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Julio Cesar Dias Chaves

Vicente Dobroruka (Org.)


Vicente Dobroruka

Julio Cesar Dias Chaves


(Org.)

Julio Cesar Dias Chaves nasceu em 1981 Vicente Dobroruka nasceu no Rio de Janeiro
em Brasília, onde se graduou em em 1969 e cursou graduação e mestrado em
História pela UnB. É ainda mestre e História na PUC-Rio. É doutor em Teologia
doutorando em Ciências das Religiões pela Universidade de Oxford (pela qual é
pela Université Laval, em Québec, e também mestre em Estudos Orientais),
professor de História do Antigo Oriente estudando os processos visionários dos

Espectadores do Sagrado
na UPIS. Especialista em cristianismo apocalipses judaicos e persas. É professor de
antigo, interessa-se pelo estudo da História Antiga na Universidade de Brasília
literatura apocalíptica, do gnosticismo desde 1997.
e dos códices de Nag Hammadi e suas Após 2010 Vicente Dobroruka tornou-se
relações com a literatura copta na membro vitalício de Clare Hall (Cambridge,
Antiguidade tardia. Entre 2008 e 2009, Eliade já dizia em sua clássica obra, O Sagrado e o onde foi professor visitante) e do Ancient
foi professor de Patrologia na Profano, que o “sagrado” aparece na experiência India and Iran Trust, na mesma cidade. É
Faculdade de Teologia da Arquidiocese membro do projeto internacional de
humana como um ponto fundamental de orientação,
de Brasília, e desde 2010 é Auxiliar de estudos da literatura judaica do Segundo
Pesquisas e Ensino na Université Laval.
permitindo ainda o acesso à realidade ontológica a partir
Templo da Universidade de Michigan
Julio Cesar Dias Chaves faz ainda parte da qual se origina e à qual o homo religious aspira. 4Enoch (http://www.enochseminar.org) e
do Groupe de recherche sur Le Espectadores do Sagrado é uma obra que traduz com coordena o Projeto de Estudos Judaico-
christianisme ancien et l'antiquité exemplos tirados da Antiguidade essa aspiração do Helenísticos - PEJ (www.pej-unb.org). Nos
tardive – GRECAT e do Seminário homo religious pelo sagrado. As contribuições contidas últimos anos tem se dedicado ao estudo da
Permanente Bibliothèque copte de Nag neste volume tratam dessa busca pelo sagrado por meio literatura apocalíptica em persa médio.
Hammadi, colaborando na elaboração de análises que visam desde as interpretações do livro de

Espectadores do Sagrado
de edições críticas e traduções Daniel feitas por Josefo e 4 Esdras até as sete idades do
francesas de textos apócrifos coptas. mundo de Agostinho, passando ainda pelas
experiências visionárias de Paulo, pelo Evangelho de
Mateus, pelo recentemente descoberto Evangelho de Literatura apocalíptica, apócrifos do Novo Testamento
Judas e pela literatura apócrifa copta. Seja por meio da e experiência visionária
Bíblia, seja por meio da literatura gnóstica, o homo
religious da Antiguidade era seguramente um
ISBN 978-85-230-1158-1 espectador do Sagrado.

9 788523 011581
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília

E77c Espectadores do sagrado : literatura apocalíptica, apócrifos do


Novo Testamento e experiência visionária / Julio Cesar Dias
_
Chaves e Vicente Dobroruka, organizadores. Brasília :
Editora Universidade de Brasília, 2015.
364
365 p. ; 22 cm.

ISBN 978-85-230-1158- 1

1. Judaísmo helenístico. 2. Literatura apocalíptica. 3.


Sincretismo religioso na Antiguidade. 4. Apócrifos. I.
Chaves, Julio Cesar Dias. II. Dobroruka, Vicente
Carlos Rodrigues Álvares.

CDU 225
Impresso no Brasil
Para Andrea e Shelley
̓ λπὶς καὶ κίνδυνος ἐν ἀνθρώποισιν
Ε
ὁμοῖοι.
Teógnis, Elegia 1.637
Agradecimentos

Entre a compilação deste volume e sua publicação, decorreu


um prazo considerável. Realizar uma seção de agradecimento
nessas condições envolve, portanto, não apenas agradecer a quem
efetivamente colaborou na ocasião da própria compilação mas
também a algumas pessoas que foram muito importantes em
períodos subseqüentes. Achamos importante ainda separar os
agradecimentos pelos dois organizadores – embora permaneçam
aqui nosso “muito obrigado” e nossas apologias a todos os
participantes do volume, por sua paciência para conosco.
Vicente Dobroruka: devo agradecer aos muitos colegas daqui
e do estrangeiro, mas em especial aos colegas de meu projeto
sucessor do PEJ, o MPS – Middle Persian Studies, dedicado
essencialmente ao estudo da literatura apocalíptica persa: são eles
Ayub Naser, Carlo G. Cereti, Carmen Lícia Palazzo, Domenico
Agostini, Touraj Daryaee e Zeke Kassock. Entre os muitos e bons
colegas estrangeiros, devo destacar alguns que pela proximidade e
troca de idéias sempre serão referências em minha trajetória: refiro-
-me especialmente a Chris Rowland, Martin Goodman, Alison
Salvesen, Paul Joyce (Oxford); Almut Hintze, Jim Aitken, Tony
Street, Bob Ackerman e John Hinnells (Cambridge); James H.
Charlesworth (Princeton), Steve Mason (Groniguem, Holanda),
Zuleika Rodgers (Dublin), John J. Collins (Yale), Florian Schwarz
e Chiara Barbati (OAW, Viena). Julio Cesar Dias Chaves foi meu
aluno e em pouco tempo tornou-se meu mestre: espero dividir a
organização e autoria de outros livros com ele no futuro.
No grupo de pesquisa “4Enoch”, o apoio de seu organizador
Gabriele Boccaccini (Michigan) foi inestimável, bem como o
de colegas presentes daquele grupo de pesquisa e também na
seção de literatura apocalíptica da Society for Biblical Literature
(SBL): Lorenzo diTommaso, Grant Mackaskill, Matthias Henze,
Michael Stone, Loren Stuckenbruck, Jim Davila, Robert A. Kraft,
Florentina Badalonava-Geller, Lester Grabbe, Jason Zurawski,
Isaac Oliver, Andrei Orlov, Basil Lourié, Emmanoela Grypeou e
Alexander Kulik, Eibert Tigchelaar, KU Leuven.
Entre meus colegas no Brasil devo lembrar, como sempre,
do apoio e amizade de Paulo Nogueira (UMESP) e de alguns
colegas na UnB que tornaram este trabalho melhor pelo lustro de
seu convívio e amizade: Agnaldo C. Portugal, Teresa N. Marques,
Maria Eurydice de Barros Ribeiro, Celso S. Fonseca bem como
os amigos Virgílio Caixeta Arraes e Estêvão de Rezende Martins.
Devo lembrar que sem Mariana Magalhães nenhum texto
faria sentido na vida simbólica; mais uma vez te agradeço por me
ajudar a compreender a semiótica da vida do espírito, há mais de
uma década.
Por fim, mas não menos importante, agradeço a presença
carinhosa de Stela Valadares, que viu o livro nascer depois de
tanto tempo. Por todos os motivos ela merece um agradecimento
muito especial.
Julio Cesar Dias Chaves: a tarefa de agradecer sempre me
parece árdua, pois recebi e recebo ajuda de tantas pessoas em tantos
momentos que sempre receio esquecer-me de alguém. É como se
São Paulo me dissesse o mesmo que disse aos cristãos de Corinto
há quase dois mil anos: “Que é que possuis que não tenhas
recebido (2Cor 4:7)?” Se eu não tivesse recebido tanta ajuda de
tantas pessoas, o presente livro jamais teria sido publicado.
Do ponto de vista pessoal, gostaria, portanto, de agradecer a
todos meus familiares, a começar pela minha esposa, Andrea, e
meus filhos – Teresa, Otavio e Julia – que, por serem tão pequenos
sequer sabem direito o que faço, mas que sempre foram fonte de
alegria para mim. Eu não poderia deixar de agradecer a meu pai
e meu irmão, e também à minha mãe (in memoriam) já há tantos
anos falecida; minha tia Lenimar, que desde então, tem sido
quase uma segunda mãe para mim, e minha querida avó, Valdete.
Um agradecimento especial também à minha madrasta, Gilda,
que depois do falecimento de minha mãe, soube cuidar tão bem
de meu pai. Enfim, a todos os meus familiares e amigos.
Do ponto de vista profissional, eu não poderia deixar de
agradecer a todos os colegas do PEJ, que ao longo de todos esses
anos contribuíram para o meu desenvolvimento acadêmico;
de maneira especial ao amigo Victor Passuello, que além de
tudo contribuiu com um artigo para o presente volume. Esse
desenvolvimento jamais seria completo sem os anos que passei no
Canadá, ao lado de renomados especialistas que têm importância
fundamental na minha vida acadêmica. Dentre eles, eu não
poderia deixar de mencionar meu orientador, Louis Painchaud
– que também contribuiu com um artigo para esse volume –
meu coorientador, Paul-Hubert Poirier, e meu professor de
copta, Wolf-Peter Funk. Dentre os amigos que fiz no ambiente
acadêmico, não posso esquecer-me de agradecer a Steve Jonhston
e Eric Crégheur – com quem tantas vezes divertidamente discuti
meus temas de estudo – e a Alin Suciu, outro que contribuiu com
um artigo para esse volume. Obviamente, devo ainda agradecer
aos demais colegas que se deram ao trabalho de escrever um artigo
para esta coletânea.
E por fim, gostaria de agradecer ao professor Vicente
Dobroruka, o grande responsável por tudo isso (mesmo que ele
negue); afinal, sem ele, eu jamais teria me interessado pelo estudo
da Bíblia e do cristianismo antigo. Em 2001, quando fui aluno
do Vicente, eu jamais poderia imaginar que estaria ao lado dele,
cerca de 15 anos depois, lançando um livro como coorganizador.
Posso dizer que hoje, ele é mais que um mestre ou colega, mas um
amigo, com quem é sempre prazeroso discutir automobilismo e
história militar.
Lista de abreviaturas

As abreviaturas de livros bíblicos seguem, salvo se indicado o


contrário, os parâmetros adotados pela Bíblia de Jerusalém. São
Paulo: Paulinas, 1986.

1En Primeiro Livro de Enoch


2Br Segundo Livro de Baruch
AJ Antiguidades Judaicas
ApEl Apocalipse de Elias
ARA Almeida Revista e Atualizada
BG Berolinensis Gnosticus (Codex de Berlim)
BJ Guerra dos Judeus (Bellum Judaicum)
CD A Cidade de Deus (De Ciuitate Dei)
CSCO Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium
GCM Sobre o Gênesis contra os maniqueus (De Genesi aduersus
manichaeos)
NH Nag Hammadi
NTG Novo Testamento Grego
NVI (Bíblia) Nova Versão Internacional
OG Old Greek
PCAT A instrução dos catecúmenos ou Sobre as pessoas que
devem ser catequizadas (De catechizandis rudibus)
PG Migne, Patrologia Grega
PL Migne, Patrologia Latina
PGM Greek Magic Papyri
RASC estados de consciência religiosamente alterados
RISC Religiously Interpreted State of Consciousness (estado de
consciência religiosamente interpretado)
TEB Tradução Econômica Bíblica
UBE Unbekannte Berliner Evangelium
Sinais editoriais dos textos coptas
A legenda que se segue foi preparada com o intuito de facilitar a
compreensão do leitor no que diz respeito aos textos coptas traduzidos
para o português:

[...] a utilização de colchetes indica que há no texto copta uma


lacuna, fruto da decomposição de uma parte do manuscrito ou do
desaparecimento da tinta ou de uma rasura. A quantidade de pontos
indica, via de regra, a quantidade aproximada de caracteres coptas
que poderiam caber na lacuna; quando a lacuna é muito extensa, os
pontos são substituídos por uma frase que diz o tamanho aproximado
da lacuna, e que, obviamente, não faz parte do texto copta. Em alguns
casos existe a possibilidade de preenchimento de lacunas; portanto,
quando alguma letra, palavra ou frase encontra-se dentro de colchetes
na tradução em português, significa que uma lacuna foi restaurada
pelo editor do texto copta e o tradutor português assim o traduziu.

< > este símbolo indica que há no manuscrito copta um erro


cometido pelo escriba que foi corrigido pelo editor do texto copta e
que o tradutor português traduziu de acordo com a correção.

( ) a utilização de parêntesis indica que o tradutor português


está inserindo algo no texto traduzido para facilitar a compreensão
do leitor. A utilização de pronomes pessoais do caso reto em copta
é muito comum, o que, muitas vezes, pode dificultar o entendimento
de um trecho em específico que está fora do contexto geral do texto.
Os parêntesis também indicam, ao fim da citação de uma tradução
portuguesa do texto copta, a referência do trecho no manuscrito copta.
Sumário

Introdução.........................................................................17
Julio Cesar Dias Chaves

Prefácio: o tempo, a eternidade e a razão..................................23


Estevão C. de Rezende Martins

Flávio Josefo, Daniel e a Providência Divina


nas Antiguidades Judaicas............................................................27
Victor Passuello

Nas asas da águia: a exegese visionária dos impérios


mundiais de Daniel no Quarto livro de Esdras.........................53
Vicente Dobroruka

Apocalíptica e interações culturais


no mundo romano-helenístico: o caso do apóstolo Paulo...............79
Monica Selvatici

Paulo apóstolo nos estudos de religião:


a importância de sua experiência visionária apocalíptica...........101
Jonas Machado

Identidades fluidas: controvérsias sobre mistura


e separação em Mateus.................................................................151
Elisa Rodrigues
Os evangelhos gnósticos..............................................................193
Louis Painchaud

O Evangelho do Salvador (P. Berol. 22220) no seu contexto:


Jesus e os apóstolos na literatura copta........................................221
Alin Suciu

Judas, herói ou traidor: o Evangelho de Judas do Codex Tchacos...259


Julio Cesar Dias Chaves

A importância da teoria das sete idades do mundo no pensamento


de Santo Agostinho sobre o sentido da história: os casos das obras
Sobre as pessoas que devem ser catequizadas e Cidade de Deus..........293
Fabrício Santos Barbacena

Bibliografia.............................................................................313

Índice onomástico........................................................................349
Introdução

Julio Cesar Dias Chaves

Há 14 anos, era fundado pelo professor Vicente


Dobroruka, com a participação de alguns alunos de graduação
do Departamento de História da Universidade de Brasília, o
Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos – PEJ, uma espécie
de grupo de pesquisa que se dedicaria ao estudo do judaísmo
helenístico e religiosidades correlatas, como o cristianismo
primitivo. Desde 2001, o PEJ tem participado de diversos
eventos e seminários acadêmicos, nos quais seus membros
apresentam comunicações científicas ou até mesmo palestras
e conferências; o PEJ contribuiu igualmente com o ingresso
de diversos de seus membros, incluso o autor da presente
introdução, em programas de pós-graduação em numerosas
universidades de renome no Brasil e no mundo. A massiva
participação em eventos acadêmicos naturalmente fez com que
surgissem contatos entre o PEJ e demais grupos de pesquisa
de religiões do mundo helenístico, notadamente o grupo
Oracula, da Universidade Metodista de São Paulo. O não
menos producente contato com professores de universidades
estrangeiras,1 em especial o professor Louis Painchaud, da

1
Outros pesquisadores de renome podem ser citados, como os professores Martin
Goodman (Universidade de Oxford), Steve Mason (York University, Toronto) e
Almut Hintze (Universidade de Cambridge e School of Oriental and African Studies -
SOAS - da Universidade de Londres).
Espectadores do sagrado

Faculdade de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade


Laval, Québec, Canadá, que participa deste livro com um artigo,
propiciou um intercâmbio acadêmico que tem sido extremamente
relevante para o desenvolvimento das pesquisas das religiões do
mundo helenístico no Brasil.
Tendo em vista, portanto, tamanha produção acadêmica, que
tem congregado estudantes de diversos estados e universidades
brasileiras e estrangeiras, bem como contado com a participação de
estudiosos renomados, mais uma vez não só no Brasil, mas também
no mundo, surgiu a ideia do presente livro. No ano de 2006, numa
conversa informal com o professor Vicente Dobroruka, o autor
desta introdução, tendo percebido a quantidade considerável
de membros do PEJ que já haviam ingressado, ou até mesmo
concluído, cursos de pós-graduação em instituições acadêmicas
de peso, sugeriu a organização de uma coletânea que abarcasse
os principais temas de estudo do PEJ desde a sua fundação.
Ao se considerar os contatos do PEJ nesses cerca de quinze anos
de existência, concluiu-se que seria mais do que justo e necessário
poder contar com a participação de alguns membros dos citados
grupos de pesquisa e professores de outras instituições.
A ideia da coletânea pareceu inicialmente audaz, mas nem
por isso impossível de ser realizada. O objetivo, desde a primeira
conversa informal com o prof. Vicente, era organizar uma
coletânea com assuntos e artigos de vanguarda, contribuições
verdadeiramente inéditas para o estudo das religiões do mundo
helenístico não só no âmbito acadêmico brasileiro, mas também
mundial. Esta coletânea é, portanto, uma contribuição avançada
para a pesquisa; os artigos não são meras compilações ou florilégios
de assuntos já tratados por outros comentadores, mas artigos
inéditos com assuntos que estão sendo discutidos nos principais
ambientes acadêmicos do mundo. Exemplos claros disso são as
duas contribuições de autores internacionais presentes neste

18
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

livro, ambos da Universidade Laval, Québec; Alin Suciu, doutor


pela citada universidade, hoje pesquisador na Universidade de
Göttingen tem realizado uma pesquisa minuciosa em relação ao
chamado Evangelho do Salvador, pesquisa que tem chegado a
resultados inéditos, que contradizem os tradicionais estudos do
texto. A contribuição de Suciu para esta coletânea é a primeira
amostra de seus resultados a ser publicada, o que demonstra a
importância que o Brasil está assumindo no cenário internacional
de estudos das religiões helenísticas. De igual importância é
a contribuição do professor Painchaud, que buscou em seu
artigo fazer um apanhado e análise dos chamados “evangelhos
gnósticos”. Longe de ser uma compilação do que já foi dito
por outros autores, Painchaud, um dos maiores especialistas em
gnosticismo no mundo, adota uma postura revisionista e crítica
que procura explicar detalhadamente o quão problemática
do ponto de vista literário a categoria “evangelho gnóstico”
pode ser. O autor da presente introdução também contribui
com um artigo inédito sobre um assunto que recentemente
movimentou diversos estudiosos do cristianismo primitivo e
até mesmo a imprensa, o Evangelho de Judas. Por ser brasileiro
que faz um doutorado na Universidade Laval, o autor tem tido
a oportunidade de manter contatos acadêmicos com diversos
especialistas, o que lhe permitiu redigir o artigo em questão,
tornando acessível ao público lusófono toda a polêmica em
torno do famoso Evangelho de Judas.
Hoje professor da Universidade Estadual de Goiás, Victor
Passuello doutorou-se em 2004, na Universidade de Reading.
Passuelo foi um dos primeiros membros do PEJ e contribui
nesta coletânea com um excelente artigo sobre as Antiguidades
judaicas de Josefo e o livro de Daniel. Outro membro do PEJ,
o mestre em História pela Universidade de Brasília Fabrício
Santos Barbacena (ex-orientando do professor Dobroruka),

19
Espectadores do sagrado

ajuda a aumentar o número de páginas da coletânea dedicadas


ao cristianismo primitivo com uma contribuição sobre a teoria
das sete idades do mundo de Santo Agostinho. Completando o
conjunto de membros do PEJ, o professor Vicente Dobroruka,
coorganizador da coletânea e um dos grandes especialistas
brasileiros em literatura apocalíptica, contribui com um artigo
sobre o tema das visões dos quatro impérios mundiais no livro
de Daniel e sua exegese no texto conhecido como 4Ezra, um
apocalipse judaico do fim do séc. I e início do séc. II.
Completando o livro, têm-se os não menos importantes
estudiosos brasileiros de outras instituições. Conta-se
com a participação de dois membros do grupo Oracula da
Universidade Metodista de São Paulo; Jonas Machado e Elisa
Rodrigues, ambos doutores pela instituição em questão. Como
o grupo Oracula tem se dedicado com mais afinco ao estudo do
cristianismo primitivo, ambas as contribuições discorrem sobre
questões relativas ao Novo Testamento. Jonas Machado fala da
importância da experiência visionária de Paulo para os estudos
de religião, enquanto Elisa Rodrigues tece comentários em
relação às controvérsias sobre mistura e separação no Evangelho
de Mateus. Monica Selvatici, professora da Universidade
Estadual de Londrina, completa o seleto grupo de autores da
presente coletânea com mais uma importante contribuição sobre
literatura apocalíptica, na qual discorre sobre interações culturais
no mundo romano-helenístico, ocupando-se especialmente do
caso de Paulo.
Seria ainda apropriado por fim, agradecer a participação do
professor da Universidade de Brasília e consultor do PEJ, Estevão
de Rezende Martins, que aceitou o convite para participar da
presente coletânea, redigindo o prefácio. A participação do
professor Estevão de Rezende Martins, que sempre demonstrou
profissionalismo e competência acadêmica, muito honrou os

20
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

organizadores e participantes desta coletânea, e dá o toque final


de excelência neste livro que, como dito anteriormente, tem como
objetivo reforçar e divulgar os estudos de acadêmicos brasileiros
ou daqueles que têm ligações com a academia nacional relativos
ao estudo das religiões no mundo helenístico.2

2
Cabe ainda enfatizar que os pontos de vista expressos nos diferentes artigos do
presente volume são de inteira e exclusiva responsabilidade de seus autores e não
refletem necessariamente a opinião dos organizadores.

21
Prefácio: o tempo, a eternidade e a razão

Quem busca encontrar o cotidiano do tempo histórico


deve contemplar as rugas do rosto de um homem, ou
então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de
um destino já vivido.
(R. Koselleck)1

Homens e mulheres de todos as épocas se veem confrontados


com uma carência existencial elementar: como haver-se com o
passar do tempo? Como domesticar o tempo que não volta mais?
Como produzir o tempo que virá?
Cada momento concreto da vida social fornece a moldura
cultural dentro de cujos parâmetros se elabora a transformação
da experiência empírica da vida de todos os dias em experiência
refletida da consciência histórica. Há, por conseguinte, uma
interação constante entre o meio da sociedade e da cultura e a sua
expressão ponderada no pensamento e no agir históricos de todos
e de cada um. Dessa interação há incontáveis testemunhos. Seus
registros são postos nos traços da ação humana – escritos, objetos,
construções: marcas que o fazer e o pensar dos homens inscrevem
na memória do tempo. Essas marcas, à medida que a distância

1
Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto / PUC-Rio, 2006. P.13 [orig. alemão 1979].
Espectadores do sagrado

cronológica aumenta, tornam-se, simultaneamente, fonte de


informação e enigma a ser decifrado.
Pensar a memória e dela lançar mão, no tempo presente, fazem
da razão uma produtora de transcendência temporal. A concretude
finita do tempo vivido é transposta para uma construção intelectual
de longo prazo, não raro tão longo que introduz um certo tipo de
eternidade, no antes e no depois do tempo vivido. Transcender os
grilhões de sua finitude, pela análise reflexiva, ultrapassa – ao menos
teoricamente – a limitação da imanência. O salto reflexivo ocorre
tanto espontânea quanto metodicamente. Ele é espontâneo pois
todo e qualquer um constrói para si uma representação da tríade
passado-presente-futuro como forma de ancorar em determinado
conjunto de referências sua própria presença no tempo. Esse salto
pode ser também metódico, sempre que se produzir uma forma de
representação interpretativa do tempo de modo sistemático, como
na historiografia, por exemplo.
Nos primórdios da sistematização reflexiva do tempo vivido
na tradição do Mediterrâneo, inúmeros textos foram produzidos
sob a inspiração da incipiente vivência do cristianismo. No cadinho
mediterrâneo se entrecruzaram tradições multisseculares, como a
romana, a judaica, a helênica. Este livro aborda uma seleção de textos
marcantes da fase de afirmação da identidade cristã. As análises
oferecidas trazem para o público brasileiro uma contribuição de
monta para decifrar não poucos enigmas da domesticação do tempo
escatológico dos primeiros séculos de nossa era.
O tempo que se quer decifrar nesses escritos é tanto o tempo
das origens quanto o tempo dos fins – o tempo do ontem e o
tempo do amanhã. As pesquisas levadas a cabo pelos autores
das contribuições reunidas neste volume têm a vantagem de
oferecer ao leitor, dentre outros recursos, uma apresentação
atenta dos conteúdos referidos, uma análise linguística apurada,
uma re-presentação afinada com as questões postas hoje.

24
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

A mobilidade das origens e dos fins, para além de sua


dimensão absoluta, fica clara na exposição dos autores. O caráter
absoluto do tempo ainda buscado com sofreguidão hoje em
dia por não poucos era certamente, na época em que os textos
analisados foram produzidos, entre os sécs. II a.C. e IV d.C., um
lugar comum na ansiedade dos homens e um lugar incomum a ser
encontrado além da imanência.
Apocalíptica é o nome tradicionalmente utilizado para designar
um estilo literário judaico, inaugurado pelo livro de Daniel, em
que o fim dos tempos e, por conseguinte, sua realização plena,
se alcança pela irrupção do reino de Deus. A sucessão dos reinos
dos homens e sua inserção no tempo imanente e contingente da
condição humana são definitivamente superadas e subsumidas
na glória divina, onde o tempo se consome. A eternidade se
substituiria ao tempo e a razão se reincorporaria ao absoluto.
Visões exuberantes do amanhã são propostas como contraste
com o obscuro do hoje e o cambiante do ontem. O tempo
transcendido do futuro sem fim é representado como a superação
e a realização plena do tempo efêmero. O processo histórico sai de
sua horizontalidade contingente e é transposto para uma espécie
de verticalidade absoluta. A experiência vivida no quotidiano dos
homens, em seus saberes médico, naturalista, astronômico, político,
religioso, é utilizada em recursos estilísticos proféticos, em que a
reflexão sobre a vivência e a especulação sobre o devir corrigido
de vez se entremeiam para formar um misto de diagnóstico da
história e de teoria do paraíso.
Os autores do presente volume combinam com eficiência a
qualidade analítica com o denso teor informativo para o público
interessado, que dispõe de relativamente poucas oportunidades
de lograr acesso a esse tipo de fonte. A obra contribui assim,
de forma marcante, para um exercício raro de apocatástase a
partir das visões consignadas em textos fundamentais para o

25
Espectadores do sagrado

entendimento de um traço profundo das tradições de que somos


oriundos, uma longa e persistente contraposição da vida quotidiana
com as representações do fim da história ou da plenitude da história.
A apocalíptica e a escatologia não são a única maneira de lidar
com essas representações, mas certamente são uma realidade que
se espalhou por vastas regiões do mundo à volta do Mediterrâneo
e se expandiu para além das fronteiras desse mundo para as de um
mundo sem fronteiras, com o de hoje.
Uma leitura instigante, inquietante, provocadora – enfim,
uma boa leitura para os que estão atentos ao agir dos homens no
tempo.

Brasília, agosto de 2009.

Estevão C. de Rezende Martins


Universidade de Brasília

26
Flávio Josefo, Daniel e a Providência
Divina nas Antiguidades Judaicas

Victor Passuello

Qualquer discussão acadêmica sobre a recepção do livro


de Daniel nas Antiguidades judaicas deve sempre levar em
consideração os motivos que levaram o historiador judeu Flávio
Josefo a omitir certos capítulos do livro de Daniel. Os capítulos
do livro de Daniel que Flávio Josefo omitiu nas Antiguidades são,
dentro de um ponto de vista teológico, os mais importantes, pois
neles encontram-se as famosas visões apocalípticas concernentes
ao fim da história.1 Dessa forma o objetivo principal deste ensaio
consiste em discutir as razões políticas e religiosas que levaram o
historiador judeu Flávio Josefo a omitir a mensagem apocalíptica
contida no livro de Daniel.

1
O conceito de história apocalíptica pode ser definido de muitas maneiras. Não existe
um consenso sobre esse termo. Porém pode-se dizer que esse termo está ligado a uma
clara revelação sobre o fim dos tempos (i.e. eschaton). Dentro dessa perspectiva, o final
dos tempos para os autores apocalípticos era uma realidade. Deve-se notar, no entanto,
que muitos textos antigos apresentam uma concepção escatológica da história sem
necessariamente serem apocalípticos, pois em muitos desses textos a revelação sobre
o final dos tempos não é precisa. O texto de Flávio Josefo, por exemplo, apresenta
uma mensagem escatológica que não possui uma clara mensagem apocalíptica, pois a
mensagem apocalíptica não foi reveladada.
Espectadores do sagrado

O argumento desenvolvido neste ensaio defende a tese de que


nas obras de Josefo não existe uma rígida oposição ética e moral
entre os líderes judeus e os reis gentios. Nas obras de Josefo, tanto
os reis gentios como os heróis bíblicos são julgados dentro das
mesmas concepções morais e políticas. Para Josefo, uma grande
parte da mensagem religiosa e a sabedoria do profeta Daniel,
transmitida por meio de sua interpretação de sonhos e profecias
concernentes ao futuro da história, podia ser compreendida pelos
reis gentios. Esse fato, porém, não anula a devoção religiosa e moral
que Flávio Josefo tinha para com as leis e tradições judaicas.2
No livro de Daniel, a sabedoria e o teor das mensagens
escatológicas transmitidas pelo visionário Daniel não necessa-
riamente podiam ser entendidas e interpretadas pelos reis gentios
em virtude de suas atitudes éticas e morais. Para o autor de Daniel
o comportamento ético e moral dos reis gentios para com os
judeus não era adequado. O mesmo não se pode dizer dos sábios
judeus descritos em Daniel. Dessa forma as palavras e atitudes dos
reis gentios não poderiam ter nenhum efeito positivo dentro do
longo plano escatológico da história estabelecido dentro do livro
de Daniel (Dn 11:17; 25; 28).3 Claramente a virtude da sabedoria
demonstrada pelos reis gentios no livro de Daniel tinha certo
limite. O mesmo não ocorre nas Antiguidades judaicas de Josefo.
Levando em conta todos os fatores apresentados
anteriormente, será demonstrado neste ensaio como Josefo
interpretou e adaptou a mensagem religiosa e apocalíptica do
livro de Daniel nas Antiguidades judaicas. Somente depois do
desenvolvimento dessas questões será possível entender a função

2
Flávio Josefo, por exemplo, durante toda a sua vida sempre seguiu o código religioso
e ético imposto pelas leis judaicas (i.e. pela Torah). Sua identidade judaica dentro de
suas obras não pode ser contestada.
3
John Goldingay. “Daniel in the context of Old Testament theology”. In: John J.
Collins e Peter W. Flint (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception. Leiden:
Brill, 2002. Vol.2. p. 650-654.

