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RESUMO Os autores discutem a ideia de crise como algo regular e sistemático no sistema ca-
pitalista, situando os momentos de crise aguda como parte inerente à luta política. Com uma
perspectiva histórica, procuram demonstrar que as transformações e os avanços obtidos na
cultura dos direitos ainda são muito recentes e não consolidados. Argumentam que o forta-
lecimento do individualismo na sociedade de consumo é inerente a este e que os projetos de
vida coletiva precisam valorizar a política e a busca de uma ética mínima, que possibilite a
convivência.
ABSTRACT The authors discuss the idea of crisis as something regular and systematic in the
capitalist system, situating moments of acute crisis as an inherent part of the political struggle.
With a historical perspective, they seek to demonstrate that the transformations and the advan-
ces achieved in the culture of rights are still very recent and unconsolidated. They argue that
the strengthening of individualism in the consumer society is inherent in it and that the projects
of collective life need to value the policy and the search for a minimum ethics, which enables
coexistence.
2 Universidade Federal
DOI: 10.1590/0103-11042016S06 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 63-72, DEZ 2016
64 REGO, S.; PALÁCIOS, M.
Os objetivos deste ensaio são refletir sobre de seu crescimento (seja ele fisiológico ou
algumas das diferentes faces que a crise atual não); ‘crise de nervos’, quando a estabilida-
no Brasil apresenta e analisá-las em busca de de emocional de um indivíduo se vê abalada,
um entendimento que contribua, na medida seja em decorrência do que for; crise da meia
do possível, para pensar em alternativas po- idade, crise do casamento e outras situações
líticas para o futuro. Não abordaremos aqui que envolvem indivíduos isoladamente.
nem a crise econômica, nem a crise política, Mas temos, também, as crises sociais, que
nem a de representatividade, tentando nos afetam coletividades, como a crise econô-
restringir às do campo moral. mica, quando os parâmetros regulares de
Existe uma ideia comum de que vivemos funcionamento e avaliação da economia são
uma crise ética, ou uma crise moral, ou, afetados de forma significativa; crise polí-
ainda, uma crise de valores em nosso País. Na tica, quando a estabilidade política de uma
verdade, uma das razões para a indefinição comunidade está alterada significativamen-
sobre a ‘crise’ está possivelmente na confusão te, e por aí vai. Mas podemos, também, refe-
que muitos fazem entre ética e moral e na sua rirmo-nos à crise ética, crise moral e mesmo
relação com valores em geral. A fim de escla- crise de valores. Mas será que é pertinente e
recermos essa questão, afirmamos que enten- apropriado focarmos nossa reflexão em cima
demos a moral como as normas que nos são da ideia de crise como algo desestabilizador
impostas pelo meio social em que vivemos, e com a concepção inerente de ameaça que
normas essas que são externas a nós. Temos, ela frequentemente traz?
assim, diferentes normas morais, que podem A rigor, a crise é inerente à vida, individual
ser religiosas ou profissionais, por exemplo. e social. Compreendemos que nada está es-
Já a ética é entendida como um discurso de tático, mas, sim, em permanente transforma-
segunda ordem sobre os problemas morais. ção. O mundo físico se transforma, mesmo
Ou seja, a ética é uma reflexão crítica sobre que sem a intervenção do homem, apenas
a moral. Assim, não seria correto falar em pela ação de elementos da natureza, como o
código de ética profissional, mas em código ar, a água, o fogo e as partículas físicas. Uma
da moral profissional. Todavia, essa distinção pedra é moldada seja pela ação do vento, seja
está mais reservada para as discussões acadê- da água ou mesmo do fogo. Um organismo
micas propriamente ditas, já que a distinção biológico cresce e se desenvolve e está sendo
não é de uso corrente na sociedade em geral. transformado permanentemente, mesmo
Guardemos, pois, a distinção. depois que a chamada vida se extingue.
