 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Derechos de la personalidad como elementos de articulación de
la Constitución Política y la Constitución Civil”, cit., p. 23: No estamos convencidos de que 34 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 63.
sea viable, desde el punto de vista constitucional [Constitución española], aceptar una 35 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., pp. 68 y 72.
titularidad de naturaleza colectiva del derecho a la diversidad cultural.” 36 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., pp. 63-64.
32 .  La cuestión de su naturaleza como derecho de la personalidad y titularidad individual 37 .  Un excelente análisis de este tipo de planteamientos puede verse en R. AGUILERA
muy posiblemente generará en la praxis y con frecuencia “casos difíciles” en sede judicial. PORTALES, Pragmatismo político. La democracia sin fundamentos en Richard Rorty. Aná-
Para la distinción entre casos difíciles y casos trágicos, véase, M. ATIENZA, Interpretación lisis y revisión crítica de su Teoría Política, Fontamara, México DF, 2011, pp. 63 y ss. Y en
constitucional, Universidad Libre de Colombia, Bogotá, 2010, pp. 126-153; asimismo, J.A. relación a la fundamentación de los derechos humanos, añade el autor en p. 87: “Richard
DEL REAL ALCALÁ, “Deber judicial de resolución y casos difíciles”, en Panóptica-Revista Rorty, desde su propuesta pragmática, observa y analiza la cultura de los derechos huma-
Acadêmica de Direito, núm 18, março-junho 2010, pp. 40-60. nos como un nuevo acontecimiento histórico internacional acerca del mundo, que no nece-
33 .  I.M. YOUNG, La justicia y la política de la diferencia, trad. de S. Álvarez, Cátedra, sita de ningún fundamento en el conocimiento moral y antropológico de la naturaleza hu-
Madrid, 2000, p. 285. mana.” Asimismo, p. 100 acerca de la crítica al fundacionalismo de los derechos humanos.

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crático y de los derechos fundamentales de los individuos y de los constitucionalismo46), sea el caso en Europa, entre otros, de la Constitu-
grupos formados por éstos, y que tienen como objetivo la realización ción española, Artículo 10.147; o de la Constitución alemana, Artículo 1.148;
de dimensiones del individuo que no se pueden realizar aisladamente”38. o en América Latina49, de la Constitución boliviana de 2009, Artículo 850.
La dignidad humana, pues, tiene un “puesto relevante, que es pre- Está claro, que en la normación de este derecho “la dificultad mayor
político y prejurídico”39 en el derecho a la identidad cultural, y su papel de esta operación no sólo tiene su origen en la obvia indeterminación
en relación al Derecho y a la sociedad justa es un “papel central, funda- que encierra” la noción cultura a la hora de delimitar/concretar los con-
mental y básico”40. Su vocación es “convertirse en moral legalizada”, o di- tenidos del derecho: “religión, costumbres y tradiciones colectivas, prác-
cho con otras palabras, “en Derecho positivo justo”41. Siendo, por eso, “el ticas individuales y sociofamiliares, etc.”; sino que “igualmente hay que
motivo de decisiones basadas en valores, principios y derechos, que al- evaluar el alcance que se le pueda dar a estos elementos culturales para
canzan su desarrollo pleno en el derecho positivo”, así como la continua valorar la posibilidad de positivizar derechos y libertades dotados de
“referencia en las argumentaciones o en la interpretación jurídica”42. una efectiva protección jurídica”51.
En este sentido, en virtud de que el derecho a la identidad cultural En mi opinión, y sintetizando, el derecho a la identidad cultural de
que estamos observando pretende realizar unos determinados “conte- la persona es sobre todo un “derecho a la libertad cultural”, a modo de
nidos de libertad” de la persona, más concretamente, un haz de “liberta- “libertad negativa”, “también llamada como libertad como no interfe-
des culturales” de la misma (que ya hemos definido en el ámbito moral43; rencia, [que] se identifica con la protección por parte del Derecho de un
y que deberá configurar normativamente cada legislador nacional), espacio de libertad en el que el individuo puede hacer lo que quiera o
puede afirmarse sin ningún problema que se trata de un derecho cuyo escoger lo que quiere hacer”, en nuestro caso en relación al ámbito de
contenido configurador viene a concretar44, en el ámbito de la cultura, a la cultura, porque “el individuo es soberano en esa parcela y el resto de
uno de los principales valores constitucionales: el “valor jurídico supe- sujetos y poderes tienen la obligación de no interferir esa soberanía”52.
rior de la libertad”45. Que, a su vez, descansa en el valor moral universal Visto lo cual, me inclino por utilizar la denominación de “libertad cul-
de la dignidad humana como cúspide del Derecho del país. Y la dignidad tural”, que en el ámbito de la cultura y los derechos es aceptada por la
humana es el inicio de la teoría general de los derechos. De hecho, en doctrina de autores como Habërle, que vincula la libertad a la cultura, y
numerosas ocasiones así ha sido recogido (cada vez más a raíz del neo- la libertad cultural a los derechos fundamentales53. En su opinión, lo que

46 .  Sobre el Estado Constitucional y el derecho por principios, véase, F. LLANO


38 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 74. ALONSO, El formalismo jurídico y la teoría experiencial del Derecho, Tirant lo Blanch,
39 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 64. Valencia, 2009, pp. 189-195.

