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JOÃO CARLOS LINO GOMtíS

MAQUIAVEL E A MODERNA CONCEPÇÃO DO POLÍTICO

Dissertação apresentada ao Curso


lie Mestrado em Filosofia da Facul-
dade de Filosofia e Ciências Huma-
nas da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre
em Filosofia.

.7
v"

Belo llovíiionte

CULDADE DE FILOSOFIA E ClPJICIAS HUMANAS DA UFMS.


JüAü CARLOS LINO GOMES

MAQUIAVEL E A MODERNA CONCEPÇÃO DO POLÍTICO

Ui 3 tse i't U'^ao api'e isentada a banca examinadora aonúbituC-

da p e loL5 pvo fo a nove s :

^Í4.{itc-
Fi'of.

Prof.

Curso de Mestrado em Filosofia da Faculdade de Filoso-

fia e Ciências Humanas da UFMG.

Belo Horizonte,
à P í-ü fa ís ij u 1-a l>ônía Viaíjuj,, cuju
carinho o atan^'ão p ar, a Ib í Li c a i-atn
meu caminho nii F i Io r. o fi a .

f\o V vo fe i) ü o 1' lluijo Ama)'aL, pe La lú


cida e segura orientação dec, te
trabaLho

Para Ondina, com especiaL carinho.


"Poui' aompveridve MaahiuVtj l, i l
fallait done pouiwíi' expliquei'
comment I'auteuv du Pi-ínce
etait aussi le yépublíaain
deu Diüoouví}".

Georgeü Mounin
SUMÁRIO

PÁG.

I INTRODUÇÃO Oò

CAPITULO 1 - ARISTÓTELES E A CONCEPÇÃO GREGA DA POLÍTICA 00

1.1. A cxpe i'i ctujia política (ji'ega e a cidade 00

1.2. St toa e política em Ari c,tó teles 13

1.2. A vida con temp I a t i Oa coma i de a I da j\! I i


cidade '60

CAPITULO 2 - A RENASCENÇA DE MAQUIAVEL E A DESTRUIÇÃO DO

COSMOS ARISTOTSLICO ib

2.1. A Renas aença e a ideia de na t u fe:: a . . . ci>

2.2. A Renas ce e a ideia de homem -il'

2. 2. /i Italia no Renas cimen to i iJ

2.1. 0 homem Maqniavel üü

CAPÍTULO 2 - MAQUIAVEL E A INSTAURAÇÃO POLÍTICA Ò1

2.1. A questão do podei' oi

2.2, Podei' e sociedade 67

2.2. O podei' como jogo 72

2.4. A vi i't ú e a foi'tun a 77

CAPÍTULO -1 - Ética, política e poder em maquiavel 82

4.1. o podei' e a natuveiiu humana 82

4.2. Ética e poli ti ca 80

4.2. A vaci onaliíia',ião da foi'^ra e a institui^


ção do Estado 07

CAPÍTULO S - MAQUIAVEL E A LIBERDADE 10 4

5.1. O povo e o desejo de libevdade 104

5.2, A república e a vealiza(^ão da liberda-


de 100

CONCLUSÃO II L,

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 117


INTRODUÇÃO

Não é incomuni começar um trabalho sobre Maquiava! mos-

trando a concepção negativa que se teve deste autor através da

historia. Sempre visto com desconfiança, Maquiavel foi alvo

de muitas criticas e preconceitos que prejudicaram uma leitura

mais imparcial de sua obra. Não e nosso objetivo nesta disser

tação polemizar com as várias interpretações existentes da obra

maquiaveliana. Pretendemos, sim, dar uma contribuição no sen-

tido de resgatar o que ha de importante em Maquiavel para se

pensar a nossa modernidade.

Nascido durante o Renascimento, na cidade de Florença,

este autor tem diante de si um mundo em transformaçao. O qua-

dro político europeu sofre mudatiças radicais e a Itália, ainda

não unificada, e alvo dos interesses de diversas nações. Ma-

quiavel ocupa o cargo de segundo secretário da embaixada de

Florença e viaja pela Europa em varias missões que Ifie possib_i_

1 i t am ver de perto como realmente funciona a |)o 1 T t i ca .

Mas a Renascença e uma época de transição. Como tal,

assistimos a partir dela o desmoronamento do universo feudal e

profundas modificações nas relações políticas. Esta época se

situa entre a Idade Média e a modernidade e sendo assim, o qua

dro de representações do universo renascentista é extremamente

instável. O pensamento que se radica nesta época expressa es-

ta instabilidade e Maquiavel é um genial intérprete deste tem-

po. Em suas reflexões podemos ver com clareza a negação do

ideal clássico da política mas, ao mesmo tempo, temos que fa-

zer um esforço para apreender idéias como as de Estado, socie-

dade, poder, etc., que estão presentes em sua obra mas não de

uma forma sistemática, clara.

Ao lermos Maquiavel podemos perceber as contradições

da época em que ele viveu. ^poca esta que tenta se libertar


dos laços do feudalismo e constituir-se como um mundo novo on-

de se vê o surgimento do Estado moderno centralizando o poder

e fundando a prõpria vida humana associada. Macjuiavel assiste

a formação deste Estado e se preocu()a com a Itália desunida que

serve de palco para acirradas lutas políticas. Seus textos r£

fletem esta preocupação desde suas reflexões sobre a necessid^

de de um exército nacional ate a exigência de um príncipe que

tenha um braço forte e possibilite a formação de um Estado ita

lia no. Desta forma, vemos que o pano de fundo sobre o qual se

elabora o pensamento maquiaveliano se distingue radicalmente

daquele sobre o qual se ergue a reflexão clássica sobre a poH

tica. Maquiavel não faz das perguntas sobre o bom governo e a

boa sociedade o centro de suas reflexões. Sua preocupação ê

com a fundação do Estado. Na Europa da época, mesmo em esta-

dos como França e Inglaterra, ainda não temos um Estado no sen^

tido moderno do termo, constituindo-se como uma instância im-

pessoal, formada por funcionários, que não se cotifunde com a

pessoa do governante.

O pensamento maciuiaveliano enfrenta todas estas ques-

tões e não se reduz a um conjunto de conselhos [)er-versos dados

ao príncipe. A leitura do livro O Príncipe se não comparada

com a dos Comentários... (Discorsi) pode efetivamente prejudi-

car uma interpretação menos apaixonada da obra do florentino.

Tentaremos, no decorrer dessa dissertação, mostrar como os dois

livros são importantes para uma correta compreensão de Maqui^

vel. Longe de ser um partidário da tirania, este autor apare-

ce como um defensor da liberdade e e nesta defesa que ele exi-

ge o braço forte do príncipe para constituir o Estado e a vida

em sociedade frente ao caos reinante na Itália de sua época.

Como veremos em nosso texto, este momento onde o pulso do prTn^

cipe ê necessário deve ser passageiro, jiois não se pode gover'-

nar o tempo todo com o uso de métodos tirânicos. Por outro Ia

do, não se pode prescindir do Estado para possibilitar a vida


8

em sociedade, pois os homens vivem em conflito e s5 o poder do

Estado impede que se destruam completamente.

Assim tentamos ler Maquiavel e contribuir para aclarar

algumas questões presentes em sua obra. Procuramos mostrar,

aLravés dos cinco capítulos que compõem esta dissertação, como

aparecem em nosso autor questões de fundamental importância

ra a moderna reflexão sobre a política. Mas, situamos Maquia

Ve1 no ponto de ruptura entre o pensamento clássico e o moder-

no. Desta forma, tivemos necessidade de mostrar como se pensa

va a política na Grécia antiga e centramos nossas reflexões em

Aristóteles, já que este filósofo se encontra no termo da cid£

de-est a do grega e é assimilado pelo pensamento medieval que se

rã questionado na Renascença. A política grega e o pensamento

aristotélico são portanto o conteúdo do nosso primeiro capítu-

lo. Jã no segundo capitulo, mostramos como se constitui o un_^

verso mental renascentista e qual o sentido da ruptura que e1e

opera com relação ao universo aristo té 1ico-medieva1. Também

neste capitulo situamos Maquiavel na Renascença. No terceiro

ca[)itiilo discutimos a importância da instauração da ordem polT

tic a para a constituição da sociedade e explicitamos qual o p^

pel do poder nesta constituição. No quarto capítulo discuti-

mos as relações entre a ética, a política e o poder mostrando

qual o conceito de natureza humana para Maquiavel e qual o ver^

dadeiro lugar da ética no que se refere aos assuntos políticos.

Finalmente, no quinto capitulo, refletimos sobre a questão da

liberdade para Maquiavel. Este capitulo se impôs na medida em

que a suposição com a qual trabalhamos durante toda a dissert^

ção é a de que Maquiavel não é um defensor da tirania e, sim,

da liberdade. Desta forma, fez-se necessário mostrar como o

problema da liberdade é relevante para compreendermos este au-

tor .
9

CAPÍTULO 1

ARISTÓTELES E A CONCEPÇÃO GREGA DA POLÍTICA

Este capitulo pretende apresentar a concepção aristot^

lica da política e sua articulação com a cultura grega. Desta

forma, estaremos preparando terreno para nossa investigação so

bre o pensamento político de Maquiavel e sua ruptura com a re-

flexão clássica sobre a política. Isto porque, tendo uma com-

preensão global das concepções de Aristóteles, será possível

mostrar como o pensamento maqu i a ve 1 i ano e filtio da ru[)tura que

a Renascença opera com relação aos ideais do pensamento aristo

télico-medieval.

1.1. A experiência política gvega e a cidade

Aristóteles elabora o seu sistema filosófico de dentro

do império macedõnio. Esta referência é importante, pois o te

ma de que iremos tratar, a sua filosofia política, esta perpa^

Sòdo pela tensão vivida por um pensador cjue tenta refletir so

bre uma estrutura po111ico-institucion a 1 que está em seu oca-

so: a polis grega. Não é difícil compreendermos este quadro

onde a filosofia tenta resgatar, ao nível da consciência, um

universo que se esboroa. Esta é a importância do esforço ari^

totélico: conceptual i zar, deixando uma Iterança para o pensamen

to político do ocidente, a experiência vivida pela cidade-est^

do grega. E importante frisar neste ponto que, quando falamos

da experiência política grega, temos em vista principalmente a

cidade de Atenas e sua experiência democrática.

Assim, Aristóteles nos diz na Política que a cidade

tem precedência sobre a família e sobre cada um dos cidadãos in


dividualmente\ Ora, cabe entender o que o pensador esta di-

zendo. Diferentemente dos modernos, que irão compreender o

tado como algo que está separado da sociedade e sobre esta le-

gifera, a concepção grega via na polls o único lugar onde a ]j_

berdade podia existir. Não se pensava num Estado que garanti^

se a liberdade dos homens em sociedade, restringindo as ações


2 -
destes homens consideradas nocivas a comunidade . A polis, ao

contrário, se constituiu na medida em que era geradora de li-

berdade e, como vai querer Aristóteles, de bem estar, de feli-

cidade. Tratava-se não de cercear certas ações consideradas

nocivas, mas de possibilitar a pratica de ações justas.