28
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

do livro de Daniel nas Antiguidades judaicas de Flávio Josefo e a


sua posição em relação ao império romano.
O livro de Daniel na época do historiador Flávio Josefo já tinha
se estabelecido como uma importante obra dentro das comunidades
judaicas. No primeiro século depois de Cristo, época de composição
das Antiguidades judaicas de Flávio Josefo,4 o livro de Daniel já tinha
uma enorme aceitação dentro das comunidades judaicas. Existiam ao
menos duas versões diferentes do livro de Daniel: uma versão baseada
no texto massorético do livro de Daniel, composta em hebraico e
aramaico, e outra versão baseda no texto grego. A versão mais antiga
composta em grego é conhecida como OG (i.e. Old Greek) e a versão
mais recente é conhecida como a de Teodocião. Acredita-se que essas
duas versões sejam derivadas de uma Vorlage (i.e. tradução) mais
antiga que supostamente estaria perto do manuscrito original da
Bíblia grega conhecida como a versão dos Setenta (LXX).5
Dessa forma é possível concluir que Flávio Josefo teria à
sua disposição as versões grega e massorética do livro de Daniel.
Porém, essa hipótese não pode ser testada exaustivamente somente
dentro de um ponto de vista literário porque o grego composto
por Josefo nas Antiguidades apresenta uma profunda influência do
grego ático usado pelos historiadores gregos durante o primeiro
século depois de Cristo.6 O texto grego apresentado por Josefo
apresenta grandes mudanças em relação às versões gregas do livro
de Daniel. Nessas versões o hebraísmo no texto grego pode ser
observado frequentemente. O mesmo não ocorre no texto grego
das obras de Josefo.

4
A partir de agora as Antiguidades judaicas de Flávio Josefo serão abreviadas pelas letras AJ.
5
Para maiores detalhes sobre as versões do texto de Daniel consulte os comentários de
John J. Collins. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel. Minneapolis: Fortress
Press, 1993.
6
Para mais detalhes, cf. os comentários de Louis H. Feldman. Josephus’s Interpretation of the
Bible. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1999.

29
Espectadores do sagrado

O livro de Daniel foi lido e consumido na época de Josefo dentro


de duas perspectivas. A primeira perspectiva, e mais difundida,
ocorreu dentro de uma interpretação religiosa e apologética,
pois a mensagem apologética contida em Daniel exerceu uma
profunda influência tanto nos textos judaicos como nos textos das
comunidades cristãs do Novo Testamento. A segunda perspectiva,
menos conhecida, mas também importante, está relacionada à
recepção do livro de Daniel como um texto histórico. O livro de
Daniel também apresenta uma reflexão histórica e religiosa sobre
os eventos históricos que provocaram a invasão e destruição de
Jerusalém pelo rei selêucida Antíoco Epífanes em 169-167 a.C.7
O livro 11 de Daniel, por exemplo, apresenta uma elaborada
revisão histórica sobre os eventos que antecederam a invasão e o
saque de Jerusalém por Antíoco Epífanes. Essa revisão contida no
capítulo 11 de Daniel serviu como base histórica e teológica para
o autor de 1Mc. A partir do capítulo 11 de Daniel, o autor do
texto de 1Mc construiu o seu relato sobre a invasão e destruição de
Jerusalém por Antíoco Epífanes. O livro de 1Mc provavelmente
foi composto na última década do segundo século antes de Cristo.8
O texto de primeiro Macabeus é uma crônica histórica e
religiosa que conta os feitos da dinastia dos Macabeus contra os
reis selêucidas e lágidas. Os capítulos sete e doze do livro de Daniel
foram provavelmente utilizados pelo autor do primeiro livro de
Macabeus. Porém assim como Josefo esse autor também omitiu a
mensagem apocalíptica que pode ser encontrada nos capítulos 7 e
12 de Daniel. Ele decidiu preservar somente o conteúdo histórico
desses capítulos.

7
Para um estudo aprofundado sobre a função e o sentido da história dentro do livro de
Daniel, veja o livro de Paul Niskanen. The Human and the Divine in History. Herodotus
and the Book of Daniel. London: T & T Clark International, 2006.
8
Jonathan A. Goldstein. Maccabees. Garden City, New York: Doubleday, 1979. p. 63.

30
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Entretanto, mesmo assim, existem certas semelhanças


religiosas entre o livro de Daniel e o livro de primeiro Macabeus.
Essas semelhanças estão baseadas no caráter profético e
determinístico que os dois autores compartilhavam em relação
aos reis helenísticos. Nos dois livros, pode-se perceber que esses
reis são julgados negativamente, independentemente dos seus atos
históricos (1Mc 1:5-10). Em 1Mc Antíoco Epífanes é caracterizado
como um agente divino que irá punir os judeus helenizados. Esses
judeus helenizados dentro de 1Maccabeus são reconhecidos como
os partidários de Antíoco Epífanes que promoveram a entrada de
costumes gregos dentro de Jerusalém.9 Por ser um agente divino
que destruiu Jerusalém, Antíoco Epífanes também vai sofrer uma
punição divina. Porém, essa punição divina não ocorre dentro de
um contexto apocalíptico, mas dentro de um contexto histórico e
profético.
No livro de Daniel, Antíoco Epífanes também é caracterizado
de uma maneira semelhante, pois tanto ele como os seus
descendentes (i.e. os reis helenísticos) são personificados como
monstros bestiais que aparecerão no final dos tempos para desafiar
o reino de Deus.10 Dentro dessa perspectiva, os atos humanos dos
reis helenísticos não são importantes, pois o julgamento divino,
seja pela concepção deuterônomica da história usada pelo autor de
1Mc ou pela concepção escatológica do livro de Daniel, já estava
determinado.11
Essa comparação entre o livro de 1Mc e o livro de Daniel é
importante para o argumento desenvolvido neste ensaio porque
o historiador judeu Flávio Josefo desenvolveu uma diferente
interpretação profética sobre a história. Para Josefo a intervenção

9
1 Mc 1:11-15.
10
Dn 7.
11
Deve-se notar que os autores de Daniel e 1Mc usaram a mesma linguagem simbólica
para descrever os reis helenísticos (1Mc 1:10).

31
Espectadores do sagrado

da divina providência na história não é totalmente incondicional,


pois os atos humanos também tinham certa influência dentro
de sua interpretação profética da história. Os reis gentios
nas Antiguidades não foram julgados pela divina providência
coletivamente, mas individualmente. Josefo, dessa forma, utilizou
uma específica concepção moral, histórica e religiosa para julgar os
atos dos reis gentios. A atuação de providência divina na história
dependia dos atos e decisões tomadas pelos agentes históricos.12
Além do texto de 1Mc também existem outros textos que
foram influenciados pela visões proféticas e escatológicas do
texto de Daniel. Esses textos são conhecidos como os apocalipses
judaicos de 4Ezra e 2Br. Ambos os textos, assim como as
Antiguidades de Josefo, foram publicados no primeiro século d.C.
depois da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos em
70 d.C.. A influência do livro de Daniel, dentro do judaísmo do
Segundo Templo, também pode ser notada nos textos encontrados
nas cavernas de Qumran (i.e. os Manuscritos do Mar Morto).
Dentro dos textos do Novo Testamento essa influência pode ser
vista no texto de Mc (13:26; 14:62) e no Ap (13:1).
Nesta pequena revisão sobre a recepção do livro de Daniel
no século 1 d.C., pode-se perceber que o texto de Daniel teve
um grande consumo entre as comunidades judaicas. O texto de
Daniel era lido nesse período principalmente pelo seu conteúdo
apologético. Porém, pode-se perceber que o texto de Daniel
também fora usado dentro da tradição historiográfica judaica,
como no caso de 1Mc e de Flávio Josefo.
O livro de Daniel apresenta muitas especificidades a serem
discutidas de uma vez só. Cada capítulo do livro de Daniel tem
a sua própria particularidade teológica e histórica. Nos capítulos

12
O conceito de aliança divina desenvolvido nos textos canônicos judaicos não
é transmitido por Josefo. Desse modo pode-se dizer que Josefo desenvolveu uma
diferente interpretação teológica sobre a história.

32
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

2 e 7, por exemplo, pode-se encontrar a famosa sequência dos


impérios mundiais, enquanto no capítulo 3 temos o famoso
relato sobre a fornalha de fogo. Os companheiros de Daniel
foram jogados dentro dessa fornalha porque não seguiram o
culto idolátrico imposto arbitrariamente pelo rei Nabucodonosor.
Alguns capítulos do livro de Daniel, como os capítulos de 2 a
6, foram baseados em tradições orais e escritas que já circulavam
dentro da sociedade judaica anteriormente à composição final do
livro de Daniel, ocorrida entre 167 e 164 a.C.
Mesmo assim é possível identificar uma continuidade temática
e teológica entre os diferentes capítulos do livro de Daniel.
Uma dessas continuidades estruturais e teológicas que unem os
diferentes capítulos de Daniel está relacionada com a oposição
entre o reino de Deus e o reinado dos reis gentios. Essa oposição
pode ser vista tanto nos relatos de corte descritos nos capítulos
iniciais de Daniel (Dn 2-6) como nos últimos capítulos (Dn 7-12)
que descrevem as famosas visões escatológicas concernentes ao
fim da história e ao julgamento dos reinos terrestres.
Dessa forma pode-se dizer que não existe, dentro do livro de
Daniel, uma rígida oposição entre a mensagem teológica produzida
nos relatos de corte e nas visões escatológicas. A oposição entre
as duas metades do livro de Daniel existe, porém deve-se atentar
para o fato de que o autor e compilador do livro de Daniel era
um escritor criativo, pois foi capaz de conferir uma certa unidade
estrutural ao texto de Daniel. A oposição e o contraste entre o
reino de Deus e o reinado dos reis gentios ocorreram tanto dentro
do suposto contexto social dos relatos de corte como dentro do
contexto simbólico e mítico das visões apocalípticas.
A continuidade temática e teológica dessa oposição entre o
reino de Deus e o reinado dos reis gentios no texto de Daniel
está condicionada ao caráter e à natureza da mensagem religiosa e
ética desenvolvida ao longo do mesmo. Para o autor de Daniel, o

33
Espectadores do sagrado

contraste entre ambos os reinos descritos nos primeiros capítulos


ocorreu (cap. 1-6) dentro de uma plataforma pacifista e espiritual.
Não existe dentro do livro de Daniel uma concreta oposição política
ou militar entre os judeus e os gentios. O contraste que existe
entre ambos os reinos e os seus representantes está condicionada
ao debate da teodiceia, (i.e. a justiça de Deus).
Esse debate, no entanto, não é favorável aos reis gentios, pois
são eles que, continuadamente dentro da história, não aprendem
a respeitar os desígnios divinos. Esse contínuo desrespeito que
os reis gentios mostram em relação ao Deus de Israel dentro
da história pode ser visto e compreendido tanto dentro dos
relatos de corte como dentro do contexto simbólico das
visões apocalípticas, pois em ambos os contextos os atos dos
reis gentios são julgados dentro de uma mesma perspectiva
determinística e ética. As blasfêmias cometidas pelos reis gentios
ao longo do livro de Daniel têm sempre a mesma natureza (i.e.
idolatria, orgulho pessoal e uso abusivo do poder). Em quase
todos os capítulos do livro de Daniel existe um conflito religioso
e ético entre os reis gentios e o reino de Deus, causado em parte
pela arrogância e intolerância dos reis gentios e em parte pela
mensagem apocalíptica produzida pelo autor de Daniel.
Para o autor do livro de Daniel, os reis gentios não mais
controlam os seus destinos, pois o fim da história é iminente. Esse
argumento pode ser demonstrado, por exemplo, no capítulo 11
do livro de Daniel. Em Dn 11:27, pode-se perceber, dentro de
uma interpretação exegética da história, que o autor de Daniel
provavelmente está se referindo às diferentes negociações
diplomáticas de paz que ocorreram entre Ptolomeu Filometor
e Antíoco Epífanes após a conclusão da primeira parte da
quinta guerra da Celessíria: “Numa só mesa os dois reis falarão
mentiras, porém essas negociações não irão prosperar porque o
fim já está determinado”.

34
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Pode-se observar que nessa passagem os dois reis, assim como


os seus antepassados são julgados coletivamente e profeticamente.
Os dois reis são simbolicamente representados pelos reis vindo
do Norte (Antíoco Epífanes) e do Sul (Ptolomeu Filometor),
(Dn 11:25-26). Tanto as suas decisões individuais como um
possível acordo de paz estabelecido por ambos os reis não são
levados em consideração pelo autor do livro de Daniel, pois o fim
da história já estava determinado. Os eventos históricos narrados
no capítulo 11 têm uma veracidade histórica, porém os atos
individuais dos reis gentios são julgados dentro de uma concepção
determinística e escatológica.
Deve-se notar também que os eventos simbólicos e
escatológicos ocorridos nos primeiros capítulos (1-6) do livro de
Daniel não são totalmente revelados e desenvolvidos como nos
últimos capítulos de Daniel (7-12), pois em geral o julgamento
final torna-se visível somente a partir do capítulo 7 de Daniel.
É nesse capítulo que o autor de Daniel descreveu a primeira batalha
espiritual e escatológica que aconteceu entre os reinos terrestres,
representados pelas bestas apocalípticas, e o representante de
Deus (Dn 7:9) (i.e. o “Filho do Homem”). Deve-se notar que
o termo “Filho do Homem” dentro do capítulo sete de Daniel
provavelmente era um anjo escolhido por Iahweh (i.e. o “Ancião
dos Dias”) para realizar o julgamento final dos reinos terrestres
e da história (Dn 7:22). Porém deve-se notar também que a
superioridade do poder divino do reino de Deus e a arrogância
dos reis gentios podem ser percebidas também dentro do suposto
contexto histórico e social dos relatos de corte narrados na primeira
metade do livro de Daniel (Dn 1-6).
Sem dúvida nenhuma os reis gentios nos primeiros capítulos
de Daniel são descritos de uma maneira favorável. O rei
Nabucodonosor nos capítulos 3 e 4, por exemplo, reconhece o
poder divino do Deus de Israel. A relação entre os reis gentios

35
Espectadores do sagrado

e os judeus é pacífica porque esses reis são capazes de respeitar e


venerar a religião dos judeus. Davies em seu comentário sobre o
livro de Daniel diz que de uma maneira geral os relatos de corte
não existem contradições entre o reinado dos reis gentios e o
reino de Deus, pois todos os reis gentios no livro de Daniel são
apontados por Deus.
Os reis gentios (i.e. Nabucodonosor e Dario, o Medo)
descritos nos relatos de corte não são caracterizados da mesma
forma que os reis helenísticos (Antíoco Epífanes). Mas mesmo
assim pode-se dizer que a descrição dos reis gentios nos relatos
de corte não são totalmente positivas, pois esses, de uma maneira
geral, são céticos em relação aos desígnios divinos proferidos nas
visões simbólicas e proféticas descritas pelo sábio Daniel. Esse
tipo de comportamento pode ser visto nas seguintes passagens do
capítulo quatro de Daniel (Dn 4:24-27):

Dessa maneira, Vossa majestade, talvez o meu conselho


o ajude a expiar os seus pecados e as suas iniquidades
através de sua bondade para com os necessitados. E assim
talvez a sua prosperidade continue. Tudo isso aconteceu
ao rei Nabucodonosor. Doze meses depois, quando
Nabucodonosor estava caminhando no terraço do seu
palácio, ele fez a seguinte reflexão: Aqui está a Babilônia
que eu construí para abrigar o meu poder soberano, e para
servir a glória de minha majestade.

Nessas passagens pode-se perceber que o rei Nabucodonosor


não seguiu os conselhos proferidos por Daniel. Mesmo depois da
longa interpretação por parte do sábio Daniel sobre a visão da
árvore mundial (Dn 4:16-23). Nesse sonho o rei Nabucodonosor
viu uma grande árvore que se estendia até o firmamento. Essa árvore
mundial representava o poder real de Nabucodonosor e também
a sua arrogância. O símbolo dessa arrogância está representado

36
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

pela extensão da árvore mundial. A extensão da árvore mundial


simboliza a soberba de Nabucodonosor para com o reino de Deus
(Dn 4:17-18). Consequentemente essa árvore fora cortada por um
guardião divino (Dn 4:20). A mensagem profética e moral dessa
visão é clara. Por causa de sua soberba, o rei Nabucodonosor irá
sofrer uma punição divina. Somente depois de sete anos vivendo
dentro de um estado zooantropomórfico ele irá perceber que o
altíssimo é soberano. Depois disso Nabucodonosor recuperará o
seu reinado.
É importante notar, porém, que a mensagem moral explicada
em Dn 4:24-27 não segue a mensagem deuterônomica de pecado,
punição e perdão porque o autor de Daniel não necessariamente
garantiu que a prosperidade de Nabucodonosor iria continuar.13
Essa dúvida transmitida pelo autor de Daniel mostra que o
julgamento final está próximo, pois os reis gentios não são
capazes de interpretar corretamente o conteúdo ético e moral
das visões proféticas interpretadas pelo sábio Daniel. Afinal de
contas, somente os pios e sábios judeus como Daniel e os seus
companheiros são capazes de entender e interpretar corretamente
a mensagem apocalíptica e ética contida nos sonhos e nas visões
simbólicas reveladas por Deus.
No final do capítulo quarto, o autor de Daniel diz que
Nabucodonosor arrependeu-se de sua soberba, pois ele mesmo
reconheceu a soberania de Deus (Dn 4:31-34). Porém pode-se
notar que o arrependimento de Nabucodonosor não veio de uma
forma adequada, ao menos dentro do ponto de vista ético do
autor de Daniel, pois ele não acatou e não entendeu os primeiros
conselhos proferidos por Daniel (Dn 4:24-27). Dessa forma ele
precisou de uma nova lição moral (Dn 4:28-30).

13
Dn 4:27, “E assim talvez a sua prosperidade continue”.

37
Espectadores do sagrado

Mesmo o fictício rei medo Dario, descrito pelo autor de


Daniel como um rei piedoso, foi capaz de praticar uma decisão
arbitrária para com os judeus. Dario em Dn 6:8, influenciado
pelos seus conselheiros, decidiu assinar um decreto no qual todos
os habitantes do seu reino não poderiam cultuar ou rezar para
nenhum deus ou homem por trinta dias com a exceção de sua
pessoa. Depois desse fato, Daniel foi condenado à cova dos leões,
pois, como judeu, ele não podia seguir esse decreto. O autor de
Daniel no livro seis, em geral, não condena o rei Dario porque
os diretos responsáveis pela publicação do decreto foram os seus
conselheiros. O rei Dario quando soube do seu erro não pôde
voltar atrás, pois pela lei dos Medos e dos Persas qualquer decreto
real era irrevogável (Dn 6:13). Mas mesmo assim Dario atuou
como um rei piedoso porque retirou-se para o seu palácio e
durante a noite inteira e ficou em abstenção e acordado esperando
um milagre que salvasse Daniel da cova dos leões (Dn 6:19).
O decreto de Dario no livro de Dn 6:8 é muito incomum
porque esse não era um procedimento comum dentro de um
império multicultural como o império medo ou persa. Boccaccini
afirma que o judaísmo do livro de Daniel com certeza contesta
as pretensões idolátricas dos reis gentios. Mas para ele essas
pretensões idolátricas não contestam, em sua essência, a autoridade
dos reis gentios, pois essa autoridade é dada por Deus (178).
No entanto pode-se afirmar aqui que a crítica idolátrica
contida no livro de Daniel contesta o comportamento ético dos
reis gentios porque esses, continuadamente dentro da cronologia
histórica estabelecida dentro do texto de Daniel, não exibem uma
tolerância religiosa adequada. Existe também dentro do livro de
Daniel uma crítica moral e ética ao poder dos reis gentios expressa
por meio dos cultos de realeza. A prática desses cultos levaram os
reis gentios a desafiar não somente o reino de Deus, mas também
qualquer outra divindade. No decreto assinado por Dario, por

38
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

exemplo, Dario desrespeitou não somente o Deus dos judeus, mas


também todos os outros deuses do seu reino (Dn 6:8).
Assim, nos relatos de corte (1-6) pode-se notar que o convívio
entre judeus e os reis gentios é possível, pois no final de cada
capítulo, depois dos milagres divinos, os reis gentios são capazes
de reconhecer a superioridade espiritual do Deus de Israel.
Esse fato de uma maneira geral mostra que o imediatismo da
mensagem apocalíptica foi postergado. Porém, pode-se perceber
também que esse convívio não estava estabelecido dentro de uma
base satisfatória para o autor de Daniel devido aos constantes atos
de intolerância religiosa e soberba praticados pelos reis gentios.
Definitivamente, para o compilador do livro de Daniel, a situação
social e política dos judeus dentro dos relatos de corte não era
satisfatória devido às constantes perseguições que os judeus
sofreram por parte dos reis gentios sem uma aparente justa causa.
Portanto, pode-se concluir aqui que todos os reis gentios
no livro de Daniel praticaram atos de soberba que desafiavam
qualquer autoridade divina. Esses atos de soberba por parte dos
reis gentios explicam em parte porque a situação entre judeus e
gentios dentro do contexto histórico e social dos relatos de corte,
apesar de pacífica, era transitória.

Josefo escreveu as suas Antiguidades judaicas em Roma


durante o reinado do imperador romano Domiciano
(AJ 20.267). Os objetivos morais e políticos de Josefo
estão estabelecidos, de uma forma geral, na introdução
das Antiguidades. Na terceira parte de sua introdução
Josefo menciona o importante fato de que as Antiguidades
tinham sido confecionadas e publicadas para satisfazer a
curiosidade dos seus leitores gregos (AJ 1.9). Esse fato para
Josefo era importante porque confirmava que o diálogo
entre judeus e gentios era possível e desejado. Para reforçar
esse diálogo e o seu ponto de vista, Josefo cita a importante

39
Espectadores do sagrado

legenda histórica sobre a história da tradução da Bíblia


grega durante a época helenística.14 Essa tradução tinha sido
requisitada pelo segundo rei da dinastia lágida (Ptolomeu
Filadelfo), (AJ 1.10). A tradução dos textos sagrados judaicos
para a língua grega mostrou, para Josefo, que tanto os líderes
gentios como os líderes judeus estavam interessados em
promover um diálogo entre culturas (AJ 1.11). A história da
tradução da Bíblia grega mostrava para Josefo que Ptolomeu
Filadelfo era um rei virtuoso e amante das artes. Josefo
também afirma que a tradução dos textos sagrados somente
fora possível porque os judeus tinham o tradicional costume
de revelar a grande sabedoria e sapiência que existia dentro
dos textos sagrados judaicos (AJ 1.12).

Esses comentários iniciais de Josefo revelam duas perspectivas


que influenciaram a reescritura do texto de Daniel dentro das
Antiguidades. A primeira perspectiva está relacionada à escrita da
história apologética. Josefo compôs as Antiguidades para mostrar
que os judeus tinham estabelecido um cordial e contínuo diálogo
com os reis gentios. Com isso Josefo pretendia responder a
acusação dos intelectuais gregos e romanos sobre o comportamento
beligerante dos judeus em relação aos grandes governantes gentios,
afinal de contas o templo de Jersualém fora continuadamente
invadido e saqueado pelos reis helenísticos e generais romanos.15
Essa relação conflituosa entre judeus e gentios, durante a época de
Josefo, fora provocada e acirrada em grande parte pela destruição
14
Não sabemos ao certo a data específica da primeira versão escrita da Septuaginta
(LXX). Porém pode-se especular que essa versão fora produzida pela comunidade
grega de Alexandria durante o séc.III a.C, provavelmente durante o reinado de
Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.). Inicialmente foram publicados somente os livros
da Torah. Eventualmente, os outros livros do cânone judaico foram publicados depois
da tradução da Torah, tanto em Alexandria como em Jerusalém. A história dessa
tradução está documentada no documento helenístico-judaico chamado Carta de
Aristeias.
15
Essa acusação pode ser vista nas Histórias de Tácito 5.8-9.

40
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

de Jerusalém pelos imperadores romanos Vespasiano e Tito em


66 d.C. Portanto, pode-se perceber que Josefo publicou suas obras
dentro de um contexto apologético contemporâneo. Josefo, dessa
maneira, reescreveu os textos proféticos, como o texto de Daniel,
para mostrar que o diálogo entre judeus e gentios era possível.
Porém essa não é a única perspectiva que influenciou a
recepção do livro de Daniel nas Antiguidades de Josefo. Josefo
realmente acreditava que o diálogo entre judeus e gentios era
possível tendo em vista que ele foi capaz de julgar tanto os líderes
judeus como os líderes gentios com os mesmos parâmetros morais
e éticos. Josefo era um historiador cuidadoso e sofisticado, apesar
de alguns lapsos.16 Josefo não reescreveu a história dos judeus
em língua grega somente para ganhar credibilidade dentro do
mundo greco-romano. Dessa forma, pode-se afirmar que Josefo
não alterou o texto de Daniel somente para agradar o seu público
greco-romano. Josefo tinha a sua própria visão política e religiosa
sobre o texto de Daniel, que estava de acordo com a sua visão de
mundo. Essa visão de mundo era diferente daquela apresentada
pelo autor de Daniel e relativamente independente do contexto
apologético apresentado nas Antiguidades.
As Antiguidades judaicas de Josefo constituem uma obra
muito extensa. Cobrem toda a história dos judeus dentro de uma
perspectiva cronológica e uma continuada narrativa da história
dos judeus. Para se ter uma ideia da extensão dessa obra, basta
manusear os vintes livros da versão bilíngue do texto de Josefo
publicado pela editora americana Loeb. O livro de Daniel aparece
no livro 10 das Antiguidades, entre 184-281.

16
Esses lapsos são demonstrados por Shaye J. D. Cohen. Josephus in Galilee and
Rome. Leiden: Brill, 2002. Entretanto deve-se notar que Cohen exagerou em seus
comentários sobre a inconsistência de Josefo. Cohen, por exemplo, não procura
entender os motivos que levaram Josefo a omitir algumas passagens da Carta de
Aristeias em sua paráfrase nas Antiguidades (idem, p.34-35).

41
Espectadores do sagrado

Aparentemente Josefo seguiu a sequência dos capítulos


imposta pela versão massorética do texto de Daniel. Josefo, por
exemplo, não citou as adições deuterocanônicas que existem no
texto grego de Daniel.
A grande diferença estrutural entre o livro de Daniel e o texto
de Josefo está relacionada com uma série de omissões e adições que
Josefo incorporou na sua paráfrase do livro de Daniel. Essas omissões
e adições podem ser justificadas por vários motivos. Porém devido
à falta de espaço e a multiplicidade de questões que essa discussão
pode acarretar a reescritura do livro de Daniel nas Antiguidades irá
limitar-se à discussão do capítulo 2 de Daniel.17
Esse capítulo foi muito importante tanto para Josefo
como para o autor do livro de Daniel. Dentro desse capítulo
encontra-se a famosa sequência escatológica e apocalíptica
sobre a sucessão dos impérios mundiais. Os impérios mundiais
e o eventual reino de Deus são representados graficamente
dentro desse capítulo pelo simbolismo de uma colossal estátua
composta de metais e argila e por uma pedra que foi jogada
sem ajuda humana (Dn 7:31-36).
Cada parte dessa estátua é representada por diferentes reis.
De acordo com a interpretação do sábio Daniel, a cabeça de ouro
representa o rei babilônico Nabucodonosor; os peitos e braços de
prata representam o fictício rei medo; a barriga e as costelas de
bronze representam o rei persa Dario; as pernas e as coxas de ferro
representam o rei Alexandre, o Grande; e, por fim, os pés de ferro
e argila representam os diadochi, successores de Alexandre.
Depois dessa interpretação, o sábio Daniel anunciou ao rei
Nabucodonosor que a pedra jogada sem mão alguma representava

17
Para maiores detalhes, cf. Steve Mason. “Josephus, Daniel and the Flavian house” in:
Fausto Parente e Joseph Sievers (Ed.). Josephus and the History of the Greco-Roman
Period. Essays in Memory of Morton Smith. Leiden: Brill, 1994 e Feldman, Josephus’s
Interpretation of the Bible.

42
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o reino de Deus, que esmagaria a estátua colossal (Dn 7:43-45).


Eventualmente o reino de Deus representado pela pedra iria
crescer e virar uma montanha. Essa montanha representa o reino
de Deus e sua dominação mundial.
Antes de analisar a interpretação de Josefo sobre a mesma
profecia, devemos observar como essa visão simbólica descrita
pelo sábio Daniel pode ser interpretada tipologicamente.
A interpretação do sonho do rei Nabucodonosor por parte do
visionário Daniel pode ser interpretada como um sonho mântico
e misterioso, pois antes da interpretação do visionário Daniel
nenhum sábio babilônico ou caldeu soube interpretar o sonho que
Nabucodonosor teve (Dn 2:11). De acordo com o autor de Daniel,
somente o visionário Daniel soube interpretar esse sonho. O sábio
Daniel só foi capaz de interpretar esse misterioso sonho porque era
um fiel seguidor da religião e das tradições judaicas (Dn 1:17-21).
Deve-se observar aqui que tanto a sabedoria mântica de Daniel
como a sua fidelidade para com as tradições sagradas judaicas são
discutidas em detalhes no capítulo introdutório de Daniel.
Vendo que os sábios caldeus não foram capazes de interpretar
esse sonho, Nabucodonosor decidiu, arbitrariamente, mandar
decapitar todos os sábios caldeus e judeus que viviam dentro da
sua corte. O visionário judeu Daniel, no entanto, não podia admitir
essa situação. Tendo em vista essa terrível situação, Daniel rezou
para Deus pedindo sabedoria e poder para interpretar o sonho que
Nabucodonosor teve (Dn 2:21-24).
O successo de Daniel bem como a sua sabedoria demonstrada
pela sua interpretação do sonho de Nabucodonosor mostra que
Daniel era tanto um profeta mântico abençoado por Deus quan-
to um sábio. A virtude de Daniel é demostrada tanto por suas
virtudes sapienciais quanto por suas virtudes religiosas.
Nabucodonosor, por outro lado, é descrito como um rei
arrogante, porque mandou matar arbritariamente os sábios caldeus.