40 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 65. 47 .  Artículo 10.1. de la Constitución española: “La dignidad de la persona, los derechos
inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley
41 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 64.
y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social”.
42 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., pp. 64-65.
48 .  Artículo 1.1. de la Ley Fundamental de Bonn: “La dignidad humana es intangible. Res-
43 .  Véanse los epígrafes 2.1. y 2.2. de este texto. petarla y protegerla es obligación de todo poder público”.
44 .  Este concretar no es un concretar total y definitivo, dado el nivel de indeterminación 49 .  Véase J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Constitución de 2009 y nuevo modelo de Estado de
que acompaña habitualmente –y sobre todo– a la normación constitucional de los dere- Derecho en Bolivia: el Estado de Derecho Plurinacional”, Cuadernos de la Fundación Ma-
chos. Véase, J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Ámbitos de la doctrina de la indeterminación del De- nuel Giménez Abad, núm 1 (número inaugural), 2011.
recho”, Jueces para la Democracia, núm 56, julio/2006, pp. 48-58; asimismo, J.A. DEL REAL
50 .  Artículo 8 de la Constitución boliviana de 2009: “El Estado se sustenta en los valores
ALCALÁ, “La indeterminación del Derecho”, en  VV.AA., El Derecho en perspectiva. Homena-
de… dignidad”.
je al Maestro José de Jesús López Monroy, Porrúa, México DF, 2009, pp. 279-300.
51 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Identidad cultural y derechos constitucionales de la personali-
45 .  Sobre el valor jurídico superior de la libertad, véase, G. PECES-BARBA, Curso de Dere-
dad. El problema de la integración jurídica de la multiculturalidad”, cit., p. 386.
chos fundamentales. Teoría general, cit., pp. 215-243.
52 .  R. de ASÍS ROIG, “La igualdad en el discurso de los derechos”, cit., p. 151.
53 .  P. HABËRLE, “Aspectos constitucionales de la identidad cultural”, cit., p. 90.