Quando os gregos pensavam a polis, isto se dava nos qu£

dros da convicção de que esta era a rei)rüdução humana da ordem

do cosmos. E por isto que Aristóteles nos dirã, numa (massagem

da Política, que a cidade é uma criação da natureza'. üesta

forma, embora a formação da cidade seja obra dos homens, esta

construção obedece ã necessidade radical de dar ao liomem um

lugar na ordem do mundo. Tal lugar é onde o liomem se recoftlte-

ce como humano e, para os gregos, o I) uma no por excelência é o

cidadão em pleno exercício de suas funções políticas.

Anteriormente ao advento da polls, a Grécia possuiu ou^

tras formações urbanas. Não é o caso de tema tizã-1 as aqui. Só

é importante lembrar o caráter do poder político da última for

mação urbana que antecedeu a polis. Nesta formação, o |)oder

político se encontra ligado ã figura de um soberano com pode-

res divinos, o ánax, em torno do qual a comunidade se consti-

' ARISTÓTELES, 1985. Livro 1, Cap. I, 1253a.

2 - - -
Sobre a liberdade na Grécia democrática Helio Jaguaribe es-
creve: "Numa demoavaoia aomo a grega, fundada na noção de ci-
dadania, a libevdade é, ao meamo tempo, wi atvíbuto desta e um
requiíiito para aeu exevcxoio. Tem^ac liberdade na polis, por
se pertencei' a ela e ae efítar consagrado ao r.eu bem. ê um,a li
berdade ativa, participatória e pública". JAGUAKIBE, 19&l7
P. h .
11

tuTa. O próprio aproveitamento do espaço urbano estava ligado

ã figura deste soberano, sendo que as construções ficavam agru

padas em torno do palácio do rei. Jean Pierre Vernant, ao fa-

lar do fim deste período na Grécia, diz:

" Dc L> apa fOí-i i dü o ánax pc íu oivLu.i^: de un:


podti)' maio que humano, uni ficava c oi\L:naoa Oí:
divei'SOij c iementüt! do i-eino, novoa problcman
aurjcm: aomo a ordem pode naaacf do conflito
entre grupos rivaiti, do choque das pre i-roja ti-
vas e dat; funções opostas? Como uma oida cot-.um
pode apoiar-se em elementos di scoi'dati te s ? Ou -
pai'a retomar a própria fórmula dos órficos
como, no plano social o pode sair do múlt'^
pio e o múltiplo do uno?" .

Ou seja, as mudanças que se operaram ao nível da estrutura po-

iTtica, nesta fase da Grécia, provocaram uma ruptura na malha

simbólica onde se inscreviam as represen tações que os gregos

desta época tinham de si mesmo. Como deixou claro Vernant, a

sociedade grega começou a se perguntar sobre seus fundamentos,

sobre suas razões de ser. Uma certa imagem da comunidade, con^

tituTda em torno do poder soberano e tendo sua unidade garantj_

da por forças divinas, se rompe.

E neste quadro que temos a formação da polis. A comu-

nidade, que era constituída em torno do palácio real, dá lugar

ã cidade cujo lugar central é a ágora, a [iraça pública onde os

homens agem através do discurso e elaboram leis que, em suaun|

versai idade, tentam dar conta do espaço comum. Jean Pierre Vej^

nant nos diz que

"o aparecimento da polia constitui, na histó-


ria do pensamen to greyo, um acontecimoi to dec£
aivo. Certamente, no plano intelectual como
no domínio das instituições, só no fim alcança
i'a todas as suas conseqüênciasj a polis conhe-
cerá etapas mCil tiplas e formas variadas. Fn-
tx'C tan to, de s de s e u a d veyito , que se p o d e si-
tuar entre os séculos VI TI e VTI, marca um co-
meço, uma verdadeira invenção; por ela, a vida
social e as ralações entre os homens tomam uma
forma nova, cuja orig '^nal idade será plenamente
sen ti da pelos gregos " .

^ VERNANT, I9GI . P. 31 .

^ I b i d e in , p. 3^ •
1 2

Ê um novo universo espiritual que se organiza. Nele ,

os homens se inserem na ordem do cosmos por sua atividade nes-

te microcosmos que e a cidade. Muito longe de nossas modernas

sociedades políticas, onde hã uma nítida separação entre Esta-

do e Sociedade, Sociedade Política e Sociedade Civil, para os

gregos, viver em sociedade era participar dos negócios poli ti-

cos da cidade. O homem grego conseguia sua autonomia, esta

possibilidade de ser regido por sua própria lei, na medida em

que, se entregando ã prática poHtica, participava da elabora-

ção das leis da cidade. Esta pratica sÓ era possTvel entre

iguais. A vida entre desiguais, t'^ra os gregos, só era possT-

vel no restrito espaço do lar, onde o senhor reinava sobre a

família na qual estavam incluídos os escravos. Isto porc^ue o

lar fazia parte da esfera privada em contraposição ã agora que

representava a esfera pública.

A autotiomia dos homens, de c|ue falamos, era um reflexo

da autonomia da cidade. Esta possibilidade de gerar suas pró-

prias leis, ao mesmo tempo em que constituiu a polis, de certa

forma marcou seu fracasso. Isto porque as cidades, quando tein

tam se unir para enfrentar o inimigo macedônio, viram-se feri-

das naquilo que constituTa o seu ser: a sua auto-suficiêficia.

Esta, c|ue se produzia a partir de uma prática polTtica, iria

informar um horizonte mental onde foi possTvel o surgimento e

desenvolvimento do que se chamou o "(jcnio gvecjo". Esta práti-

ca polTtica se ergue sobre pelo menos três pilares: a importãn

cia da palavra na constituição da vida polTtica, a referência

ao espaço pijblico como o lugar de realização da vida social e

a idéia de igualdade entre cidadãos .

No caso da palavra, ê bom frisar a importância da mu-

dança de seu estatuto para o desenvolvimento da idéia de lei

na Grécia. Nos tempos em que reinava o soberano, com poderes

^ VERNANT, 19^31. Pp. 3'í-')7.


1 3

sobrenaturais, sua palavra tinha um sentido ritualTstico, car-

regando verdades que tinham um valor em si mesmas, não carece^

do de fundamentação. Como nos diz Vernant, embora a palavra na

polis possa, num primeiro momento, ter este seu antigo uso, ela

significa uma outra coisa. Na polis

"u iJuLuoi'a nao c inui-i.; o tarino i-ilitul, a fórinu-


la Juúta, maú o debata aO)i ti'adi tá , a diaaui.;
são, a cwgumentação. Supõe um píiblíco ao qual
ela iie dirige como a um juiz aue decide em úl-
tima inu tãncia, de mão a etujuidas, entfc o a doi a
pai'ti doa que Uie sao apveaen tados;; Ú er-Lsa ea-
colfta puramen t-e humana que mede a J'oi-^-a de per
ísuaruio ve v>pe c ti va dor, doia di acuvr.oo ^ ar, í.) e j u~
1'ando a vitai'ia de um dor, oi'adorer, roli-e r,eu
advevLiái'io" .

Este uso da palavra s5 é possível relacionado com as

outras duas bases da ex[)eriência política grega que apontamos

aqui: a sua utilização na esfera pública e a igualdade reinan-

te nesta esfera. l no espaço público que a [lersuação pela pa-

lavra irã funcionar pois, entre iguais, como acontecia na ago-

ra, não é possível um poder fundado na autoridade, no domínio,

mas, sim, na argumentação e, desta forma, a política exige o

logos enquanto linguagem e reflexão. Vê-se, então, c|ue o uso

da palavra constitui-se numa reviravolta no quadro mental dos

gregos.

Mas se a palavra produz toda esta mudança na cultura

grega, é a escrita c]ue sera fundamental para o desenvolvimento

desta. Vernant coloca que se a palavra se torna instrumento

da vida política,

"e a escrita que vai fornecer-, no plano pro-


priamente intelectual^ o meio de uma cultura
comum e permitir uma completa divulga(,!ao de co
níiecLmentoa previamente reservados ou interdi-
tos " .

Outro fato importante produzido pela escrita foi a possibilida

de de se redigirem as leis. Isto, segundo Vernant, deu as leis

um caráter de permanência^. Tornando-se escritas, as leis ga-

^ VERNANT , I S3 I . Pp. 3'<-35 .

^ Ibidem, p. 36.
1 4

nham com mais força o espaço da cidade, na medida em que não

vêm de fora da comunidade, reivindicando uma autoridade divi-

na, transcendentes, mas são produzidas pelo debate na agora.

Neste ponto devemos situar algo importante. Quando a

lei nasce do consenso e da discussão, deixando de ser algo di-

vino, torna-se possível pensar a polis, não simplesmente como

uma extensão de terras ocupadas por pessoas, mas sim como uma

comunidade de homens que se reconhecem num mesmo conjunto de

valores. k palavra, que como escrita permito a permanência

das leis, ê em si mesma, no momento em que ganha o espaço pu-

blico, a produtora da experiência política. O cidadão grego

sente-se membro da comunidade na medida em que se inscreve nes

ta pela universalidade do logos. Henrique Cláudio de Lima Vax,

ao comentar a constituição da existência política pela palavra

nos diz:

"iv, no du lÓgOB como dd


ííomiDii aui^-ao , ooino csLi-uLui-a de i n tt.'rpi'd c
de expve isüão , qua a pai> ti a uJ avi dada do indiví-
duo e Htiíjada tia ai>c r tufii pafa o univci-ijul quc^
ti ouanie )i t o í;ob}je o bem ü o mal, o Jul; to a o
i n Ju ü to, e ta . " .

Lima Vaz continua mostrando que o cidadão inscrito na comunid^

de política é o indivíduo singular (jue teve sua particularida-

de (enquanto, como homem individual, ele portava o logos) nega

da na passagem pela universalidade objetiva "do lógoa tiue se

exprime, pox' cua vau, numa dialética formal- de va l oi-ar.: o bem

e o mal, a justiça e a injuotiça, etc. .

Pelo que vimos, então, a cidade grega não pode ser pe£

sada apenas em seus aspectos urbano-geogrãficos. Ela é condi-

ção de possibilidade dos homens se reconhecerem enquanto cida-

dãos pela mediação dos valores que a cidade encarna. A rela-

ção entre a ordem de valores e sua efetivação na história e

® VAZ, 197tJ. P. 38.


1 5

sempre tensa, sendo que a radicalização desta tensão produz,

de certa forma, a reflexão ao nível da filosofia política. Não

é acidental o fato de que os dois maiores pensadores da Grécia

antiga irão elaborar suas teorias políticas no momento da dec^

dência da polis. Platão morreu dez anos antes da batalha de

Queronéia, onde Felipe da Macedonia obtém a vitória sobre os

gregos. Aristóteles, como jã foi dito no inicio deste capitu-

lo, reflete sobre a polis de dentro do império invasor. Ü o

próprio Aristóteles que irã apreender de forma magnífica o que

dissemos sobre a cidade etiquanto comunidade ética, etiquanto um

lugar onde os homens se reconhecem mediados por um conjunto de

valores. No primeiro parágrafo do livro 1 da Política, o pen-

sador nos diz:

"Vtjniois íjue toda cidade c lona eúpccíe dd aoir.uni^


dade, e toda üoinunidadc forma com viataa a
algum bem, pois todas as ações da todos os ho-
mois sao praticadas com vistas ao qm lhes pa-
reça um bem; se todas as comun í dadu s visam a
algum bem, é evidoite que a mais importante de
todas elas e que inclui todas as outras tem
m a i a i'lue toda s e s te o b j e t i v o e v i sa a o a. a i s im
portante de todos os bens- ela se chama cidade
e e a comunidade política" .