43
Espectadores do sagrado

A arrogância de Nabucodonosor é explicada por intermédio de


dois fatos fundamentais. O primeiro fato está relacionado com
a conduta ética de Nabucodonosor. O autor de Daniel condena
essa conduta porque ele mandou matar os sábios caldeus sem justa
causa, pois o sonho que ele teve não podia ser interpretado por
qualquer sábio de carne e osso, somente as divindades celestiais
seriam capazes de interpretá-lo (Dn 2:11). O segundo motivo está
relacionado com a sua desmedida religiosa, pois sendo um sonho
que estava fora do alcance humano, ele não poderia forçar a sua
interpretação. Esse argumento poder ser comprovado em Dn 2:10.
Nessa passagem os sábios caldeus afirmam que nenhum poderoso
governante jamais tinha exigido esse tipo de interpretação por
parte de qualquer mago, astrólogo ou caldeu.
Essa pequena análise tipológica e teológica do capítulo 2 de
Daniel mostrou que o autor de Daniel combinou dentro desse
capítulo duas diferentes perspectivas teológicas. A primeira
perspectiva que podemos observar está relacionada com a
mensagem escatológica da história. O fim dos impérios terrenos
no capítulo 2 de Daniel está próximo, porém o julgamento final
desses impérios não iria ocorrer durante a época de Nabucodonosor.
A segunda perspectiva está relacionada ao problema do
julgamento divino e a oposição entre os reis gentios e o reino de
Deus (i.e. teodiceia). A oposição entre o comportamento ético de
Nabucodonosor e o comportamento ético do visionário Daniel
sintetiza o problema da teodiceia transmitido ao longo do livro de
Daniel. Dessa forma, pode-se notar que o autor de Daniel julgou
negativamente o rei Nabucodonosor por causa de sua conduta ética
e religiosa para com os judeus e os sábios caldeus. Assim, pode-se
concluir que o sonho da estátua interpretado pelo sábio Daniel
não tinha somente uma mensagem política de reconciliação entre
os judeus e os reis gentios, por causa da supressão do imediatismo
escatológico.

44
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Esse sonho, assim como a sabedoria mântica expressa pelo


visionário Daniel, mostra que o autor de Daniel também criticou o
comportamento ético de Nabucodonosor. Para o autor de Daniel,
a palavra sabedoria também representava um poder espiritual que
estava em oposição ao poder político dos reis gentios (Dn 2:23).18
Dentro dessa perspectiva, a teodiceia narrada pelo autor de Daniel
nos capítulos 1 a 6 complementava a teodiceia que tinha sido
revelada nas visões apocalípticas narradas nos capítulos 7-12.
As diferentes conotações escatológicas que podem existir entre
essas duas metades do livro de Daniel não alteram a perspectiva
holística sobre a vindicação divina (i.e. teodiceia) que corre ao
longo do livro de Daniel.
Nas Antiguidades judaicas, a mesma oposição teológica entre
o poder político dos reis gentios e o poder espiritual do reino de
Deus não pode ser comprovada.
Para Josefo a mensagem apocalíptica contida no livro de
Daniel não podia ser totalmente revelada, pois ele não acreditava
que o julgamento divino estava próximo. Para Josefo a sucessão
dos impérios mundiais revelada no capítulo 2 de Daniel não tinha
a mesma mensagem teológica. Esse é o principal motivo pelo qual
ele não revelou o significado da pedra que foi jogada sem ajuda
humana (AJ 10.210).
Muitos autores afirmam que Josefo não citou o significado da
pedra porque essa revelação podia ofender a sua audiência gentílica,
pois, de acordo com a sua interpretação da sequência dos impérios
mundiais contida no livro de Daniel, o último império terreno
dentro dessa sequência seria o império romano. Josefo assim
não queria ofender a sua audiência romana. Portanto, para esses
autores, a omissão de Josefo em relação ao significado da pedra

18
Veja os comentários de Daniel Smith-Christopher. Prayers and dreams: power and
Diaspora identities in the social setting of the Daniel tales. In: Collins e Flint, The
Book of Daniel, p. 286-287.

45
Espectadores do sagrado

divina ocorreu porque ele escreveu as Antiguidades dentro de um


contexto apologético. Dentro dessa perspectiva, a reconciliação
entre gentios e judeus era possível e desejada. Esse ponto de vista,
apesar de estar correto, não explica totalmente porque Josefo
omitiu o significado da pedra divina. Esse argumento não leva
em consideração a importância histórica, profética e política do
livro de Daniel para Josefo. Em nossa opinião, os dois autores
que deram as melhores explicações sobre os motivos que levaram
Josefo a omitir a mensagem apocalíptica contida no segundo livro
de Daniel foram os historiadores Mason e Rajak.
Mason afirma que Josefo omitiu a mensagem escatológica
contida no capítulo dois de Daniel porque o historiador judeu
interpretou a sequência dos impérios como uma reflexão política e
filosófica sobre a instabilidade dos assuntos humanos. A potencial
revolução espiritual e nacionalista que estava contida nesse sonho
não tinha muita importância para Josefo. Mason afirma que Josefo
mencionou o significado da pedra divina para o rei Nabucodonosor
– sem, no entanto, revelar o seu significado – porque ele queria
deixar a impressão de que as Escrituras judaicas continham todos
os tipos de mistérios que ele como historiador não podia discutir
dentro do contexto histórico que estava sendo apresentado.
Mason também afirma que a reflexão política e filosófica que existe
na interpretação de Josefo sobre a sequência dos impérios mundiais
em Dn. 2 reflete o mesmo contexto da mensagem política proferida
por Políbio no tocante à destruição de Cartago pelos romanos.
Políbio afirma que o general romano Cipião – o Africano – depois da
destruição de Cartago, disse que Roma, assim como Cartago, um dia
iria ser destruída por outro império (História 38.22).
As afirmações de Mason confirmam a ideia aqui desenvolvida
de que a sabedoria mântica proferida pelo sábio Daniel para Josefo
tinha apenas uma conotação política, pois Josefo não acreditava
que o fim de Roma estava se aproximando.

46
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Esse argumento de Mason pode ser confirmado em algumas


passagens das Antiguidades. Josefo diz que a sabedoria de Daniel
tinha primordialmente um caráter político, pois o sonho de
Nabucodonosor apresentava apenas um caráter político relativo à
sucessão dos impérios (AJ 10.205).
Tessa Rajak também confirma essa ideia porque, em sua opinião,
a profecia proferida por Josefo na sua interpretação do capítulo 2 de
Daniel enquadra-se dentro de uma categoria de profecias políticas.
O único horizonte visível dentro dessas profecias seriam as predições
políticas relativas à sucessão dos impérios.
Na opinião de Josefo, Nabucodonosor era um rei que devia ser
aplaudido porque foi capaz de praticar atos de tolerância religiosa.
Para Josefo, a potencial mensagem escatológica que existia no
livro de Daniel não estava ligada ao comportamento ético e moral
dos reis gentios. O rei Nabucodonosor, ainda na opinião de Josefo,
também cometeu atos de intolerância religiosa, porém esses atos
não foram julgados em um contexto apocalíptico (AJ 10.241).
Josefo ainda acreditava na interpretação deuterônomica da
história. De acordo com essa interpretação teológica da história
desenvolvida na Bíblia judaica, os indivíduos poderiam ser
perdoados pela divina providência dentro da história humana.
Para o autor de Daniel, esse modelo já estava esgotado, pois os reis
gentios não eram mais considerados agentes divinos escolhidos
por Deus. Eles agora eram representados pelo autor de Daniel
como os rivais de Deus. Dessa maneira, os reis gentios deviam
admitir que o Deus de Daniel era soberano. “Nabucodonosor
respondeu a Daniel: verdadeiramente, o vosso Deus é Deus dos
Deuses, e o senhor dos Reis” (Dn 2:47).19
Porém deve-se notar que Josefo não negou completamente a
mensagem escatológica contida no livro de Daniel. Josefo, como

19
Niskanen, The Human and the Divine in History, p. 57.

47
Espectadores do sagrado

um judeu seguidor das tradições judaicas não queria ofender a


sua audiência judaica, principalmente porque ele, assim como
os outros judeus, tinha o livro de Daniel em alta consideração.
Em AJ 10.267 ele diz que Daniel era um dos maiores profetas
dentro da tradição judaica. Daniel, de acordo com Josefo foi capaz
de profetizar tanto o futuro como o tempo exato das profecias que
estavam por vir.
O respeito e admiração de Josefo por Daniel para muitos
estudiosos continua servindo como uma importante evidência de
que Josefo, apesar de sua omissão sobre o siginificado da pedra
divina, compartilhava com Daniel a mesma visão negativa sobre
os impérios mundiais. De acordo com a interpretação exegética e
teológica feita por Spilsbury, Josefo compartilhava com os textos
judaicos o mesmo sentimento negativo e crítico em relação aos
impérios mundiais.20
Spilsbury diz que Josefo dividiu o oráculo messiânico de Balaão
em duas categorias: profecias que já foram cumpridas e profecias
que estavam por vir. Para Spilsbury, as profecias escatológicas
proferidas pelo profeta gentio Balaão em Nm 24:17-19; 24 foram
reinterpretadas messianicamente por Josefo. Porém Spilsbury
afirma que Josefo não publicou essas profecias narradas ipsis
litteris no livro bíblico de Números, pois ele não queria ofender o
seu público gentio.
A interpretação cifrada de Josefo em relação ao oráculo mes-
siânico de Números 24 pode ser vista em AJ 4.127-128. Nessa
passagem, Josefo diz que Balaão arguiu com o rei de Moab, Balac,
que os israelitas não poderiam ser vencidos ou totalmente derro-
tados porque, uma vez vencidos, eles iriam reaparecer novamente
“para o desespero daqueles que os derrotaram” (AJ 4.128). Dessa
maneira, Spilsbury diz que essa reinterpretação de Josefo sobre a

20
O artigo de Spilsbury pode ser acessador pelo seguinte endereço: <http://www.
josephus.yorku.ca/pdf/spilsbury2002.pdf> . Acesso em: 10 set. 2007.

48
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

profecia de Balaão pode ser lida como uma chave teológica que
complementa sua interpretação escatológica sobre o significado
da pedra jogada sem mão alguma descrita no livro de Daniel.
Para Spilsbury, Josefo tinha elaborado discretamente um
sentimento escatológico que deixava claro que o império romano,
o último império dentro da sequência dos impérios elaborada por
Josefo, seria destruído pelos judeus. Spilsbury também postula
que a reinterpretação de Josefo sobre os oráculos de Balaão era
messiânica porque Josefo tinha uma atitude ambivalente para com
a Dispersão judaica. Dessa forma, para Spilsbury, nem mesmo
o apreço que Josefo tinha para com o Judaísmo da Diáspora o
impediu de elaborar uma crítica messiânica em relação aos impérios
mundiais. Deve-se notar aqui que a mensagem messiânica entre
os judeus da Diáspora apresentava uma diferente conotação em
relação ao sentimento messiânico expressado na terra de Israel.
Para os judeus da Diáspora, uma relação harmoniosa com os
líderes dos impérios mundiais não era uma opção, mas sim uma
necessidade mais urgente. Sem o constante apoio desses líderes,
a manutenção do específico status quo das comunidades judaicas
espalhadas ao longo da costa do Mediterrâneo (i.e. Alexandria,
Antioquia e Roma) era praticamente impossível.21
Porém deve-se notar que o argumento de Spilsbury apresenta
algumas contradições. Primeiramente, o seu argumento é altamente
especulativo porque dentro das obras de Josefo a mensagem
apocalíptica da história não é desenvolvida ou revelada. Para Josefo,
21
Deve-se notar aqui que o sentimento messiânico também estava presente entre os
judeus da Diáspora. Porém esse messianismo apresenta diferentes características, pois
o sentimento nacionalista ligado ao messianismo davídico tinha que ser articulado
com alguns valores do mundo grego. Dessa forma pode-se dizer que os judeus da
Diáspora tinham que negociar suas identidades com o mundo helenizado que os
rodeava. Esse tipo de negociação não tinha a mesma força dentro de Israel. Porém, a
influência da civilização grega dentro da Palestina não pode ser menosprezada, como
bem disse Martin Hengel no seu livro sobre a helenização da cultura judaica depois
da morte de Cristo (cf. The ‘Hellenization’ of Judaea in the First Century after Christ.
London: Wipf & Stock Publishers, 2003).

49
Espectadores do sagrado

sem dúvida nenhuma, existe uma mensagem apocalíptica tanto


dentro do livro de Daniel como dentro da profecia de Números 24.
Porém, para Josefo, a destruição do império romano estava por
vir. Em sua opinião o império romano não iria ser destruído ou
substituído, tendo em vista que os imperadores Vespasiano e Tito
foram capazes de assegurar a estabilidade social e política dentro do
império Romano durante o primeiro século depois de Cristo.
Para Josefo a ascensão e queda dos impérios terrenos também
dependia dos atos humanos. Esse argumento pode ser visto em
AJ 10:278-281. Nessas passagens Josefo critica os epicuristas,
porque eles não acreditam na interferência da providência divina
nos assuntos humanos. Para Josefo tanto Deus como a providência
divina eram capazes de interferir nos assuntos humanos. Porém,
essa interferência não dependia totalmente dos desígnios divinos,
como sugere Spilsbury no tocante à intepretação de Josefo sobre o
livro de Daniel. A interferência da divina providência para Josefo
agia de acordo com o comportamento ético e moral dos personagens
históricos dentro do curso da história e não de forma indepedente.
Para Josefo existia uma relação entre profecia e história, pois para
ele ambos os gêneros literários estavam preocupados com uma
verdade histórica. Na sua interpretação exégetica das profecias
proferidas por Daniel, Josefo deixa bem claro que a mensagem
política dos sonhos de Daniel não era totalmente desfavorável à
memória dos governantes imperiais, pois esses governantes eram
capazes de entendê-la: “Enquanto os outros profetas previram
desastres e por esses motivos não ganharam os favorecimentos dos
reis [...] Daniel era um profeta de boas novas e, por meio de seus
favoráveis vaticínios, conquistou o respeito de todos” (AJ 10: 268).
Essa passagem não tem somente um caráter apologético,
pois para Josefo o diálogo cordial entre os líderes e sábios judeus
e os governantes gentios também podia acontecer dentro de
sua época. Apesar da destruição de Jerusalém pelo imperador

50
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Romano Tito em 66 d.C., Josefo ainda acreditava nesse diálogo,


tendo em vista que tanto Tito como Vespasiano, imediatamente
depois da destruição de Jerusalém, foram capazes de respeitar os
status quo das comunidades judaicas que residiam em Antioquia e
Alexandria, apesar da forte oposição das comunidades gregas que
também residiam nessas cidades (AJ 12.121-123; BJ 7.110).
Assim podemos concluir este artigo dizendo que Flávio
Josefo realmente acreditava no diálogo cordial entre os líderes
judeus e os governantes gentios. A sua visão de mundo não
contém somente uma visão apologética da história, mas também
uma sincera opinião política e religiosa sobre a continuidade das
tradições judaicas e o diálogo cordial entre os líderes judeus e os
governantes imperiais, mesmo depois da destruição de Jerusalém
em 66-70 d.C. Para Josefo, a difícil, mas próspera, situação dos
judeus na Diáspora, o comportamento de Vespasiano e Tito para
com eles, e a continuidade das tradições judaicas dentro dessas
comunidades eram uma prova concreta de que os judeus de sua
época estavam começando um novo Exílio e não inaugurando
uma época de expectativa messiânica.

51
Nas asas da águia: a exegese visionária
dos impérios mundiais de Daniel no

Quarto livro de Esdras1

Vicente Dobroruka

Já se disse, com razão, que toda a literatura bíblica


intertestamentária, seja judaica ou cristã, é um comentário
desenvolvido a partir de textos anteriores.2 A natureza desse
comentário varia desde a reescritura esclarecedora de livros
fundadores (caso de Jubileus com relação ao Gn, ou de 1En com
o episódio dos gigantes em Gn 5) até comentários como os
pesharim de Qumran, dos quais o de Habacuc e o de Naum são
os mais conhecidos (nesses casos trata-se de atualizar o conteúdo
do texto profético e fazer o público consumidor entender a

1
Uma versão preliminar deste capítulo foi apresentada, sob o título de “4Ezra e os 4
impérios mundiais daniélicos: algumas considerações” no II Seminário Interno do
Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos – PEJ –, em 21 de novembro de 2007, na
Universidade de Brasília. O autor é professor associado de História Antiga na UnB,
mestre em Estudos Orientais e doutor em Teologia pela Universidade de Oxford,
e gostaria de agradecer a Fabrício Santos Barbacena pela ajuda com as discussões
linguísticas nas diferentes versões de 4Ezra.
2
Óbvio como o comentário possa parecer atualmente, remeto o leitor de língua
portuguesa a duas obras de referência sobre o assunto: Julio Trebolle Barrera. A Bìblia
judaica e a Bíblia cristã. Petrópolis: Vozes, 1996 e Gonzalo Aranda Pérez et alii.
Literatura judaica intertestamentária. São Paulo: Ave-Maria, 1996.
Espectadores do sagrado

atualidade da mensagem veiculada – em outros termos, resignificá-


-la). Desnecessário dizer que o Novo Testamento posiciona-se do
mesmo modo, quer visto em perspectiva cristã, quer na judaica; e o
judaísmo rabínico faria o mesmo ao longo de todo o desenvolvimento
exegético que culminaria nos Talmudes. Em suma, toda religião
fundada num texto sagrado supõe necessariamente a reinterpretação
contínua deste, e algo como um “Antigo Testamento” ou “Bíblia
hebraica” que circulasse de modo autônomo e sem comentários
substantivos nunca existiu.3 A reinterpretação é um imperativo,
quer pelo fato de muitas circunstâncias descritas nos textos terem
se alterado por transformação social (caso de muitas das prescrições
do Dt, por exemplo) quer pela necessidade de readequação de uma
mensagem ou exortação a um novo contexto (pesharim, midrashim,
boa parte da apocalíptica).
O texto de que me ocuparei neste capítulo não é exceção;
o chamado Quarto livro de Esdras é, sob certos ângulos e em
certas passagens, uma reatualização de Daniel, cujo conteúdo
soteriológico teria de adaptar-se às novas condições impostas
pela dominação romana, distintas do contexto helenístico em
que o texto daniélico foi compilado ou mesmo escrito (que Dn
não constitui uma unidade em termos de composição é fato
bem sabido, embora restem divergências quanto à natureza das
clivagens autorais e, portanto, de datação). Isso fica evidente
quando se compara o uso de R(wmai/oi na versão grega dos LXX
para a recensão de Teodocião,4 no séc. II d.C., em que o termo
volta a ser lido como Κίτιοι; a escassez de manuscritos da LXX

3
Trebolle Barrera, op.cit. p. 26.
4
Teodocião pode ter feito uma revisão do texto da LXX ou trabalhado a partir de
manuscritos hebraicos independentes; foi considerado importante o bastante para
compor uma das colunas da Hexapla de Orígenes. O texto de Dn que nos era
utilizado pela maior parte dos cristãos primitivos compunha-se daquele editado por
Teodocião, cuja tradução é por vezes excessivamente literal.

54
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

com relação a Dn (o Codex Chisianus5 e o Papiro 967 são, para


todos os efeitos, as testemunhas da leitura “original” do termo
tal como deveria constar na LXX – a Vulgata mantém Romani).
Na patrística, a interpretação da última monarquia secular de
Dn 2 e 7 é, frequentemente, como Roma, e não mais os reinos
helenísticos ou o império de Alexandre.
Embora os primeiros seis capítulos de Dn componham-se de
“historietas” que podem ser lidas de modo independente, e que
não estejam interligadas necessariamente (daí as teses das ordens
variáveis em que Dn pode ter sido originalmente “arrumado” – 7,
8, 5, 6),6 do modo como o livro chegou até nós e já era consumido
na Antigidade (aqui o testemunho de Josefo e dos Manuscritos do
Mar Morto é eloquente) ele estrutura-se em torno dos capítulos
2 e 7, que são aqueles propriamente apocalípticos. Dentro da
definição mais comumente aceita, define-se “apocalipse” como

[...] um gênero de literatura revelatória com uma estrutura


narrativa, na qual a revelação é mediada por um ser do outro
mundo a um receptor humano, revelando uma realidade
transcendente que é simultaneamente temporal, na medida
em que busca salvação escatológica, e também espacial, na
medida em que envolve outro mundo.7

4Ezra é um texto apocalíptico de origem judaica e preservação


cristã,8 que deve ter sido escrito após 70 d.C. (pela importância
5
Manuscrito do séc.IX d.C.
6
John J. Collins. Daniel: a Commentary on the Book of Daniel. Minneapolis: Fortress
Press, 1993, p. 4-5; daí a importância do Papiro 967, que obedece a essa sequência.
7
John J. Collins (Ed.). Semeia 14. Apocalypse: The Morphology of a Genre. Missoula:
Scholars Press, 1979.
8
Com exceção dos capítulos 1-2 e 15-16, interpolações cristãs. Utilizei como ponto
de partida para 4Ezra a edição de Michael E. Stone. Fourth Ezra. A Commentary
on the Book of Fourth Ezra (Hermeneia – A Critical and Historical Commentary
on The Bible). Minneapolis: Fortress Press, 1990. Para a edição latina, utilizei o
texto da Vulgata (Robert Weber (Ed.). Biblia Sacra. Iuxta Vulgatam Versionem.

55
Espectadores do sagrado

que seu autor atribui à queda do Templo), mas antes do final do


séc. II d.C. (quando encontramos a primeira citação inequívoca dele,
em Clemente de Alexandria).9 O texto de 4Ezra está estruturado
em torno de sete visões, das quais a quarta (a mulher chorando) e
4Ezra 12:51 são as mais importantes para a discussão que travamos
aqui; a mulher que chora vincula-se ao contexto da quinta visão
(a águia), embora na verdade introduza a sexta – pois após 12:51
o visionário dorme sete dias e depois tem a visão. O aspecto a ser
discutido neste capítulo é a forma pela qual as duas visões de Dn (2
e 7) são reformuladas em 4Ezra de modo a adequarem-se às novas
circunstãncias do convívio com Roma – em outras palavras, trata-se
de discutir duas coisas:

1. A adaptação de um tema meta-histórico comum aos


dois livros, qual seja o do complexo mítico que reúne as
idades do mundo e as monarquias universais (em Dn 2,
acrescidas dos metais em ordem de decadência; em Dn
7, dos diversos animais que simbolizam impérios – este
último aspecto repete-se funcionalmente em 4Ezra,
embora com outros personagens);
2. O grau de minúcia com que a “nova” visão (i.e. a visão
reatualizada em 4Ezra a partir do texto daniélico) é
esmiuçada para o visionário.

Uma variante singular na morfologia do mito, que constitui


um tema secundário que não será tratado neste capítulo, é o do
“homem do mar” que, ao contrário do que se verifica habitualmente

Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt, 1969); para a versão siríaca, servi-me do


texto da versão peshitta (The Peshitta Institute of the University of Leiden (Ed.).
The Old Testament in Syriac according to the Peshitta Version. Edited on Behalf of the
International Organization for the Study of the Old Testament. Sample Edition:
Song of Songs – Tobit – 4 Ezra. Leiden: Brill, 1966).
9
Stromateis, 3.16.

56
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

nos mitos, é uma figura redentora, e não um inimigo da criação


(o mar está normalmente associado ao caos primordial e às forças
destrutivas; assim é que em Dn 7 é do mar que saem as bestas, em
Jn é por meio de uma criatura marinha que o profeta relutante
é punido, nos Sl 29:3; 10 e 93 é lá que Iahweh derrota Leviatã e
Raab, as forças do caos).10
Assim definido o conjunto de dois problemas correlatos, mas
distintos, principiemos pelo estudo do primeiro, o da forma que
o tema metahistórico possuía originalmente em Dn e como ele
se transforma em 4Ezra. Antes de iniciarmos a análise, é preciso
deixar claro que, em minha opinião, não se pode decompor 4Ezra
em unidades autônomas, compiladas tardiamente, quer em função
de características linguísticas quer por incongruências teológicas.
Não sabemos quase nada sobre as condições de produção e menos
ainda das condições de consumo dos apocalipses, e exigir esse
tipo de coerência é, sob o meu ponto de vista, tarefa ingrata e que
levará a um beco sem saída (ou a tantas saídas quantas a erudição,
a imaginação ou o simples número de estudiosos envolvidos
permitir).11 Que esse material tenha sido composto em etapas ou
mesmo que tenha proveniência heterogênea (os dois primeiros e
os dois últimos capítulos são, como se viu, interpolações cristãs)
não vêm ao caso para o tema deste capítulo. De todo modo, o
que temos compõe-se da narrativa de uma experiência descrita
pseudonimamente por um ou mais visionários em nome de

10
Norman Cohn. Cosmos, Chaos and the World to Come: The Ancient Roots of
Apocalyptic Faith. New Haven / London: Yale University Press, 1993, p. 133.
11
Daniel Merkur. “The visionary practices of Jewish apocalypticists”. In: L. Bryce
Boyer e Simon Grolnik (Ed.). The Psychoanalytic Study of Society. Hillsdale: Analytic
Press, 1989. p.120-123; a variedade de testemunhos sobre o Além é marca registrada
dos apocalipses e de seus testemunhos proféticos anteriores – por exemplo, Amós,
Zacarias e Jeremias.

57
Espectadores do sagrado

Esdras; se essa narrativa não possui o rigor teológico de um texto


de – digamos – Fílon, é porque nunca pretendeu sê-lo.12
Como o objeto deste estudo é a releitura de um aspecto
pontual da teologia daniélica no decorrer da experiência descrita
em 4Ezra, principiarei pela descrição das duas passagens-chave
em Dn para nosso trabalho, detendo-me apenas no essencial
quanto à sua análise.
Em Dn 2:36-43, o rei Nabucodonosor tem um sonho e exige
dos magos da corte não apenas a interpretação, como que lhe
digam qual foi o próprio sonho:

Tiveste, ó rei, uma visão. Era uma estátua. [...] A cabeça da


estátua era de ouro fino; de prata eram seu peito e os braços;
o ventre e as coxas eram de bronze; as pernas eram de ferro; e
os pés, parte de ferro e parte de argila. [A estátua é destruída
e suas partes pulverizadas por uma pedra] Tal foi o sonho [...]
Tu, ó rei dos reis, a quem o Deus do céu concedeu o reino,
o poder, a força e a honra [...], és tu que és a cabeça de ouro.
Depois de ti se levantará outro reino, inferior ao teu, e depois
ainda um terceiro reino, de bronze, que dominará a terra
inteira. Haverá ainda um quarto reino, forte como o ferro,
como o ferro que reduz tudo a pó e tudo esmaga [...] Os pés
que viste, parte de argila de oleiro e parte de ferro, designam
um reino que será dividido: haverá nele parte da solidez do
ferro [...] O fato de teres visto ferro misturado à argila de
oleiro indica que eles se misturarão por casamentos, mas não
se fundirão um com o outro, da mesma forma que o ferro
não se funde com a argila [Seguem-se considerações sobre o
último reino, o reino messiânico representado pela pedra].13

12
Michael Stone. “On reading an apocalypse”. In: John J. Collins e James H.
Charlesworth (Ed.). Mysteries and Revelations. Apocalyptic Studies since the Uppsala
Colloquium. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991, p. 72.
13
Uma das ideias metodologicamente mais absurdas nesse campo de estudos é a de
preencher a lacuna do Bahman Yašt (BY – um texto que pode ter constituído um

58
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Em Dn 7:1-8 a descrição é bem mais detalhada, e embora as


funções dos personagens se mantenham, são outros:

No primeiro ano de Baltazar, rei de Babilônia, Daniel,


estando em seu leito, teve um sonho, e visões lhe
assomaram à cabeça. Ele redigiu o sonho por escrito. Eis
o começo da narrativa: Tomou a palavra Daniel, dizendo:
Eu estava contemplando a minha visão noturna, quando
vi os quatro ventos do céu que agitavam o grande mar.
E quatro animais monstruosos subiam do mar, um
diferente do outro. O primeiro era semelhante a um leão
com asas de águia. Enquanto eu o contemplava, suas asas
lhe foram arrancadas e ele foi erguido da terra e posto de
pé sobre suas patas como um ser humano, e um coração
humano lhe foi dado. Apareceu um segundo animal,
completamente diferente, semelhante a um urso,14
erguido de um lado e com três costelas na boca, entre
os dentes. E a este diziam: ‘Levanta-te, devora muita
carne!’ Depois disso, continuando eu a olhar, vi ainda
outro animal, semelhante a um leopardo, que trazia
sobre o flanco quatro asas de ave; tinha também quatro
cabeças e foi-lhe dado o poder. A seguir, ao contemplar

apocalipse persa, mas que chegou até nós em manuscritos tardios e que compõe-se
apenas de comentários a um original perdido) referente ao que está misturado ao
ferro (não se sabe) com base no texto de Dn, que apesar de completo, fornece uma
interpretação completa e acabada do problema e o relaciona aos casamentos entre
Lágidas e Selêucidas. Nada permite concluir que fosse essa a intenção do autor do
BY, quer pelos manuscritos serem muito tardios e remeterem a contextos que hoje
nos escapam, quer por ter existido um (hipotético) BY avéstico, anterior às confusões
dinásticas do período helenístico. Cf. Philippe Gignoux. “Sur l’inexistence d’un
Bahman Yasht avestique” in: Journal of Asian and African Studies 32, 1986.
14
O tema dos 4 reinos encontra novos desenvolvimentos na literatura rabínica (Lev.
Rabbah 13:5 afirma que os 4 reinos foram antecipados em Gn 2:10 – os 4 rios –; em
Gn 15:12 – a escravidão –, e Lv 11:4-8 – camelo = Babilônia, fuinha = Média, coelho
= Grécia, porco = Roma). Tudo isso implicaria uma nova razão para o descrédito de
Roma como última monarquia, a cristianização do Império. Cf. Collins. Daniel: a
Commentary on the Book of Daniel, p. 72.