Muitos associam essa crise moral a um Da mesma maneira, o mundo social
partido político específico; outros, à de- também está em permanente transformação.
mocracia como um todo; outros, entretan- As sociedades mudam, as formas como os
to, preferem responsabilizar a natureza humanos se relacionam mudam, como se or-
humana, o narcisismo, que cada vez mais ganizam, como trabalham, como se divertem.
se afirma como uma característica da Pós- Sim, e essas mudanças estão muitas vezes
Modernidade. Enfim, há uma crise? Essa relacionadas ao desenvolvimento da técnica
crise é brasileira? A crise é da humanidade, e do conhecimento, resultado do próprio
da Pós-Modernidade? desenvolvimento humano. Será que isso sig-
Falemos inicialmente da ideia de crise. Seu nifica que todas as crises trarão resultados
significado, lato sensu, refere-se a qualquer positivos? Que as mudanças são sempre boas
alteração significativa no status quo de algo. ou, ao menos, desejáveis? Guardemos essa
Assim, pode-se falar em crise do crescimen- pergunta para daqui a pouco.
to, em geral, referindo-se às mudanças que Antes, devemos introduzir a perspecti-
ocorrem em um indivíduo em decorrência va de avaliação de valor. E o que é valor?
Podemos genericamente dizer que se valoriza raramente são independentes do meio social
aquilo que se considera importante, ou seja, onde estamos inseridos ou em uma perspec-
aquilo no qual realizamos um investimento tiva individualista. Turiel (2002) enfatiza essa
afetivo. Assim, o que valorizamos é aquilo questão ao conceituar autonomia moral,
que compreendemos como relevante e sig- lembrando Piaget, ao ressaltar que os indi-
nificativo, seja em que área for. As situações víduos constroem sua personalidade e seus
nas quais os processos de transformação, ine- valores em interações com os outros, em
rentes ao ser individual/social, intensificam- perspectivas interdependentes. Entretanto,
-se e a possibilidade de mudanças fica mais essas relações não fariam com que as indi-
evidente serão mais ou menos valorizadas de vidualidades se anulassem, já que as pessoas
acordo com a expectativa que tivermos, com não se combinam como gases, mas requerem
nossa avaliação sobre os possíveis resultados que mantenham suas individualidades.
do processo, ainda que parciais. Há alguns anos, o grupo de trabalho em
E como são determinados os valores? Serão psicologia do desenvolvimento da ABRAPP
eles fixos e imutáveis? Claro que não. Variam (Associação Brasileira de Pós-Graduação
no indivíduo de acordo tanto com a sua idade, em Psicologia) propôs que seus membros
maturidade, experiências, bem como sua pesquisassem e escrevessem artigos e refle-
cultura e meio social. Como assim? Assim, xões sobre a pergunta: ‘Os valores estão em
quanto menor for o grupo social, maior a crise ou há uma crise de valores?’. Entre os
chance de os valores dos membros desses sub- vários trabalhos produzidos e publicados
conjuntos serem semelhantes. Ou seja, comu- em um livro, que teve como título uma va-
nidades mais fechadas, como comunidades riante da pergunta original, gostaríamos
religiosas ortodoxas, comunidades políticas, de destacar um, de Tognetta e Vinha (2009),
comunidades étnicas, têm maior probabili- da Universidade Estadual de Campinas
dade de compartilhar seus valores, ou, pelo (Unicamp). Nesse estudo, elas investigaram,
menos, aqueles fundamentais. Durkheim em um conjunto de estudantes do ensino
(2013), em seu clássico estudo sobre o suicídio, médio de Campinas, o que os deixava in-
demonstrou um dos possíveis efeitos desse dignados. O propósito era o de identificar a
fenômeno. Nas comunidades militares, onde percepção de justiça que eles tinham e em
o que é mais valorizado é o cumprimento de que âmbitos e situações eles percebiam in-
ordens, a submissão da vontade e da própria justiças e manifestavam indignação com isso.
vida ao bem comum, que é expresso pelas Os resultados encontrados foram altamente
suas lideranças, o suicídio é mais frequente, já preocupantes, já que a maioria desses jovens
que o apego a si não é o valor que se estimula manifestava indignação especialmente em
e se defende. Por outro lado, na comunida- situações nas quais seus interesses individu-
de judaica mundial, apesar da diáspora, que ais estavam ameaçados. A percepção da in-
possui uma rede de suporte grande na qual o justiça com relação ao outro foi muito aquém
bem-estar individual e a própria sobrevivên- do que se desejaria ou esperaria. Será esse
cia dos membros da comunidade são alguns mais um indicativo de quão individualista
de seus objetivos principais, o índice de sui- nossa sociedade tem se tornado? Que a per-
cídios é muito baixo (também a religião que cepção dos outros e a solidariedade com eles
muitos comungam, com seus valores ineren- não são mais valorizadas por nossos jovens?