Pelo que expusemos até então, é possível notar que um

dos elementos mais importantes para se compreender a experiêrt-

cia política grega e a noção de cidadania. Ser cidadão, neste

momento da Grécia antiga, e encarnar os valores da cidade. C

ser justamente este sujeito onde o logos universal dos valores

se realiza. Um dos direitos (e também um dos devores) funda-

mentais do cidadão é o de opinar sobre o destino da cidade. Se

gundo Hélio Jaguaribe, esta característica do conceito de cid^

dania faz-nos compreender que, "em sentido lato, todas as cida

des gregas fovam tendenaialmente democráticas"^^. O que modi-

^ ARISTÓTELES, ISBS. livro 1, Cap. 1, 1252a.

'^ JAGUARIBE , 1 D8 1 . P. 3
16

ficará é a maneira pela qual os cidadãos participarão dos negõ

cios públicos^^ A medida para esta participação irã se modi-

ficar caso se trate de uma cidade democrática, aristocrãtica

ou monárquica. Não é o caso aqui de tematizarmos esta partic_^

pação em cada uma destas formas de governo. O importante [)ara

nos é que fique claro o caráter participativo da cidadania gr£

ga, que 5 possível, cremos pela não-se[)aração entre Estado e

Sociedade civil que já apontamos an teriormente.

Este caráter da cidadania é trabalhado pela filosofia

política grega. Para Aristóteles, por exemplo, a polis, que

tem o seu fundamento ultimo na natureza, so jjode ser mantida

pela prática política dos homens. A lei da cidade, que 6 obra

liumana, tenta reproduzir a ordem que impera na natureza. Des-

ta forma, mesmo sem pertencer ao registro da Physis, a lei

(nÕmos) não 5 fruto do puro arbítrio. O debate em torno das

leis, em praça pública, s5 e possível na medida eii) que a nece^

sidade destas, tal como a cidade, está inscrita na natureza.

Assim, é a prática política que cria a [possibilidade da vida

fe1 i z .

Mas a experiência política para os gregos so é possí-

vel entre iguais. E, desta forma, temos que discutir um pouco

a idéia de igualdade na polis. Esta idéia está presente desde

o inicio do nosso capitulo e isto mostra sua importância para

se pensar a política grega. Sobre a igualdade entre os gregos

Jean Pierre Vernant escreve:

"Apetiat' da tudo o que ot) opõe no com-i-eto da


vida tioaial, oü aidadaos ue aoncebcm, uo plano
politiaOy como unidades pevmutãveia no inte-
viov de um sistema cuja lei c o equilihvio, cu
ja }iovma c a igualdade. Essa imagem do mundo
humano enoontx'ava no século VI sua exp res são
govosa num conceito^ o de iaonomia: igual par-
ticipação de todos os cidadãos yio exercício do
poder. MaSj antes de adquii'ir este valor pie-
nam.ente democrático e de itir.pí i-ar, no plano
institucional, reformas como as de Clísienes,
o ideal de ieonomia pôde traduíyii' ou prol ongar

' ^ JAGUARIBE, 1981 . P. 3.


1 7

aspirações aornun i tai'ias que rcmantatn tr.uLto maij


alto, até as origens da polia"

Este ideal de igualdade existia, 5 bom lembrar, mesmo

com o impedimento de algum grupo social participar dele. A

igualdade, no caso, sÕ existia entre ac|ueles que exerciam o

poder. Mas o importante para nos aqui é mostrar como este ideal

compôs um quadro mental que possibilitou uma certa auto-repre-

sentação que os gregos fizeram de si. Temos tentado mostrar

até agora como esta representação se constituiu. Ao fazermos

isto devemos ressalvar que esta imagem do mundo dos gregos cons

tituiu-se em meio a muitas contradições. Uma das maiores foi

a (jue existia entre a universalidade da cultura, na qual as cj_

dades que compunham a Grécia se reconheciam, e a autonomia que

dava uni conjunto de características pró (irias Hs diversas cida-

des. üe certa maneira, esta contradição impediu a união da

Grécia contra os inimigos externos e dificultou a elaboraçao

de uma real política de auxTlio entre as cidades^^.

Somente diante do caos a Grécia tentou a união atra-

vés das ligas e confederações. Mas neste momento a contradi-

ção que apontamos aparece com mais força. Como, unindo as ci-

dades em torno de interesses comuns, resguardã- 1 as em sua aut£

nomia? A impossibilidade da realização deste ideal somente de

monstrava uma coisa: a polls, como formação histórica concre-

ta, estava no fim. Um novo ideal estava no ar: o cosmopoli-

tismo, impérios unificados sob um mesmo comando. Este ideal

serã iniciado por Felipe da Macedonia e concretizado por seu

filho Alexandre.

Mas a unidade que os gregos almejaram, no momento de

maior crise da cidade, sõ foi alcançada quando a Grécia se viu

submetida ao domínio macedônio. £ Gustave Glotz que tios diz:

VERNANT, 1981. P. kl.

'^ JAGUAR I BE, 19G1 . Pp. 6-11


1 8

"A oitoi'ia de Felipe cm Quevoneia e a fovmaçao


da liga pan-he leniaa mavcam wna epoca na hi ato^
ria do mundo: aairCnalam a data pveaiaa de um
grande acontecimento, a Daher, o fim da cidade
grega. Era^ sem dúvida, uma moi'te de cjue üe
viam havia muito tempo ot> p re nuncri or,, por aau-
aa dou sintomas da dificuldade de viver, e,
aliás, >iao foi assim uma morte tao completa a
ponto de impedir (jue sobrevivessem no i-egime
novo algumas ins ti í ui í,íoe s seculaí-es. !-!as foi
desde 'á'68 que as cidades gr^'gas deixa rai-i de
ser verdade i ramen t e livres, e que toda Grécia
se tornou, pela primeira sim.pl es depende)^
cia de um pais estrangeiro"

O período no qual a Grécia, submetida pela Macedonia,

espalha sua cultura é conhecido como lielenismo. Nele, poste-

riormente a Aristóteles, irão surgir novas formas de pensamen-

to que irão se relacionar de uma maneira mais imediata com es-

ta experiência que a Grécia vive. Mas não é objetivo deste c^

pTtulo discutir estas filosofias. Tentamos ato aqui situar o

horizonte espiritual da polis para mostrar ciue é a partir dele

que as ínotivações do pensamento de Aristóteles se elaboram.

1.2. Rtioa e política em Aristóteles

Cabe agora pensar como se articula o pensamento deAris

tõteles no seio da cidade. Para isto é necessário não se es-

quecer que, ao refletir sobre uma determinada experiência, to-

do pensador encontra certos pressupostos que ao mesmo tempo em

que abrem seus horizontes, limitam seu universo. Tudo o que

falamos sobre a cidade compõe um vasto universo espiritual que

condicionou a reflexão aristotélica. Já dissemos anteriormen-

te que a experiência política grega se dava num quadro onde a

ordem que deveria reinar na polis era possibilitada pela ordem

que existia na natureza. O próprio conceito de natureza que

os gregos tinham, integrava a idéia de um todo ordenado, imut£

vel. Diferentemente da concepção moderna, em seu mecanicismo.

GLOTZ, 198 0. P. 313.


1 9

onde a natureza e vista como um mecanismo que deve ser opera-

do, Aristóteles vê a natureza como uma espécie de essência das

coisas.

E desta forma que se faz necessário compreender que t£

do este conjunto de concepções da cultura grega for id a um pano

de fundo que Manfredo A. Oliveira chamou de horizonte cosmocêni


1 [3
trico-objetal do pensamento clássico . Isto significa que,

neste horizonte, o tiomein se reconliece como tal na ordem objet_i_

va do cosmos. Assim como no campo de uma pesquisa sobre o mu£

do fTsico este tipo de pensamento estará presente, no terreno

da análise da experiência política os gregos também o tinham

como referencial. Quando os [pensadores gregos se perguntavam

sobre qual a melhor forma de governo, esta pergunta tentava

dar conta do melhor Estado onde as potencialidades do homem pjj

dessem ser realizadas. Ser um bom cidadão em uma boa cidade é

ter a possibilidade de encontrar sua humanidade enquanto port^

dor do éthos da comunidade. A pergunta sobre o melfior governo

subentende a que diz respeito a qual deve ser a vida melhor e

como se deve atingi-la. Não se trata de constituir um univer-

so político que venha a garantir os lio mens em seus assuntos

privados, pois, como já mostramos an teriormente, estes assun-

tos pertenciam ã esfera da família, da necessidade, enquanto a

cidade e o lugar da realização da liberdade.

Desta forma, as questões sobre a ética e a política e^

tiveram presentes com muita força na reflexão dos gregos. Mas,

embora elas venham desde antes de Platão e tenham um rico tra-

tamento neste filosofo, é em Aristóteles que teremos a sua mais

rigorosa elaboração. Ao longo de sua reflexão sobre a políti-

ca, este pensador espelha não sÕ os referenciais a partir dos

quais os gregos se pensavam, mas também possibilita a apreen-

' ^ OLIVEIKA, 1 985. p . 38.


20

são de algumas tensões vividas por eles. Ao nos introduzirmos

em seu pensamento político, de imediato nos o encontramos si-

tuando a ética e a política no campo do saber. O que nos gui^

rã a partir de agora, neste capTtu Io, não i a intenção de fa-

zer uma exposição sistemática da Ética a Nicômaco e da Políti-

ca. Pretendemos, sim, destacar os pontos destas obras onde

Aristóteles se mostra em sintonia com o liorizorite da cultura

grega.

Assim, segundo Aristóteles, na esfera da nossa vida

existe, entre as coisas que procuramos, uma que desejamos pelo

interesse que ela tem em si mesma. Tudo o mais deve ser dese-

jado em função dela. Esta coisa se coloca para a vida humana

como um fim almejado e Aristóteles a identifica com o bem. Ora,

é este bem que ja na Política o pensador coloca como o objeti-

vo da vida em sociedade e, desta maneira, cumpre ao filósofo

refletir sobre ele^^. Mas o bem como objeto de estudo deve

ser da competência de um conhecimento especifico e este, para

Aristóteles, é a política,

"poiii <3 cLa quü de Ld rinCna quuii; eu c-í^naiui' que


devam aej' eritudadao >ium Etítcido^ cjudii: ú7io ac>
((ue cada cidadão deva apfendai', c ate que pon-
to, e vemos que até a.'; faculdadec. tidaa em
maior apreço, como a eu tra te y i a, c^yeconomia e
a re tóvica, então v>ujeitOi> a ela"

Aristóteles divide as ciências em teóricas (contemplativas) e

prãticas (voltadas para a ação). Enquanto a Metafísica, a Fí-

sica etc., são de cunho teórico, a Política, a ttica e a Retó-

rica pertencem ao campo das ciências prãticas. Pela citação da

Ética acima, vemos que a política ocupa o primeiro plano com

relação ao conhecimento prático. t ela que estuda a experiên-

cia dos cidadãos na polis e, também, elabora diretrizes para

que este comportamento se dê dentro de certos princípios de

ARISTÓTELES, 1985. Livro I, Cap. 1, 1252a.

Idem, 1979- Livro I, Cap. 2, Iü9'ia - 109'tb.


21

et i ci dade.