59
Espectadores do sagrado

essas visões noturnas, eu vi um quarto animal, terrível,


espantoso, e extremamente forte: com enormes dentes
de ferro, comia, calcava, triturava e calcava aos pés o que
restava. Muito diferente dos que o haviam precedido,
tinha este dez chifres.
Enquanto eu considerava esses chifres, notei que surgia
entre eles ainda outro chifre, pequeno, diante do qual
foram arrancados três dos primeiros chifres pela raiz.
E nesse chifre havia olhos como olhos humanos, e uma
boca que proferia palavras arrogantes.15

O papel dos três primeiros animais é, evidentemente,


secundário na sequência, embora de modo mais ostensivo do que
o das últimas partes da estátua em Dn 2; aqui, como em 4Ezra 12,
a identificação dos personagens históricos aos quais o apocalíptico
15
Deve-se notar aqui a possível origem semítica para o enredo do “mau rei”,
presente em uma especificidade de Dn 7 é a aplicação de um padrão mítico
para um contexto histórico, agravado pelo caráter estereotipado da descrição
de Antíoco Epífanes em Dn 7, como um dos ímpios especialmente perversos.
Ela pode estar ligada à caracterização dele em fontes gregas e egípcias, mas
também à lenda persa do Kay Kâûs (cf. Hildegard Lewy. “The Babylonian
background of the Kay Kâûs legend”. In: Archiv orientální 17, 1949. p. 28-109).
A lenda foi registrada pelo historiador persa Hakīm Abol-Ghāsem Ferdowsī
Tūsī, autor do épico nacional persa Shāhnāmeh (em geral conhecido simplesmente
como Firdausī) no séc. X d.C. Entre suas características estava um interesse
obsessivo nos astros, que o levaram a fazer uma viagem aos céus; ele também
rebelou-se contra a religião no Iraque; realizou uma expedição militar contra
a Arábia; sentou-se num trono dourado e tentou ascender aos céus; construiu
uma torre enorme que alguns ainda enxergavam nas vizinhanças da Babilônia.
Ele também foi atingido por uma demência temporária, mas completa.
O traço leva à Nabônides, mas também à demência de Nabucodonosor em Dn 4.
4QOrNab deixa fora de dúvida de que as tradições sobre ele formavam ao menos
parte das tradições localizadas em Dn. A tradição do rei rebelde remonta, portanto,
a Nabônides, e este deve ter sido usado ao menos como modelo parcial em Dn 4 –
nesse capítulo o autor refere-se a um padrão já existente de reis rebeldes (cf. Is 14;
Ez 28; 31 etc.). Verificamos também passagens relativas ao tema do “rei rebelde”
em Dn 8:10; 8:23b; 251; 11:36; 8:25 e 11:45b. Cf. Helge S. Kvanvig. “Dan 7 in a
Mesopotamian context”. In: Roots of Apocalyptic: The Mesopotamian Background of
the Enoch Figure and of the Son of Man. Neukirchen-Vluyn: Neukirchen Verlag,
1988, p. 460-468.

60
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

(autor ou compilador do trecho) pretende aludir é problemática, e


muitos palpites infelizes já surgiram sobre o assunto.16 De modo
quase esquemático, a figura redentora que se segue às bestas em
Dn 7 é também seguida de outra em 4Ezra 13:1 ss.; desse modo
temos outro par, a visão do “Filho do Homem” em Dn 7:9 ss. e
4Ezra 13. Principiando pelo primeiro, vejamos os paralelos possíveis
entre as duas seções e também a sua diferença principal, qual seja a
proveniência da figura messiânica. Em Dn 7, portanto, temos:

Eu continuava contemplando,
quando foram preparados alguns tronos
e um Ancião sentou-se.
Suas vestes eram brancas como a neve;
e os cabelos de sua cabeça, alvos como a lã.17
Seu trono eram chamas de fogo
com rodas de fogo ardente.
Um rio de fogo corria,
irrompendo diante dele.18
[...]
O tribunal tomou assento e os livros foram abertos.19

16
Para uma discussão das posições correntes no mundo acadêmico até meados do séc.
XX, cf. Harold H. Rowley. Darius the Mede and the Four World Empires in the Book of
Daniel. Cardiff: University of Wales Press Board, 1959.
17
Não necessariamente um traço positivo: no ApEl é algo que está associado ao
Anticristo (ApEl 3:15.).
18
Evocando de um lado 1En 52 com as montanhas de metal que se derretem como
cera e também se encontram associadas aos metais e principalmente, ao Juízo Final
na tradição persa – por exemplo, Bundahišn 12.
19
É de se notar que Esdras apresenta-se como “escriba” e é cercado de outros cinco
escribas que realiza a performance final do apocalipse, após a ingestão do líquido na
taça (4Ezra 14:19 ss.).

61
Espectadores do sagrado

Em 4Ezra 11-13 temos um midrash de Dn 7, nos seguintes termos:

Na segunda noite [Esdras recebe a ordem de permanecer no


campo onde havia ingerido as flores que lhe proporcionaram
a quarta visão, ponto de virada na experiência visionária do
livro e associada à ingestão das flores] tive um sonho, e
vede, surgiu do mar uma águia que tinha doze asas com
penas e três cabeças. E olhei, e vede, ela espalhava suas asas
sobre toda a Terra,20 e todos os ventos do céu juntavam-
-se sobre ela.21 E olhei, e de suas asas cresciam asas em
[pares] opostos; mas elas tornaram asinhas pequenas,
insignificantes. Mas suas cabeças descansavam; a cabeça do
meio era maior do que as demais, mas descansava com elas.
Eu olhei, e vede, a águia voava com suas asas, para reinar
sobre toda a Terra e todos os que nela viviam. E vi como
todas as coisas sob o céu lhe estavam sujeitas, e ninguém
a contestava, nenhuma das criaturas da Terra. E olhei, e
vede, a águia levantou-se sobre suas garras, e urrou para
suas asas, dizendo: ‘Não olhem todas ao mesmo tempo;
que cada uma durma em seu lugar, e olhe [cada uma] em
sua vez; mas que as cabeças sejam deixadas para o final’.

E olhei, e vede, a voz não vinha de sua cabeça, mas do meio


de seu corpo.22 E contei as asas em [pares opostos], e vede,
eram oito delas [...]

20
“Et vidi, et ecce expandebat alas suas in omnem terram”. Aqui a imagem é comum no
AT é pode ser encontrada em diversas passagens – a título de exemplo, Ex 19:4; Dt
32:11; Jn 48:40; 49:22; Ez 17:3; 7; Pr 23:5.
21
Em Dn 7 os quatro ventos agitam o mar, não as bestas, nem mesmo a última – que é,
em 4Ezra, a águia.
22
Imagem apavorante a princípio, mas que faz sentido no conjunto da visão: não seria
lógico a cabeça referir-se a si mesma em terceira pessoa, tanto mais que a águia tinha
três delas.

62
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Até a terceira asa (4Ezra 11:18), o comentário é detalhado; daí


para a frente, o autor não mais discute em minúcia o que ocorrerá a
cada uma, mas informa laconicamente que algumas governaram,
outras não, mas que todas desapareceram. E sobraram apenas as
cabeças da águia e seis asas pequenas. Dessas, duas separaram-se
e colocaram-se sob o abrigo da cabeça direita da águia; depois
esta acorda, alia-se às outras duas cabeças e devora as asinhas sob
seu abrigo, que aparentemente conspiravam contra si. Depois
(11:33 ss.),

[...] a cabeça do meio também desapareceu subitamente,


como havia ocorrido com as asas. Mas as duas cabeças
permaneceram, e também governaram a terra e seus
habitantes. E olhei, e vede, a cabeça da direita devorou a
da esquerda.23

Então ouvi uma voz dizendo-me, ‘Olhe diante de ti e


considere o que estás vendo’. E olhei, e vede, uma criatura
como um leão surgiu da floresta, rugindo; e ouvi como ele
falava com voz humana com a águia, dizendo, ‘Ouça o que
vou te dizer. O Altíssimo te diz, ‘Não és a quarta besta
sobrevivente entre as quatro que fiz com que governassem
meu mundo, para que o final dos tempos viesse através dela?
Tu, a quarta que veio, conquistastes todas as bestas que
vieram antes; e controlastes o mundo com tamanho terror,
e toda a Terra com opressão odiosa; e até aqui vivestes na
Terra em meio ao deboche. E julgastes a Terra, mas não
de modo justo;24 pois afligistes os pacíficos e maltratastes
os humildes, odiastes os que diziam a verdade, e amaste

23
Possível referência ao assassinato de Tito por Domiciano, jamais confirmado, mas
justificável pelo caráter despótico do reinado deste último. Cf. Suetônio. Vida de
Domiciano 2, em que se afirma que Domiciano sempre cobiçara o trono e que havia
sido traído num testamento falso, que estipularia a divisão deste último com Tito.
24
“Et iudicasti terram non cum veritate”; o siríaco sem variantes para o versículo.

63
Espectadores do sagrado

os mentirosos [...] Assim, a tua insolência chegou ao


Altíssimo, e teu orgulho ao Todo-Poderoso. E o Altíssimo
olhou para seu tempo, e vede, eles terminaram, e suas eras
se completaram! [...]’

Enquanto o leão estava dizendo essas palavras à águia,


olhei, e vede, a cabeça que sobrara desapareceu. E as duas
asas que haviam se bandeado para ela levantaram-se para
reinarem, e seu reino foi breve e tumultuado. Olhei, e
vede, todo o corpo da águia foi queimado, e a Terra estava
aterrorizada ao extremo.

Aqui cabe a discussão – até o momento, inconclusiva no


mundo acadêmico – sobre a natureza das cabeças e asas da
águia. Essa é uma questão que possui poucos denominadores
comuns: pelo menos desde o final do séc. XIX, os estudiosos
concordam que, pela datação do texto posterior à destruição do
Templo em 70 d.C., a águia deve representar Roma e qualquer
estudo sobre a natureza das partes da águia deve centrar-se em
suas cabeças.
Há três hipóteses sérias sobre a natureza das partes:

1. As três cabeças seriam Pompeu, Sula e César, o que


imporia uma datação ao livro remetendo ao final do séc. I
a.C.; a objeção mais óbvia a essa interpretação é o fato de
o autor escrever após a destruição do Templo em 70 d.C.
(a invasão e saque por Pompeu em 63 a.C. não seriam
suficientes para justificar o lamento do visionário pela
destruição de Sião);25

25
Stone, Fourth Ezra, p. 363-364; trata-se da tese proposta por Richard Laurence.
Primi Ezrae Libri Versio Aethiopica. Oxford: Oxford University Press, 1820; Friedrich
Lücke. Versuch einer vollständigen Einleitung in die Offenbarung des Johannes und in
die apokalyptische Literatur überhaupt. Bonn: Weber, 1852; Jacob C. van der Vlis.
Disputatio Critica de Ezrae Libro Apocrypho Vulgo Quarto Dicto. Amsterdam: Müller,

64
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

2. No outro extremo da datação, o texto seria de 218 d.C.,


e as três cabeças seriam nesse caso Septímio Severo, Geta e
Caracala;26 mas o fato de Clemente de Alexandria já citar
4Ezra antes da data proposta invalida qualquer argumento
subsequente (cf. nota 8); além disso 12:18; 21 afirmam que,
após o governo das duas primeiras asas, haverá um intervalo
de confusão política e social, o que não se aplica nem a Tito
nem a Nerva;
3. A terceira posição, mais sensata e predominante entre
os estudiosos, identifica as três cabeças como Vespasiano,
Tito e Domiciano, mas, como a segunda asa tem de ser
Augusto, temos aqui um novo problema – o número
total de asas, 18 ou 20, excede o número completo de
imperadores e usurpadores conhecidos para o período.27
Dentro desse quadro teórico não há divergência quanto aos
12 imperadores representados pelas asas, mas as asinhas
não foram identificadas com segurança; talvez se trate

1839; Adolf Hilgenfeld. Die jüdische Apokalyptik in ihrer geschichtlichen Entwickelung.


Jenna: Mauke, 1857.; e Pierre Geoltrain. “Quatrième Livre d’Esdras” in: André
Dupont-Sommer e Marc Philonenko (Ed.). La Bible: écrits intertestamentaires.
Paris: Gallimard, 1987. Schürer já mostrou a inconsistência da tese pela obviedade
da procedência de 4Ezra de período subsequente à destruição do Templo. Cabe
ainda lembrar aqui o longo discurso de Agripa em Josefo (BJ 2.357 ss.), exortando
os judeus à moderação e recordando que o momento da independência política
havia passado de fato com a invasão de Pompeu, mas que a insistência no assunto
é que levaria à destruição completa dos judeus em nome de uma causa duvidosa,
expondo o Templo a riscos inaceitáveis (BJ 2.397 ss.).
26
Trata-se da datação proposta por Alfred von Gutschmidt. “Die Apokalypse des
Esra und ihre spätern Bearbeitungen” in: Zeitschrift für Wissenschaftliche Theologie 3,
1860 e por Arthur-Marie Le Hir. “Du IVe livre d’Esdras” in: Études bibliques par
M. l’abbé Le Hir. Paris: Albanel, 1869; mais recentemente, por Philips Barry. “The
Apocalypse of Ezra” in: Journal of Biblical Literature 32, 1913 e Daniel Völter. “Die
Geschichte vom Adler und vom Menschensohn im 4.Esra nebst Bemerkungen über
die Menschensohn-Stellen in 1. Henoch” in: Norsk Teologisk Tidsskrift 8, 1919; cf.
Stone, Fourth Ezra, p. 364.
27
Stone, Fourth Ezra, p.364-365.

65
Espectadores do sagrado

de líderes não romanos ou de generais e usurpadores de


períodos subsequentes.28

Com restrições, a última teoria é a mais aceita pela scholarship


contemporânea e, de fato, a que faz mais sentido no conjunto do texto.
Mas há algo que todos os autores deixaram escapar como
possibilidade: se 4Ezra deve ser entendido como uma unidade
completa, que fazia sentido tanto ao seu autor quanto à sua
audiência,29 segue-se que a experiência visionária forma também
um todo, que principia com a teimosia do visionário nas três
primeiras visões, altera-se radicalmente com a quarta e, daí até o
final do livro, o autor pseudônimo passa a defender a posição que
inicialmente era do anjo Uriel (sem, no entanto, compreendê-la; o
que acontece é um processo de conversão, não de convencimento.30
Do ponto de vista de explicação para a teodiceia, 2Br é muito
mais sofisticado, embora, no que diz respeito às experiências
descritas, muito mais enfadonho também; isso deve ser levado em
conta quando se argumenta que 2Br constituiria uma espécie de
“resposta” às questões não respondidas pela teologia de 4Ezra. Mas
se 4Ezra não se apresenta como um tratado teológico, é porque
nunca pretendeu sê-lo).
Isso significa que boa parte das representações zoomórficas
de 4Ezra podem não ter qualquer explicação ou equivalência
históricas, mas apenas constituírem o epílogo confuso de um

28
Para essas suposições, cf. August F. von Gförer. “Das Jahrhundert des Heils”
in: Geschichte des Urchristentums. Stuttgart: Schweitzerbart, 1838. Vol.1; Karl G.
Wieseler. “Das vierte Buch Esra nach Inhalt und Alter untersucht”. In: Theologische
Studien und Kritiken 43, 1870; Richard Kabisch. Das vierte Buch Esra auf seine Quellen
untersucht. Göttingen: Vandehoeck & Ruprecht, 1889 e William O. E. Oesterley. 2
Esdras (The Ezra Apocalypse). London: Methuen, 1933.
29
Stone, “On reading an apocalypse”, p. 66.
30
Idem, p. 73 ss. e, do mesmo autor, “Apocalyptic – vision or hallucination?”. In: Selected
Studies in Pseudepigrapha and Apocrypha with Special Reference to the Armenian Tradition.
Leiden / New York / Kobenhavn / Köln: Brill, 1991 e “A reconsideration of apocalyptic
visions”. In: Harvard Theological Review 96 (2), 2003, p. 169.

66
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

episódio extático, vivido em primeira mão ou simplesmente


repetido (nesse caso, existe ainda a possibilidade dos absurdos
cronológicos da visão serem fruto da ignorância de redatores
sucessivos, que mantiveram a unidade essencial do relato da
experiência visionária mas perderam, aos poucos, o significado
original do texto, aumentando ou diminuindo o número e
alterando as características ou comportamento das asas). É de
se notar ainda que a visão torna-se cada vez mais confusa na
medida em que se caminha para seu final, o que já levou alguns
estudiosos a suporem que o visionário sabia de coisas relativas aos
anos turbulentos da sucessão neroniana que hoje se perderam.31
Sou de opinião que é a própria visão que vai chegando ao final
de modo confuso, tanto mais porque a visão da águia relaciona-se
com o ponto de virada do livro, a quarta visão (a da mulher que se
transforma na Jerusalém celeste). Ora, a quarta visão é propiciada,
de modo bizarro entre todas as formas de preparação visionária dos
apocalipses, pela ingestão das flores no campo (4Ezra 9:24-25).
Que tenha ou não havido a ingestão de flores ou alucinógenos
de fato pelo visionário é outra questão;32 que a quarta e quinta visões
ligam-se uma como sequência da outra e que a quinta desfaz-se
em meio à confusão crescente quanto ao que o visionário enxerga

31
O argumento me parece completamente especulativo e incongruente com o caráter
simbólico das visões apocalípticas como um todo; acrescente-se a isso o fato de
os apocalipses não se notabilizarem pelo entendimento minucioso da história,
nem servirem-se de abordagens historiográficas (afinal, não se trata de obras de
história, mas quando muito de textos sagrados que se servem de um tipo peculiar de
entendimento do sentido da história para explicar suas teodiceias).
32
Cf. Vicente Dobroruka. “Chemically-induced visions in the Fourth Book of Ezra
in light of comparative Persian material” in: Jewish Studies Quarterly. Vol.13.1.
Princeton: Mohr Siebeck, 2006. Nesse artigo busquei aprofundar a discussão
iniciada por Anders Hultgård. “Ecstasy and vision” in: Nils Holm (ed.). Religious
Ecstasy. Based on Papers read at the Symposium on Religious Ecstasy held at Åbo,
Finland, on the 26th-28th of August 1981. Stockholm: Almqvist and Wiksell,
1982.

67
Espectadores do sagrado

antes de acordar em pânico, está fora de questão, pois consta do


próprio texto.
Deve-se ponderar ainda se para o visionário uma explicação
meticulosa relativa às asas da águia, suas cabeças e equivalentes
no mundo real teria a mesma importância que para nós. É visível,
ao longo de todo o episódio, que a águia como unidade completa
interessa muito mais ao visionário do que suas partes constituintes
(do mesmo modo que em Dn 7 a besta que realmente interessa
ao autor é a última, as demais aparecendo, a meu ver, como
complementos necessários que façam o episódio coadunar-se de
modo mais adequado ao capítulo 2).
O visionário detém-se nas partes da águia, mas o simples
fato de poder identificá-la, “midrashicamente”, com um animal
bem divulgado (ainda que estranho ao ponto de não ter nome em
Daniel) e de significado simbólico tão intenso como a quarta besta
de Dn 7 já mostra sua importância como muito maior, tomada em
seu todo, do que o último animal de Dn.
Apenas como curiosidade – talvez mais do que isso, mas em
minha opinião apenas uma especulação digna de nota –, devemos
lembrar que há um paralelo não intencional entre as últimas
bestas em Dn e em 4Ezra: do mesmo modo que para o autor
de Dn o último animal a sair da água não se parece com nada
conhecido por estar fora do alcance do conhecimento geográfico
do autor (e por isso mesmo talvez se trate de um rinoceronte
indiano, conhecido indiretamente por uma versão do Romance
de Alexandre que teria vulgarizado a sua figura),33 a águia de

33
A possível influência do Romance de Alexandre do Pseudo-Calístenes sobre o autor
de Daniel – através de uma passagem semelhante na Vida de Apolônio de Tyana de
Filostrato – implica na identificação da “quarta besta” com um rinoceronte. “Então
apareceu uma besta muito diferente, maior do que um elefante, armada na testa com
três chifres, [um animal] que os indianos costumavam chamar odontotyrannos, (cuja
cor é escura, semelhante à de um cavalo). Depois de ter bebido água, olhou para o
nosso acampamento e atacou-nos de surpresa, e não recuou nem diante de grandes

68
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

4Ezra encontraria um paralelo na Vida de Apolônio de Tyana de


Filostrato (cf. nota anterior – de modo paradoxal, Filostrato
seria tanto fonte indireta para o quarto animal de Dn como
reflexo da situação política em Roma e, portanto, representativo
dos recursos simbólicos utilizados para explicar ou antecipar os
desenvolvimentos políticos em Roma). Trata-se da passagem
em 5.13, com a referência às três cabeças, em contexto diferente
do visionário de 4Ezra mas significando igualmente a confusão
relativa à sucessão neroniana:

Apolônio disse: ‘Ide, Damis, e veja se a criança é realmente


como afirmam’. Pois aquela coisa estava exposta ao público
para que os milagreiros exercitassem seus dons sobre ela.
Quando Damis confirmou que era uma criatura de
três cabeças e do sexo masculino, Apolônio reuniu seus
companheiros e disse: ‘Isso significa três imperadores dos
romanos [...] e nenhum deles terá um domínio completo,
mas dois deles deverão morrer depois de tomarem a própria
Roma, e o terceiro depois de tê-lo feito nos países em torno
de Roma: e eles deverão embaralhar suas máscaras mais
rapidamente do que se fossem atores trágicos fazendo o
papel do tirano’.
E a verdade dessa afirmação foi quase que imediatemente
revelada; pois Galba morreu na própria Roma, assim que
usurpou a coroa; e Vitélio morreu mal após ter sonhado
com ela; e Otão morreu entre os gauleses do Ocidente e
nem sequer recebeu um funeral público, mas permanece

labaredas de fogo” (cf. Wilhelm Kroll. Historia Alexandri Magni. Berlim: Weidmann,
1926; a versão armênia foi editada por Albert M. Wolohjan. The Romance of Alexander
the Great by Pseudo-Callisthenes. Nova York: Columbia University Press, 1969. Outras
versões da passagem encontram-se na edição do Josippon pelo próprio Flusser
( Jerusalém: Bialik, 1980 - em hebraico) e na edição de Adolf Ausfeld. Der griechische
Alexanderroman. Leipzig: /s.ed./, 1907. Cit. por David Flusser. “The fourth empire – an
Indian rhinoceros?” in: Judaism and the Origins of Christianity. Jerusalem: Magnes Press,
1988, p. 348.

69
Espectadores do sagrado

enterrado como qualquer indivíduo privado. E esse episódio


do Destino encerrou-se dentro de apenas um ano.34

Sugiro, portanto, que há muito de overreading nos estudos


sobre a natureza das asas e cabeças das asas da águia de 4Ezra.
Do mesmo modo que falta ao texto a coerência de um tratado
teológico, falta-lhe também uma explicação meticulosa acerca do
que cada parte da águia representava. A imaginação apocalíptica
não estava limitada por esse tipo de preocupação, seja o episódio
autenticamente visionário, narrativa em segunda mão ou simples
repetição de clichês aceitos pela audiência do texto.
A observação de Stone – seguindo os passos de Russell e Collins –,
o qual afirma que o interesse do visionário pela precisão factual das
partes constituintes da águia é um indicador da datação do texto,
esbarra numa objeção séria, embora a ideia não seja de todo inviável.
Na passagem citada (4Ezra 11-13), o visionário pede a Deus que “me
mostre quando pretendes executar [os sinais do fim dos tempos].”35
O ponto em que o visionário teria vivido seria precisamente aquele em
que a datação deixa de ser factualmente inteligível.36

34
Aqui, como noutras passagens da Guerra dos judeus, Josefo deve ter tido acesso a uma
fonte excepcionalmente detalhada quanto à turbulenta sucessão neroniana.
35
“Nonne tu es, quae superasti de quattuor animalibus quae feceram regnare saeculi mei , et ut
per eos veniret finis temporum meorum? Et quartus veniens devicit omnia animalia quae
transierunt, et potentatum tenens saeculum cum tremore multo et omnem orbem cum labore
pessimo, et inhabitabant tot temporibus orbem terrarum cum dolo”.
36
Stone, Fourth Ezra, p. 363. Aqui temos notável – embora evidentemente não
intencional – semelhança entre a crítica moderna e as ideias do filósofo Porfírio de
Tiro (233-305 d.C.). As ideias de Porfírio encontram-se em Adversus Christianos,
produzidos em algum momento entre os reinados de Décio e de Diocleciano
(“Porfírio escreveu seu décimo segundo livro contra a profecia de Daniel, negando
que tenha sido composto pela pessoa a que é atribuído no título, mas sim por alguém
que viveu na Judeia no tempo de Antíoco, de sobrenome Epífanes. Além disso,
ele afirmou que ‘Daniel’ não predisse o futuro, mas relatou o passado”). Cf. Robert
Berchman. Porphyry Against the Christians. Leiden / Boston: Brill, 2005; Maurice
Casey. “Porphyry and the origin of the book of Daniel” in: Journal of Theological
Studies, 27 (1), 1976 e Gleason L. Archer Jr. Jerome’s Commentary on Daniel.
Grand Rapids: Baker, 1958.

70
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Mas a argumentação esbarra em dois problemas sérios:

1. Teria de haver uma prova irrefutável quanto à datação de


todas as passagens anteriores referentes aos constituintes da águia;
Supondo que a proposição “1” esteja correta, ou seja, pelo
menos viável, então,

2. Teríamos de dar conta de dois subproblemas:

2.1 O volume de asas maior do que o de imperadores possíveis


até o reinado de Domiciano (ele mesmo apenas uma hipótese,
ainda que a mais razoável, para a datação do período em que o
visionário viveu), e a incompatibilidade de se entender as asas aos
pares, como demonstrou Box a partir de 4Ezra 11:24-28;37

2.2 A ideia de que por conta de determinada passagem


(digamos, a do abrigo das duas asinhas sob a cabeça direita)
teríamos o terminus ante quem do texto invalidaria a tese anterior,
mantida pela maior parte dos estudiosos dos apocalipses históricos
– a de que o autor estaria preocupado em entender qual o seu
lugar exato no plano divino da história, e nos conduziria a um
argumento circular: como o visionário tem essa aspiração, após
certa passagem as indicações são nebulosas, o que por sua vez
“provaria” que ele viveu antes delas. Não me parece boa lógica para
entender em minúcia o que cada trecho da águia significa.

Se a datação não for critério suficiente, a própria imagem


deve sê-lo. De resto, como veremos a seguir na explicação da visão
fornecida a Esdras em detalhe pelo próprio Deus, o midrash faz

37
Box, p. 265.

71
Espectadores do sagrado

com que a águia complemente a visão de Dn 7 e nisso se esgota o


que podemos saber com precisão absoluta sobre a data de 4Ezra –
o conhecimento, a essa altura bastante óbvio, de que ele tem de ser
posterior a Dn. Em minha opinião, essa explicação, por si mesma,
é muito mais importante no quadro geral do apocalipse do que
a datação pretensamente almejada pelo visionário por meio das
partes da águia em 4Ezra.

Ele [Deus] me disse, ‘Esta é a interpretação desta visão


que tiveste: A águia que vistes saindo do mar é o quarto
reino que apareceu numa visão ao teu irmão Daniel. Mas
[isto] não lhe foi explicado como agora explico a ti. Vede,
estão chegando os dias em que surgirá um reino na Terra,
e ele será mais aterrorizante do que todos os reinos que
o precederam.38 E doze reis nele reinarão, um após o
outro. Mas o segundo deverá reinar por mais tempo do
que qualquer outro dos doze.39 Essa é a interpretação das
doze asas que viste. Quanto [ao fato] de teres ouvido uma
voz que vinha não da cabeça da águia, mas do meio de

38
Talvez a referência a um reino excepcionalmente maligno seja uma forma velada
de falar do reinado de Domiciano (nesse caso, a lenda do assassinato de seu irmão
Tito por ele mesmo tornar-se-ia mais palatável e menos absurda no conjunto do
apocalipse).
39
Aqui parece que pisamos terreno firme: não faz sentido uma referência a Tibério,
e o apocalíptico, sensatamente, parece inicar a contagem com Julio César o qual,
evidentemente, não era imperador, mas estabeleceu as bases definitivas para o
principado de Augusto e sucessores e governou um território administrativamente
unificado de extensão bem próxima à de seus limites máximos e, portanto, imperiais
(exceção feita, obviamente, ao Egito – tomado por Augusto em 31 a.C. – e aos
territórios anexados de forma mais ou menos provisória por Trajano, mais de 100 anos
depois). A sequência de doze imperadores harmoniza-se também com a classificação
de Suetônio em sua obra, e excluiria usurpadores como Piso, Mimphidius ou Vindex,
o que se explica tanto pelo caráter efêmero de sua atuação como pelo fato de não
terem eles deixado nenhum legado, mesmo que destrutivo, digno de nota. Esse é
outro argumento contra a ideia de que o visionário de 4Ezra “sabia mais do que nós”
(Stone, Fourth Ezra p.365); seria de se esperar o mesmo de um autor erudito como
Suetônio, o que, no entanto, não ocorre.

