Você está na página 1de 10

“CORPO E PSIQUISMO: A PULSÃO COMO CONCEITO POTENCIAL”

Julia Trevisan

Eixo: Corpo na teoría


Palavras-chave:​ metapsicologia, corpo, pulsão.

Resumo:

O presente texto discorre sobre a questão do corpo e da natureza na metapsicologia freudiana.

A partir de uma impressão inicial equivocada da autora, de que aprofundar-se no estudo desta

obra significaria afastar-se do universo do corporal e instintivo, assim como da natureza, o

trabalho revisa alguns escritos de Freud que falam destes temas, centrando-se particularmente

no aspecto limite do conceito de pulsão. Propondo ser, este, fundamental para a continuidade

da investigação psicanalítica contemporânea que vise a entender um pouco mais sobre a

integração psicossomática, salienta que, para Freud, o corpo é parte da mente. Finalmente,

traz algumas contribuições de André Green ao assunto, entre elas a proposição de rever toda a

metapsicologia sob o ângulo do limite, e de conferir ao conceito de pulsão um lugar de

importância central para a psicanálise, assim como Freud o fizera.

​“I’m not interested in how people move, but in what moves them”

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
(Pina Bausch)

Introdução

Ao iniciar a minha formação neste instituto, como aluna do primeiro ano de

seminários, tinha comigo a expectativa de aprofundar-me no belo universo da metapsicologia

freudiana. De fato, assim foi, e vem sendo, esta agradável experiência. Contudo, algo me

gratificou em particular. Eu pensava, e já agora me pergunto por que, encontrar uma

metapsicologia desligada do corpo e das leis da vida. Trazia na lembrança, por exemplo, as

críticas que ouvi ao “biologismo” de Freud. Talvez por minha formação médica, talvez por

uma curiosidade mais genérica sobre o que nos move, gostei de me deparar com conceitos e

teorias envolvendo o biológico, o corporal e o instintivo. Pretendo neste texto comentar

alguns destes aprendizados, particularmente aqueles encontrados no estudo do termo ​Trieb,

assim como trazer de que maneira algumas idéias de André Green enriqueceram minha

compreensão do tema.

Desenvolvimento

Foi a partir do corpo que Freud decolou para o universo da psicanálise. A beleza de

seus escritos mostra este movimento, do somático para o psíquico, da sexualidade do corpo


para a sexualidade da mente. Um de seus conceitos fundamentais, a pulsão, ou ​Trieb, reúne

em si estes dois sentidos. Por toda a obra, até mesmo nos últimos escritos, o corpo está

sempre presente. Por que razão então, teria eu imaginado que o estudo da metapsicologia me

distanciaria dele? Esta é uma pergunta que procuro compreender.

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
A partir de um entendimento de que cada teoria precisa ser respeitada em sua

especificidade, a fim de obter-se dela seu melhor alcance explicativo e que o aprofundamento

no estudo de uma ciência exige discriminá-la em um campo próprio, parecia-me necessário

aquele distanciamento.

Em seu Projeto para uma Psicologia Científica (1950b[1895]), Freud faz uma

tentativa de situar a psicanálise dentro de um modelo biológico, físico- químico. Esboça

então o vértice econômico de sua metapsicologia, descrevendo as Qn(s), quantidades de

energia interna. Estes postulados, que tratam os processos psíquicos como fenômenos de

natureza físico-química no interior dos circuitos neuronais, permeiam a totalidade dos

escritos técnicos do autor. As quantidades de energia, por exemplo, vêm a ser o complexo e

abrangente conceito de pulsão.