tes, reforça essa valoração). Os valores de nossa sociedade mudaram
Assim, podemos compreender que, apesar e mudam com o passar do tempo, e não
de sermos capazes de autonomamente to- apenas os de nossa sociedade. Se distanciar-
marmos decisões sobre o que nos é mais mos nosso olhar dos fatos recentes e tentar-
apropriado, justo, certo, nossas escolhas mos considerar as mudanças ocorridas nos
últimos cem, duzentos ou trezentos anos, ve- parece concordar com Sennet, na medida
rificaremos que as mudanças são muito pro- em que percebe ter ocorrido uma verdadeira
fundas. Luc Ferry (2009), em seu livro ‘Diante desconstrução dos valores tradicionais rela-
da crise’, faz uma breve análise das transfor- cionados ao Antigo Regime, que culminou,
mações nas sociedades ocidentais desde a ao menos até agora, nessa hipervalorização
revolução industrial, de forma a demonstrar do consumo, como fim último do processo
que os valores tradicionais das famílias oci- econômico. A ideia de que a economia deve
dentais foram descontruídos. E é bom que proporcionar o desenvolvimento do bem
isso tenha ocorrido e que ocorra. Entretanto, comum foi subvertida em favor do consu-
as mudanças não são tão antigas e nem estão mismo e do individualismo.
tão sedimentadas assim. Como exemplo, ele Max Weber (2004) identificou que o ca-
menciona fatos relacionados à condição fe- pitalismo estava fundamentado em seus
minina: até 1975, na França, a esposa neces- primórdios pela influência calvinista, que
sitava pedir autorização ao marido para abrir preconizava que seus seguidores teriam sido
uma conta bancária; apenas em abril de 1991, chamados pelo divino, que teriam sido ‘esco-
o último cantão da Suíça concedeu o direito lhidos’ e, portanto, precisariam ser bons não
de voto para mulheres! Em nosso País, a apenas nas tarefas ritualísticas específicas,
despeito de ter sido aprovado, em 2002, um mas, também, em suas vidas pessoais e no tra-
novo Código Civil, em substituição ao que balho. Por terem sido ‘escolhidos’, o pecado
havia entrado em vigor em 1916, ainda per- seria condenatório e não perdoado com uma
sistem diversos anacronismos relacionados, visita ao pároco. O próprio Weber chega ao
inclusive, à condição feminina (DIAS, 2016). São conceito de desencantamento do mundo ao
diversos os atores sociais em permanente se referir tanto à desmistificação ou dessacra-
embate com o propósito de tentar consoli- lização da vida (no sentido religioso) como à
dar conquistas, enquanto outros resistem racionalização do mundo social que o desen-
aos novos tempos. Esses embates, todavia, volvimento capitalista promoveu. Quando o
são parte do processo de mudança social, capitalismo funciona com base na competi-
promovem avanços e recuos, seguem-se ção (entendida tanto no nível de indivíduos,
às transformações nas relações sociais em empresas e mesmo Estados), a necessidade
geral. O importante nesse processo é que de inovação e transformação é marcante, e a
os princípios da convivência democrática competição passa a ser efetivamente a mola
sejam preservados, que o espaço da política que impulsiona a sociedade. Sejam os deten-
não seja minado nem minimizado. tores dos meios de produção que competem
Neste ponto da reflexão, podemos recor- por mercados consumidores e benesses do
dar o pensamento de Richard Sennet (1999), Estado, sejam os trabalhadores que compe-
em seu já clássico estudo publicado com o tem por condições melhores de sobrevivên-
título ‘O declínio do homem público: as tira- cia. Esse quadro é muito grave e preocupante
nias da intimidade’. Nele, o autor defende a em países como o nosso, onde a desigualda-
ideia de que o esvaziamento da vida pública de social atinge proporções alarmantes e o
e a valorização desmedida da vida pessoal foi Estado, historicamente, é conivente com a
um processo que se iniciou com a queda do supermaximização de lucros e com a explo-
‘Antigo Regime’ e a formação de uma cultura ração dos trabalhadores. Não esquecendo sua
urbana e capitalista. Para Sennet, essa hiper- característica patrimonialista, ou seja, que
trofia da vida pessoal influenciou também a promove um certo embaçamento nas linhas
vida pública, tornando características indivi- que separam interesses públicos e privados
duais mais relevantes do que a própria pers- em benefício dos interesses privados dos go-
pectiva de classe social. Nesse sentido, Ferry vernantes e de seus aliados.