72
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

seu corpo, esta é a interpretação: no meio do tempo [haec


est interpretatio, quoniam post tempus regni illius nascentur
contentiones non modicae]40 desse reino grandes lutas
surgirão, e ele correrá o risco de cair; não obstante, ele não
cairá, mas recuperará sua força anterior. Quanto [ao fato]
de teres visto oito sub-asas [et quoniam vidisti subalares octo
coherentes alis eius]41 ligadas às asas, esta é a interpretação:
oito reis surgirão nele [exsurgent enim in ipso octo reges],42
cujos tempos serão curtos e seus anos [de reinado] breves;
dois deles morrerão quando o meio dos tempos estiver
próximo; quatro serão guardados para o final dos tempos e
dois permanecerão até o final.

A passagem desafia toda a compreensão e implica a mesma


confusão, a meu ver, implícita em Dn 2 e 7, quanto à duração
dos reinos. Em Dn 2, embora uma sequência cronológica seja
explicitada, a pedra que não é acionada por mãos humanas destrói
todos os quatro reinos ao mesmo tempo (como, se eles sucedem-se
e por essa razão não podem coexistir no tempo?); do mesmo modo
a confusão persiste com as bestas em Dn 7. Buscar explicações
de desenvolvimento histórico nessas passagens, ou simplesmente
tentar entender como o visionário em questão se via no contexto
de seu próprio tempo me parece uma empresa fadada ao fracasso
antes mesmo de começar. Sustento a tese de que, se os eventos
descritos simbolicamente podem ser utilizados como marcas para

40
Nas versões siríaca e armênia, “no meio” ou “entre” (‫ – )ܬܢܝܒ‬o que sugere que, nessas
versões, o conhecimento dos eventos posteriores à época do visionário fosse mais preciso.
Uma outra possibilidade, até aqui não levantada por qualquer investigador, é a de que
o “centro” da águia esteja associado ao seu coração, e, portanto, ao que os apocalípticos
entendiam como a sede do pensamento ou do caráter – exemplos paralelos podem ser
encontrados em Test12Jud 13:2; Test12Rub 3:6; ApAbr 23:30, Jb 1:15; 12:20; 1En 91:4.
Cf. David S. Russell. The Method and Message of Jewish Apocalyptic. Philadelphia: The
Westminster Press, 1964, p.142-143.
41
Na versão siríaca, simplesmente “asas pequenas” ou “asinhas” (‫)ܐܦܓ ܐܪܘܥܙ‬.
42
Isto é, no Império?

73
Espectadores do sagrado

a data-limite da composição do texto, aqueles que não se encaixam


no mesmo esquema devem ser imputados ao que se chamou,
acertadamente, de “imaginação apocalíptica” – i.e., não servem para
efeito de datação factual, a não ser pela negativa que expressam: após
o último evento identificável, perdemos o fio da meada, e com isso
devemos nos conformar. Em todo caso, uma explicação coerente
para a listagem nos daria a sequência César – Augusto (27 a.C. – 14
d.C.) – Tibério (14-37) – Gaius (37-41) – Cláudio (41-54) – Nero
(54-68) – Galba (68-69) – Otão (69) – Vitélio (69) – Vespasiano
(69-79) – Tito (79-81) – Domiciano (81-96).
Com relação ao repouso das cabeças, Deus prossegue o
midrash ao visionário após 12:22:

Quanto [ao fato] de teres visto três cabeças em repouso,


esta é a interpretação: nos últimos tempos, o Altíssimo
fará erguerem-se três reis,43 e eles renovarão muitas coisas,
e governarão a Terra de modo mais opressivo do que
todos os que os antecederam; por isso são denominados
de cabeças da águia. Pois eles irão resumir a sua maldade
e realizar seus últimos atos. A cabeça grande significa um
rei que morrerá no leito, mas em agonia.44 Quanto aos dois
que permanecerem, dois serão devorados pela espada. Mas
a espada de um devorará a do outro;45 mas ele também
perecerá pela espada ao final dos dias [....]

43
Na versão latina, três “reinos” (In novissimis eius suscitabit Altissimus tria regna [...]);
“reis” na siríaca (‫ )ܢܝܟܠܡ‬etiópica, armênia e árabe.
44
Se a referência a Vespasiano estiver correta, há aqui um semiparalelo com Suetônio:
Vespasiano efetivamente morreu em agonia, mas não em seu leito. Sofrendo de
disenteria, fez questão de permanecer em pé, como deve morrer um imperador (cf.
Suetônio. Vida de Vespasiano 24 – alvo repente usque ad defectionem soluta, imperatorem
ait stantem mori oportere; dumque consurgit ac nititur, inter manus sublevantium extinctus
est).
45
Nova possível referência ao assassinato de Tito por Domiciano – Unius enim gladius
comedet qui cum eo, sed tamen et hic gladio in novissimis cadet.

74
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Aqui chegamos ao final das seções de 4Ezra que nos interessam


neste estudo. Seguem-se considerações sobre o leão (identificado
como o Messias; 4Ezra 12:31 ss.) que já nos levariam muito longe
da intenção inicial do texto.
Como conclusão geral, temos o fato autoevidente que, do
ponto de vista da sequência de impérios mundiais, a última
besta, que aparece como um animal bizarro ao ponto da
impossibilidade de ser descrito em Dn 7, é substituída por
outro, bem conhecido do público leitor de 4Ezra e frequente na
Bíblia hebraica, a águia. Essa substituição tem ainda o efeito de
servir-se de um símbolo utilizado assumidamente pela potência
que se pretende representar, ou seja, Roma, e o uso comum
desse símbolo tem em Josefo um testemunho precioso – pela
atualização que ele mesmo faz do texto bíblico e ao mesmo
tempo, pelo indisfarçável embaraço que as interpretações
correntes da quarta besta deviam causar a ele e, por extensão,
aos seus protetores romanos (AJ 10.278-281):

[...] o Universo é dirigido por um Ser imortal [...] Parece-


-me portanto que, em vista do que Daniel profetizou, que
eles [os “epicuristas”, que negavam o papel da ação divina
no curso dos assuntos humanos – na literatura rabínica,
em geral aparecem como sinônimo para “descrentes”;
para uma discussão mais profunda da posição de Josefo,
cf. CA 2.180] estão muito longe da verdade ao declararem
que Deus não se importa com os assuntos humanos.
Pois se assim fosse, ou seja, se o mundo funcionasse de
acordo com algum mecanismo automático, não teríamos
visto todas essas coisas ocorrerem de acordo com a sua
profecia. Bem, escrevi sobre essas coisas do modo como
achei melhor segundo minha leitura (ἐγὼ μὲν περὶ τούτων
ὡς εῦρον καὶ ἀνέγνων οὕτως ἔγραψα); mas, se alguém
quiser pensar de modo diferente sobre isso [i.e. sobre o que

75
Espectadores do sagrado

Daniel teria a dizer sobre a última monarquia], não objeto


a que ele sustente opinião distinta.

Embora o tradutor desse trecho não veja nada de ofensivo em


Josefo considerar Roma como a quarta monarquia (na verdade,
Josefo refere-se explicitamente a Antíoco Epífanes em AJ 10.276),
discordo abertamente dessa opinião, com base no próprio Josefo,
em AJ 10.210, quando ele evita cuidadosamente referir-se à pedra
que destruirá a última monarquia e remete o leitor ao próprio texto
daniélico (que, em última análise, estaria claro o suficiente para um
judeu e ao mesmo tempo obscuro o suficiente para um pagão).

E Daniel também revelou ao rei o significado da pedra [que


destrói a estátua em Dn 2:44-45], mas eu não considerei
adequado relatar isso (ἀλλ ̓ ἐμοὶ μὲν οὐκ ἔδοξε τοῦτο
ἱστορεῖν), pois espera-se que eu fale do passado cumprido
e não sobre o que irá ocorrer [...]

Além disso, tanto quanto na contagem dos chifres da quarta


besta de Dn 7, o número de asas em 4Ezra 13 mostra-se não
como um enigma, em minha opinião, mas como uma parte de
um episódio visionário que começa com razoável precisão factual
e vai se diluindo em valores e imagens meramente simbólicos,
quase aleatórios. Isso ocorre pela própria natureza da experiência
visionária, e não em função de datações absurdas pretendidas por
esta ou aquela indicações entre as asas da águia. Tal abordagem,
ainda que menos instigante – já que não propõe nada de
especialmente novo em termos da datação, nem mesmo muda
as possibilidades de datação até aqui propostas – parece-me, no
entanto, mais conforme a imaginação apocalíptica, que não se
encontrava limitada pelas mesmas preocupações factuais que seus
intérpretes modernos.

76
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

O encadeamento das visões 4 e 5 com base no mesmo processo


indutório – a ingestão das flores – aponta para a mesma direção,
ou seja, para um êxtase visionário cuja clareza e intensidade vão
diminuindo à medida que nos aproximamos do final do efeito
do estimulante utilizado, ou alegadamente utilizado. Nada disso
implica a descrição de uma experiência em primeira mão, como
espero ter deixado claro ao longo da análise, muito menos uma
unidade composicional. No entanto, sugere fortemente que
o arranjo das visões 4 e 5 obedece a um relato de experiência
extática cuja intensidade diminui à medida que se chega ao
final dos êxtases, e que essa diminuição é acompanhada de uma
diluição no entendimento ou na explicitação do conteúdo da visão
propriamente dita.

77
Apocalíptica e interações culturais no
mundo romano-helenístico: o caso do

apóstolo Paulo

Monica Selvatici

Até meados do séc. XX, era forte na expressiva escola de


Tübingen, representante primeira da teologia protestante alemã,
uma longa tradição que apresentava o Cristianismo como uma
ruptura em relação ao judaísmo. Particularmente nas décadas
de 1950 e 1960, o movimento cristão foi considerado, conforme
consenso dos especialistas em Novo Testamento de tal centro de
estudos, uma religião helenística sincrética com suas cristologia e
soteriologia fortemente influenciadas pelas religiões de mistério
e por um gnosticismo pré-cristão. O maior expoente desse
pensamento foi o teólogo Rudolf Bultmann, cujos trabalhos
exerceram tamanha influência que, já em 1966, sublinhava-se,
segundo Martin Hengel,1 o fato de “que o trabalho teológico de
Bultmann e aquele de seus pupilos permanece ainda no centro das
discussões”.

1
Martin Hengel. “Judaism and Hellenism revisited”. In: John J. Collins e Gregory
E. Sterling. Hellenism in the Land of Israel. Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 2001, p. 8.
Espectadores do sagrado

A figura de Paulo de Tarso foi, por muito tempo, analisada


de acordo com o viés da “ruptura em relação ao judaísmo”:
os trabalhos de exegese da teologia paulina mostravam Paulo
como o helenizador do pensamento cristão, pensamento este
que seria ainda muito arraigado a uma concepção apocalíptica e
dualista própria do judaísmo palestino. Nesse sentido, Paulo teria
reinterpretado a Torah e os profetas segundo a complexidade do
mundo greco-latino. Por trás de tal argumento, reside a forte
tese de que a abertura para os gentios que Paulo promove na fé
cristã seja resultado do processo de ampla helenização da tradição
judaica, estando, nesse caso, tal abertura diretamente relacionada
à condição de Paulo de judeu helenizado quanto à origem e à
formação.2
Ainda assim, será que podemos nos referir a Paulo como o
“agente helenizador” do Cristianismo? Paulo se apresenta como
um típico judeu helenizado, oriundo da Diáspora?
O autor dos Atos dos Apóstolos3 atribui a origem do apóstolo
Paulo à cidade de Tarso, capital da província romana da Cilícia, que
se localizava a nordeste do mar Mediterrâneo. Dados na epístola
paulina aos Gálatas parecem indicar que essa informação lucana
esteja correta. O historiador e geógrafo grego Estrabão caracteriza
Tarso de forma elogiosa e um tanto quanto exagerada:

2
Alguns autores que partilham da tese de que Paulo foi o helenizador do cristianismo
são William D. Davies. “Paul and Jewish Christianity according to Cardinal Daniélou:
a suggestion”. In: Judéo-Christianisme. Recherches de Science Religieuse. Paris: Beauchesne,
1972; Nobert Hugédé. Paul et la Grèce. Paris: Belles Lettres, 1982 e, mais recentemente,
Jerome Murphy-O’Connor. Paulo. Biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000.
3
Atribui-se, usualmente, a autoria de Atos a Lucas, o médico e discípulo de Paulo que o teria
acompanhado em suas segunda e terceira viagens missionárias. No entanto, essa questão
não é certa porque tal atribuição foi obra do bispo Irineu de Lyon no final do séc.II, com
base em suas suposições sobre quem teria redigido essa obra e o terceiro evangelho. Por
questões didáticas, no entanto, eu me referirei ao autor de Atos como Lucas.

80
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Os habitantes de Tarso dedicam-se tão avidamente não só


à filosofia, mas também a todo o conjunto da educação em
geral, que já ultrapassaram Atenas, Alexandria e qualquer
outro lugar que possa ser citado onde haja escolas e palestras
de filósofos... [Ela] tem todos os tipos de escolas das artes
retóricas (tradução de Murphy-O’Connor, p. 49).

No entanto, mesmo sendo oriundo dessa metrópole


cultural, Paulo não parece ter buscado uma integração maior
com o ambiente filosófico mais amplo da cidade. A linguagem
utilizada por ele não aponta para uma formação em artes
retóricas de sua parte. Hengel4 destaca ainda a ignorância
de Paulo acerca da literatura grega clássica e a ausência de
referências à poesia grega em suas epístolas. O único verso
que o missionário cita, em 1Co 15:33, da obra Thais do poeta
cômico Menandro (“as más companhias corrompem os bons
costumes”), já havia se tornado um ditado popular destacado
de seu contexto literário.5
De igual maneira, por muito tempo se acreditou que Paulo
fosse um iniciado nas filosofias pagãs e nas religiões de mistério
helenísticas. Afinal, a cidade de Tarso era conhecida pela forte
presença da filosofia estoica no século I d. C. Entretanto, os
poucos resíduos de um pensamento estoico que é, aliás, o único
pensamento filosófico característico daquele tempo que se mostra
visível nas epístolas paulinas, são o trecho de Rm 2:12-16 e, em
linhas mais gerais, o conteúdo de Fp.

4
Martin Hengel. The Pre-Christian Paul. London: SCM Press, 1991, p. 3.
5
Werner Jaeger. Cristianismo primitivo e paideia grega. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 25,
n. 28 recorda que Clemente de Alexandria foi o primeiro autor a prestar atenção às
citações literárias da poesia grega presentes no Novo Testamento. Segundo ele, além
da referida citação em 1 Cor 15:33, pode-se identificar outra na Tt 1:12, e aquela em
At 17:28, no discurso que Lucas põe na boca de Paulo no Areópago em Atenas.

81
Espectadores do sagrado

Felizmente, Paulo é bem loquaz no que diz respeito à questão


de sua antiga observância da lei judaica. Em Fl 3:5c, ele afirma que
no passado fora “quanto à Lei, fariseu”. Os fariseus, em hebraico
perushim, que significa “separatistas”, ou “intérpretes” (em grego,
farisaioi) compunham um dentre os diversos grupos judaicos
existente na Palestina no séc. I d. C. A primeira definição remete
à ideia de que eles se mantinham afastados da profanação ritual;
já a segunda, ao fato de que eles interpretavam o texto escrito
da Torah, o que se desenvolveu, após a destruição do Templo de
Jerusalém pelos romanos, e se constituiu na tradição rabínica.6
Os fariseus objetivavam a santificação ritual da vida diária
no território de Israel. Além das leis de pureza, o farisaísmo
demonstrou interesse por outros assuntos legais como os festivais,
a adoração, as questões criminais e também a caridade e a ética.7
E, por intermédio das fontes rabínicas posteriores ao período em
questão, sabemos que os fariseus eram obrigados a obedecer tanto
à Torah escrita como à sua interpretação oral.8 Nas epístolas de
Paulo, pode-se enxergar uma influência do midrash,9 realizado
pelos estudiosos fariseus, que corresponde à exegese rabínica.
Como esse método tinha por função conciliar contradições no
interior da Torah, além de trazer uma mensagem do texto bíblico
mais próxima às pessoas do povo, é possível perceber o quanto
Paulo se utilizou dela de forma a encaixar as suas novas crenças,
em primeiro lugar no quadro das Escrituras e, posteriormente,
numa linha de pensamento com a qual suas comunidades
gentílicas pudessem se identificar. Assim, em 1 Cor 10:1-13, ele

6
Alan Unterman. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 100.
7
Hengel, The Pre-Christian Paul, p. 30-31.
8
Murphy-O’Connor, op.cit. p. 71.
9
Trata-se de um “método homilético de interpretação bíblica no qual o texto é
explicado diferentemente de seu significado literal” (cf. Unterman, op.cit. p. 174).
Também significa as várias coleções de comentários bíblicos que foram compilados e
antes compunham a Torah oral.

82
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

elabora uma tipologia do Êxodo na qual a rocha de Nm 20:810


que mata a sede do povo de Israel no deserto simboliza, no seu
entender, o próprio Cristo antes de sua vinda sobre a Terra e, por
isso, a água que dela jorra é uma bebida espiritual (10:3-4). Já em
Gl 3 e Rm 4, o missionário discorre sobre a justificação de Abraão
pela fé: “foi assim que Abraão creu em Deus e isto lhe foi levado
em conta de justiça. Sabei, portanto, que os que são pela fé são
filhos de Abraão”, afirma ele em Gl 3:6-7. Em Gl 4, ele interpreta
os cristãos como os filhos de Sara e os que seguem a Lei como
os filhos de Agar. E, sobretudo em Rm 9-11, ele desenvolve seu
argumento acerca da promessa feita a Abraão de modo a justificar
seus discípulos gentios dentro das comunidades cristãs apenas e
tão somente por meio da fé no Cristo ressuscitado.
Ao se atentar para o método de interpretação da Lei que
Paulo frequentemente utiliza em suas epístolas, percebe-se o
quanto da formação farisaica ele retém em sua vida cristã. Assim,
no entender do já velho e experiente cristão, Cristo sendo o “filho
de Deus” sempre esteve presente nas Escrituras. Encontrá-lo nelas
é apenas uma questão de prestar um pouco mais de atenção e de
fazer a interpretação necessária por meio dos midrashim, dos quais
ele tem vasto conhecimento.
Se inserirmos o farisaísmo no contexto judaico do séc. I d. C.
que, sabemos, era permeado por fortes expectativas escatológicas,
encontramos mais indícios sobre ele dentro do quadro de uma
escatologia apocalíptica.11 Os apocalípticos acreditavam que

10
Em Nm 20:8, Iahweh fala a Moisés: “Toma a vara e reúne a comunidade, tu e teu irmão
Aarão. Em seguida, e sob os olhos deles, dize a este rochedo que dê as suas águas. Farás,
pois, jorrar água deste rochedo, e darás de beber à comunidade e aos seus animais”.
11
Por escatologia apocalíptica, entendemos “uma perspectiva religiosa, uma maneira
de encarar o plano divino em relação às realidades mundanas [terrestres]. Essa
perspectiva ou cosmovisão pode ser adotada por vários grupos sociais, em vários
graus, em vários momentos. Nessa perspectiva, o plano salvífico de Deus é concebido
como resgate da atual ordem para uma nova ordem da realidade, transformada [...].
A escatologia apocalíptica não trata somente da expectativa futura (a época vindoura),

83
Espectadores do sagrado

existia uma estreita relação entre o mundo terreno e o celeste.


Nesse sentido, eles praticavam viagens extáticas ao céu de modo a
conhecer os mistérios divinos e a poder compreender a realidade
terrena.12 Embora a corrente apocalíptica não fosse exatamente
popular, as visões e experiências de êxtase características dessa
vertente integravam a rica e diversa paisagem judaica da Palestina,
e eram também partilhadas pelos fariseus.
Uma possível ligação de Paulo com a tradição farisaica
apocalíptica visionária é levantada em função da passagem 1 Cor
14:18, em que o missionário afirma ter experimentado o “falar em
línguas” (êxtase no qual, acreditava-se, a pessoa falava a “língua dos
anjos”) mais do que todos os outros integrantes da comunidade
coríntia. Além disso, a famosa passagem 2 Cor 12:1-7 sugere que
ele tenha sido um praticante do misticismo merkabah (em hebraico,
o “trono de Deus”). A visão que Paulo descreve é característica
dessa corrente mística, pela qual o iniciado fazia uma viagem em
estado de êxtase e visualizava o trono de Deus: em tal trecho, o
missionário se refere a uma abundância de visões e revelações que
teve e também a uma ascensão sua (em forma de arrebatamento)
até o “terceiro céu”, onde ele ouviu palavras “que não é lícito ao
homem repetir” (12:4). A hipótese de que Paulo conhecesse tais
viagens extáticas torna-se mais plausível na medida em que ele
afirma não ter certeza sobre ter feito tal ascensão dentro de seu
corpo ou fora dele (12:2-3). Compreendida no contexto da prática
mística, sua própria conversão corresponderia, assim, à mais forte

mas da interpretação do passado e da atual situação (a época presente é a ordem ou o


domínio do mal)” (Hanson traduzido e citado em Martinus De Boer. “A influência da
apocalíptica judaica e cristã sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento
social”. In: Paulo A. S. Nogueira (ed.). Estudos de Religião 19: Apocalíptica e as Origens
Cristãs. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001, p. 12-13.
12
Luigi Schiavo. “Com Satanás ao redor da Terra. As tentações de Jesus (Lc 4:1-13)
como relato de experiência visionária de viagem” in: Nogueira, op.cit., p. 107.

84
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

dessas experiências. De acordo com Davies,13 “a julgar por isso, o


farisaísmo do qual Paulo veio não era árido ou legalístico, mas aberto
ao êxtase visionário”. Além disso, como bem observa Hall,14 em seu
estudo sobre a argumentação de Paulo na epístola aos gálatas, o
apóstolo missionário emprega em seu discurso todos os elementos
da retórica apocalíptica da tradição judaica de forma a exortar os
leitores de suas comunidades cristãs na região da Galácia.
Atos dos Apóstolos corrobora a informação da epístola aos
Filipenses sobre a adesão de Paulo ao farisaísmo em 26:5-7, mas
acrescenta que ele recebera essa formação na cidade de Jerusalém
e, ainda mais, na escola do mestre Gamaliel I, por intermédio de
uma suposta declaração autobiográfica do apóstolo em Jerusalém,
em 22:3: “Eu sou judeu. Nasci em Tarso, da Cilícia, mas criei-me
nesta cidade, educado aos pés de Gamaliel na observância exata da
Lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus [...]”.
Não há maiores razões para se desacreditar a informação
de Lucas sobre a formação farisaica de Paulo em Jerusalém.15
Hengel,16 argumentando sempre em favor do relato lucano, levanta
a questão de que é desconhecida a existência de escolas farisaicas
na Diáspora.17 Realmente, as comunidades judaicas da “dispersão”,
restritas pelo meio gentílico que as rodeava, não ofereceriam as
necessárias condições para a fiel observância da Torah, já que os
gentios eram impuros “como um corpo morto”, na concepção dos
judeus. Ao contrário, a terra de Israel, e mais especificamente o seu

13
William D. Davies. “Paul: from the Jewish point of view”. In: William Horbury
et alii. The Cambridge History of Judaism, 3: The Early Roman Period. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999. p. 686.
14
Robert G. Hall. “Arguing like an Apocalypse: Galatians and an ancient topos outside
the Greco-Roman rhetorical Tradition”. In: New Testament Studies 42/3, 1996, p. 452.
15
Já a informação sobre Paulo ter estudado na escola de Gamaliel é de comprovação
mais difícil.
16
Hengel The Pre-Christian Paul, p. 33.
17
Murphy-O’Connor, op.cit. p.73, também não acredita que tenham existido escolas
farisaicas fora da Palestina. Para ele, só havia fariseus na cidade de Jerusalém.

85
Espectadores do sagrado

centro, Jerusalém, era por natureza o espaço da santidade ritual


onde as leis de pureza poderiam ser seguidas sem impedimentos de
qualquer espécie. De acordo com Stemberger, “a santidade da Terra
de Israel é expressa pelo fato de que uma série de mandamentos
da Torah está associada diretamente com a terra”.18 De fato,
em Jerusalém havia diversas escolas farisaicas.19 Uma evidência
indireta, e por isso muito valiosa, de que o centro do movimento
farisaico se localizava no Eretz Israel é a passagem de Mt 23:15,
na qual Jesus repreende os escribas e fariseus que percorrem ‘o mar
e a terra’ em busca de novos convertidos à fé judaica. A passagem
denota a perspectiva palestina, sendo os fariseus obrigados a sair
do território judaico de modo a conseguir conversos (os prosélitos).
Além disso, é sabido que o elo entre os judeus residentes no
estrangeiro e a cidade de Jerusalém se fortalecera desde o início da
reconstrução do Templo judaico no século anterior, fomentando
a prática das peregrinações à cidade. Tudo isso contribuiria para o
envio de Paulo por sua família (ou por sua própria iniciativa) para
o centro espiritual da religião judaica para um correto aprendizado
dentro dos preceitos da Lei.
Murphy-O’Connor tem opinião ligeiramente diferente, ao
afirmar que “é fácil imaginar o jovem entusiasmado com uma
educação grega, vindo de uma família romanizada, desejoso de
descobrir por si mesmo o berço de sua religião”.20 Embora ambos
os autores afirmem que Paulo tenha completado sua formação
em Jerusalém, não são sutis as diferenças entre o argumento de

18
Cit. por Hengel, The Pre-Christian Paul, p. 32.
19
Há especulações de que a presença farisaica era forte também na Galileia em razão
das passagens do Evangelho de Marcos 10:2 e, principalmente 12:13, em que se lê:
“Enviaram-lhe, então, alguns dos fariseus e dos herodianos para enredá-lo [ Jesus]
com alguma palavra”. Como os “herodianos” deviam se tratar de funcionários da
administração da tetrarquia sob governo de Herodes Antipas (a Galileia), a passagem
constitui um indício forte da existência de fariseus nessa região. Para o caso da
Diáspora, no entanto, não existe evidência alguma de sua presença fora da Palestina.
20
Murphy-O’Connor, op. cit. p. 67.

86
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Hengel e aquele de Murphy-O’Connor. Enquanto o primeiro


destaca as fortes raízes da família de Paulo no judaísmo palestino,
o segundo coloca a ênfase nos aspectos “ocidentais” do missionário
(a formação grega na Diáspora e a “romanidade” conferida pelo
status da cidadania), caracterizando seu movimento em direção a
Jerusalém como uma questão apenas de “curiosidade” em conhecer
as suas raízes judaicas.21 Assim, este autor desconsidera At 23:6, em
que Lucas caracteriza Paulo como “filho de fariseus”, como simples
“ornamento retórico sem valor histórico”. E, quando levantada a
questão da afirmação do próprio Paulo, em Gl 1:14, de que fora um
judeu zeloso segundo as tradições dos pais – “E como progredia
no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade,
distinguindo-me no zelo pelas tradições dos meus pais” (tōn
patrikōn mou paradóseōn), ele argumenta que essa expressão se
tratava de um recurso retórico dos fariseus para exaltar o seu
estudo da Torah.22 Ainda assim, Paulo utiliza o pronome mou
(meus), personalizando o genitivo tōn patrikōn e denotando, assim,
o significado de que as tradições pertenciam aos pais dele.
De qualquer forma,tantas evidências atestando a relação próxima
que Paulo manteve, desde o seu nascimento, com o farisaísmo e com
a Palestina tornam o caráter “nitidamente helênico” da personalidade
de Paulo defendido por Murphy-O’Connor um tanto quanto
exagerado. Nesse sentido, a sequência de Atos continua sendo a
alternativa mais plausível, principalmente quando a comparamos
à passagem de Fl 3:6, em que Paulo continua a apresentação de
sua identidade anterior à conversão: “quanto ao zelo, perseguidor da
21
Esta interpretação “ocidentalizante” do professor de Novo Testamento da École
Biblique et Archéologique Française de Jerusalém é uma prévia para o desenvolvimento
de seu argumento que entende Paulo desde o início de sua missão apostólica como o
apóstolo enviado aos gentios.
22
Murphy-O’Connor exemplifica a utilização desta expressão pelos fariseus por
intermédio das passagens de Josefo (que era fariseu): “Os fariseus impuseram ao povo
muitas leis da tradição dos pais, não escritas na lei de Moisés” (AJ 13.297) e “Orgulhavam-
se da interpretação exata da lei dos pais” (AJ 17.41, grifos do autor).

87
Espectadores do sagrado

Igreja, [katà zēlos diōkōn tēn ekklēsían]; quanto à justiça que há na Lei
‘de meu povo’, irrepreensível [katà dikaiosúnēn tēn en nómō genómenos
ámemptos]”.
Em suma, Paulo estudara em Jerusalém e se aprimorara na
observância e interpretação dos detalhes da lei judaica segundo a
vertente farisaica. Assim, havia progredido mais que seus pares “na
justiça que há na Lei”, tornando-se “irrepreensível”. Observem
como os dois trechos estão intimamente ligados: a perseguição
à igreja cristã promovida por Paulo depende diretamente de seu
seguimento irrepreensível da lei judaica.23 Isso quer dizer que
certas práticas do grupo cristão, e não somente as suas assertivas
cristológicas, desde muito cedo fugiram à regra ditada pela lei de
Moisés. O fariseu partira, então, de Jerusalém para perseguir os
judeus, segundo ele, desviantes da Lei.
Paulo era um judeu originário da Cilícia que, ao contrário
de desenvolver uma identidade judaica em termos dos aspectos
comuns entre o seu judaísmo e a atmosfera do pensamento filosófico
helenístico que o cercava, optou por construir a sua identidade
judaica baseada na ênfase às características particulares dos judeus: ele
abandonou a sua cidade natal e foi estudar em Jerusalém e se tornar
fariseu. Como os estudos de etnicidade recentes têm averiguado, um
meio favorável contribui para a maior integração dos membros de um
grupo étnico a esse meio e, em contrapartida, um meio desfavorável,
hostil, provoca nos membros do grupo étnico em questão a reação da
autopreservação por meio do reforço da identidade étnica. A trajetória
inicial da figura de Paulo, dentro do universo judaico, é aqui tomada
de maneira a levantar a hipótese de que os judeus da província romana

23
Hengel, The Pré-Christian Paul, p. 65, também compreende a perseguição de Paulo
aos cristãos como fruto de seu zelo criterioso pelo seguimento da Lei.