Freud instalou a psicanálise em um campo próprio de estudo. O genial pesquisador

desistiu de introduzir a psicologia no âmbito das ciências naturais. Em suas cartas a Fliess

diz: ​“Não estou (...)nem um pouco predisposto a deixar a psicologia no ar sem uma base

orgânica (...) mas preciso me conduzir como se somente o psicológico estivesse sob

consideração”. ​( Masson, 1985, p 326 in Sletvold)

A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900a) foi o corte epistemológico que fez nascer a

psicanálise (Green, 2005). O sonho se apresenta como o grande representante do

inconsciente, revelador de um estado vivo do corpo, orquestrando intimamente e com leis

próprias os eventos físicos e psíquicos. Em Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria

(Freud, 1905[1901]), a exuberância dos sintomas somáticos de Dora traz o corpo

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
protagonizando a cena psicanalítica e comunicando algo que, não se sabe como, transbordou

do psíquico.

Freud amplia o conceito de sexualidade. Diz ele: “O amor e a fome reúnem-se no seio

de uma mulher”. (Freud, 1900, p 234). Ao tratar da existência de fontes de estimulação

somática em zonas corporais específicas do desenvolvimento infantil, explica que no início

de nossas vidas, as motivações de autoconservação e sexuais coincidem.

Considerado por Freud como o mais importante e também o mais obscuro objeto da

pesquisa psicológica (1915, p 135), a pulsão pode ser um conceito chave para elucidar o

incômodo e forçoso dualismo corpo e mente. A pulsão, do alemão ​Trieb, é uma força que

nasce do corpo e quer satisfação, assim transmitindo-se para o psíquico. O estudo deste

conceito revela que, para o pai da psicanálise, corpo e cérebro fazem parte da mente. Embora

ele saliente que “​como pulsão, podemos entender, a princípio (​grifo meu)​, apenas o

representante psíquico de uma fonte endossomática de estímulo que flui

continuamente”(Freud, 1905d, p159), a pulsão não é pensável sem corpo. A fonte (do alemão

Quelle), ou seja, o soma, é por definição parte constituinte do ​Trieb (Green, 2005).

Em seus comentários introdutórios à edição brasileira das Obras Psicológicas de

Sigmund Freud, Hanns (2004) explica que ​Trieb, traduzido para o português por pulsão ou

instinto, é um termo comum da língua alemã, de ampla abrangência, com conotações ligadas

às forças da natureza, à biologia, aos instintos e desejos. ​Trieb permite a Freud (1915) propor

um sistema complexo e dinâmico, em que as pulsões dançam entre o corpo, a psique, o

consciente e o inconsciente. Trata-se de um termo com plasticidade para transpor o dualismo

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
mente e corpo. Hanns salienta: ​“(...) Trieb emana da natureza, precipita-se historicamente

nas espécies, ancora-se no somático e invade a vida psíquica arcaica como imperativo,(...)

no psiquismo humano e na esfera da linguagem, ele as ultrapassa e se ressignifica,

alterando-se profundamente, sem jamais desligar-se do corpo” (grifo meu). (Hanns, 2004, p

143)

Em O Eu e o Id (1923b), Freud salienta que as sensações e os sentimentos corporais

são a raiz do eu, embora pouco se conheça sobre esta relação. O inconsciente é muito mais do

que o que foi apenas recalcado. É neste trabalho que está a famosa citação “​o Eu é sobretudo

um Eu corporal”. (Freud, 1923, p38). Ele diz: ​“Mas, se por um lado a relação das

percepções externas com o Eu é bastante evidente, por outro a relação das percepções

internas com o Eu não o é(...). ( Freud, 1923, p35)

Mais adiante em sua obra (1940), ele explica que é como se todos os fenômenos

humanos fossem pulsionalmente constituídos, e em todos os eventos psíquicos se encontrasse

a erogeneidade do corpo. A citação é clara: “​O corpo inteiro é uma zona erógena” (p 164).