A ação dos homens na polis visa uma vida meltior e, ne^

te caso, aquele conhecimento que mais os auxilia na busca des-

te fim é o mais nobre de todos. Mas a política enfrenta ump>"0

blema com relação ao seu objeto, [)ois este não é facilmente

apreenslvel. Para compreender o bem, que deve ser o fim alii)e-

jado pela política, Aristóteles não parte, como Platão, da

existência de uma idéia eterna e imutável de bem a partir da

qual pudessem ser identificados os bens particu1 ares. Ao con-

trário, ele parte desta particularidade dos bens concretos pa-

ra identificar as flutuações dos vários conceitos de bem. Sen^

do assim, com relação aos assuntos tratados pela ciência prãtji_

ca ,

"devemuís ao >i t en ta r-)io a ctn itidicai' a vci'dadc


aproximadamente e em linhar, gerais; e ao falai'
de aotuas (jue aao ve i-dadei i'aa apenaa cm nua
maCoí' pai'te e aom bane em premia saa da mcíuna
e npeaie j líS vaderemoíj tirar aona l uaSe ij da tru-J-
ma >iaturev,a"

Mas nem todos os homens farão bom proveito dos ensina-

mentos da política. S5 os que se pautarem pelo principio ra-


19-
cional poderão se apropriar deste conhecimento . Para Aristo

teles, esta apropriação é importante na medida em que a politi_

ca coloca questões acerca do dever-serdo homem e, assim, a ela

se incorpora a ética. Ora, a política encjuanto ética se per-

gunta, como já vimos, sobre qual é o fim da vida humana na ci-

dade e coloca este fim como sendo o bem. Resta agora saber

qual é este bem e como deve se realizar o esforço dos liomens

para melhor alcançá-lo. Este bem, para o qual a ação dos ho-

mens na polis deve se voltar, Aristóteles o identifica com a

felicidade (tradução aproximada da palavra grega eu da i mon i a ) .

Não é difícil aqui percebermos como o pensador conse-

ARISTÓTELES, l!379. Livro 1, Cap. 3.

' ^ Ibid em, 1 O 9 5d.


22

gue captar conceitualmente uma aspiração que, como já mostra-

mos neste capitulo, e fundamental na formação da polis grega,

ou seja, o estabelecimento da política sobre bases racionais.

Não é sem razão que Jean Pierre Vernant associa o nascimento


20
da filosofia com o da polis . Mas o que temos de identificar

aqui e o que Aristóteles faz ao nível da ética. Ele a estabe-

lece sobre fundamentos da razão. Esta se produz pelo discurso

e pela ação dos homens em praça pública. Para o pensador exis_

tem três tipos de vida: a dos gozos e prazeres, a i^oHtica e a

contemplativa. Somente nas duas últimas se pode viver a verda

deira felicidade. E importante colocar que Aristóteles nao vê

esta felicidade como um estado, mas, sim como un)a atividade

que torna o homem au to - s u f i c i eti t e . Esta a u to - su f i c i ê n c i a o

pensador a define "^omo ísendo aijuiLo em i; i. ricariu, toi-na a

vida rnaCis detjajáodl o cavdutc de nada". E continua; "£' catno

tal enteyidemoís a feliaCdade, con í; i íle randu-li , alem a

rnaiíi desejável de toduú an aoiisats, acrn conta-la como uin bem

entre outi'oti "21

Desta forma, a comunidade dos cidadãos produz o poder

político na medida em que postula um bem a ser alcançado e faz

da política um meio de atingi-lo. A questão da boa sociedade,

que tanto ira marcar o pensamento político clássico, esta lig^

da a esta necessidade de compreender a polis como o mellior lugar pa

ra a atualização das potencialidades humanas. Não e o poder

político que produz a felicidade, pelo contrário, é esta que

forma o cimento e o motivo da vida em comum. Este ponto ê im-

portante de ser ressaltado porque será um dos que marcarão a

20 - .
Vernant nos diz: "Advento da polia, nasaimeyito da filosofia'
entre as duas ordens dc fenômenos os vínculos são demasiado es_
treitos para que o pens amento racional não apareça j em suas
origenst solidário das estruturas sociais e mentais próprias
da cidade grega", Cf. VERNANT, Jean-Pierre. As origens
p. 3^.

ARISTÓTELES, 1S7J. Livro 1. Cap. 7, 10'J7b.


23

diferença da forma antiga de pensar o político para a forma mo

derna, onde o poder constitui a cidade como se a transcendes-

se. No caso da Grécia, e justamente esta transcendência que

não e possível. O poder e produzido pela atividade e esta se

constitui no exercício das virtudes que geram a vida feliz.

E por isto que Aristóteles escreve na Ética que:

"O homcni va vdadci I'ainentc poli lieu Luiubáin goza


a i'eputa^fão do haver eatudadu a lU vtudc acitua
de todciu aa coisas, potí-. que ele duceja fur.et-
corn que oa íseuü aoturidadão i' aejani bom; e ohe-
dien teti aa leitj. Teiiioi; uni exemplo diijao noc
l egt fj lado i'e ti dos are tan^jea e doa e a pa r tano i.'^ e
em qiiai isque }• ou^^ar, deníui eapeaie (fue voíjíwi ter
havido alhui'eii"

David Ross. ao comentar a Política, diz que a ausência de um

fim moral para o Estado, faz com que este se transforme numa

mera aliança e a lei numa convenção que não tem a força de fa-

zer os homens bons^^.

Pelo que vimos ate aqui, o fato de a cidade ter o seu

fundamento na natureza, não garante o seu bem estar. E neces-

sário que os homens ajam de forma a tornar isto possível. A

ação constitui justamente a praxis, que diferente da technê

(produção), não tem como finalidade produzir objetos que lhe

são externos, tendo um fim em si mesma. A esfera da ação ê a

da liberdade que se contrapõe ã necessidade que pertence ã es-

fera da produção. Assim, Aristóteles apreende, de forma bem

precisa, o sentido que os gregos de sua época davam ã liberda-

de ao entendê-la como participativa.

Com isto podemos compreender melhor o que foi colocado

acima. O caráter natural da polis nos dã apenas a possibilid^

de da vida feliz. Aristóteles está atento a isto quando, na

Ética, nos fala que as virtudes morais não aparecem em nós por

natureza. Ele diz:

ARISTÓTELES, 1979. Livro 1, Cap. 13, I102d.

ROSS, 195 7. P. 361 .


24

"Não éj pois, poi' natui'e-^a, nem aon tvai-Cando a


natuveí^a que as virtudes se gevani ern uor,. Di-
ga-se, antes, que somos adaptados po)- natui'e::a
a vec^hê-las e nos to im amos pei'feitos pelo há-
bito .

Sõ se pode aprender a ser virtuoso na prática constante da vir

tude. Como ja falamos anteriormente, nem todos os homens da

cidade poderão tirar proveito do estudo das virtudes. 1'ara tal

é necessário que os lioinens se guiem pelo principio racional. A

medida do [tomem justo e o ato justo enquanto este esta em con-

cordância com a justa regra. Esta tenta estabelecer um meio-

termo entre coisas que secpõem. Aristóteles escreve que;

"Pox' mdio- te 1'mo no objeto entendo aquilo que e


eqüidistante de anibos os extremos, e que é um
só e o mesmo para todos os homens; e por meio-
termo 1'elatioo a nos, o (juc nao e nem det^iiisiii-
do nem deinas iadaine n t e - e i'ste nuo e um
so e o mesmo para todos"

E por causa desta necessidade de se atingir o meio-

termo praticando ações de acordo com a justa regra, que Aris-

tóteles coloca que o fato de os atos praticados de acordo com

as virtudes terem um determinado caráter não implica que, ne-

cessariamente, elas tenham sido jiraticadas de uma maneira jus-

ta ou tem perante. O pensador escreve:

"Também e mister que o agente ííü e>iaonire em


determi)iada condi^-ão ao pratica-Los: em primei^
ro lugar deve ter conhecimento do que fav,; em
segundo, deve escolher os atos, e escolhe-los
pox' si mesmos; em terceiro, sua ação P^'o_
cedei' de um caráter firme e imutável"

Assim, consciência e liberdade estão intimamente liga-

das na formação do quadro dentro do qual a virtude poderá ser

exercida. Ora, na polis, não havia melhor lugar para que tal

ocorresse do que a agora, o lugar público onde os iguais ti-

nham o seu espaço. A justiça, por exemplo, fundamental para

ARISTÓTELES, 1979. Livro II, Cap. 1, 1103a

25 Ibidem, livro II, Cap. 6, 1106a.

26
Ibidem, livro II, Cap. ^, 1 I 05a .
25

pensar o exercício do poder, s5 era possível no espaço público

da política. Tanto assim que, para Aristóteles, não se podia

ser injusto com um escravo já que este, como parte do senhor,

não tinha o beneficio da liberdade da qual usufruiam os cida-

dãos. Como não e possível que se cometa injustiça com uma par

te de si mesmo, a questão do justo e do injusto [)crtence rigo-


» 27
rosam ente ã esfera da sociedade ijolitica

E, assim, fundamental discutir a questão da justiça ao

se tentar compreender as relações entre Ótica e política em

Aristóteles. O filosofo coloca o justo como uma forma de med_i_

da das relações políticas. Ele identifica a existência de dois

tipos de justiça: a universal, onde o justo e aquilo que esta

conforme ã lei e a particular, onde o justo é o imparcial, o


28 -
igual . Mas e com esta segunda forma de justiça que Aristote^

les está preocupado. Ela nos permite falar dos casos |jarticu-

lares onde surge a (juestão do justo e do injusto.

Agora, se a justiça ê uma medida pela ciua 1 se regulam

as relações na cidade, através de quais elementos ela se realj^

za? Isto se dã na medida em que a justiça opera a proporciona

lidade ou a igualdade. São estes os dois elementos capazes de

atualizar a justiça entre os cidadãos. í por isso que Ar isto

teles irã identificar dois tipos de justiça (dentro da justiça

[)articular, bem entendido): a distributiva e a comutativa. No

primeiro, trata-se de distribuir os bens de acordo com o valor

que uma determinada pessoa possui numa certa hierarquia, cada

um recebendo de acordo com o seu mérito. No segundo tipo, to-

mam-se como iguais as partes envolvidas numa disputa e tenta-

se fazer uma intermediação entre quem ganhou e quem perdeu al-


29
go, de forma a impedir a desigualdade

ARISTÓTELES, 1979. Livro V, Cap. 6, 1 1 3 b.

ROSS, 1957. P. 29tí.

Aristóteles, 19 79. livro V, Cap. 2-5, 1130a - 113'to.


25

E! por isso que Aristóteles coloca a justiça como um

meio-termo. Na Ética ele escreve: "A juLíti^-a ó uma eapcai^

de meio- te t'tno t porem não no metsmo sentido que as outi-a.' oíi-tu-


30
des, e sim porque se veLaeiona aom os extremos" . Se pensar-

mos na experiência democrática grega, não nos será muito difí-

cil compreender o que o pensador diz. E bom lembrar aqui o m£

mento em que, neste capitulo, ao situarmos o liorizonte espiri-

tual da polis, mostrávamos apoiados em Jean-Pierre Vernant co-

mo a idéia de isonomia marcou a formação da cidade. Assim co-

mo numa cidade democrática teríamos a justiça operando iguali-

tária mente, numa cidade aristocrática a justiça seria distri-

buída proporcionalmente. O importante, para Aristóteles, e

que ela faça o pa[)el de mediadora, que e fundamental na gerên-

cia dos negócios da esfera política. Esta esfera deve ser fun^

dada sob boas leis que irão ordenar a vida dos cidadãos. E por

isto que quem deve governar na cidade ê o principio racional e


31-
nao um homem . A nao-adequaçao ao principio racional faz com

que as paixões dominem e estas são incompatíveis com um gover-

no justo.