88
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

da Cilícia vivessem num contexto social desfavorável, caracterizado


pela hostilidade por parte dos gentios que os cercavam.
A questão do separatismo judaico suscitada pela crença dos
judeus na eleição, única e exclusivamente, de seu povo por Iahweh
obrigara Roma a formular uma política específica para o caso desse
grupo dentro de seu território. A decisão foi a adoção, na segunda
metade do séc. I a. C., da tolerância reforçada por medidas de
proteção aos judeus contra a hostilidade gentílica, consequente a
tal separatismo.
A tolerância romana para com os judeus se traduziu na
permissão da reprodução das práticas religiosas judaicas mais
importantes e na declaração da santidade de suas escrituras.24
Mais importante ainda foi a isenção dos judeus em relação à
obrigatoriedade do recrutamento militar e em relação ao culto
aos deuses das cidades onde residiam. Todavia, a concessão de
tais privilégios e de proteção especial aos judeus por parte de
Roma, ao invés de reprimir o sentimento antijudaico geral, só
fez aumentá-lo.
Não há trabalhos específicos sobre os judeus da província
da Cilícia. Ainda assim, essa província estava localizada no
quadro maior da Ásia Menor. A Ásia Menor, como um todo, era
um território dominado pelos cultos aos deuses protetores das
diferentes cidades. Os judeus, como observado anteriormente,
estavam isentos de tais cultos, algo que irritava bastante os
gentios. Trebilco,25 em seu estudo sobre as comunidades judaicas
da Ásia Menor, aponta que os privilégios que os judeus pediram e
receberam de Roma permitiram a eles “manter a sua ‘judaicidade’
em face à hostilidade local”. Trebilco observa, num panorama geral
24
Mary E. Smallwood. “The Diaspora in the Roman Period before CE 70”. In:
William Horbury et alii. The Cambridge History of Judaism, 3: The Early Roman Period.
Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.168-191.
25
Paul Trebilco. Jewish Communities in Asia Minor. Cambridge: Cambridge University
Press, 1991, p. 34.

89
Espectadores do sagrado

da identidade judaica manifestada pelos judeus da Ásia Menor,


uma série de características que reforçam essa identidade em
termos das suas particularidades propriamente judaicas. Assim,
ele lista: tais judeus estavam comprometidos “com a sinagoga, com
o imposto do Templo, com o Templo e o seu culto, com o culto
ao sábado, com as leis de comida, enfim, com a vivência de acordo
com as suas próprias tradições”.26
Diante do panorama analisado por Trebilco, a trajetória inicial
de Paulo dentro do judaísmo – com o seu abandono da terra natal
e a escolha por seguir o estudo do farisaísmo em Jerusalém –
parece corroborar o contexto de um compromisso muito forte dos
judeus da Ásia Menor para com as crenças, instituições e práticas
de seu povo e, sobretudo, para com a terra santa. Em vista de a
trajetória inicial de Paulo no judaísmo se encaixar perfeitamente
nesse contexto, poderíamos “dar asas” à hipótese e perguntar: será
que, entre as razões que teriam levado Paulo a escolher a cidade de
Jerusalém como novo lar, a tradição farisaica como modo de vida
e um zelo enorme pela Lei que o fez mesmo perseguir cristãos
que abdicavam dessa Lei em nome de seu novo culto, estaria a
hostilidade sempre presente dos gentios na cidade de Tarso? Essa
pergunta, embora pertinente diante das evidências analisadas,
deve ficar sem resposta porque não existem maiores informações
sobre a vida pré-cristã de Paulo.
Lucas narra o episódio da conversão de Paulo três vezes (em
At 9:3-19a; 22:3-16; 26:4-18), e embora haja incongruências
em aspectos menores entre os três relatos,27 essa repetição deixa
26
Id. ibid.
27
No primeiro relato, os companheiros de Paulo ouvem a voz e aparentemente não
veem a luz porque não ficam cegos. Já no segundo relato, os companheiros de Paulo
veem a luz, mas não ouvem a voz; e no terceiro, todos caem por terra em consequência
da forte luz. Além disso, no último relato, Cristo fala mais do que nos dois primeiros.
Ele diz a Paulo “é duro para ti recalcitrar contra o aguilhão” (At 26:15), além de
afirmar a ele que o motivo de sua aparição é enviá-lo às nações gentias para convertê-
-las das trevas à luz.

90
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

impressa uma imagem na mente daqueles que leem o livro difícil


de dissociar dos esparsos e sucintos comentários que o próprio
Paulo faz a respeito de sua experiência. É certo que Lucas elabora
e enriquece o texto, porém ele trabalha uma tradição que remonta
obviamente ao que o próprio apóstolo contara às suas comunidades.
Nas epístolas que conhecemos, entretanto, não encontramos as
detalhadas descrições que Paulo pode ter feito de sua experiência a
seus irmãos de fé (talvez pela dificuldade que ele tenha em traduzi-
-la em palavras). As pequenas menções ao momento da conversão
estão em 1 Cor 9:1 e 15:8 e em Gl 1:15. Alguns autores acreditam
que Paulo se refere à conversão ainda em outras passagens (como
Gl 1:12; Fl 3:5 ss; e mesmo 1 Cor 1:17; 2 Cor 4:6 e 12:22), porém
não se encontram indícios do evento em questão em tais trechos.
Em 1 Cor 9:1, Paulo é sucinto e elabora a frase em forma de pergunta,
“acaso não vi Jesus, nosso Senhor?” Já em 15:8, ele fornece mais
informações, ao dizer que Cristo, “por último, apareceu também a
mim, como a um abortivo” [éschaton dè pántōn hōspereì tō ektrōmati
ōfthē kamoí].
Paulo se compara a um aborto quando viu o Cristo, ou
melhor, quando Cristo apareceu a ele. Essa comparação é
denotada pela construção de aoristo passivo na frase, onde tanto
kamoí (por mim) quanto o dativo tō ektrōmati (o aborto) são
agentes da passiva. A metáfora do aborto também é utilizada em
Gl 1:15-16a, em que ele afirma: “quando aquele [o Deus] que
me separou do ventre de minha mãe e me chamou por causa de
sua graça, julgou ser bom revelar seu filho em mim”28 [Hóte dè
eudókēsen [ho Theòs] ho aforísas me ek koilías mētrós mou kaì kalésas
dià tēs cháritos auto apokalúpsai tòn huiòn auto en emoí].

28
Tradução minha. Mary E. Smallwood. “The Diaspora in the Roman Period before
CE 70” in: William Horbury et alii. The Cambridge History of Judaism, 3: The Early
Roman Period. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 168-191.

91
Espectadores do sagrado

A Bíblia de Jerusalém comenta que a comparação ao aborto é


uma “alusão ao caráter anormal, violento, ‘cirúrgico’ da vocação de
Paulo”.29 Esse aspecto de uma aparição considerada traumática é
evidente na medida em que observamos a mudança radical que
Paulo confere a sua trajetória, partindo da perseguição à igreja
cristã para juntar-se “de corpo e alma” a ela. Já a expressão “do
ventre de minha mãe”, Paulo retira de um contexto que conhece
bem, o das Escrituras. Ele busca as palavras dos profetas Isaías
e Jeremias em Is 49:1-6 (“desde o ventre de minha mãe, repetiu
para si o meu nome [...] destinei-te a seres luz das nações”) e Jr 1:5
(“Antes mesmo de te formar no ventre materno, antes de saíres
do teu ventre [...]; eu te consagrei; eu te constituí profeta para as
nações”).30 A nosso ver, no momento em que a carta é redigida, a
compreensão de Paulo acerca de sua conversão é a de que ela fora
obra de um plano de Deus elaborado muito antes, na realidade,
desde sempre.
Muito já foi discutido sobre o termo “conversão” e sobre como
ele não se aplica ao que acontece com Paulo em sua visão do
Cristo ressuscitado. De fato, para os judeus do período do Segundo
Templo, a conversão era aquela de um gentio a sua religião. Assim,
ela correspondia ao resgate desses pagãos de sua vida de imoralidade
e idolatria para uma vida de virtude e temor a Deus. Esse conceito
não se aplica a Paulo. Nem tampouco é correta a ideia de que
Paulo se converteu de uma religião para outra. Os cristãos no séc.
I, anteriores a Paulo, se enxergavam como judeus, e ele próprio
nunca se entendeu como pertencente a outra religião. Segal31
pensa exatamente dessa forma, porém prefere sustentar a ideia de
que Paulo é um converso na medida em que a sua visão do Cristo

29
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 2168, nota j.
30
Murphy-O’Connor, op.cit. p.93.
31
Alan F. Segal. Paul the Convert. The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee. New
Haven/London: Yale University Press, 1990, p. 284.

92
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

ressuscitado o faz “reavaliar o seu judaísmo, assim criando uma


nova compreensão da missão de Jesus”,32 a ponto de tornar-se um
apóstata.33 O autor entende a conversão do fariseu perseguidor
da igreja como uma visão extática, típica das correntes místicas
e apocalípticas que permeavam o universo judaico do séc. I d. C.
Boyarin, ao contrário, não acredita que Paulo seja um apóstata, mas
na realidade “um judeu radical” engajado em um projeto teológico
dentro do próprio judaísmo de crítica e redefinição do povo de
Deus. Assim, para ele não há conversão, embora haja mudança.
Já para Hengel e Schwemer, a mudança radical de atitude de
Paulo, enquanto um homem que zelava pelo rigoroso seguimento
da lei mosaica para sua pregação de Jesus como o Messias para
judeus e gentios, só pode ser explicada por meio do fenômeno
sobrenatural da aparição de Jesus.
Barbaglio e Davies, por sua vez, atentam corretamente para o
fato de que Paulo depende da literatura escatológico-apocalíptica
judaica, característica do fim do período do Segundo Templo. Esta
era caracterizada principalmente pela esperança na ressurreição
final e pela concepção dualista de dois mundos. De acordo com
tal literatura, o advento do Messias marcaria o fim do tempo
mundano e o julgamento final onde os justos ganhariam o “reino
de Deus” e os ímpios pereceriam.
Num olhar mais próximo e atento às ideias que Paulo veicula
em suas cartas, o que se mostra evidente, a meu ver (a despeito
das especulações dos teólogos sobre a natureza da experiência e
sobre a veracidade da aparição), é a forte consciência – derivada
da cosmovisão hebraico-judaica da qual o apóstolo obviamente
partilha sendo um judeu fariseu – da interferência de Deus na
32
Idem, p. 71.
33
Murphy-O’Connor concorda com ele – op.cit., p. 85, n.2. John M. G. Barclay (Paul
among Diaspora Jews: anomaly or apostate? In: Journal for the Study of the New
Testament 60, 1995, p.118) também acredita na ideia de que Paulo foi interpretado
pelos judeus como um apóstata.

93
Espectadores do sagrado

história humana. A conversão de Paulo ao movimento do “Caminho”


é necessariamente a crença que nele brota, após o evento que ele se
nega a descrever com detalhes, de Jesus como o Messias, o Cristo
ressuscitado, ou seja, a realização das profecias de Israel.
A imagem que Paulo nos oferece em suas epístolas (Gl 1:13-14;
Fl 3:5-6; 1 Cor 15:9), em concordância com o relato de At (9:1-2)
é a de que seu zelo na observância da lei o fizera perseguir muitos
judeus cristianizados no período que antecedeu o seu “contato” com
o Cristo ressuscitado. Entretanto, esse judeu de formação farisaica,
ao enxergar na figura de Jesus o Messias, promoveu uma progressiva
desvinculação do movimento cristão em relação a suas raízes
judaicas (de respeito aos preceitos da lei mosaica). Ao professar
a fé cristã aos não judeus, ele rompe com sua tradição farisaica e
acaba por romper outro elo, ainda maior: aquele que mantém suas
comunidades cristãs dentro do universo judaico. O componente
inovador que Paulo traz ao movimento cristão, entretanto, não é sua
missão para os gentios; na realidade, é a bandeira que o missionário
levanta em favor da salvação dos homens por meio da fé no Senhor
Jesus Cristo e em oposição aos trabalhos da lei judaica.
A negação da circuncisão e das leis dietéticas judaicas
distancia as comunidades paulinas não só do culto judaico, mas
também das comunidades judaico-cristãs dentro da Palestina, que
não viviam a realidade de ter uma grande parcela de seus membros
composta por não judeus. Collins34 afirma que a rejeição veemente
de Paulo da circuncisão deriva-se simplesmente do “fato de que
ele pregou uma nova criação na qual não havia nem judeu nem
grego, circuncisão ou incircuncisão”, conforme exposto na epístola
aos gálatas. De forma diversa, acredito que os motivos para esse
repúdio foram outros, tendo em vista a trajetória missionária de

34
John J. Collins. “A symbol of otherness: circumcision and salvation in the First
Century”. In: Seers, Sibyls and Sages in Hellenistic-Roman Judaism. Leiden/New York:
Brill, 1997, p. 234.

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Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Paulo descrita por At, as evidências deixadas por ele em suas


epístolas e o contexto histórico dentro qual ele desenvolveu sua
trajetória missionária: as províncias romanas de fala grega a
nordeste do mar Mediterrâneo.
Retornemos, então, àquele questionamento, já muitas vezes
levantado na historiografia: a trajetória missionária de Paulo,
peculiar como ela se caracterizou, tem raízes em sua vida anterior?
Isto é, as decisões que ele tomou ao longo de sua vida cristã se
explicam por meio de uma influência do “judaísmo helenístico”
do qual ele fazia parte? De forma a chegarmos a uma conclusão,
analisemos Paulo em comparação com outro representante do
chamado “judaísmo helenístico” do séc. I d.C.: Fílon de Alexandria.
Tanto Paulo quanto Fílon falavam o grego e eram oriundos de
importantes cidades helenizadas do Mediterrâneo oriental: Tarso
e Alexandria. Além disso, ambos declararam que a circuncisão era
um elemento sem importância. Paulo afirmava que para adentrar
a comunidade dos cristãos bastava a fé em Jesus como o Messias,
o Cristo ressuscitado, e que a circuncisão verdadeira deveria ser
aquela “do coração, segundo o espírito” (metáfora que ele utiliza
em Romanos 2:29 para relacionar a tradição de seus ancestrais ao
pensamento cristão que ele desenvolve). Já Fílon, num contexto
diverso, acerca dos prosélitos (gentios convertidos ao judaísmo,
conversão que se fazia através da circuncisão e talvez do batismo
ritual) afirma, em Perguntas e Respostas sobre Êxodo II, 2, que “o que
faz um prosélito não é a circuncisão, já que os israelitas não foram
circuncidados até que eles começassem a vagar no deserto; o que
interessa de fato é voltar-se para Deus para se chegar à salvação.”35
Realmente, a semelhança do pensamento de ambos, guardados
os contextos específicos das declarações é grande. Entretanto,

35
Tradução de Martin Goodman. “Jewish proselytizing in the First Century”. In:
Judith Lieu et al. The Jews among Pagans and Christians In the Roman Empire. London
e New York: Routledge, 1992, p. 63.

95
Espectadores do sagrado

Goodman36 ressalta o fato de que Fílon é extremamente claro (por


exemplo, em De Migratione Abrahami 89-93) ao afirmar que não
acredita que todos os judeus homens não devam ser circuncidados.
Ele quer dizer que acredita que todos (judeus ou não judeus)
têm que fazer ou acreditar em algo específico de modo a serem
judeus e piedosos. Paulo, similarmente, tem um pré-requisito para
aqueles que adentram suas ekklesiai gentílicas, nomeadamente,
a fé no Cristo. De acordo com Goodman, ambos sistemas são
“universalistas”, pois ambos adotam critérios para a entrada na
comunidade, que é potencialmente universalista; a diferença reside
nos seus diferentes critérios de entrada.
Segundo coloca Barclay,37 “a tendência em se criar paralelos em
pensamento [de ambos os autores] tem sido exagerada” na medida
em que Paulo não faz uma leitura das escrituras judaicas tal como
faz Fílon, ou seja, utilizando a alegoria como meio para interpretar
a história de Israel. E nem Fílon prega a integração social defendida
por Paulo para suas comunidades. Muito ao contrário, Fílon está
profundamente comprometido com sua comunidade judaica em
Alexandria e é um grande defensor das escrituras judaicas, acusando
outros judeus de terem interpretado alegoricamente demais os
preceitos da Lei (como a circuncisão) a ponto de não mais segui-los.
Como se pode observar, os paralelos entre o pensamento de ambos
judeus residentes na Diáspora param na questão da reprodução
das leis rituais. Fílon as disfarça num primeiro momento, porém as
afirma na prática. Paulo, ao contrário, as nega.
Quando constatamos que os aspectos fundamentais do
parentesco e da reprodução das práticas religiosas ancestrais eram
o que mantinha a identidade judaica para a maioria dos judeus no
Mediterrâneo, percebemos o quanto Paulo foi um judeu diferente
dos demais. Ele leva ao extremo a sua pregação da integração
36
Comunicação pessoal em e-mail datado de julho de 2001.
37
Barclay, “Paul among Diaspora Jews: anomaly or apostate?”, p. 91.

96
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

social entre judeus e gentios nos aspectos materiais (em relação à


negação da circuncisão, das leis sobre comida, etc); mas, por outro
lado, não revela alto nível de aculturação em termos educacionais,
nem procura acomodar a tradição judaica ao sistema de valores
presente no meio cultural helênico. Paulo não relê a tradição de
seus pais através de “olhos helenísticos”, como fazem os judeus
alegorizadores criticados por Fílon. Muito ao contrário, ele
mantém sua visão de mundo balizada pelas categorias judaicas
escriturais, sustentando a noção de que o mundo não judaico, tal
como ele é, corresponde ao lugar das trevas, do vício e da idolatria e
que suas comunidades cristãs são, em sentido inverso, o verdadeiro
lugar da salvação.
Dessa forma, “muitas foram as tentativas sem sucesso de
leitura da antropologia tão idiossincrática de Paulo como produto
da helenização”, nas palavras de Barclay.38 O universalismo
cultural de Paulo se mostra um universalismo de caráter negativo
na medida em que ele não submete as tradições judaicas às
categorias morais e teológicas do meio helênico, mas todas as
culturas contemporâneas – judaica ou gentílica – com uma crítica
que evidencia sua comum escravidão em relação ao pecado. Nesse
sentido, o pensamento de Paulo “não representa uma fusão cultural
com os valores helenísticos,39 mas uma total reavaliação tanto da
tradição judaica quanto da helenística a partir de um novo ponto,
criado por sua cristologia”,40 resultado de sua crença em Jesus
como o Messias de Israel e das nações.
O comportamento e a teologia elaborados pelo Paulo cristão
só encontram explicação em sua vida pregressa, ou seja, em sua
condição de judeu oriundo da Diáspora helênica em um único

38
Idem, p. 108.
39
Se os autores posteriores contribuíram para essa fusão e, mais tarde, tudo foi atribuído
à figura de Paulo, isso é outra história.
40
Barclay, “Paul among Diaspora Jews: anomaly or apostate?”, p. 109.

97
Espectadores do sagrado

aspecto. Esse aspecto, amplamente partilhado entre os judeus do


período do Segundo Templo, era aquele que revelava seu caráter
universalizante: sabemos que Paulo pregou a muitos prosélitos
e tementes a Deus (gentios simpatizantes do culto judaico) nas
sinagogas por onde passou. Os tementes a Deus, embora gentios
não convertidos à fé judaica como os prosélitos, haviam voltado
seus olhos para o Deus único e verdadeiro, sendo, portanto, aos
olhos dos judeus contemporâneos, pessoas melhores que haviam
galgado alguns degraus em direção à salvação. Assim, também aos
olhos de Paulo, os tementes a Deus que aceitavam a Boa Nova
por ele pregada eram dignos do “reino de Deus” que se instauraria
quando da segunda vinda do Cristo sobre a Terra.
No entanto, Paulo ultrapassa essa noção partilhada pelos
judeus do séc. I d.C. ao afirmar que “não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos
vós sois um só em Jesus Cristo” em Gl 3:28 e ao repudiar com
veemência o preceito da circuncisão para os seus discípulos gentios
e as leis de comida e defender a total integração entre judeus e
gentios no interior de suas comunidades. Não há, por isso, razão
para procurar as raízes da trajetória paulina em seu passado como
judeu, ao mesmo tempo, helenista e fariseu, ou, de forma genérica,
na interação entre o judaísmo e a cultura helênica, processo que
ele teria vivenciado em sua juventude e segundo o qual ele teria
conformado sua pregação cristã posterior. Os autores que seguem
essa linha de análise acreditam que o judaísmo helenístico seja o
pano de fundo para o cristianismo primitivo, sendo a literatura
judaica helenística abordada de maneira a se encontrar as raízes
do pensamento cristão do séc. I. Por isso, muito naturalmente se
levanta o pensamento de Fílon (um judeu que revela alto nível
de aculturação helênica) como precursor do pensamento de
Paulo. Entretanto, já vimos até onde esse paralelo é passível de ser
estabelecido e a partir de onde ele não funciona mais.

98
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Onde se deve procurar a explicação para a ação missionária


tão destacada e para o pensamento teológico tão diferenciado
que Paulo desenvolve em sua trajetória cristã? De modo a
responder a essa pergunta, alguns pontos principais devem ser
estabelecidos: é sabido que Paulo pregou a judeus nas sinagogas
e que em muitos lugares sua mensagem foi a tal ponto repudiada
pelos judeus que a consequência foi, em cinco vezes, a punição
de Paulo pelo açoite (cf. 2 Cor 11:24). Sabemos também que
Paulo converteu vários tementes a Deus; quanto a verdadeiros
gentios, não se tem muita informação. Sabe-se, por fim, que
Paulo tomou para si o evangelho dos incircuncisos, num gesto
de desistência em relação à evangelização dos judeus. E, através
de suas epístolas, vê-se aparecer uma teologia em que fica
marcada a rejeição dos principais preceitos da lei judaica. Como
compreender as atitudes de Paulo? É preciso, para isso, atentar
para as categorias de pensamento judaicas das quais Paulo
partilhava e, mais do que nunca, se faz necessário retornar ao
momento de sua conversão.
Pelo fenômeno da conversão, Paulo passou a enxergar toda
a sua trajetória como um caminho pontilhado por revelações
de Deus. Essa postura remete a suas categorias da cosmovisão
hebraico-judaica (pela qual Deus se faz presente na história dos
homens por intermédio de sinais), mas, sobretudo, para o momento
de sua conversão, que ele compreendeu, de forma apocalíptica,
ser a maior revelação de Deus (por intermédio do Cristo) a sua
pessoa. Passando a história a ser definitivamente interpretada
como uma perene manifestação dos sinais divinos, Paulo obedece
às circunstâncias que a vida impõe a sua pregação, seguindo aquilo
que ele entende ser o “plano de Deus”.
Em função de seu contato com o Cristo, Paulo passa a crer
na ressurreição de Jesus e nas implicações escatológicas que dela
se depreendem: o reino de Deus está próximo. A sua vivência

99
Espectadores do sagrado

na comunidade de Antioquia o ensina a proclamar de forma


sistemática a “boa nova” do Cristo ressuscitado. A partir daí, a
pregação de Paulo se volta apenas para os gentios quando os
judeus nas cidades da Diáspora por onde ele passa rejeitam a Boa
Nova por ele aclamada. Deve ser assim compreendida a afirmação
do missionário em Rm 10:2: “Desconhecendo a justiça de Deus e
procurando estabelecer a sua própria, [os judeus] não se sujeitaram
à justiça de Deus. Porque a finalidade da Lei é Cristo para a
justificação de todo o que crê”. Num segundo momento, quando
a circuncisão dos gentios (que nunca havia sido uma imposição)
passa a ser levantada pelos cristãos judaizantes, Paulo a nega
veementemente. Ele percebe que ela é um obstáculo para a adesão
de um número maior de pessoas à fé no Cristo. De igual maneira,
quando as leis de comida são impostas por Tiago, o apóstolo não
pode aceitá-las e ver a comunidade de irmãos se cindir em duas
partes. E, por fim, a interpretação da Lei deve ser feita conforme
os desígnios que Deus revela a ele no curso de sua vida: o fim
está próximo e é da vontade de Deus que os gentios adentrem a
comunidade dos eleitos antes que os judeus. Estes últimos só se
voltarão para o verdadeiro caminho que Deus reservou aos homens
uma vez enciumados. Gonzáles-Ruiz sintetiza numa frase aquilo
que é, ao mesmo tempo, o sentido subjacente e a explicação para a
trajetória paulina: “Paulo foi sempre um discípulo fiel da História,
através da qual ia descobrindo, cada dia com maior nitidez, a face
de Deus manifestada em Cristo”.41

41
José M. González-Ruiz. O Evangelho de Paulo. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 5.

100
P aulo apóstolo nos estudos de religião:
a importância de sua experiência

visionária apocalíptica

Jonas Machado1

Um dos personagens mais importantes para o estudo das


origens do cristianismo é Paulo, o fariseu apóstata2 e apóstolo
póstumo3 de Jesus de Nazaré. Sua importância, entre outras coisas,
está em que ele deixou um legado literário inigualável de um só
1
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, mestre
em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP) e professor de
Exegese e Hermenêutica da Literatura do Cristianismo Primitivo na FTBSP.
2
Assim ele é descrito no subtítulo do livro do destacado professor judeu Alan F.
Segal. Paul The Convert: The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee. New Haven
/ London: Yale University Press, 1990. Segal faz parte de uma nova onda de estudos
judaicos sobre Paulo que, ao contrário do passado no qual este apóstolo era visto
como traidor, reclama o direito de reivindicar Paulo como pertencente à vasta
tradição judaica, mesmo que tenha ele sido um radical ou mesmo herege (Daniel R.
Langton. “The myth of the ‘traditional view of Paul’ and the role of the apostle in
modern Jewish-Christian polemics”. In: Journal for the Study of the New Testament
28 (1), 2005, p.69-104; Daniel R. Langton. “Modern Jewish identity and the apostle
Paul: Pauline studies as an intra-Jewish ideological battleground”. In: Journal for the
Study of the New Testament 28 (2), 2005, p. 217-258).
3
Ele afirma que seu apostolado é oriundo de uma revelação do Jesus ressuscitado
(1 Cor 15:8; Gl 1:15-16). Não há qualquer evidência de que Paulo tenha conhecido
pessoalmente ou mesmo visto Jesus de Nazaré. É bem famosa a interpretação de que
2 Co 5:16 seria uma declaração paulina de desinteresse pelo Jesus histórico, mas tal
Espectadores do sagrado

autor conhecido e aceito como produção autêntica do primeiro séc.


EC.4 Isto é, estamos diante de textos que foram escritos enquanto
a fé cristã dava seus primeiros passos.
Sua relevância também está em que tal produção literária se
tornou canônica e de grande influência no mundo cristão ocidental
posterior, mesmo que não saibamos com certeza o quanto foi
influente nos primeiros anos da religião cristã.
Vale dizer também que a grandeza paulina não pode ser consi-
derada dele propriamente, mas, a rigor, das leituras de suas crenças
expressas em suas cartas que foram feitas no decorrer da história.
Dentre elas se destacam a de Agostinho de Hipona e a Protestante.5
Nesse sentido, falar de Paulo é falar da “graça” e da “justificação
pela fé” como elementos tidos como centrais em sua teologia, concep-
ções estas ligadas a Agostinho, aos reformadores Martinho Lutero e
João Calvino e à controvérsia histórica entre católicos e protestantes.
Embora ainda vigorosa em abordagens recentes, tal centra-
lidade desses temas vem sendo questionada nos últimos anos.
A proposta alternativa de ver como centro o misticismo paulino
do “estar em Cristo” em tom mais helênico (Deissmann)6 ou em
termos de escatologia judaica (Schweitzer) é assunto que está sen-
do revisto e vem sendo pintado com novas cores – notoriamente o
grande interesse em entender melhor sua experiência religiosa em

exegese é questionável ( James D. G. Dunn. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo:


Paulus, 2003 (Biblioteca de Estudos Bíblicos, p. 225).
4
De modo geral, há concordância em que Romanos, 1 e 2 Cor, Gálatas, Filipenses,
1 Ts e Filemon são cartas autênticas de Paulo. A erudição está dividida sobre o
caso de Efésios, Colossenses e 2 Ts. Há também um consenso da maioria de que as
chamadas cartas pastorais (1 e 2 Tm e Tito) são pseudônimas. Assim, nesse conjunto
conhecido como corpus paulinum há um grande legado reconhecidamente autêntico,
além do restante que se considera pelo menos testemunho de discípulos. Há uma
discussão útil e recente em Jerome Murphy-O’Connor. Paulo: biografia crítica. São
Paulo: Loyola, 2000, p. 117 ss.
5
Há um sumário útil em Herman Ridderbos. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2004, p. 11-40.
6
Adolf Deissman. Paul: a Study in Social and Religious History. New York: Harper &
Row Publishers, 1957.

102
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

contraste com a tendência tradicional de buscar um “centro” em


termos de teologia paulina.
Neste capítulo pretendemos falar de Paulo de uma perspecti-
va que não é de todo inédita, mas que vem ganhando espaço nas
pesquisas sobre a religião desse apóstolo e destoando das aborda-
gens tradicionais. Queremos falar do Paulo apocalíptico, místico
e visionário e demonstrar como esses aspectos caracterizaram sua
vida e experiência religiosa. Mas não sem antes discorrer um pou-
co sobre sua relação com as origens do cristianismo.