Em um período de importante inquietação crise que estamos vivendo: não é apenas uma
social no Brasil, que antecedeu a chamada crise brasileira, não é uma crise apenas eco-
Revolução de 30, o então presidente de Minas nômica, não é uma crise apenas de valores
Gerais, Antônio Carlos de Andrada, insatisfei- isolados, mas uma crise inerente ao desen-
to com os movimentos políticos dos paulistas, volvimento capitalista e às transformações
passa a articular a candidatura de Getúlio sistemáticas que ocorrem nas sociedades
Vargas e proferiu a célebre frase que marcou em geral. Mas temos algumas peculiaridades
esse momento histórico: “Façamos a revolu- ou especificidades quando olhamos para o
ção antes que o povo a faça!” (FGV, 2016). Assim, Brasil. É uma crise em um país periférico,
ainda que as elites governantes eventualmen- com um desenvolvimento político e cultural
te entrem em desacordo por seus interesses marcado pela pobreza e pela luta pela sobre-
específicos, em geral, fazem o que é necessá- vivência (compatível, provavelmente, com
rio para impedir ou controlar uma eventual o desenvolvimento de nosso capitalismo),
prevalência dos interesses dos trabalhadores. com uma tradição autoritária, antidemo-
Essa é uma visão algo estereotipada, mas crática e patrimonialista. A eficiência com
busca apenas que se vislumbre uma perspec- que a elite brasileira, com seus aliados tra-
tiva em que o poder não é cedido ou dividido dicionais nos meios de comunicação social,
facilmente por aqueles que o detêm. controlou e controla o acesso à informação
Para nos aproximarmos dos tempos atuais, e as possibilidades de desenvolvimento da
vamos recorrer à análise que tem sido desen- consciência crítica (e por que não política?)
volvida por Jurandir Freire Costa e que foi da população é inegável. A criatividade com
apresentada em 1988, no artigo ‘Narcisismo que formulam e reformulam suas estratégias
em tempos sombrios’. Nele, Costa se utiliza de controle da sociedade através do sistema
do que Slavoj Zizek chamou de visão cínica educacional é extraordinária, como bem ex-
do mundo. Este, por sua vez, tomou o con- pressam as atuais propostas de Escola Sem
ceito emprestado de Peter Sloterdijk, em seu Partido e Reforma do Ensino Médio, que
clássico ‘Crítica da razão cínica’. Para Costa, poderão resultar na significativa ampliação
das desigualdades.
Certos padrões de comportamento social no Assim, na crise atual brasileira, é mais
Brasil de hoje são suficientemente estáveis razoável compreendê-la como uma reação
e recorrentes, para que possamos afirmar a provocada a uma pequena tentativa de mo-
existência de uma forma particular de medo dernização do capitalismo brasileiro, ex-
e reação ao pânico, que é a ‘cultura narcísica presso pela compreensão de que a ampliação
da violência’. Esta cultura nutre-se e é nutri- do mercado consumidor e a expansão das
da pela decadência social e pelo descrédito parcerias comerciais estrangeiras em uma
da justiça e da lei. [...] Na cultura da violên- perspectiva Sul-Sul poderia sustentar o
cia, o futuro é negado ou representado como desenvolvimento econômico, melhorar as
ameaça de aniquilamento ou destruição. De condições de vida da população e manter
tal forma que a saída apresentada é a fruição os interesses da elite dominante preserva-
imediata do presente; a submissão ao status dos. Parece-nos ser um fato que o Partido
quo e a oposição sistemática e metódica a dos Trabalhadores (PT) fez uma opção na
qualquer projeto de mudança que implique disputa eleitoral de 2002, e que já era defen-
cooperação social e negociação não violenta dida por vários setores da esquerda brasilei-
de interesses particulares. (COSTA, 1988, s.p.). ra desde a luta contra a ditadura: a formação
da mais ampla frente democrática para con-
Estamos, assim, identificando algumas quistar o poder federal e governar buscando
das bases que permeiam nosso tempo e a conciliar e negociar os diferentes interesses.