Todo este esforço de Aristóteles [jara discutir a ques-

tão da justiça nos mostra como a vida política, para este pen-

sador, só é possível enquanto exercício da virtude e controle

das paixões. SÓ um homem que dominou suas paixões pode gover-

nar com justiça. Quando trabalharmos a concepção moderna do

político, em Maquiavel (nos capítulos que irão se seguir), ê

que poderemos medir toda a extensão das formulações aristotêlJ_

cas. A justiça, como medida da ação política, pressupõe uma

concepção de Estado completamente diferente da que temos na mo

ARISTÓTELES, 1979. Livro V, Cap. ü, 1133b.

Ver ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. São Paulo, Abril Cultu-


ral , 1979- Livro V, Ca^TT 1 1 3'(a . Ver, também, do mesmo au-
tor: Política. Brasília, Lditora Universidade de Brasília.
I 985. L i vro III, Cap. XI, 1 287b.
27

dernidade. Os cidadãos, na Grécia, não fazem um pacto com o

Estado que lhes garante a vida em troca de sua submissão. Vi-

ver para os gregos, no sentido pleno, sõ era possível num esp^

ço onde a dominação despõtica não existia. Tal posição estã

fundada nas idéias de autonomia e de isonomia ciue jã trabalha-

mos aqui.

£ por isto que o próprio sentido de exercício do poder,

em Aristóteles, ira diferenciar-se radicalmente da concepção

que os modernos têm. David Ross, no seu comentário ã Política

de Aristóteles, coloca que a concepção aristotélica de cidadão

estã bem distante da nossa. Não hã nela a idéia de um governo

representativo mas, sim, direto. O cidadão não utiliza sua pa

lavra simplesmente na eleição dos governantes, mas ele partic^

pa de tal forma que, por sua vez, ele também governa . Aqui

não hã distância entre o cidadão e o Estado que temos na mode£

nidade. O ideal da cosinópolis, que Alexandre da Macedonia le-

vará a efeito, não se encontra reproduzido na obra aristotéli-

ca. Tensões como as que aparecem nos textos de Aristóteles

(por exemplo: a discussão sobre se a escravidão é ou não por

natureza) refletem justamente a experiência do filósofo ao pe^

sar o sistema da pólis no momento de sua desagregação. Subja-

cente a sua reflexão estã sempre presente a pergunta sobro os

fundamentos da política. Para o pensador, a experiência dos

homens no mundo tem um fim e este, como vimos, e a felicidade.

Para atingi-la Õ necessário um Estado justo, formado de boas

leis e bons cidadãos.

Henrique Cláudio de Lima Vaz, comentando a articulação

entre ética e política em Aristóteles, diz:

"AúiíLm, longe de uai-" uma teohne a política, pa


i>a Ax'iti tóteleo, é eaacnaialwante urna práxia c
deve ser julgada aegundo oa oritêvioc de auto-
veali'^ação do Jiomem, do iseu sei'-am-vazão-dc-si-
meisrno (auton çyieka, au tá I'qiini a) , que a-, tão pr^

ROSS, 1957. P. 352.


2Q

sentes na pvòpvia estx'utuva da pfáxi s enquanto


agiv especificamente humano. Por conjeguiyitc,
ã unidade epistemolÓyiaa da 'filosofia pi-áti-
aa' corresponde a unidade antropo l ógiaa do s ci'
moral e do ser politico j manifestada
no finalismo do seu agir"

Ora, esta praxis em Aristóteles, para realizar o ser

moral do homem deve ser informada [)or aquilo que o filosofo de

nomina sabedoria pratica. Esta é uma disposição que permite a

um homem escolher de forma sabia o que õ bom. A sabedoria prã

tica opera neste campo de contingência que e o da ação liumana

e dá as diretrizes pelas quais os homens em sociedade devem se

pautar. Sobre isto Aristóteles escreve que:

"Oraj julga-se que 5 cunho cai'ac te r ' s cicu de


um homem dotado de sabedoria prática o poder
deliberar bem sobre o que e bom e convcnicn te
para ele^ nao sob um aspecto particular, como
por exemplo sobre as espécies de coisas ({ue
con tribuem para a saúde e o vigor, mas sobre
aquelas que contribuem para a vida boti em ae-
ral"^ .

A sabedoria pratica esta voltada para a ação fundada

num principio racional. Ao elaborar esta noção, Aristóteles

permite que nós venhamos a compreender melhor a ética como co-

nhecimento voltado para a ação. E de posse deste saber que os

legisladores podem fazer boas leis e os cidadãos cumpri-las co£

retamente. Acreditamos que se possa afirniar sem [)roblemas que

a sabedoria pratica e a atualização do principio racional no

homem. Isto porque ela é uma parte da razão que ilumina as

ações para que elas sejam boas.

Cremos ser interessante, aqui, reproduzirmos o que diz

Marcelo Perine sobre a sabedoria prática. O autor, a nosso

ver, consegue resumir muito bem o seu sentido na Ótica de Ari^

tÕteles. Assim, Perine escreve:

"A sabedoria é a consciência do dever. Ela é


a reta regra. Ora, o justo meio é o dever, C s_
to e, aquilo mesmo que ordena a reta regra co

VAZ, 1978. P.

ARISTÓTELES, 1979. Livro VI, Cap. 5, 11'tOa.


29

wo urn imperativo. Aqui está uma dais iãciaa aen_


tvais da ética de Aristóteles: a conj'ormidadecii
açao com a sua medida, a r'egra raciona L, c o
que faz dela um dever para nós. Assin,, a sab^
doi'ia nao é apenas uma regulação das nossas
ações^ mas exprime uma obrigação propriamente
dita. A sahedoria nao julga, ela decide; 7iao
conhece s ímple smente, faz. Ela c, portanto,
o princípio da deci são" ' .

Desta forma, o tioinem de ação na polis, o cidadão, de-

verá possuir esta sabedoria para o correto exercício da poHtJ^

ca. A sua capacidade de escolher o bem estará intimamente li-

gada com esta reta regra. Não deixa de ser interessante notar

que quando Aristóteles estabelece a divisão do conhecimento em

teórico e pratico, ele cria condições para que a razão possa

dar conta da experiência política imediata dos homens. Esta e>^

periência, em sua con cretude, não e acessível ã razão teórica,

pois esta trabalha com universais e aquela está radicada na

particularidade. A razão teórica pode especular sobre uma

idéia geral de bem e e justamente esta idéia que Aristóteles

critica. Sendo a felicidade uma atividade, é necessária uma

esfera do conhecimento liumano especifica para dar conta de sua

existência. Desta iiiatieira, esta esfera não pode ser puramente

especulativa e tem que levar em conta a variedade de bens que

encontramos na realidade.

E por isto que o pensador vê uma diferença entre a sa-

bedoria prática e filosófica. Ele diz que homens como Anaxágo

ras, Tales e outros, embora tenham possuído sabedoria filosófj^

ca, ignoravam o que llies era vantajoso. Mostraram, assim, não


36
possuir sabedoria prática . Esta sÓ é possível de ser exercj_

da sobre coisas para com as quais podemos utilizar nossa capa-

cidade de deliberação. Estas coisas não podem ser invariáveis

e têm que ter uma finalidade. Sobre objetos que não têm estas
36
características não se pode deliberar . Não basta, pois, co-

PERINE, 1982. P. 25.

ARISTÓTELES, 1979. Livro VI, Cap. 7. 1 Wt 1b.


30

nhecer quais devem ser as ações justas e as coisas boas. A s^

bedoria teórica pode ate nos dar o conceito destas coisas, mas

ela não garante que agiremos como um homem bom agiria diante d£

Ias. Somente o exercício da virtude garante aos homens que

eles se tornarão virtuosos.

1. 2. A vida contemplativa como ideal de felicidade

E importante compreender as relações entre as sabedo-

rias pratica e teórica porque é a partir dai que podemos apreen^

der o estatuto da vida contemplativa em Aristóteles. Para o

filósofo, a sabedoria teórica e superior a prática. Embora a

esfera teórica de nossa razão não possa realizar o fim ultimo

(o bem), ela o determina. Ao termos o fim determinado, pode

ayora a esfera prática ajudar-nos nas ações que nos levam a

realizá-lo. Mas Aristóteles, ao falar da sabedoria prática,

frisa c] u e

")iein i>üi> iatio do)ní>ía ela a íiabedoi-Ca j'i Lo.:ofi-


ca, Lato é, a parte i>upü i'iov da yiocca alma,
sim como a arte médica nao domina a saúde, pois
não se serve dela, mas fornece os meios de
dia i-la ; e J'a p luf s c i'i çõe s no seu interess^:, i>o_
rem nao a ela. Alem disso, sustentai' a sua su
premacia eqüivaleria a dii'.er (jue os deuses sao
governados pela arte pol t tica porque esta fai',
prescrições a respeito de todos os assuntos do
Es tado"

O motivo de a sabedoria teórica ser superior a prática

e justamente porque aquela nos faz participar do divino na me-

dida em que nos insere na vida contemplativa, que e digna dos

deuses. Ora, a vida destes deve ser a melhor e a que mais se

identifica com o bem. No entanto, como mortais, não nos iden-

tificamos de forma absoluta com a divindade. O que podemos f^

zer é exercitar nossa capacidade teórica que é, de certa forma,

a presença do divino em nós.

ARISTÓTELES, 197^. livro VI, Cap. 7, I 1') 1 b.


31

r interessante notar aqui, no que diz respeito ã ética

aristotélica, o entrelaçamento constante das esferas prática e

teórica. Ao mesmo tempo em que reflete sobre o bem, a virtude

etc., Aristóteles prescreve normas de bem agir para os homens

da pó lis. Sua ética é normativa e não trata somente de expli-

citar conceitos. Hoje faríamos uma distinção entre um código

moral para ser aplicado efetivamente e uma reflexão propriamen

te ética que trabalharia com a elucidação conceituai. lim Aris


~ ~ 38
toteles, tal divisão nao acontece

Esta discussão sobre as relações entre as saliedorias

prática e teórica, nos leva a uma reflexão sobre o lugar da

vida contemplativa em Aristóteles. Para o pensador, esta é o

ideal de felicidade que os homens devem atingir. C complexa ,

no filósofo, a relação entre a vida contemplativa e a sabedo-

ria prática. Se é claro c]ue esta nos auxilia a alcançar aque-

la, não é claro a relação das duas com a felicidade. John B.