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pretende la noción de libertad cultural es “enriquecer la libertad a par- jurídico de la igualdad, presentándose como una “libertad positiva”58, en
tir del objeto”, esto es, “como libertad que, conforme a una apreciación palabras de R. de Asís, “llamada también libertad participación, [que] se
realista, está incorporada en una red de fines educativos y valores orien- identifica con el reconocimiento por parte del Derecho de la posibili-
tadores, parámetros culturales y obligaciones materiales, en suma, que dad de participar en la composición y actuación del Poder y también en
tiene literalmente a la ‘cultura’ como objeto, incluso como función”54. En otras parcelas de la vida social”59.
este aspecto, “la libertad cultural se presenta “como un objetivo impor- En este aspecto, coincidimos con el referente de la “igual dignidad”
tante para que las personas puedan vivir de la manera que deseen y esto de todos (igualdad) que ha definido Peces-Barba, como elemento moral
es un aspecto importante del desarrollo humano”, que no es otra cosa más sólido a la hora de afrontar las situaciones empíricas y jurídicas de
sino “que la gente pueda vivir y ser aquello que escoge y contar además “desigualdad”, “discriminación” y “diferencia”60. Lo que trata de corregir
con la posibilidad adecuada de optar también por otras alternativas” si la praxis del derecho a la identidad cultual de la persona, a partir de pre-
ese es su deseo55. Por tanto, el derecho a la identidad cultural se concibe dicar de todos el libre desarrollo de la personalidad, son los supuestos
aquí como un derecho a la libertad cultural de la persona. de discriminación negativa que generan desigualdad61. Y es susceptible
Pero, además de un derecho de libertad, el derecho a la identidad de hacerlo a través de medidas o técnicas –entre otras– como la igual-
cultural de la persona también pretende realizar contenidos propios de dad como equiparación62. Cuyo resultado determinará que la noción de
un derecho de igualdad. Su normación también ha de concretar otro de derecho se vuelque desde un derecho a la libertad cultural a un derecho
los valores jurídicos más significativos de la Constitución y del resto a la “libertad cultural igualitaria”.
del Ordenamiento jurídico: el “valor jurídico superior de la igualdad”56.
En relación al cual, parece que, “en efecto, el principio de igualdad es
interpretado actualmente en perfecta sintonía con el reconocimiento
3  CONCLUSIÓN
de las identidades diferenciadas, como derecho a no ser discriminado
en razón de ninguna circunstancia personal o social”, y esto incluye, por
supuesto, “las distinciones de carácter religioso, étnico o cultural”. Lo
que vendría a suponer que “se ha abandonado por tanto en el constitu-
E l Estado de Derecho, en su conformación inicial como Estado liberal
de Derecho reconoció en primer lugar como derechos fundamenta-
les a un conjunto de derechos individuales básicos, y fue posteriormen-
cionalismo occidental la concepción decimonónica que identificaba los
te, ya en la segunda mitad del siglo XX, como Estado social de Derecho,
conceptos de igualdad y de uniformidad jurídica”57.
Aunque, tanto la libertad como la igualdad descansan en el mismo
58 .  Cfr. I. BERLIN, “Dos conceptos de libertad”, en Id., Cuatro ensayos sobre la libertad,
valor moral universal de la dignidad humana, vértice de todo el Dere- vers. de J. Bayón, Alianza Editorial, Madrid, 2004.
cho del país, la igualdad en este derecho es entendida en su dimensión 59 .  R. de ASÍS ROIG, “La igualdad en el discurso de los derechos”, cit., p. 152.
de “igual dignidad” predicable de “todas” las personas. O, dicho de otra 60 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 73.
manera, aquí la libertad cultural de todas las personas deriva del valor 61 .  J. GARCÍA CÍVICO, “Haciendo desigualdad de la diferencia. Meritocracia y derecho
a la identidad cultural”, Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho, núm 19, 2009,
analiza la diferencia cultural como demérito de hecho y causa generadora de desigual-
54 .  P. HABËRLE, El Estado Constitucional, cit., p. 181. dad; es decir, p. 2: “hacer de la diferencia una cuestión de carencia para justificar desde
esa carencia la desigualdad socioeconómica de individuos, géneros o culturas. Como
55 .  Mª.J. AÑÓN ROIG, “Multiculturalidad y derechos humanos en los espacios públi- fórmula para legitimar la posición inferior de un sujeto o de un grupo apelando a su
cos: diversidad cultural y responsabilidad pública”, en E.J. RUIZ VIEYTEZ y G. URRUTIA menor aptitud, a sus carencias”.
ASUA (eds.), Derechos Humanos en contextos multiculturales. ¿Acomodo de derechos o
derechos de acomodo?, cit., pp. 57-58. 62 .  Mª.I. GARRIDO GÓMEZ, La igualdad en el contenido y en la aplicación de la ley, Dy-
kinson, Madrid, 2009, p. 165: “Con el fin de llevar a cabo la equiparación, se precisa una ope-
56 .  Sobre el valor jurídico superior de la igualdad, véase, G. PECES-BARBA, Curso de De- ración relacional que consta de requisitos necesarios referidos a una relación particular o
rechos fundamentales. Teoría general, cit., pp. 283-293. a un criterio específico. De ahí que se haga abstracción de datos que siendo diferentes no
57 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Identidad cultural y derechos constitucionales de la personali- se estiman como relevantes, pues la equiparación requiere la no consideración de algunas
dad. El problema de la integración jurídica de la multiculturalidad”, cit., p. 392: diferencias comprendidas como irrelevantes.”

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cuando tuvo lugar la incorporación constitucional de los derechos so-
ciales, económicos y culturales. Sin embargo, aunque siempre se nom-
bra a este grupo de derechos como un grupo compacto, un paquete de
derechos, en realidad, aquel (segundo) reconocimiento sólo ha tenido
lugar, en un sentido estricto, en relación a los derechos sociales y econó-
micos, y muy en menor medida en relación a los derechos culturales63.
En el siglo XX, en el ámbito de Europa, que incluye la experiencia
de ciertas sociedades y tiempos históricos que trataron de realizar has-
ta con sangre y crímenes contra la humanidad el “ideal de la homoge-
neidad”, los derechos culturales se han ido asumiendo –a lo largo de la
segunda mitad de ese siglo– muy poco a poco y más bien en aspectos
parciales/sectoriales y sólo en relación a algunos contenidos. No muy
diferente es la realidad de América Latina, cuya diversidad cultural/ét-
nica, más profunda que en las sociedades europeas, ha venido siendo
gestionada igualmente desde el criterio político y constitucional del
monismo cultural (uniculturalismo) disfrazado de universalismo abs-
tracto. Pero, también es cierto que tanto Europa como América Latina
avanzan desde finales del siglo XX hacia el mayor reconocimiento de los
derechos culturales, sobre todo a partir de la aceptación de la diversi-
dad cultural como dato empírico que describe objetivamente a la socie-
dad civil de nuestra época.
Pues bien, en ese contexto de reconocimiento positivo progresivo,
abogamos por el derecho a la identidad cultural como un derecho “ge-
neralizado” de las personas individuales, y no como un derecho restrin-
gido a los grupos, y con un contenido de “derecho de libertad” que no
puede prescindir al mismo tiempo, y en aras de su generalización a to-
dos, de su contenido también como un “derecho de igualdad”.

63 .  Cfr. J. PRIETO DE PEDRO, “Diversidad y derechos culturales”, en O. PÉREZ DE LA FUEN-


TE (ed.), Una discusión sobre la gestión de la diversidad cultural, Dykinson, Madrid, 2008.

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