“A Pulsão é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico” (Freud

1905d, p159). André Green (1990), lembrando tradutores mais rigorosos, chama a atenção

para o significado de ​Grenzbegriff como conceito-limite e não conceito no limite. Para o

autor, isto é algo não muito compreensível, algo no “​limite do conceitualizável”, não sendo

uma linha mas todo um território, e o limite em si devendo ser considerado como um

conceito. Em suas Conferências Brasileiras, Green(1990) pergunta e responde: “​O que há de

novo na psicanálise? Freud”. Ele propõe rever toda a metapsicologia sob o ângulo do limite,

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
afirmando que esta noção é onipresente na obra de Freud. Para ele essa é “​a chave da

metapsicologia freudiana” (Green, 1999, p28). Com uma visão inovadora, mostra que há aí

um universo instigante a ser explorado, do qual a pulsão é um ótimo representante e diz que

na psicanalise contemporânea não se fala suficientemente da barreira somatopsiquica.

“​Parece ter ocorrido o desparecimento do corpo real na psicanálise”, diz ele. ​“A psicanalise

vem “sacrificando” a pulsão”. Green, alerta para um ​“reducionismo psicologizante” (2005 p

56) e diz que a discrição dos meios psicanalíticos perante os fenômenos que indicam a

importância das questões biológicas no entendimento do psiquismo é espantosa. Ele

questiona: ​“teriam sido eles afetados pelo retorno do recalcado?”(2005, p76).

No mesmo trabalho, Green (1990) traz as contribuições de Winnicott (1975) ​para

entendermos a noção de limite e de espaços. Este autor introduziu o psiquismo na categoria

do paradoxal, quando nos disse haver uma área intermediária, um campo transicional, um

espaço que não é nem dentro, nem fora, no qual falha a lógica aristotélica da não contradição,

suspende-se o julgamento e aceita-se a dúvida (Ogden,1995). Pois bem, em se tratando dos

conceitos que envolvem o corpo e o psiquismo, particularmente a pulsão, parece que o

paradoxo surge e sugere um território potencial (Ogden,1995), aberto ao pensamento criativo

da psicanálise. A pulsão transpõe, anima o “​território entre o anímico e o físico” de Freud

(1905 p159), sendo representante do que ainda temos por compreender da complexidade do

nosso universo de estudo, particularmente no que tange ao processo de integração

psicossomática.

Para dar conta das dúvidas neste campo, Green (2005) sugere uma teorização

complementar à metapsicologia, que seria uma biologia além da consciência, uma

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
“metabiologia”. “​A metabiologia teria por função esclarecer o impensável da psicologia, o

que a metapsicologia freudiana começara a fazer” (p 76). A conclusão deste autor neste

artigo merece transcrição literal: ​“(...)a razão principal que me incita a continuar defendendo

o conceito de pulsão é porque somente ele fala daquilo que nos impele a viver, nos retém à

vida, nos convida a explorar sua diversidade e põe em movimento nossa capacidade de

investir em outros campos, alargando nossos horizontes, para que neles descubramos aquilo

para o que nosso desejo é atraído”(Green, 2005 p 81).

Conclusão

Compreendo que a psicanálise tenha se distanciado do corpo e da biologia, a fim de

desenvolver-se como ciência autônoma e rica. Assim eu imaginei seriam os conteúdos

estudados em meu primeiro ano de seminários neste instituto. Contudo, seu conceito

fundamental, a pulsão, tem em si um elemento fecundo de estudo, quando fala da força que

nos move e a situa como sendo corpo e sendo mente, ao mesmo tempo, numa definição onde

falha a lógica e se apresenta o desconhecido. Ainda não conseguimos articular estes

conceitos, embora o psíquico não seja concebível sem o corporal. Indo além, somos vividos

por esta força (​Freud 1923, O eu e o id)​, que se movimenta através de nosso corpo, de nossa

mente e de nossas relações.

Graças a Freud, as células iniciais da psicanálise (perdoem-me também o biologismo

da metáfora) foram discriminadas, ganhando autonomia, vida própria e sofrendo sucessivas

transformações, com adição de novas partes ao longo do tempo, chegando a um organismo

amplo e complexo, talvez infinito. Talvez pela questão científica, talvez porque, como nos

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
coloca Green, quanto a este assunto ainda tenhamos o recalcado, ou ainda porque sempre há

desconforto na dúvida, eu tenha pensado daquela maneira. Felizmente me equivoquei. O

conceito central de pulsão confere ao corpo, e também à natureza, seu lugar de origem no

brotar da psicanálise. Corpo e mente na verdade são indissolúveis. De qualquer maneira,

parece que é mesmo assim, no terreno da dúvida, do paradoxo e do inapreensível, que temos

um lugar para a experiência criativa da ciência e da vida.