Morrail coloca que esta ambigüidade se materializa no fato de

que de um lado temos a atividade política fundada na amizade,

na cooperação etc. Por outro lado a felicidade como um bem s^

premo só pode ser vivida pelos filósofos. Desta forma, coloca

Morrall, somos levados ã disposição de rebaixar a política, na

prática, a uma forma de controlar a perversidade dos irracio-


39
nais da cidade . Morrall ainda nos diz que tanto ArMstoteles

quanto Platão enfrentaram este problema porque pa r t i c i pa r am'Wíj

3 Q Como mostramos em nosso capítulo, Aristóteles coloca que o


objeto da ética ê de difícil apreensão dada a contingência que
reina na esfera das ações humanas. Desta forma, a ética não
pode elaborar proposições com o mesmo rigor da ciência. David
Ross discorda do pensador e diz que a contingência só interfe-
re na ética aplicada que nos diz o que fazer em determinadas
circunstâncias. A ética abstrata, segundo Ross, não seria af£
tada pela contingência já que sua função é a de explicitar con
ceitos dizendo"o que tstgnifiua 'ãsvex'' e poi' que JcvemoiJ fa:sei'
o que deitemos fazei'" (ROSS, W.D, Aristóteles. Buenos Aires,
Editorial S u da me r i c a n a , 1957. P. 2 70T"!
Discordamos desta posição de Ross, pois, como já dissemos
em nosso capítulo, a distinção entre uma ética que explicita os
conceitos e outra que elabora normas não nos parece existir em
Aristóteles.

MORRALL , 1981. P. 't 7 .


32

uma tensão comum pi'oduzida peLa incapacidade iji'cga dc encon-

tvai' a ísolução final do pi'ohlema í>usai tado pela fcla:,u2o entve


- . . . 40
o filósofo con tempi a ti 00 o a vida pratica da c.oc íedade"

O interessante deste problema é que, depois de falar-

mos tanto sobre a imi^ortãncia da atividade política para Aris-

tóteles, defrontamo-nos , ao final da ética, com o pensador co-

locando o filósofo como o mais feliz dos homens. Ora, como

conciliar esta atividade de felicidade da vida contemplativa

com a que se relaciona com o exercício da |)ontica na polis?

John florrall coloca que a conclusão a qual podemos ctiegar é

que Aristóteles situa a existência de três espécies de pessoas:

"1) o filòí'>ofo pui'o, ijue poí::)UL sophia (jahed^-


!• ia);
o) o humem pvalico esclarecido, que- possui
phronoeie (visão ititeviov pratica);
ó) a massa dos não-escl areei dos, (jue >iao pos-
suem nem uma coisa tiem outra, e que,
to, devem submeter-se a cuer'.,'ao da lei"

Mas estas colocações de Morrall não respondem ã nossa

pergunta formulada acima. Voltemos, então, a Aristóteles. Ele

nos diz que podem existir ações virtuosas que têm nobreza mas

que, por serem desejadas visando a um outro fim que não é elas

mesmas, não constituem a verdadeira felicidade. Esta só é at in

gida na vida contemplativa. O filosofo escreve:

"1'ortanto, se entre as a^^oes virtuosas, as de


índole militar ou política, se di stinijuem pela
tiobi'eza e pela grandeza, e estas não encerram
lazeres, visam a um fim diferente e nao sao de_
sejãveis por si mesmas, emjuanto a atividade
da razão, que é contemplativa, tanto parece ser
super ior e mais valiosa pela sua seri edade co-
mo nao visar a nenhum fim além de si mesma e
possuir o seu prazer próprio (o qual, por sua
vez, in tens i fi ca a atividade), e a auto-sufi -
ciência, os larezes, a isenção de fadiga (na mc_
d ida em que isso é possível ao homem), e todas
as demais qualidades que são atribuídas ao ho-
mem sumamente feliz sao, eviden teme nte, as tjue
ütí relacionam com essa atividade; segue-se que
essa sera a felicidade completa do homen, se

MORRALL , 1 98 1 . P. 't?

' ' Ibidem, p. 't 8 .


33

e Le tivei' uma exLs toiaia aompLeta quanto a dn-


vai^tão (poiís n>^xihutn doc> atvibutoc, da felicidade
a Í7iaowp Ic to "

Aristóteles também nos diz, quanto ao ideal de auto-S£

ficiência, que a vida contemplativa é a que mais nos proporei^

na a oportunidade de atituji-lo. Isto porque enquanto o homem

justo, o temperante e o corajoso precisam de uma pessoa para

com a qual eles possam exercer suas virtudes, o filósofo, mes-

mo estando sozinho, pode contemplar melhor a verdade e ser o


M -
mais auto-suficiente dos homens . So (jue nem o filosofo expe

rimenta a vida contemplativa perfeita. Esta só ó digna dos

deuses. Mas os homens, enquanto mortais, podem fazer um esfor

ço para participar dela. Isto se dá quando o tiomeii) faz uso da

sua parte (lue participa do divino e esta é a razao. E o cará-

ter divino da razão que faz com que ela comande as outras par-

tes da alma.

Por isto podemos entender que a vida política e moral

é a vida mellior para o homem enquanto ser mortal, finito. Mas

a felicidade perfeita não é acessível a todos e não l)asta vi-

ver a experiência política na cidade para atingi-la. O exerc_T

cio das virtudes morais é fundanierita 1 [)ara que os hotDens, con-

trolando as suas paixões, possam ascender ã vida co n t em [il ativa

Esta ascensão aproxima o homem do divino mas, e claro, não o

torna um deus.

Podemos perceber, então, que a vida política possibilj_

ta uma forma de felicidade secundária em face da vida contem-

plativa. Aristóteles escreve:

"Mdij, em gvíiu tiecuiidario, a vida de iiaoi'do aom


a outva eupéaie de vir'tude é feliz, poi'que as
atividadeú que coriaoi-dam com eL:ta aondizem com
a noi>sa aoiidição humana. Os atos cora;]osoc, e
justos, bem como outros atos virtuosos, nós os
praticamos em relação uns aos outros, ob se ri>an
do nossos respec tivos devores no tocante a coh_
tratos, serviços e toda sorte de ações, bem
sim como as paixões; e todas essas coisas parc_

ARISTÓTELES, 1979. Livro X, Cap. 7, 1177b.


34

aern aei> tipicamente Jiutnanaíj. Dii'-r>e-iu ate


que algumas delas provem do própr-io aoi'po e
que o aaváter o^ijtuoso se prende por r.uitos la
ç^os as paixões"

Existe, então, para Aristóteles, dois tipos de felici-

dade: uma ligada ã vida moral na polis e a outra ligada ã vi-

da contemplativa. O [)rimeiro tipo pertence ao campo da expe-

riência humana propriamente dita, sendo possibilitado pela prÃ

x1s política. O segundo tipo, ligado ã razão em seu exercício

teórico, ã contemplação, é uma forma especial de felicidade.

Aristóteles escreve que "u exaelênaia da ra::ão é unta eoisa à


43
parte" . Assim, mesmo que a felicidade da vida contemplativa

deva ser a mais desejada, a experiência moral e política na

polis nos possibilita o acesso ã vida feliz correspondente õ

nossa humana condição. O filósofo, enquanto homem, deve partj_

cipar desta felicidade. S5 que, enquanto filósofo, ele também

participa do divino por exercer aquela atividade c]ue ê digna

dos deuses: a atividade contemplativa.

Mas os homens comuns devem ter suas almas preparadas

para a vida moral através dos bons hábitos. A partir daí o

homem estará apto a absorver a educação que pretende leva-lo a

uma vida eticamente correta. Só que esta educação devera ser

garantida por leis qiie cubram desde a adolescência até a matu-


-.4 4 - -
ridade dos indivíduos . As boas leis, para Aristóteles, sao

aquelas capazes de fazer os homens melhores. F. daí que ele

conclui : "h', se é pelas leis que nos podemos tornai' bi.u:s , se-

guramente o que se empenha em melhorar os íiomc.ns, sejam estes


45
muitos ou poucos, deve ser aapa^ de legislar" . Assim, ao a^

soei ar governo, leis e educação, Aristóteles mostra mais uma

vez a sua concepção da experiência política como experiência

ética de homens que se reúnem numa comunidade visando a vida

mel hor.

ARISTÓTELES, 1979. Livro X, Cap. 8, 1178a.

Ibidem, Livro X, Cap. 9, 1179b - ll8Qa.

^ Ibidern, Livro X, Cap. 9, ll80b.


35

CAPÍTULO 'A

A RENASCENÇA DE MAQUIAVEL E A

DESTRUIÇÃO DO COSMOS ARISTOTÉLICO

Vimos no capitulo anterior o sentido que a política t_i_

nha na Grécia antiga. Utilizando as formulações de Aristóte-

les pudemos mostrar como os cjrecjos apreendiam, ao nível de

suas representações , sua experiência na polls. Po s t er i o r-iDen t e

ã queda das c i dades-es tado teremos toda ini)a trajetória no pen-

samento |)olitico do ocidente ate o momento que estudaremos a

partir de agora; a Renascença e o inicio dos teiDpos niúdernos.

E neste momento que se tem uma ruptura radical com as formas

anteriores de se pensar a polTtica, onde a questão acerca da

boa sociedade e do bom governo cede lugar para a problemática

do poder, de como consegui-lo e de como mantê-lo. Para situar

o pano de fundo desta problemática, trabalharemos neste capTt^

Io a mutação que a Renascença operou nas idéias de homen e de

natureza. Mostraremos em seguida como se constituía a Itália

durante o Renascimento e como Maquiavel, em Florença, foi in-

fluenciado pelas idéias de sua época.

2. 1. A Renascença e a idéia de natureza

Antes de trabalhar um autor como Maquiavel e necessa -

rio pensar melhor o corte que a Renascença opera no pensamento

ocidental, pois a ruptura com a antiga forma de pensar a polí-

tica está fundada numa ruptura maior que se dã na própria cos-

movisão da cultura ocidental. Em se tratando da Renascença it^

liana, poderemos perceber nela todo um movimento de dissolução

de certos paradigmas no pensamento e a abertura para novos ho-


36

rizontes conceituais. A própria experiência cotidiana dos lio-

mens renascentistas possibilita que uma nova concepção de mun-

do se elabore.

Ora, ao pensar a política de forma diferente, o tiomem

da Renascença tem como pano de fundo um outro universo. Para

os grecjos, como vimos no capitulo anterior, a ordem da cidade

está fundada na ordem da physis e a lei (nõmos) se constitui

numa dialética onde ao mesmo tempo em que se diferencia da

physis, pois é convenção e não natureza, só encontra sentido

na medida em que instaura a ordem da sociedade polTtica tendo

como parâmetro a ordem do cosmos.

Toda esta articulação esta presente na obra de Arist5

teles e este filosofo ira influenciar o ocidente por longos sé

culos. A coticepção aristotélica de cosmos contém a idéia de

um todo liierarquizado onde cada coisa [jossui o seu lugar na or

dent do mundo. Mesmo antes de ter acesso aos textos de Aristó-

teles, a Idade Média trazia consigo, adaptada a sua visão teo-

lõi^ica do mundo, a idéia grega de cosmos. A partir do momento

em (|ue os textos de Aristóteles voltaram ao ocidente, em fins

do século XII e durante o século XIII, tem-se uma forte apare-

lhagem conceituai para expressar a idéia de um m undo lii e r a r ci u ^

zado que a Idade Media possuTa. Alexandre Koyré nos diz que

o mundo aristotélico

"d um 'muiidü', uma natufcza, ou um ao>tjunio hÍJ


vavíiutzaão e bem oi'denado de na lure i:aíj, conjun^
to muito estável e muito fivnie e ((uc poscuL uma
exits t^naia pi-Spria; que a ponsui poi- ai pi-ó-
pi'io" .