Paulo e as origens do cristianismo


Falar das origens é invocar algo geralmente oculto e, ao mes-
mo tempo, importante. Oculto porque, no caso do cristianismo, as
informações são escassas. Importante porque os inícios geralmen-
te contêm a lei que rege o futuro.7
Paulo foi o segundo personagem principal das origens do
cristianismo. Do ponto de vista literário, o primeiro. Deixou um
legado inigualável. Suas epístolas tidas como autênticas consti-
tuem a produção literária mais extensa aceita pela grande maioria
como de um só autor, representando assim, fontes de primeira
mão ligadas às origens das comunidades cristãs. Nesse sentido, é
perdoável o exagero de Rowland, que afirma não ser possível dizer
muito do cristianismo antigo fora de Paulo.8
Mas não só do emergente cristianismo. Na verdade o assun-
to está inserido no campo do judaísmo e suas várias vertentes.
Alan Segal afirma que o Novo Testamento, mesmo tendencioso,
é uma das mais esplêndidas fontes para o estudo do judaísmo do

7
­­­­­­­­­­­­Ernst Käsemann. “Os inícios da teologia cristã” in: Apocalipsismo, 1983, p. 231.
8
Christopher C. Rowland. Christian Origins: The Setting and Character of the Most
Important Messianic Sect of Judaism. Wiltshire: Cromwell Press, 2002, p.195.

103
Espectadores do sagrado

primeiro século.9 Para ele, Paulo, o fariseu que adotou uma nova,
apocalíptica, mística e herética forma de judaísmo entre seus com-
patriotas, é o principal testemunho sobre questões que afetavam a
vida religiosa de judeus do primeiro século.10
Apesar de sua inegável grandeza literária, não há certeza de
tal grandeza de Paulo como indivíduo religioso em seu tempo.
Segundo Segal,11 a surpreendente independência dos evangelhos
(geralmente considerados um pouco mais tardios) em relação
a Paulo é evidência de que ele não era tão influente quanto se
tornou posteriormente.
Para Stendahl, apesar de Paulo ser citado pelos primeiros pais
cristãos, as evidências são de que representou muito pouco para o
pensamento da igreja nos primeiros trezentos e cinquenta anos.12
Especialmente a justificação pela fé, conceito tão importante no
Ocidente a partir de Agostinho e depois na Reforma, ficou esquecida.
No entanto, essas considerações de Stendahl dão a impressão de
que, na verdade, a grandeza paulina da perspectiva principalmente
protestante da justificação pela fé é que não era tão conhecida.
Agostinho de Hipona foi, de fato, apenas um marco na história da
igreja, que lançou luz sobre o tema, posteriormente retomado na
Reforma Protestante.
O procedimento típico de um discípulo que cita o que o
mestre disse em vida não caracteriza Paulo. Não há evidências
de que ele tenha falado com Jesus de Nazaré, o tenha conhecido
pessoalmente ou mesmo que o tenha visto. Daí, a relação de Paulo
apóstolo com Jesus tem sido motivo de grande debate.

9
Alan F. Segal. The Other Judaisms of Late Antiquity. Atlanta: Scholars Press, 1987, p.
xvi-xvii (Brown Judaic Studies 127).
10
Cf. Segal. Paul The Convert, p. xii exvi.
11
Alan F. Segal. Life After Death: A History of the Afterlife in the Religions of the West.
New York: Doubledy, 2004, p. 400.
12
Krister Stendahl. Paul among Jews and Gentiles. Philadelphia: Fortress Press, 1986, p. 83.

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Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Com um ponto de vista mais conservador, Wenham


concluiu que havia uma continuidade temática entre Jesus
e Paulo, ainda que este tivesse uma interpretação própria da
tradição de Jesus no contexto das igrejas que fundou ou com as
quais se relacionou.13
Wright, por sua vez, em meio aos alertas, em tom
conservador, para que não se considere apressadamente um
antagonismo entre Jesus e Paulo, observou: “Ambos, em outras
palavras, respiravam o ar da escatologia judaica”.14
Segundo Woodruff, o mínimo que se deve admitir é que de
Jesus a Paulo certamente há algo novo. Isto é, há elementos em
Paulo que não são encontradiços nos testemunhos dos evangelhos
a respeito de Jesus. Mas como escreveu o professor Woodruff, isto
é o mínimo.15
É bem conhecida a crítica dura de Nietzsche de que falar de
cristianismo é um mal entendido porque só houve um cristão e ele
morreu na cruz. Para ele, Paulo foi um dysangelist (disangelista), dono
de uma arrogância rabínica que corrompeu os ensinos de Jesus.16
Essa crítica radical, influente até hoje, como no trabalho de
Silva, serve para ilustrar que não é possível se contentar com o Paulo
da história da Igreja, como o da Reforma Protestante, por exemplo.
Além do fato de que certos temas teológicos já estão historicamente

13
David Wenham. Paul Follower of Jesus or Founder of Christianity? Grand Rapids /
Cambridge: Eerdmans, 1995, p. 408-410.
14
Nicholas T. Wright. What Saint Paul Really Said: Was Paul of Tarsus the Real Founder
of Christianity? Grand Rapids / Cincinnati: Eerdmans / Forward Movement
Publications, 1997, p. 179.
15
Archibald M. Woodruff. “A Igreja Pré-Paulina”. In: Revista de Interpretação Bíblica
Latino-Americana 22, 1995, p. 73.
16
Friedrich Nietzsche. “The first Christian (1880)” e “The Jewish dysangelist (1888)”.
In: Wayne A. Meeks (ed.). The Writings of St. Paul. New York: W. W. Norton &
Company. INC, 1972, p. 291 e 294 (A Norton Critical Edition).

105
Espectadores do sagrado

vinculados a esse personagem como supostamente centrais, ele é


sempre visto como um grande herói do lado da verdade.17
O pesquisador judeu Daniel Boyarin é um crítico recente dessa
tendência. Ele procura demonstrar como a obra paulina tem sido
interpretada para sustentar ataques contra a religião judaica. É o caso
particular, segundo ele, da leitura luterana reformada de Paulo.18
Também é necessário considerar,conforme Margaret MacDonald,
que a produção exegética geralmente tem o pressuposto cristão ca-
nônico que põe Paulo no centro.19 Isto é, a exegese pressupõe que a
“verdade” está do lado de Paulo,20 em contraste com as crenças de seus
interlocutores, o que, de partida, dificulta o entendimento do universo
religioso mais amplo que envolveu as comunidades paulinas.
Por outro lado, Segal é um estudioso judeu que, embora em
desacordo com Paulo, acredita na autenticidade da experiência
paulina de conversão em termos de misticismo judaico.21 Para
ele, Paulo e o Novo Testamento (e, portanto, as origens do

17
Rodrigo da Silva. “Cristianismo e corrupção paulina segundo a interpretação de
Friedrich Nietzsche”. Revista de Iniciação Científica da FFC 4 (3), 2004, p. 85.
18
Daniel Boyarin. A Radical Jew: Paul and the Politics of Identity. Berkeley/Los Angeles:
University of California Press, 1994, p.41 ss.
19
Margaret Y. MacDonald. “The shifting centre: ideology and the interpretation of
1 Corinthians”. In: Edward Adams e David G. Horrell (Ed.). Christianity at Corinth:
the Quest for the Pauline Church. Louisville / London: Westminster John Knox Press,
2004, p. 279-281.
20
Num importante trabalho, Seyoon Kim (The Origin of Paul’s Gospel. Grand Rapids:
Eerdmans, 1982. p. 2) defensor de que a origem do evangelho paulino está na
revelação de Jesus Cristo a ele na estrada de Damasco, afirma: “Estamos convencidos
de que quando tivermos respondido a questão [da origem do evangelho paulino]
depois de ouvir cuidadosamente o próprio testemunho de Paulo, seremos capazes
de entender muito melhor a verdade teológica que Paulo expõe em suas cartas – que
certamente é a preocupação de Barth e deveria ser a preocupação de todo exegeta
sincero da Escritura”. A questão aqui é que, influenciado por Karl Barth, Kim
relaciona a sinceridade do exegeta e o correto entendimento com descobrir a “verdade
teológica” que Paulo expõe. Mas é preciso reconhecer que a sinceridade do exegeta e
a precisão de seu trabalho não dependem de este concordar com Paulo.
21
Segal, Paul The Convert, p.xiii-xvi.

106
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

cristianismo) estão ligados ao que chama de “um conflito familiar


intensamente agravado”.
Assim, Paulo é uma fonte singular para o estudo das origens
do cristianismo, mas os importantes dados fornecidos por ele
precisam ser garimpados para se distinguir entre o uso que fez de
ensinos judaicos e cristãos e suas inovações.22
Outro ponto a considerar é que o Paulo da história da Igreja
tende a ser mais “estático” que “extático”. Isto é, sua teologia
geralmente foi abordada como sendo algo sistematizado e acabado.
Segundo Stendahl, mais uma vez isto se deve à abordagem de
Agostinho de Hipona, que aplicou o pensamento de Paulo sobre
a lei e a justificação como solução para o dilema humano de modo
mais geral e atemporal.23
Como observou Achtemeier, o problema básico para alguém
achar uma teologia de Paulo é que não vai encontrar um compêndio
fruto de reflexão teológica. Pelo contrário, suas cartas buscam
solução de problemas variados oriundos de diversas complexidades
que estavam ocorrendo nas igrejas. São considerações de como o
seu evangelho interage com o mundo de seus leitores e como estes
devem se comportar frente a isso.24
Em boa medida, essa é a razão porque a busca por uma
teologia de Paulo enfrentou diversos problemas a ponto de Dunn
afirmar que essa é uma experiência frustrada. Embora ele se refira
apenas a uma década de estudos específicos, essa constatação, ao
que parece, abrange um campo maior.25

22
Cf. também Segal, Life After Death, p. 399-400.
23
Stendahl. Paul among Jews and Gentiles, p. 85.
24
Paul J. Achtemeier. “Finding the way to Paul’s theology. A response to J. Christiaan
Beker and J. Paul Sampley” in: Jouette M. Bassler (ed.). Pauline Theology. Volume I:
Thessalonians, Philippians, Galatians, Philemon. Minneapolis: Fortress Press, 1994, p. 25.
25
James D. G. Dunn. “In quest of Paul’s theology: retrospect and prospect”. In:
Elizabeth E. Johnson e David. M. Hay (Ed.). Pauline Theology. Volume IV Looking
Back, Pressing on. Atlanta: Scholars Press, 1997, p. 95.

107
Espectadores do sagrado

Além do mais, se por um lado é um exagero considerar caótico


o pensamento de Paulo, por outro lado, desenvolvimentos e
transformações em seus conceitos religiosos podem ser percebidos
em suas cartas.26
Além disso, em certo sentido, essas cartas já são um segundo
momento, porque não representam a pregação inicial na ocasião
da fundação das igrejas, mas a segunda fase de orientação das
comunidades já estabelecidas. Elas representam orientação para
pessoas que já se tornaram cristãs e não uma abordagem de
indivíduos que ainda não aderiram à fé.27
Aparentemente, a tendência à consideração de uma teologia
paulina doutrinário-sistemática pronta tem relações com a
concepção de um cristianismo primitivo católico e unificado, o que
hoje está praticamente descartado pelas pesquisas como realidade
histórica. Como disse Rowland: “Entender o cristianismo
primitivo é, antes de tudo, entender o judaísmo do primeiro século
em toda a sua complexidade”.28

26
Cf. Udo Schnelle. A Evolução do Pensamento Paulino. São Paulo: Loyola, 1999.
(Coleção Bíblica Loyola 27). P. 9-12 e 109-110. Por outro lado, Juan Luis Segundo,
em A História Perdida e Recuperada de Jesus de Nazaré – dos Sinóticos a Paulo. São
Paulo: Paulus, 1997, p. 370-373, considerou que a ressurreição em 1º Tessalonicenses
4,13-18 tem caráter mais primitivo que o desenvolvimento em 1 Cor 15. Markus
Cromhout. “The Dead in Christ: recovering Paul’s understanding of the after-
life” in: Harvard Theological Studies 60 (1/2), 2004, p.83-84 e 87-100), por sua vez,
apresentou o que chama de “necrologia de Paulo”. Ele usa a expressão para descrever
um desenvolvimento das crenças de Paulo sobre o assunto. Desenvolvimento que
ocorreu a partir das circunstâncias em que viveu e de sua rica herança judaica. Para
esse autor, Paulo não tem uma escatologia fixa do estado dos mortos como produto de
uma teologia sistemática preconcebida ou como resultado de especulação quanto ao
além túmulo. Passagens como 1 Ts 4:13-18, 1 Cor 15, 2 Cor 5:1-10, abordadas por
Cromhout, ilustram bem as diferenças. Enquanto 1 Cor 15 e 1 Ts 4:13-18 falam da
ressurreição, esta última passagem como consolo para os que perderam entes queridos,
2 Cor 5:1-10 fala estranhamente de “estar no corpo” e “deixar o corpo”. Cf. Rudolf
Bultmann. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 258; nessa
última passagem Paulo se aproxima muito do dualismo gnóstico-helenista.
27
Mauro Pesce. As duas fases da pregação de Paulo. São Paulo: Loyola, 1996 (Coleção
Bíblica Loyola 20), p. 9.
28
Rowland, Christian Origins, p. xiii.

108
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Outro elemento a ser considerado é a conotação canônica


de Escritura divinamente inspirada e verdade universal que,
por natureza, tem característica estática. Esse pressuposto
tradicional da pesquisa paulina naturalmente busca uma
“verdade” estanque.
Com essas considerações, a relação de Paulo com as origens do
cristianismo deve ser vista de modo pontual. Ele foi um importante
contribuinte para os desenvolvimentos do cristianismo posterior,
mas, a priori, não foi seu principal protagonista ou mesmo o
fundador de uma nova religião.
No dizer de Rowland,29 se por um lado Paulo é o responsável
pela maior parte do cânon epistolar do Novo Testamento, por
outro lado é provável que ele não era a voz dominante na teologia
do cristianismo primitivo.

Apocalíptica e misticismo paulinos


Paulo era judeu.30 Estava inserido na diversidade judaica
de seu tempo.31 Esta diversidade judaica precisa considerar,
por exemplo, a confluência de tradições diferentes tais como a

29
Idem, p. 190.
30
Como mostram os artigos de Denise K. Buell e Caroline J. Hodge. “The politics of
interpretation: the rhetoric of race and ethnicity in Paul” in: Journal of Biblical Literature
123 (2), 2004, p. 235-251; e Charles H. Cosgrove. “Did Paul value ethnicity?”. In: Catholic
Biblical Quarterly 68 (2), 2006, p. 268-290, por exemplo, a reivindicação da identidade
judaica de Paulo está em vigoroso debate recentemente.
31
A separação entre judaísmo palestino, judaísmo helenista e samaritanismo tem sido
reconhecida ultimamente como uma ilusão moderna. Cf. Wayne A. Meeks. “Moses
as God and King” in: Jacob Neusner (ed.). Religions In Antiquity: Essays in Memory
of Erwin Ramsdell Goodenough. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 2004, p. 354-371.
A opinião largamente aceita no início do séc. XX d.C. de que havia um judaísmo
normativo ortodoxo centrado em Jerusalém tem sido agora moderada pela aceitação de
que o judaísmo do séc. I d.C. não era nem uniformemente normativo, nem caoticamente
diverso ( James H. Charlesworth. “Introduction for the General Reader” in: The Old
Testament Pseudepigrapha. Vol.2. New York / London / Toronto / Sydney / Auckland:
Doubleday, 1985, p. xxix).

109
Espectadores do sagrado

profecia, a apocalíptica e a sabedoria.32 Elas são diferentes, mas


não necessariamente incompatíveis. Entrelaçam-se e também se
transformam mutuamente.
Pela própria natureza deste trabalho, interessa a relação
de Paulo com a apocalíptica, o que vem sendo cada vez mais
reconhecido pelos pesquisadores,33 mas sem perder de vista as
intersecções com outras tradições. Para certo autor, a questão
contestada com virulência, se Paulo pensava e ensinava de maneira
apocalíptica, só pode ser respondida com um sim claro.
Perguntar como foi a relação de Paulo com a apocalíptica pode
soar estranho porque tradicionalmente esse apóstolo está ligado a
reflexões teológicas sistemáticas e racionais. Tal acontece, segundo
Carriker, por influência dos reformadores e grandes teólogos
posteriores como Karl Barth. Porém, esse quadro não tem apenas
os reformadores como figurantes.34 É preciso também incluir
influentes figuras cristãs do passado, como Agostinho de Hipona.
Todavia, Carriker, citado anteriormente, lembra que Paulo
está cultural e historicamente muito mais próximo do visionário
João do Apocalipse que dos referidos teólogos posteriores. Estava
familiarizado com o ensino apocalíptico de seu tempo.35 Portanto,
não é surpresa que Paulo tenha concepções religiosas próximas do
visionário de Patmos.
A essa altura, vale destacar as possíveis relações de Paulo
com a apocalíptica em termos mais gerais. Trata-se de observar

32
Ben Witherington. The Paul Quest: The Renewed Search for the Jew of Tarsus. Downers
Grove / Leicester: InterVarsity Press, 1998, p. 142-143.
33
Nicholas T. Wright. “Putting Paul together again: toward a synthesis of Pauline
theology (1 and 2 Thessalonians, Philippians, and Philemon)” in: Jouette M.
Bassler (ed.). Pauline Theology. Vol. I: Thessalonians, Philippians, Galatians, Philemon.
Minneapolis: Fortress Press, 1994, p. 197.
34
Timóteo Carriker. “A apocalíptica judaica e o evangelho de Paulo”. In: Vox Scripturae
6 (2), 1996, p. 175.
35
Archibald T. Robertson. Épocas na Vida de Paulo. Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p. 71-72.

110
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

como os elementos que caracterizam a apocalíptica aparecem na


literatura paulina.
Em primeiro lugar, então, é preciso pontuar as principais
características da apocalíptica que têm sido destacadas pelos
estudiosos do assunto.
Como apresenta Russell,36 classicamente a apocalíptica inclui
várias obras judaicas e cristãs.37 Abrange um período que vai, mais
ou menos, do terceiro século a. C. até o segundo século d.C. Mas
existem problemas para uma definição exata do que seria literatura
apocalíptica e quanto ao sentido exato dos termos: “apocalíptica”,
“apocalipse”, “apocalipsismo” e “escatologia apocalíptica”.38
Não cabe aqui discutir amplamente as questões envolvidas
neste assunto. Basta dizer que essa literatura geralmente envolve
uma estrutura narrativa que descreve o modo da revelação celestial.
Frequentemente inclui uma jornada ao mundo além que ocorre
por mediação angelical.
Mas isso não é tudo. Além da conceituação do parágrafo
anterior, John Collins39 apresentou uma tabela, que é um resumo
do famoso Semeia 14 sobre apocalíptica editado por ele em
1979. Para melhor visualização do leitor, segue esta tabela com
enumeração das obras apocalípticas e os temas relacionados:

36
David S. Russell. Desvelamento Divino. São Paulo: Paulus, 1997, p. 19-59 (Nova
Coleção Bíblica).
37
Classificação semelhante também aparece em autores como Henry H. Rowley.
A Importância da Literatura Apocalíptica. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 54-156, e
Christopher C. Rowland. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and
Early Christianity. New York: Crossroad, 1982, p. 14-22.
38
John J. Collins. The Apocalyptic Imagination. An Introduction to the Jewish Matrix of
Christianity. New York: Crossroad, 1989, p. 1-32.
39
Idem, p. 6.

111
Espectadores do sagrado

1 – Apocalipse de Sofonias
2 – Testamento de Abraão
3 – 3 Baruch
4 – Testamento de Levi 2-5
5 – 2 Enoch
6 – Similitudes (1 Enoch)
7 – Livro astronômico (1 Enoch)
8 – 1 Enoch 1-36
9 – Apocalipse de Abraão
10 – 2 Baruch
11 – 4 Ezra
12 – Jubileus
13 – Apocalipse das semanas (1 Enoch)
14 – Apocalipse dos animais (1 Enoch)
15 – Daniel

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Cosmogonia x x x

Eventos
x x x x x x
primordiais

Revisão do
x x x
passado

Profecia ex
x x x x x x x
eventu
Perseguição x x x x x x
Outros
transtornos x x x x x x x x x x
escatológicos
Julgamento/
destruição do x x x x x x x x x x x x x x x
ímpio
Julgamento/
destruição do x? x x? x x? x x
mundo

Julgamento/
destruição dos x x x? x x x x x
seres do além

Transformação
x x x x x x x x x? x x x
cósmica

Ressurreição x x x x? x x

Outras formas
de vida após a x x x? x x x x x x x x? x?
morte

112
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Essa tabela de Collins não inclui o Apocalipse de João, no


qual estão presentes quase todos os elementos relacionados. Por
ela é possível visualizar os vários temas que perpassam as obras
tidas como pertencentes ao gênero “apocalipse”, mesmo que não
conste explicitamente todos eles em cada caso. Falta na tabela o
elemento da revelação dos mistérios divinos, que se faz presente
em vários casos, como abordado neste estudo.
Quanto aos termos envolvidos, as definições clássicas de
Hanson e Collins foram retomadas e desenvolvidas por de Boer,
que acompanha as seguintes definições: Apocalíptica seria uma
perspectiva religiosa ou uma forma de ver os planos divinos em
relação com realidades mundanas ou terrenas. Apocalipsismo
seria o universo simbólico, em que está inserido o movimento
apocalíptico. Este procura construir uma nova ordem no lugar
da presente ordem da sociedade dominante. Apocalipse seria um
gênero literário.40
Para o estudo do caso paulino é preciso considerar, com Adela
Collins, os dois tipos de temas apocalípticos que aparecem na
literatura bíblica.41
Um tipo é intrínseco ao próprio gênero literário chamado
“apocalipse”. Tal obra geralmente inclui elementos típicos
como narrativas de recepção de revelação por sonhos, visões,
viagens celestiais, normalmente amalgamados com o sentido de
cumprimento da história, nova criação e ressurreição.
O outro tipo é menos ligado ao gênero literário. Inclui obras
em que, embora não possam ser classificadas exatamente como
apocalipses, constam temas que são afins com os encontrados no
gênero “apocalipse”.

40
Martinus de Boer. “A influência da apocalíptica judaica nas origens do cristianismo:
gênero, cosmovisão e movimento social”. In: Estudos de Religião 19, 2000, p. 11-24.
41
Adela Y. Collins. “Apocalyptic Themes in Biblical Literature”. In: Interpretation 53
(2), 1999, p. 117.

113
Espectadores do sagrado

Paulo está ligado a esta última situação. Não cabe aqui, portanto,
adentrar o extenso debate sobre as questões que envolvem as obras
apocalípticas,42 mas apenas abordar as relações temáticas paulinas
com tais obras e seus conceitos.
A combinação de elementos das obras tipicamente
apocalípticas também caracteriza uma espécie de escatologia
apocalíptica fora dos apocalipses, que identifica afinidades entre
alusões apocalípticas e o cenário apocalíptico das referidas obras.
Paulo está inserido nesse campo,43 embora, até onde se sabe, não
tenha escrito um apocalipse.
Vários temas que constam na tabela anterior são encontrados
em Paulo: perseguição (2 Cor 4:8 ss etc.); transtornos escatológicos,
julgamento e destruição dos ímpios, do mundo (1 Ts 5:1-10) e
dos anjos maus (1 Cor 6:3?); transformação cósmica e ressurreição
(Rm 8:18-23; 1 Cor 15 etc.). Consta ainda o tema da revelação dos
mistérios divinos (Gl 1:11ss; 1 Cor 2:6 ss), que não aparece na tabela.
A questão é também de cosmovisão apocalíptica, o modo
de ver o mundo que caracteriza os apocalipses, mas que não está
confinado a eles. Conforme Collins, a cosmovisão apocalíptica
não está presa a uma única forma literária, mas está, por exemplo,
presente em obras que pressupõem uma revelação apocalíptica, o
que seria o caso de Paulo.44
Mas Paulo deve ter sido um apocalipsista até mesmo quando
era fariseu, antes de se tornar seguidor de Jesus. Beker45 vê
evidências disso em seus próprios relatos de sua carreira farisaica
anterior em Gl 1 e Fl 3.46 Como fariseu, era integrante dos que se

42
Para Johan C. Beker ( Paul The Apostle: The Triumph of God in Life and Thought.
Philadelphia: Fortress Press, 1980, p. 136), a apocalíptica envolve três ideias básicas:
1) Dualismo histórico; 2) Expectativa cósmica universal; 3) Fim do mundo iminente.
43
Collins, The Apocalyptic Imagination, p. 9
44
John J. Collins. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls. London / New York: Routledge,
1997, p. 8.
45
Beker, Paul the Apostle, p. 143-144.
46
Adolf Deissmann. Paul: a Study in Social and Religious History. New York: Harper &
Row Publishers, 1957, p. 152, já havia dito algo parecido em relação ao misticismo

114
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

consideravam separados, os sucessores do remanescente fiel dos


tempos dos profetas. Nesse sentido, ele provavelmente já tinha
uma cosmovisão apocalíptica antes de sua experiência damascena.
Portanto, o aspecto apocalíptico não representa, pelo menos
de todo, uma descontinuidade entre o Saulo fariseu e o Paulo
servo de Jesus Cristo.
Meeks, ao tratar da relação de Paulo com a apocalíptica do
ponto de vista sociológico, propositadamente fala da escato-
logia, da apocalíptica e do misticismo como sendo conceitos
semelhantes. O pressuposto é que tais conceitos são, de algum
modo, intercambiáveis.47
Portanto, também é preciso ressaltar as relações entre
apocalíptica, escatologia e misticismo. Esses conceitos não são
exatamente a mesma coisa. Entretanto, no presente estudo eles
são considerados entrelaçados na medida em que estão ligados a
experiências religiosas semelhantes.
Assim, um aspecto que deve ser considerado é que a
distinção/similaridade entre apocalíptica e mística judaica diz
respeito a gêneros literários diferentes facilmente distinguíveis,
mas que relatam experiências religiosas semelhantes. Nesse caso,
“misticismo apocalíptico”48 reúne gêneros literários distintos que

paulino. Para ele, enquanto fariseu, Paulo era um místico acionário que se tornou um
místico reacionário a partir de sua experiência na estrada de Damasco.
47
Wayne A. Meeks. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. São
Paulo: Paulinas, 1992, p. 251.
48
“Misticismo” é geralmente definido como experiência religiosa interior que
acompanha fenômenos de visões, transes e estados de êxtase e que, em alguns casos,
denota uma unio mística, isto é, uma unificação com o divino (Helmer Ringgren.
“Mysticism” in: David N. Freedman (ed.). The Anchor Bible Dictionary. Vol. 4. K-N.
New York: Doubleday, 1992, p. 945). Mas o termo aqui tem conotações ligadas ao
estudo do misticismo judaico em obras mais recentes (Gershom Scholem. As grandes
correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972). Nesse sentido, Paulo era
tanto um místico como um apocalíptico, porque o misticismo judaico do primeiro
século era apocalíptico (Segal, Paul The Convert, p. 34). As definições desse tipo são
úteis para fins de clareza, ainda que seja necessário lembrar, com Meeks, Os primeiros

115
Espectadores do sagrado

relatam ou pressupõem experiências e práticas religiosas similares,


como viagens celestiais e visões extáticas.
Deissmann ficou conhecido no começo do séc. X pela
sua abordagem de Paulo como místico.49 Para ele, a partir
das frequentes implicações nos textos paulinos de “Cristo
em Paulo” e “Paulo em Cristo/espírito”, a religião paulina
era cristocêntrica mais que cristológica num sentido mais
profundo e realista. As 164 ocorrências da fórmula “em Cristo”
ou “no Senhor” no corpus paulinum levaram Deissmann a afirmar
que essa era a expressão do cristianismo do apóstolo.
Quanto à cristologia de Paulo, diz Deissmann, é mais acurado
falar de “cristoforia” ou mesmo “cristolatria”, que dizem respeito
às experiências de revelação de Cristo que Paulo teve. Não se
trata de reflexão sobre Cristo, mas de experiência com ele – uma
experiência de intimidade espiritual.
Mas qual a natureza desse misticismo? Deissmann reage à unio
mística e ao neoplatonismo do misticismo de deificação e prefere
falar de communio mística em relação a Paulo. Ele não foi deificado,
ou transformado em espírito, ou se tornou o próprio Cristo.
Deissmann menciona o êxtase para falar do caos extático coríntio.
Para ele o êxtase de Paulo é subordinado ao ethos. A abordagem
deissmanniana associa elementos judaicos e helenistas.
Mais famoso, entretanto, é o contemporâneo de Deissmann,
Albert Schweitzer e seu misticismo paulino, a quem Meeks, na
página citada anteriormente, atribuiu o renovado interesse pela
relação de Paulo com a apocalíptica.
À semelhança de Deissmann, Schweitzer afirma que o “estar-
-em-Cristo” é o principal enigma do ensino paulino. Mas, para ele,
o misticismo paulino é marcado pela escatologia judaica, isto é,

cristãos, p. 261, que o uso delas cria certa abstração, até porque os religiosos antigos
não as usaram para definir suas próprias crenças.
49
Deissmann, Paul: a Study in Social and Religious History, p. 135-157.

116
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

está firmado nas crenças escatológicas dos judeus e dos primeiros


cristãos de seu tempo.50
Diferente dos que viam um Paulo mais sincrético, Schweitzer
acreditava que esse apóstolo não helenizou o cristianismo, ainda
que seu misticismo escatológico do estar-em-Cristo possa ter
preparado o caminho para tal. Por isso, diz Schweitzer, Paulo não
foi influente na segunda geração cristã já helenizada porque ela
não sabia o que fazer com seu ensino.
Embora com a tendência de rejeitar o chamado misticismo
em relação a Paulo, Dibelius destaca que a pouca validade dada
ao misticismo paulino entre teólogos de seu tempo tem motivos
explícitos.51 O caso é que o termo “misticismo” é normalmente
ligado à unio mística, um conceito que, segundo ele e os referidos
teólogos, não pode ser encontrado em Paulo.52
Entretanto, Dibelius admitiu que, embora a piedade de Paulo
não tenha sido mística, mas profética, ele teve experiências pessoais
em áreas que estão estreitamente relacionadas ao misticismo.
Dibelius se refere às visões e êxtases.
O assunto no âmbito mais amplo da escatologia e apocalíptica
ficou ainda mais fomentado pelo debate entre Bultmann e
Käsemann em meados do séc. XX.
Para Bultmann, Paulo começou a demitificar o mundo
apocalíptico em termos de uma escatologia presente.53 Paulo,
diz Bultmann,54 deve ser considerado a partir do judaísmo
e cristianismo helenistas, numa teologia antropológica ou

50
Albert Schweitzer. O misticismo de Paulo o Apóstolo. São Paulo: Novo Século, 2003, p.
7-63.
51
Martin Dibelius. “Mystic and prophet” in: Wayne A. Meeks (ed.). The Writings of St.
Paul. New York: W. W. Norton & Company. INC, 1972, p. 395-396, 398, 405 ss.
52
Dibelius exemplifica dizendo que Paulo declarou que Cristo vive nele (Gl 2:20) e que ele pode
todas as coisas em Cristo (Fl 4:13), mas nunca disse: eu sou Cristo e Cristo sou eu.
53
Rudolf Bultmann. Jesus Cristo e mitologia. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 26-27.
54
Bultmann, Teologia do Novo Testamento, p. 242 ss.