Referências Bibliográficas

Eizirik, CL. Perspectivas de integração do pensamento psiquiátrico. Rev Psiquiatr RS

1993; 15:11-5.

Freud, S. (1900). A literatura Científica que trata dos Problemas dos Sonhos. ESB, v.

4, p 59-75.

Freud, S. (1900). A psicologia dos processos oníricos. ESB, v. 5, p 541-650.

Freud, S (1905 [1901]). Fragmento da Análise de um Caso de Histeria. In: Um Caso

de Histeria, Três Ensaios sobre Sexualidade e outros trabalhos. ESB, v. 7, 15-116.

Freud, S (1905d). Três Ensaios sobre Sexualidade . ESB, v. 7, 117-229.

Freud, S (1915c). Pulsões e Destinos da Pulsão. In: Obras Psicológicas Completas de

Sigmund Freud: Escritos sobre a Psicologia do Insconsciente (vol 1). Rio de Janeiro: Imago

Ed, 2004, p 133-173.

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
Freud,S (1915e). O inconsciente. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund

Freud: Escritos sobre a Psicologia do Insconsciente (vol2). Rio de Janeiro:Imago Ed, 2006, p

13-74.

Freud, S (1918b). História de uma neurose infantil. ESB, v. 17, p 15-129.

Freud,S ( 1920g). Além do Princípio do Prazer. In: Obras Psicológicas Completas de

Sigmund Freud: Escritos sobre Psicologia do Inconsciente (vol 2) . Rio de Janeiro: Imago

Ed, 2006, p 123-98.

Freud, S (1923b). O Eu e o Id. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud:

Escritos sobre a Psicologia do Insconsciente (vol 3). Rio de Janeiro: Imago Ed, 2007, p

49-56.

Freud, S (1933). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise e outros

trabalhos. ESB, v.22, p 85-112.

Freud, S (1940). Esboço de Psicanálise. A teoria dos Instintos. ESB, v. 23, 161-64.

Freud, S (1950b[1895]). Projeto para uma Psicologia Científica. In: Publicações

Pré-psicanalíticas e Esboços Inéditos. ESB, v. 1, p 333-96.

Green, A (1990). 1ª Conferência: Conceituações e limites. In: Conferências

Brasileiras de André Green. Metapsicologia dos Limites. Rio de Janeiro: Imago Editora,

1990, p 11-32.

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia
Green, A (2005). O intrapsíquico e o intersubjetivo: pulsões e/ou relações de objeto.

Revista de Psicanálise da SPPA, 12(1): 51-83.

Hanns, LA. Comentários do editor brasileiro. In: Freud: Escritos sobre a Psicologia do

Insconsciente (vol 1). Rio de Janeiro: Imago Ed, 2004.

Machado, RN (2014). Instinto (Instinkt), pulsão (Trieb), objeto (Objekt): reflexões.

Revista de Psicanálise da SPPA, 21(3): 695-723.

Ogden, TH. Sobre o Espaço Potencial. In: Giovacchini, P.L. Táticas e técnicas

psicanalíticas. D W Winnicott. Artes Médicas. Porto Alegre, 1995.

Sletvold, J (2015). O ego e o id revisitado: Freud e Damásio sobre o ego/self corporal.

Livro Anual de Psicanálise, XXIX, 297-310.

Trevisan, J (2004). Psicoterapia psicanalítica e depressão de difícil tratamento: à

procura de um modelo integrador. Rev Psiquiatr RS; 26(3): 319-28.

Winnicott, DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1975

Organiza
Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016
Cartagena, Colombia

Você também pode gostar