Ora, é esta concepção de mundo que a Renascença ira

criticar e esta crTtica, a nosso ver, está intimamente ligada

com a mudança no estatuto da natureza para os renascentistas.

Segundo Collingwood, hã dois momentos na concepção renascenti^

ta da natureza: o primeiro é marcado por uma concepção organi-

' KOYRÉ, 1982. P. 35.


37

ca desta e o segundo por uma concepção mecânica. Os renascen

tistas estiveram muito mais próximos de Platão e de Pitãgoras

(por utilizarem o modelo matemático para pensar a realidade)

do que de Aristóteles. Mas no primeiro momento a matemática

convive com a visão em que tinha a natureza como possuidora de

uma alma, como um ser vivo. Collingwood escreve que

"aü fi Loíiüfíus na t'Ui'a l í íi l !■ aa íí do i-cauLo XV d


XVI ati'ihuvam a )iatnre::a ra.uJo c ooitido, atr.ov
Oiliu, pvazci' e v, o J'viíncn to , t,' c >iao)i t I'avuni na:-
jüí; faculdades c )n:^r,aii paixoec, ar. Ciiurao doj
pyoac^r.üú tiaíuvaia" "

Mas a tendência matemática, que esteve presente desde o inicio,

se impôs ao animismo reinante no conceito renascentista de na-

tureza e marcou com isto a passagem da concepção orgãfiica para

a concepção mecânica de natureza.

Mas é importante lembrar que mesmo a concepção orgâni-

ca diferia da maneira grega de compreender a natureza. A Re-

nascença pensava as causas formais ou eficientes como perten-

centes ao mundo natural, não se situando fora deste como em


- 2
Aristóteles . Collingwood explica ciue na conce[ição orgânica

"a i'úlaç:ao otbi-j a nu iufc isa e o hotncm ^'I'a ai)'.-


da concebida em tei'mau de astrologia e magia;
isto poi\jue o pode v i o do homem sol/r^^ a nature-
za et-a concebido, >uio como o poderio do esirtri
to sobre o mecanisino mas sim como o poderio iL'
urna alma sobre outra alma, o que implicava ma-
gia; e aquilo que na nature íí a era mais exte-
^•ior, ou es/ei'a estelar, era ainda concebido em
moldes aristo té licos como sendo a mais pui'a e
a mais eminentemente vioa ou ativa ou itiflueti-
te parte do organismo cósmico e, portanto, co-
mo a causa de todos os acontecimentos ocorri-
dos nas outras partes; con se q !le)i t eme n t e , como
astrologia" .

Isto de certa forma explica o desenvolvimento do conhe

cimento da natureza na Renascença. Ele se deu num quadro onde

os limites entre a magia e a ciência não eram muito claros. E

até difícil falar de uma cosmovisão renascentista jã c|ue nesta

^ COLLINGWOOD, s/d. P. 1^40.

^ Ibidem, p. I'*!.
38

época o que assistimos e a existência de um universo onde tudo

é possível. Na medida em que destruiu a concepção de mundo

fundada no sistema aristo te 1ico , a Renascença se viu sem funda

men tos on to lógicos seguros para pensar o mundo. Esta época se

encontrou, de cer-ta forma, sem referenciais para pensar a rea-

1 i d a de^.

Mas isto não impediu que pouco a pouco a concepção me-

cânica da natureza fosse gan liando espaço. Foi Copérnico, se-

gundo Colling Vi 00 d, (jue provocou a crise da cosmologia moderna

no século XVI. Seu livro De revolutiônibus orbium coelestium

foi publicado póstuma men te em 1'15 3 e nele Cü()érnico explica

que os planetas giram em torno do sol (lie 1 i ocentri sino ) e não

da terra. A terra é então deslocada da posição de centro do

mundo, operando toda uma mudança ao nível da Astronomia. Para

Coolingwood, a importância da descoberta de Copérnico

" ao n a i ú t i 11 nao tanto dtn de c, l oa,; y o oo/.iro du


uyiíviifúo da tcfi-a para o íjoI aomo itnplíci-
tamoitc, yiegay qii<J o n:itndu I'/ii.'
cent i'o foí; c " .

A idéia da natureza pensada como um organismo recebe assim seu

golpe decisivo e teremos em Galileu, com a sua formulação de

que o livro da natureza está escrito em linguagem matemática,

a consumação deste golpe.

Não é difícil de imaginar a ruptura operada com rela-

ção ã Grécia por esta nova imagem do mundo. E toda uma mudan-

ça ao rnvel da ontologia a r i s to té 1 i co-med i e v a 1 que se pode pe£

ceber aT. Esta mudança também se operou ao nível de uma antro

pologia, pois o próprio homem se vê questionado quanto a sua

dignidade de ser e o seu lugar no mundo. No que se refere a

sua relação com a natureza, radica 1iza-se entre esta e o homem

o distanciamento que já se operava desde a fase em que predomji_

^ KOYRE, 1982. P. 'i7.

^ COLLING WOOD, s/d. P. t'O.


39

nava a concepção orgânica da natureza. Com este distanciamen-

to está colocada a possibilidade da ação humana sobre o mundo

natural, num universo cujos limites são absolutamente ciuestio-

nãveis. Não há mais uma physis que ê possibilidade da ordem no

mundo humano. O que se começa a ter e uma natureza como con-

junto de elementos que independentes do homem podem ser opera-

dos por ele. A concepção aristotélico-medieval de mundo hie-

rarquizado, ordenado e estável vem abaixo. A idéia renascen-

tista de natureza não vê nesta um [)aradigma para se pensar a

ordem do mundo. O mundo para os honens da Renascença não tem

centro e o homem não tem um lugar.

Todo este movimento de iDudança tanto ontolõgica quanto

antropo15gica tem implicações na concepção de razão que o oci-

dente herdou dos gregos. Seria possTve1 , num quadro onde os

próprios fundamentos da razão são questionados, continuar pen-

sando o exercício desta razão como a busca de causas finais?

Esta é uma das pergutitas ciue esteve se id pre presente, de uma m^

neira implícita, nos pensadores da Renascença. Quando Colling

wood nos fala sobre o movimento cosmolõgico renascentista, ele

nos diz que a teleologia é a doutrina mais atacada por este moi

vimento. Segundo o autor, critica-se "a i-Liorfa chui auur,.u-> f i-

naiiS, a tentativa de explicai' a natufc-^a aomo venetvada po>'

uma tendêuaia ou eafoi-rjo para rsali'^ai' fovmaii ainda nao exia-

tentes"^. Collingwood continua dizendo que a nova doutrina da

natureza trabalha suas explicações referindo-se a causas sufi-

cientes, explicando todos os processos e todas as mudanças "p£

Ia a(,!ao da coisas materiais Jã exis iantes no cowe^fo de cada

mudança.

Desta forma, de uma razão grega que buscava os fins

passamos para um modelo de razão que busca as ações que perma-

^ COLLINGWOOD, s/d. P. 137.

^ Ibidem. P. 138.
40

nentemente informam os processos na natureza. Quando falarmos

do homem, no segundo item deste capitulo, veremos como sua ex-

periência no mundo começou a ser pensada dentro dos parâmetros

de uma nova racionalidade pr-oduzida no seio da Renascença.

Mas é necessário não esquecer que se o Renascimento é

a porta de entrada da modernidade, ele não se confunde com es-

ta. Todas as mudanças que estamos apontando aqui ir-ão se radi_

calizar e amadurecer na época moderna. No que concerne ã ra-

zão, por exemplo, nos teremos o ápice destas mudanças só a par_

tir do século XVII com o racional ismo filosófico, que buscou

nas ciências da natureza um modelo no qual pudesse se basear

para uma análise do homem e da sociedade. Sendo nosso objeti-

vo aqui pensar como a Renascença possibilitou o pensamento de

Ma(|uiavel na política, é bom lembrar que todas estas mudanças

que possibilitaram a ruptura ma qu i a v e 1 i an a com a polTtica antj^

ga, (luando radicalizadas na época moderna, darão origem a pen-

sadores como Hobbes ou Locke, por exemplo, que pensam dentro de

um racionalismo e um empirismo consolidados.

Por isto, ao se falar da renascentista,

não podemos ter em mente uma visão de mundo estruturada e una.

O que temos é um universo que tenta se constituir ao preço da

destruição de um outí-o que se funda na concepção aristotélico-

medieval de um mundo ordenado e h i er ar qu i zado . Sem apoio segjj

ro sob os pés, os pensadores renascentistas transitavam num mu^

do confuso onde conviviam coisas das mais contraditórias. A

perda da physis como referencial seguro possibilitou a procura

deste referencial a partir de outras bases. Se pensarmos em

termos da organização do mundo humano esta perda tem conseqüên^

cias radicais. E toda a idéia de modernidade que esta em jogo

ai. C assim que Alexandre Koyré, ao falar sobre as dificulda-

des de se definir o que sao pensamento e tempo modernos, escre

ve que

de um muito louv'iocl de cale-


41

tismo - aHáí', uma aavaa teví a tica do moda do


pcnr>ar do nosso tampo, que nao í; tí apaja maic-
às sepai-ações demasiadamente yii tidas e as div[_
soes excessivamente vlgidas -, os pvimórdios
da idade modevna se situam nas épocas que
viveram pensadoi'e s da Renas aen<^^a e mcsrno íia
P i-e - h\jn as ae n Petraraa, MacjuiaveL, U íco l au
de Cusa e Cisai pino nos mos train diferentes as-
pectos dessa reoolut^íao, lenta mas profunda, que
marca o fim, a morte da Idade Media" .

Não e o caso aqui do acomi)anlia niios a continuação do ra

cioclnio de Koyré, pois seus objetivos são outros. Nosso into

resse ao cita-lo é patentear o ecletismo que a Renascença vi-

veu e a dificuldade de recortã-la |)ara melhor expor a cultura

que esta época produziu. Esta i n de t e riii i n a ção ao nível das re-

presentações teve, particularmente na Itália, seu correlato ao

nível da experiência s5c i o-econôin i ca e poHtica. Ao nos lem-

brarmos do nosso primeiro capitulo, veremos a diferença entre

a experiência grega e a renascentista na medida em que o mundo

dos gregos possuía uma ordem e as coisas tinham um lugar deter

minado. Assim, fica claro que Õ de fundamental importância

apreender esta mudança que estamos trabalhando aqui no concei-

to de natureza, já que a idéia de ordem para os gregos está in^

ti ma mente ligada a este conceito. E id bora so no século XVII te

remos uma relação mais bem definida do homem com a natureza, é

na Renascença que iremos ter o inicio desta mudança e ê nela

que o universo aristo té 1 ico-medieva 1 ira receber o seu primei-

ro impacto.

Assim, é necessário frisar que os renascentistas não

chegaram a ter um conhecimento profundo do mundo natural. F a]_

tava-lhes uma aparelhagem conceituai mais poderosa que lhes pos

sibilitasse uma visão da natureza mais bem elaborada cientifi-

camente. Este trabalho será realizado a partir de Galileu.

Mesmo com o gênio de um Giordano Bruno, de um Copérnico e de

um Kleper é Galileu que marca, de uma certa forma, o fim da

® KOYRE , 1982. P. 17.


42

Renascença. E ele quem irá geoinetrizar o espaço, po s s i b i 1 i tajn


9
do uma leitura cientificamente mais rigorosa da realidade. Mas

quando Galileu elabora sua teoria ele tem atras de si toda a

inquietação da Renascença.