117
Espectadores do sagrado

antropologia teológica.55 Isto é, Paulo nunca fala de Deus per se,


mas sempre e somente em seu significado para o ser humano.
Daí sua abordagem clássica da teologia paulina com ênfase em
conceitos antropológicos.
Käsemann acompanhou seu mestre Bultmann em boa parte
do caminho, mas divergiu dele ao afirmar que os grandes temas
paulinos, como o da justiça de Deus, deriva do apocalipsismo. Para
ele, a antropologia paulina é também cosmologia.56
A reação de Bultmann foi afirmar que é na “escatologia
presêntica”, como denomina, que está o peso maior para Paulo e
que até teria deixado de lado, em segundo plano, o que Bultmann
chama de “escatologia futúrica”.57
A divergência principal é que, enquanto para Käsemann
Paulo basicamente interagiu com o apocalipsismo de seus dias,
para Bultmann ele o teria reinterpretado radicalmente em termos
antropológicos existenciais.
O debate entre Bultmann e Käsemann pode ter se perdido
em minúcias, como alega Meeks,58 mas ilustra a importância que
tem sido dada a esses temas nas últimas décadas.
Bem mais recente, entretanto, o estudo do misticismo paulino
ganhou novo impulso a partir da abordagem de Gershom Scholem
e o misticismo da merkavah.59 Até então, falar de misticismo em
55
É famosa sua declaração de que “a teologia paulina é simultaneamente antropologia”
(idem, p.246).
56
Käsemann, Inícios da teologia cristã, p. 252; do mesmo autor, Perspectivas paulinas. São
Paulo: Teológica, 2003, p.11 ss.
57
Rudolf Bultmann. “Seria o apocalipsismo a matriz da teologia cristã? Um
posicionamento frente a Ernst Käsemann” in: Apocalipsismo, 1983, p. 255 ss.
58
Meeks, Os primeiros cristãos urbanos, p. 252.
59
Scholem identificou um misticismo entre judeus que percorreu séculos, com raízes
em tradições ligadas a Ez 1, o que ficou conhecido como misticismo da merkavah
(pronuncia-se “mercavá”). Os pontos de partida são 1941, que foi o ano da publicação
original do livro de Scholem, Major Trends in Jewish Mysticism (aqui utilizada a
versão portuguesa de 1972 supracitada) e 1947, ano da descoberta dos manuscritos
qumrânicos que comprovaram através dos Cânticos do Sacrifício do Sábado que o
misticismo da merkavah já era praticado nos tempos apostólicos ( John Ashton. The

118
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Paulo era algo que ficava mais ou menos suspenso no ar. O que
significa misticismo nesse caso? Em outras palavras, se não existe
misticismo como tal, mas somente misticismo de um sistema
religioso,60 a que sistema religioso pertenceria o misticismo do
apóstolo Paulo?
Schweitzer criticou a exposição do misticismo paulino feita
por Deissmann porque parecia estar ancorada nas águas inseguras
da experiência subjetiva damascena, visto que o próprio Paulo
quase não se refere a ela.61
Na verdade, Paulo não se refere a qualquer experiência
damascena específica. O máximo que ele mesmo diz é que ao
receber a revelação divina não foi a Jerusalém buscar confirmação

Religion of Paul the Apostle. New Haven / London: Yale University Press, 2000, p. 243).
Esses estudos vêm ganhando ímpeto principalmente a partir das duas últimas décadas
do séc.XX. Merkavah ou “misticismo da merkavah” se refere a uma literatura judaica
que gira em torno da merkavah, palavra hebraica que significa “carruagem”, aludindo
a uma experiência visionária da glória de Deus numa espécie de “trono-carruagem”.
Essa palavra deriva de 1 Cr 28:18 que fala da “carruagem do querubim” que suportava
a Arca da Aliança no Santo dos Santos e foi bem cedo ligada às visões de Ezequiel
conforme Eclo 49:8 e 4Q385 fr.4 (Christopher Morray-Jones. “The Temple within:
the embodied divine and its worship in the Dead Sea Scrolls and other early Jewish
and Christian sources”. In: Society of Biblical Literature Seminar Papers 1 (37), 1998,
p. 400-409). Está geralmente ligada a um tipo de misticismo que tem na visão de
Ez 1 uma fonte primária (Scholem, Grandes correntes, p. 41) como seu texto mais
importante (Alan F. Segal. The Other Judaisms of Late Antiquity. Atlanta: Scholars
Press, 1987, p. 25), mas que recebeu desenvolvimento na literatura mística judaica
posterior, de modo especial na apocalíptica. Embora a palavra merkavah não apareça
no texto de Ezequiel, dele se desenvolveu o conceito no misticismo judaico que vai
até os tempos da Kabala. George A. Cooke. A Critical and Exegetical Commentary on
the Book of Ezekiel. Edinburgh: T & T Clark, 1985, p. 22-23; Joseph Dan. The Ancient
Jewish Mysticism. Tel-Aviv: Mod Books, 1993, p. 7-24 apresentam uma introdução
resumida desse tipo de literatura.
60
Scholem, Grandes correntes, p. 6-8, embora fale desse fenômeno genericamente como
“experiência fundamental do eu íntimo que entra em contato imediato com Deus
ou com a Realidade metafísica”, afirma que se trata de um estágio bem definido no
desenvolvimento histórico da religião e que aparece sob condições bem definidas.
Para ele, não há misticismo como tal, mas apenas misticismo de um sistema religioso
particular.
61
Schweitzer, O misticismo de Paulo, p. 57-58.

119
Espectadores do sagrado

dos então já apóstolos de Cristo, mas foi para a Arábia e “voltei”,


diz ele, para Damasco (Gl 1:15-17).62
Porém, o misticismo paulino proposto por Schweitzer ficou
um tanto indefinido e, associado à escatologia, acabou sendo apenas
mais uma abordagem teológica de um misticismo intelectual.63
Todavia, o misticismo da merkavah de ascensão visionária
paradigmática tem semelhanças com os vestígios encontradiços
nos documentos neotestamentários, inclusive em Paulo.
Kim, em tese doutoral publicada inicialmente em 1980,
estabeleceu uma ligação do capítulo chave do misticismo da
merkavah, Ezequiel 1, com a experiência damascena de Paulo.
Para ele, esta é a chave do evangelho paulino. Viu também
vestígios dessa experiência visionária inicial paulina em textos
como 2 Cor 3:12, e outros.64 Nesse caso, os textos paulinos com
linguagem mística seriam projeções da singular experiência
visionária de conversão.
Contudo, como o próprio Kim está ciente, a principal
objeção contra sua tese é que, nos textos conhecidos de autoria
do próprio Paulo, se ele menciona a experiência na estrada
de Damasco, o faz poucas vezes e de modo muito breve.65
Bornkamm acredita que a rara referência do próprio Paulo à
experiência damascena é sinal de que tal não era central em sua
vida e pensamento.66

62
Tradicionalmente essa passagem é entendida como uma referência ao que At 9:1 ss.
narra. Entretanto, isso tem sido questionado, como será visto na abordagem de Gl 1
adiante. De qualquer forma, a referência à “experiência damascena” de Paulo precisa
levar em conta que, em última análise, depende de um relato de segunda mão em At.
63
Ashton, The Religion of Paul, p. 143-144.
64
Kim, Paul’s Gospel, p.1-2, 78, 233 ss.
65
Idem, p. 3.
66
Günther Bornkamm. Pablo de Tarso. Salamanca: Sigueme, 1991, p. 48.

120
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Entretanto, Kim pode ter razão em parte de outro modo.


A questão não seria que a experiência visionária de Damasco foi
a base do ministério paulino, mas sim que foi apenas a primeira
das muitas experiências desse tipo vividas pelo apóstolo. Essa é a
conclusão de Segal, Morray-Jones e Scott.67
Consequentemente, a tradição da merkavah fornece uma
estrutura plausível para o estudo da religião paulina e pode
possibilitar um caminho viável para responder melhor à pergunta
sobre a experiência paulina com o sagrado e não tanto a reflexão
sobre ele. Esse segundo questionamento sobre a reflexão a respeito
do sagrado, mais racional e intelectual, é que tem caracterizado as
pesquisas sobre esse apóstolo.
Portanto, ao perguntar pelo misticismo paulino nesses termos,
facilmente se passa para a questão intrinsecamente ligada sobre
quais teriam sido as características da experiência religiosa de
Paulo de Tarso, categoria à qual pertencem naturalmente os
êxtases visionários apocalípticos.

Paulo, o visionário
Existem testemunhos na correspondência paulina que dão
indícios de um contexto mais amplo visionário revelacional de
sua experiência religiosa. Nesse contexto estaria inserida sua
concepção de transformação no sentido místico apocalíptico
(2 Cor 3:7-18).68

67
Segal, Paul The Convert, p.37; Christopher Morray-Jones. “Paul’s heavenly ascent and
its significance” in: Harvard Theological Review 86.3. Boston: Harvard University
Press, 1993, p.1 ss; James M. Scott. 2 Corinthians. Peabody / London: Hendrickson
Publishers / Paternoster Press, 1998, p. 237.
68
Foi principalmente esse conceito de transformação que desenvolvi em minha tese
de doutorado ( Jonas Machado. Transformação mística na religião do apóstolo Paulo.
A recepção do Moisés glorificado em 2 Coríntios na perspectiva da experiência religiosa. São
Bernardo do Campo, UMESP, 2007, p. 63 ss).

121
Espectadores do sagrado

Sem dúvida, o locus mais significativo para sua experiência


visionária é 2 Cor 12. A visão propriamente dita é narrada nos
quatro primeiros versículos, mas o contexto seguinte imediato
também fornece alguns dados importantes.
Por essa razão, tal porção literária recebe a seguir um destaque
especial. Significativas também são sua apresentação do espírito
como agente revelacional em 1 Cor 2 e ainda seu próprio
testemunho de conversão em Gl 1.

2 Cor 12:

1 É necessário orgulhar-se, não convém na verdade, mas


irei para as visões e revelações do Senhor.
2 Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, se
em corpo não sei, se fora do corpo não sei, Deus sabe, foi
arrebatado o tal até o terceiro céu.
3 E conheço o tal homem, se em corpo, se fora do corpo,
não sei, Deus sabe,
4 que foi arrebatado para o paraíso e ouviu palavras
indizíveis as quais não é permitido a um homem falar.
5 Pelo tal me orgulharei, mas por mim mesmo não me
orgulharei senão nas fraquezas.
6 Pois se quiser me orgulhar não serei insensato, pois
falarei a verdade; mas eu me abstenho, que ninguém pense
de mim além do modo como me vê ou ouve de mim
7 e pela grandeza das revelações. Porquanto para que não
me exaltasse, foi dado a mim um espinho na carne, um anjo
de Satanás, para que me batesse, para que não me exaltasse.
8 por causa disto três vezes clamei ao Senhor para que
afastasse de mim.
9 E me disse, é suficiente para ti a minha graça, pois o
poder é aperfeiçoado em fraqueza. Muito alegremente,
portanto, mais me orgulho nas minhas fraquezas, para que
habite sobre mim o poder do Cristo.

122
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

10 Porquanto agrado-me em fraquezas, em insultos, em


pressões, em perseguições e angústias por Cristo; pois
quando sou fraco, então forte sou.69

Uma das grandes questões envolvendo essa passagem é até


que ponto ela reflete uma experiência paradigmática paulina.
São conhecidas as opiniões tradicionais de que tal experiência
deve ser colocada como apêndice da carreira paulina.
Bultmann considerou a passagem como algo raro na vida de Paulo
e negou que a experiência mística teria sido um paradigma paulino.70
Essa opinião típica é justificada, por exemplo, pela argumentação de
Furnish71 de que o plural “visões e revelações” sem artigo definido no
grego original refere-se a um tópico geral e não a várias experiências
paulinas.72 Mas essa conclusão de Furnish corre sério risco de
artificialidade. O caso é que a ausência de artigo definido por si só
frequentemente diz muito pouco e depende bastante do contexto.73
Uma opinião diferente e um pouco independente é a de
Smith.74 Segundo ele, Paulo não estaria falando de si mesmo e sim
de uma experiência visionária do próprio Jesus. A razão para isso
é principalmente o emprego da terceira pessoa que distingue o
referido viajante celestial de Paulo. Para Smith, a afirmação “pelo
tal me orgulharei, mas por mim mesmo não me orgulharei” (v.5)
exclui Paulo. Além disso, diz Smith, Paulo afirma gloriar-se em
Jesus.75 Nesse caso, então, o visionário da narrativa seria Jesus, em
quem Paulo se orgulha.
Mas, a expressão “conheço um homem em Cristo” (v.2) é
surpreendente, como admite Smith. O termo preposicionado “em

69
As traduções dos textos paulinos são minhas a partir do NTG.
70
Bultmann, Teologia do Novo Testamento, p. 409.
71
Victor P. Furnish. II Corinthians. New York: Doubleday, 1984, p. 524 e 543.
72
Scott, op.cit, p. 458 concluiu de modo tipicamente tradicional dizendo que Paulo não
considerava importantes experiências privadas desse tipo.
73
Robertson, A Grammar of the Greek New Testament, p. 790 ss.
74
Morton Smith. The Cult of Yahweh. Leiden / New York/ Köln: Brill, 1996, vol. 2, p. 64-67.
75
Smith cita Rm 15:17 ss; 1 Cor 1:29-31;2 Cor 10:17; 12:5; Gl 6:14.

123
Espectadores do sagrado

Cristo” não combina com a hipótese de ser Jesus o visionário. De fato,


essa é uma objeção praticamente insuperável para tal teoria. Além
disso, o espinho na carne de Paulo como a consequência da grandeza
das revelações (v.7) faz melhor sentido se Paulo for considerado o
receptor de tais revelações na ascensão. Nesse caso, não é sem razão
que a opinião quase unânime, pelo menos desde Irineu, é a de que
Paulo está falando de si mesmo.76
Foi Scholem quem, nos últimos anos e de modo influente,
colocou Paulo como personagem típico do misticismo judaico. Ele
cita justamente essa passagem paulina como evidência de que o
apóstolo estava incluído nas tradições místicas do judaísmo, ainda
que como seguidor de Jesus de Nazaré.77
A partir daí autores como Segal, Morray-Jones e Rowland têm
insistido que é necessário considerar o elemento visionário como
central na experiência religiosa paulina e não como fator marginal.78
Como já esboçado em outro lugar79 e aqui desenvolvido de modo
mais sistemático, a passagem dá sinais de que a experiência visionária
era típica da religião de Paulo apóstolo. Esses sinais, embora com
certa interdependência, podem ser distinguidos da seguinte forma.

“Visões e revelações” como múltiplas experiências


No misticismo da merkavah, a ascensão aos céus ocorre várias
vezes durante a vida do místico.80 As “visões e revelações”, no plural,
associadas a outros vestígios na passagem dão indicações de uma
76
Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 3 ss.
77
Scholem, As grandes correntes, p. 53.
78
Segal, Paul The Convert, p. 34 ss; Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 1 ss;
Christopher C. Rowland. Paul and the Apocalypse of Jesus Christ. (Palestra não publicada
apresentada no 2º Seminário de Apocaliptica intitulado “Apocalíptica, Misticismo e
Inícios do Cristianismo” realizado na UMESP em abril de 2001), p.1 ss.
79
Jonas Machado. “Paulo, o visionário: visões e revelações extáticas como paradigmas
da religião paulina”. In: Paulo Augusto de S. Nogueira (org.). Religião de visionários:
apocalíptica e misticismo no cristianismo primitivo. São Paulo: Loyola, 2005, p. 171-187.
80
Scott, 2 Corinthians, p. 237.

124
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

experiência visionária típica da merkavah. E dão também sinais de


que isso era um paradigma da carreira religiosa paulina. Se esse era
um quadro típico nos tempos de Paulo, então a passagem muito
provavelmente é indicação de que o apóstolo fez parte dele.
A evidência dada pelo próprio Paulo em outros lugares (Gl 1:12;
2:2) e o testemunho de segunda mão de Atos (16:9; 18:9; 22:17-18;
23:11; 27:23) é de que não ocorreu apenas uma experiência do gênero.
Ainda que pesem os problemas relativos ao relato secundário
e tendencioso de Atos sobre Paulo, é notório que sua conversão
é narrada em termos de experiência visionária típica três vezes
(At 9:22 e 26). Nos dois últimos casos, o autor de Atos apresenta
Paulo se defendendo perante os israelitas e perante Agripa a partir
de seu êxtase visionário. Isto pode representar uma tradição em
que Paulo era visto como típico visionário.

Campo semântico apocalíptico


Rowland observou que há evidências suficientes de uma
linguagem tradicional da apocalíptica judaica.81 Os termos “visões”,
“revelações”, “ser arrebatado”, “terceiro céu”, “paraíso”, são típicos
e revelam um campo semântico apocalíptico. Portanto, esse relato
visionário, ainda que breve, mostra o quanto Paulo deve ao modo
apocalíptico de pensar e como pontos chave de sua vida e carreira
são iluminados por essa estrutura de pensamento.82
A concepção de que ele “foi arrebatado até o terceiro céu para
o paraíso”, independente das nuanças possíveis de sentido,83 é uma
expressão típica de experiência visionária. Conforme Scholem, Paulo
é dependente aqui de uma estrita tradição judaica sobre o paraíso.84

81
Rowland, Paul, p. 3.
82
Rowland, The Open Heaven, p. 386.
83
As possíveis relações entre a quantidade dos céus (três/sete) e o paraíso foram
apresentadas em Machado, Paulo, o visionário, p. 181-185.
84
Scholem, As grandes correntes, p. 53.

125
Espectadores do sagrado

O termo “paraíso” foi usado na LXX para o jardim do Éden


em Gn 2:8-10 e Ez 28:13. Embora existam outras ocorrências com
sentido de “jardim” sem maiores conotações técnicas,85 começou a
ser usado no sentido escatológico de paraíso celestial.86
Segundo Morray-Jones, esse testemunho paulino está
inserido em uma tradição que chegou até os hekhalot, herdada da
apocalíptica do período do Segundo Templo.87

O emprego da terceira pessoa


Essa narrativa em terceira pessoa, estranha para o leitor
atual, era bastante comum no judaísmo, notadamente no âmbito
visionário. Era frequente como referência pessoal no rabinismo.
Scott observou que o “filho do homem” de Jesus em terceira pessoa
é comum nos evangelhos, uma expressão geralmente associada a
contexto apocalíptico.88
A terceira pessoa pode ainda estar relacionada à tradição
do misticismo judaico quando o visionário reluta em falar de
seu êxtase para evitar conotação de orgulho pessoal, o que esse
contexto paulino faz lembrar.
Na Bíblia hebraica, a relação da soberba com viagens celestiais
aparece em Is 14:11-15 e Ez 28:13-15 – textos lidos pelos pais da
igreja como referência à queda de Satanás e que falam da soberba
de reis num âmbito de ascensão celestial.89
Conforme Morray-Jones, advertências contra autoexaltação
são comuns na literatura mística judaica.90 Ele cita um exemplo de

85
Ct 4:13; Ecl 2:5; Ne 2:8.
86
Test12Lv 18:10-11; Lc 23:43; Ap 2:7. Cf. Machado, Paulo, o visionário, p. 182-183.
87
Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p.1 ss.
88
Scott, 2 Corinthians, p. 223.
89
Machado, Paulo, o visionário, p. 173-174.
90
Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 3.

126
Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

Ma-ageh merkabah,91 seção 24, em que o Rabi Ismael diz que um


anjo o recomenda não se orgulhar após ter recebido uma revelação.
Esse tema do orgulho ligado à ascensão celestial também
aparece em lugares distantes. Eliade fala de uma lenda xamânica
caribenha na qual o acesso direto às realidades celestiais foi
proibido devido ao orgulho e rebeldia dos primeiros xamãs.92
Ao mesmo tempo é um assunto importante no contexto da
carta paulina em sua relação com os coríntios e, possivelmente,
com adversários.
Pode ser ainda que Segal tenha razão ao ver na narrativa a
possibilidade de comportamento paulino típico da pseudonímia,
comum na literatura apocalíptica do período, um procedimento
provavelmente ligado à proibição de discutir publicamente fenômenos
místicos.93 Dada a restrição, os protagonistas compartilhavam suas
experiências escondendo-se nas narrativas atrás de outros nomes,
especialmente os mais famosos, para dar crédito ao relato.

Visões e fraqueza, diversidade e oposição


A relação entre visões celestiais e fraqueza, adversidades e
oposição também tem longa tradição.
A fraqueza humana diante da glória de Deus fica patente,
visto que envolve extremo perigo e risco de morte (Ex 19:12-
13.21.23; 20:18; 33:20).
A experiência de fraqueza, perigo de morte, estupor e temor,
que também engloba o tema da oposição e adversidade é comum
em textos visionários.94 Ao ter a ascensão e visão, o profeta extático
se vê perecendo, caindo por terra. Em alguns casos, como nos

91
Esta é a transliteração de Morray-Jones.
92
Mircea Eliade. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 152-153.
93
Segal, Paul the Convert, p. 58-59.
94
Is 6, Ez 1, 1 En 14, 2 En 21, 4Ezra 7, Ap 1:17 (Machado, Paulo, o visionário, p. 175-177).

127
Espectadores do sagrado

textos fundantes de Isaías e Ezequiel e no Apocalipse de João, o


visionário enfrenta adversidade e perseguição.

Palavras indizíveis
A expressão no versículo 4 “palavras indizíveis” não se refere
a palavras impossíveis de serem ditas, como indicam algu-
mas versões.95 Eram coisas que não podiam ser pronunciadas
abertamente. Este parece ser o sentido para o que vem na sequência
do versículo: “as quais não é permitido a um homem falar”.
No mundo judaico, Jeremias cita Hagigah 2.1 e chama isso
de “tradição esotérica”, na qual os segredos divinos eram temas
de conversas privadas entre mestre e discípulo. Lembra o enigma
das parábolas (Mc 4:11 e paralelos) em que só aos iniciados é
permitido conhecer os mistérios do reino de Deus.96
Essas palavras podem indicar uma proibição divina típica na
mística judaica e na restrição geral na apocalíptica em descrever
certos aspectos da jornada celestial.97
Pode ser que nesse texto paulino a proibição seja temporária.98
De qualquer forma, para o momento o importante não era o

95
Neste caso, “palavras inexprimíveis” (Bíblia Tradução Ecumênica. Vários Tradutores.
São Paulo: Loyola, 1994) ou “inefáveis” (Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira
de Almeida. Edição Revista e Atualizada no Brasil. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1993 e Bíblia de Jerusalém) não é a melhor tradução. A NVI (Bíblia Sagrada
Nova Versão Internacional. Tradução da Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo:
Editora Vida, 2000) também traz “indizíveis”.
96
Jörg Jeremias. Jerusalém no Tempo de Jesus: Pesquisas de História Econômico-Social
no Período Neotestamentário. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 323.
97
Cf. Scott, 2 Corinthians, p.223. Em Dn 12:4 o visionário recebe ordem de guardar segredo
no momento até que chegue o tempo certo de revelá-lo. Em Ap 10:4 João é proibido
de escrever as palavras dos “sete trovões” e em 14:3 só os cento e quarenta e quatro mil
aprendem o novo cântico. No Testamento de Levi 8:19 há algo semelhante, embora não em
tom de proibição. Ali o visionário guarda segredo no seu coração e não conta a nenhum dos
homens na terra. Em certos casos, a ordem ou decisão de guardar segredo concorre com o
paradoxo de deixá-lo registrado no livro.
98
Rowland, The Open Heaven, p. 383.

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Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

sentido das palavras ouvidas no paraíso, mas o fato da ascensão


até lá e de tê-las ouvido.
É possível que aqui exista alguma relação com a glossolalia ou
língua dos anjos (1 Cor 13:1) que Paulo relaciona com o louvor
dirigido a Deus (1 Cor 14:15-16).99 É provável que exista alguma
relação com a intercessão do espírito “com gemidos inexprimíveis”
de Rm 8:26.100
Em tradições preservadas posteriormente, há uma passagem em
Hekhalot Zutarti101 em que o Rabi Akiba, numa ascensão celestial,
ouve palavras. Ele apresenta um resumo do que ouviu, que inclui
elementos teúrgicos semelhantes aos papiros mágicos,102 e uma
exortação, atribuída a Moisés, de que o importante não é o sentido
racional das palavras ouvidas, mas o louvor.103 O caso é que os mistérios
mais profundos de Deus não podem ser descritos por palavras, mas
apenas parcialmente conhecidos pela adoração mística.104

Espinho na carne como anjo de Satanás


Há tentativas de interpretar esse tal espinho na carne de Paulo
como doença, adversários humanos ou oponentes angélicos.105
Segundo Murphy-O’Connor, a maioria dos estudiosos considera
que Paulo tinha uma doença física ou um problema psíquico.106

99
Em At 2:11, em que o falar em línguas é falar em idioma conhecido, este fenômeno é
descrito como falar das grandezas de Deus. Talvez uma versão lucana missionária do
falar em línguas, mas que foi influenciada pela tradição da glossolalia paulina.
100
Ernst Käsemann. Commentary on Romans. Grand Rapids: Eerdmans, 1980, p. 240.
101
Peter Schäfer. Synopse zur Hekhalot-Literatur. In Zusammenarbeit mit Margarete
Schlüter und Hans Georg Von Mutius. Tübingen: Mohr, 1981, p.146-149 § 348-352.
102
Scholem, As grandes correntes, p. 75-79.
103
“Moisés disse a eles, a estes e aqueles, não batei com palavras de assim é dito:
abençoada a glória de JaHVeH desde o lugar dele” – tradução minha a partir do
hebraico in: Schäfer, Synopse zur Hekhalot-Literatur.
104
Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 8.
105
Furnish, II Corinthians, p. 547 ss.
106
Murphy-O’Connor, Paulo: biografia crítica, p. 325.

129
Espectadores do sagrado

Mas as evidências contextuais do misticismo judaico apontam


para uma interpretação mais literal. A tradição de opositores
angelicais, além de testemunhos bíblicos ( Jó 1:6-12; 2:1-8; Zc 3:1),
tem paralelos notáveis no misticismo judaico.107 Mesmo que Paulo
tenha uma versão própria do anjo opositor como espinho na carne
para não se orgulhar, a figura desse anjo na ascensão é típica do
misticismo da merkavah.
Esses tópicos aqui apresentados em conjunto parecem ser
de grande peso para a conclusão de que Paulo estava inserido
no misticismo judaico numa versão dos primeiros seguidores
de Jesus. Até porque essa era uma tradição de grande valor com
ensinamentos que constituíam grandes sistemas teológicos de
conteúdo estimado como inspiração divina108 e não especulações
periféricas como se costuma concluir.
Além disso, se for correta a argumentação de Rowland de que
a revelação de mistérios divinos por visões em ascensão celeste é
a principal característica da apocalíptica, então Paulo está nesse
núcleo.109 Esse texto paulino aproxima-se desse centro apocalíptico,
embora ele mesmo nunca tenha escrito um apocalipse.

1 Coríntios 2
A possessão por espírito divino é uma das características
principais do êxtase e viagens ao além em praticamente todas as
religiões.110 Ao mesmo tempo, numa abordagem dessa passagem
da primeira Carta aos Coríntios, Belleville constatou que a

107
O Rabi Akiba fala que em sua ascensão saíram “anjos da destruição para me destruir”.
Essa narrativa está em Schäfer, Synopse zur Hekhalot-Literatur p. 248 § 673. Algo
semelhante também é narrado em outros lugares (idem, p. 92-93 § 213-215; p. 96-99
§ 224-228; p. 114-117 § 258-259; p. 146 § 346; p. 172-173 § 407-410). Cf. também
Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 8 e Scott, op.cit. p. 228.
108
Jeremias, op.cit. p. 324.
109
Rowland, The Open Heaven, p. 70-72.
110
Ioan M. Lewis. Êxtase religioso. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 14-17 e 52-58.

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Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

centralidade do tema do espírito como agente revelacional tem


sido largamente negligenciada pelos estudiosos de Paulo.111
Nessa passagem, o apóstolo contrasta ação do espírito com a
sabedoria humana. Ele afirma que a pregação do seu evangelho
foi acompanhada de demonstração do poder do espírito (v.4).
A sabedoria de Deus, diz Paulo, é revelada de modo sobrenatural:
(1 Cor 2: 10-13).

10 a nós, porém, revelou Deus através do espírito; pois o


espírito sonda todas as coisas, até as profundezas de Deus.
11 pois quem dos homens sabe as coisas do homem senão o
espírito do homem que está nele? Assim também as coisas de
Deus ninguém conhece senão o espírito de Deus.
12 Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o
espírito que vem de Deus, para que conheçamos as coisas que
foram agraciadas a nós por Deus.
13 As coisas que também falamos, não com palavras ensinadas
de sabedoria humana, mas com [palavras] ensinadas do
espírito, com os espirituais julgando as coisas espirituais.

Grindheim nota que essa passagem, central para as crenças


de Paulo sobre a relação do espírito com a revelação recebida
por ele, faz uma ligação entre “espírito”, “revelação de mistérios”
e “sabedoria”.112 Um vínculo que também aparece na sabedoria
judaica (Sb 6:22-24; 7:21-22; Eclo 4:18) e notavelmente