Nessa perspectiva, o PT forjou uma aliança afetados de forma significativa pelos gover-
com o Partido Liberal, que assegurou o can- nos petistas, por que abandonaram aqueles
didato a vice-presidente, e o resto é história, que os trataram tão bem por quase dez anos?
com a atração daquele que sempre procurou Talvez o entendimento do conceito de
se apresentar como o centro na política bra- colonialidade ajude a compreender melhor
sileira, qual seja, o Partido do Movimento essa situação. Colonialidade foi descrita,
Democrático Brasileiro (PMDB). Mas essa inicialmente, por Quijano (1998) e pode ser
mesma elite parece preferir as práticas oli- compreendida como algo que transcende ao
gárquicas às liberais, não compreendendo colonialismo propriamente dito (isto é, ao
que a profunda desigualdade social não é boa fim da relação colonial) e está configurado
para o capitalismo atual. para manter as relações de subordinação no
Sabemos, hoje, que muitas das práticas sistema capitalista interestatal (FIORI, 2007). O
adotadas por segmentos do PT para alguns, modelo de colonização significava não só a
ou por seus principais dirigentes, para dominação econômica, mas, também, a do-
outros, repetiram as práticas corruptas que minação cultural. Como Assis (2014) apontou:
sempre caracterizaram boa parte da prática
política nacional. Em nome do ‘amplo arco A construção de hierarquias de raça, gênero e
da sociedade’, cedeu-se em pontos e em modos de apropriação dos recursos naturais,
questões que eticamente não seriam aceitá- pode ser vista como contemporânea para
veis. Os governos anteriores sempre assim se o estabelecimento de uma divisão interna-
comportaram, mas punições, efetivamente, cional do trabalho e territórios, marcado por
só surgiam quando se tentava ignorar o jogo relações assimétricas entre as economias
político mais amplo que estava sendo jogado, centrais e periféricas. Da perspectiva da co-
como no caso do governo Collor. lonialidade, as antigas hierarquias coloniais,
Mas devemos, também, nos questionar: que foram agrupadas como europeia versus
será que os comportamentos eticamente não-europeia, permaneceram entrincheira-
questionáveis de segmentos importantes do dos e presos na divisão internacional do tra-
PT foram de fato os determinantes para a balho. (ASSIS, 2014, p. 614).
sua derrocada e verdadeira desmoralização?
Ainda é cedo para termos uma compreensão Nessa perspectiva, as elites econômicas
mais ampla da questão, mas nos parece que nacionais não antagonizam os interesses in-
questões geopolíticas internacionais obje- ternacionais, uma vez que sua dependência
tivas também podem estar desempenhando os articula. No Brasil, podemos compreen-
um papel central nessa disputa: o descobri- der a ideia do ‘complexo de vira-latas’ como
mento de petróleo nas camadas do pré-sal expressão da perpetuação da ideologia colo-
brasileiro (em uma conjuntura em que nial, que expressa como algo ‘natural’ a des-
guerras são sistematicamente declaradas qualificação da miscigenação.
por disputas energéticas, como ocorre, por Costa, na obra citada, busca explicar de
exemplo, em Iraque, Irã, Kuwait, Crimeia e que forma a razão cínica se manifesta em
Ucrânia, entre tantas outras); a busca de in- uma sociedade como a brasileira. Para ele,
dependência de fato na política externa, bem se o dispositivo cultural de um povo é sis-
como nas ações econômicas; aliança com os tematicamente atacado, acaba-se retirando
demais países do Brics (Rússia, Índia, China os mecanismos de proteção dessa sociedade
e África do Sul) na construção de uma al- para enfrentar a desordem em si. O discur-
ternativa ao Banco Mundial, para citarmos so repetido de que a sociedade não é capaz
apenas algumas. Afinal, se os interesses das de reprimir o crime, que os traficantes estão
elites nacionais não estavam de fato sendo soltos, que os corruptos estão soltos, que
entre diferentes que se respeitam. Hannah perspectiva de alguma reciprocidade. Por esse
Arendt (1985) já afirmava que a violência surge ponto de vista, não existirá a ação altruística
onde os conflitos não podem ser resolvidos pura para quem não for parente, mas apenas
através do diálogo. Dois exemplos recentes ações que guardam implícitas perspectivas de
nos chamam a atenção e são ilustrativos do algum tipo de retribuição, direta ou indireta,
que estamos assinalando: a derrota de uma imediata ou tardia, integral ou fracionada.
proposta de acordo com as Forças Armadas Utilizando-se, também, de uma perspectiva
Revolucionárias da Colômbia (Farc), após evolucionista e naturalista, Paul Rée defende
amplo processo de negociação, em plebis- que existem impulsos altruísticos nos
cito na Colômbia, pode ilustrar a lógica do humanos e os fundamenta no instinto paren-
perde-ganha, suplantando a da negociação; tal, que é mantido através da seleção natural.
e o outro exemplo é a própria violência co- Já Nietzsche, por sua vez, refuta a possibili-
tidiana, das páginas policiais: ‘homem atira dade da existência da decisão altruística na
em outro em uma disputa por mesa em sho- medida em que todas as decisões seriam, em
pping center no Rio de Janeiro’, agressão a última análise, uma decisão que traria alguma
profissionais de saúde em emergências etc. utilidade para aquele que a tomou (ARALDI, 2016).
Para que possamos encerrar com um ques- Assim, resta perguntarmo-nos: existe a pos-
tionamento a mais, gostaríamos de trazer sibilidade de sermos efetivamente bons por
algumas das reflexões oriundas da neuroéti- vontade própria, ou a única possibilidade de
ca. As neurociências têm se desenvolvido de isso acontecer estará nas nossas característi-
forma muito intensa nas últimas décadas e cas genéticas, portanto, naturais, biológicas?
têm provocado uma nova gama de questiona- Se a liberdade individual for uma ilusão, se
mentos, e não apenas no neuromarketing (in- somos apenas resultado do que está determi-
clusive político). Dawkins (2007), por exemplo, nado por gerações em nossos genes, as ações
defende a ideia de que a sobrevivência é deter- políticas e educacionais também terão que
minada por uma ‘disputa’ entre genes, os quais acompanhar essa compreensão, provocando,
determinam as melhores possibilidades de so- assim, uma nova revolução copernicana, onde
brevivência. Assim, seríamos biologicamen- o sol passaria a ser visto como o código gené-
te programados para sobreviver, na medida tico que possuímos e em torno do qual nossa
em que os genes que não favorecessem essa suposta liberdade circularia? Seja como for,
melhor possibilidade não estariam fadados o respeito, o diálogo e a liberdade são ingre-
a sobreviver. Por outro lado, como lembra dientes fundamentais para a democracia po-
Cortina, somos, também, animais capazes de lítica, única forma, ainda que imperfeita, de
praticar atos altruístas. Como explicação para garantir a convivência em sociedades plurais
esse fenômeno, ela apresenta duas alterna- (DEWEY, 1964; CORTINA, 2009). Fora da política, o que
tivas: a primeira, de que uma vertente desse existe é a barbárie. E a Política não pode estar
gene egoísta proporcionaria uma atuação desassociada dos movimentos sociais e das
em favor daqueles que compartilham genes ruas.
conosco, ou seja, nossos parentes. Assim, o al-
truísmo tão comum no cuidado, por exemplo,
de uma mãe com seus filhos seria apenas uma Colaboradores
expressão dessa vertente genética egoísta e
nepótica; a outra explicação baseia-se na ideia Ambos os autores participaram de todas as
de que os humanos são capazes, também, de fases de preparação do artigo, desde a de-
ações altruísticas para além dos limites fami- finição do tema, do escopo, redação, até a
liares à medida que tenham a expectativa ou revisão final. s
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