2.2. A Renaaasnçta e a idéia de homem

Se no item anterior tematizamos a mudança operada pela

Renascença na idéia de natureza, neste que traba1 ha remos agora

pretendemos mostrar como se modificou a idéia de homem para os

renascentistas. Esta mutação jã foi rapidamente apontada por

n5s quando relacionamos as mudanças operadas pela Renascença

na idéia de natureza com mudanças operadas ao itTvel de uma an-

tro polog ia.

Ora, se a physis grega fundava a cidade, ou seja, fun-

dava a possibilidade dos gregos se reconhecerem enquanto huma-

nos, a destruição desta physis coloca para o liomem renascentis

ta questões acerca de sua identidade e de seu lugar no mundo.

Na medida em que o mundo não é um cosmos hierarquizado , o ho-

mem não tem um lugar definitivamente seu, sendo preciso cons -

trui-lo. A comunidade liumana não mais se funda na natureza,

mas se relaciona com ela.

O homem que no sistema liierãrquico encontra-se numa po-

sição definitivamente fixada, pode agora determinar sua pró-

pria posição no mundo. Agnes Heller nos mostra que o Renasci-

mento elaborou um conceito de homem dinâmico e este não tem

uma definição precisa. A autora diz que se pode resumir este

conceito pensando que no líenasc imento as relações Itunianas se

constituíram como dinâmicas,

" A J aun c e de vaio p d aloca m - ij u ; o L n f i n i -


to (infinidade do ctspaço^ do tempo u do conhe-
aímento} trans f ovuia-i: c nao apenar, nun: objeto

^ KOYRÊ, 1982. Pp. 53-5^.


A3

de eapeaul ai^ião man também yiwna cxpcv Lcnaía. ím^


diata^ uma componente da ação e do aompoi^tamen_
to; a perfeição deixa de aonr.tituii' ur;:a forma
ahísoluta, poiis quando tudo ei>tã em transforma-
çaOj isó pode exiatir uma coiu^tante pro>-ruri.i de
perfeição, mau nao a perfeição ahíioLuta no
tido an figo Ka lokaija tJiia ou íjant idade ai'tiita"

Assim, o home Ml e elevado ao primeiro plano na cultura

renascentista. Por mais que cjuisesse se pautar em modelos da

antigüidade, este estatuto do tiomem é algo de novo no Renasci-

mento. Quando Copõrnico mostrou que a terra nao é o centro do

universo, deslocou-se a morada do homem e o pr5i)rio homem. A£

nes Heller diz que o problema não esta em se saber se foi o ho

mem ou a natureza que se tornou centro de interesse dos renas-

centistas, mas, sim, (] u e a [) e r g u n t a mais importante é a c] u e

tenta dar conta das relações entre a natureza e o homem. A au

tora escreve que

"em primeiro lujar, a >ioçao de (jue o humcm po-


de ' ^onqiii íj t a r ' al<jumii aoii'a a naturc::a, aria>j_
do uma '.-egunda' naturetsa a partii' da primeira,
data do Reyiaaeimento. O re ao>ihee ime n í-o da 'eon
cjuií: ta da }iatui'eza' é parale lo a de^ecoi erta do
conceito de 'humanidade', que por oua i>e:s e i)j_
üepai-ãv^L da idéia de desenvolvimento da h.uma-
71 ida de" ,

E assim que Agues 11e 1 1 er nos mostra como a per^gun ta so

bre o homem esta intimamente ligada ã pergunta sobre a nature-

za. Se o homem pode conquistar o mundo natural é por(|ue ele

pode agir no mundo e não se encontra diante de algo imutável,

determinado. A impossibilidade de se encontrar num lugar fixo,

deixa ao fiomem do Renascimento uma única opção: agir no mundo.

Ora, o problema da ação nos remete de imediato a ques-

tão da liberdade. Se não hã mais o determinismo da Inerarquia,

abre-se então o mundo como espaço de possibilidades. Cremos

que se pode perceber aqui as raízes do individualismo moderno.

A liberdade para os renascentistas estava fundada no indivíduo,

' ° HELLER, s/d . P. 1 .

' ' Ibidem. PP. 16-17.


44

na sua capacidade de operar no mundo. Já para os gr'egos, o

conceito de liberdade s5 tem sentido se se refere a experiên.

cia política, ao viver em comum. A esfera do lar, na Grécia,

o 11 de os indivíduos cuidavam de seus assuntos privados, era jus

tamen t e o lugar onde a liberdade não existia. I'a a os gregos,

a ação individual nao tinha sentido, a não ser quando inscrita

na esfera da política.

Vê-se, então, (jue não õ este o conceito de liberdade

dos renascentistas. Num mundo as portas do capitalismo, o que

assistimos e a valorização da liberdade individual, independen

te da esfera política. A cidade não mais estã, como queria

Aristóteles, anterior aos indivíduos, mas estes existem como S£

res livres antes da cidade. Toda uma concepção de poder polí-

tico na modernidade estará futtdada nesta concepção de liberda-

de. Não são os cidadãos unidos que i)roduzem o poder, como na

Grécia, mas é o poder (]ue transcendendo a cidade reúne, sob

coação, os cidadãos. Jean Delumeau, comentando a questão da

liberdade renascentista, escreve que

"o c Luien to L H Lc f I'go li-t>c , , puíc>, cor: a>i-


íjÚúLLu, üobrc o pi'oblcrna dd iibdi'dade ífidioi-
dual; a Oú mclhoi-cc, ecpLi'itOi) ac uú a rcvn, po:'
I.J ^ ^ CJ díi t L íl 0 l tj i O ^Cl • > / /' lJ íj T^ ^
ti!}' uhviijado a uma c xi r. t c tu; i u do I oi-oca"

!- assim que destino e liberdade se en tr ec r u zam . O de^

tino marca, de certa forma, esta obseuridade, esta incerteza

que os homens têm acerca do resultado de suas ações. Na medi-

da em que o homem assume sua liberdade, ele se vê de frente

com o fato de que não pode dominar a totalidade das coisas que

envolvem ou estão envolvidas em sua ação. Enquanto o homem do

Renascimento tenta conquistar a natureza, ele se vê diante das

pestes, da fome, ele se vê diante das forças que não pode con-

trolar. Liberdade e destino se constituem na forma de um dra-

ma para o homem renascentista.

ÜELUMEAU, P. í>l
45

Assim, o homem tem que assumir o seu destino trágico.

A perda de um lugar num mundo liierar-quizado o deixa nas mãos

da fortuna. No entanto, o ftomem possui a virtu que correspo^

de justamente ao seu ser livre. Jean Delumeau diz que

"e iii-fíail defitiiv t.'Htd tcvnio ch; V L t u itui La-


na. No contexto do tampo, i- i'jni.fiija p v í al
muntíJ a vo)itad(> da a fiar o aan pi'opi'io dcatitio,
o anpii'-Lto de amp i-a arid itne n to, a audácia aalau-
iada , uma iti tal icjõnaia ajuda. Não axa lui a
avualdada nam a ar.tuoCa danda ijua nacau
jai'ioij - pi'OVa-o a ^í)'tu que MaquiaOal l 'Uíl\í
am Caiiai' tíoftjía mai) a na aa :.i a a r i ama n c a aaor:-
panhada da uuto-domniio a da uma ai.:i'ta grandc-
za da alma"

Virtu e fortuna são dois elementos chaves ])dra com-

preender a dialética liberdade ver-sus destino na Renascença.

Esta dialética s5 foi possível na medida em que mudou o estat^

to do homem, passando este a ter uma dignidade especifica. O

homem se constitui por sua própria ação no mundo, sua prõpria

vontade. Segundo Ernst Cassirer, temos que perceber que na Re

nascença a ação do homem não se traduz apenas na força de sua

vontade. Ela diz respeito ao cottjunto de suas forças criado-

ras e cada ato criador seria mais do que agir no mundo. Isto

significa que existe uma distinção entre aquele que age e o ob

jeto sobre o qual ele age, sendo que o sujeito da ação tem

coiisciõncia desta sei^aração^^.

E necessário chamarmos a atenção aqui para o fato de

que este indivíduo do Renascimento ainda não e o da época mo-

derna, ou seja, ainda não é o indivíduo em seu pleno desenvol-

vimento. A sociedade capitalista ainda não esta constituída.

Tal fato se colocava como um impedimento ã completa formação do

indivíduo, na medida em que as estruturas feudais não tinham

sido ainda totalmente abolidas na Renascença. Talvez possamos,

por este caminho, pensar porque se tornou tão acirrado, ao nT-

DELUMEAU, ISS'i. P. 51 .

' CASSIRER, 195'. P. 113.


-16

vel das representações, o conflito liberdade versus destino

que já apontamos aqui. Ao nTvel da própria experiência iiDedia

ta, o liomem ren as cen t i s t a se encontrava num mundo de complexas

e profundas mudanças. Enciuanto jã se formavam pela Europa as

monarquias nacionais, a Itália, por exemplo, ainda se compunha

de c i dades-estado, algumas das (juais exerceram forte irU luên-

cia na história da época. Assim, as cisões que se operaram no

homem renascentista não se deram apenas ao nTvel das re[)resen-

tações. E! toda uma relação com o tempo, a vida e o mundo que

está em jogo quando se fala na ruptura que a Retiascença operou

com relação ã Idade Média.

Mas nosso r e f e r e n c i a 1 a (] u i é a síntese ari s tote1 i co-

medieval, ou seja, trabalhamos a partir da constatação da in-

fluência das concepções cosmológicas de Aristóteles no pensa-

mento medieval e da luta que a Renascença ira travar contra es

ta síntese. Desta forma, é bom lembrarmos uma outra reviravol_

ta operada pela Renascença com relação ã Grécia. Se para os

gregos a polis era um microcosmos, pura os renascentistas é o

liomem que ocupará este lugar. Sobre este ponto Cassirer nos

diz que :

"Um íIoí: tnotLoüü bai^íc-oü iia j'í-í or, o j'i\i do


aimoito, o motioo du nn'c t'Oco i-mor , que ao>u-ií-
tní uma aafei'a mcdí-n lui c/íuí / c nc.-ont rciir,
determinam ir;u tuaman L o o conceito do natui'Ci^a o
o de huinani ta:j que o Rena(',cime>ito tem, jÚ par^
cia ofei'ccev decide o primeiro momento ec,ae
termo de conciliação. Como símbolo, como ima-
gem da natureza, o homem tanto c.e i'elaciona com
esí^a natureza como ue dinti-ngue dela. h'le a
compreende em si próprio sem que por isto deoa
estar submetido a ela. Contém todas as forças
da yiatureza e ainda uma, especificamente
sua: a da consciência" .

Enquanto microcosmos, o liomem não precisa buscar um mo-

tivo transcendente para sua existeticia. Para os gregos, ser

humano era participar nos negócios públicos da cidade porque

assim se participava de uma ordem que reproduzia a ordem maior

CASSIRER, 1951. Pp.


e transcendente do cosmos. Na Renascença, o homem se hasta a

si mesmo e este bastar-se está fundado no exercício de sua von

tade livre. Ü assim que temos também uma abertura diferente

para o conhecimento do mundo, pois o homem se distancia mais

dele, faz dele um objeto, Ües coti f i a-se da finitude do inundo,

desconfia-se da finitude do homem. Os fiomens vivem er.i comuni-

dade não porque isto esta inscrito na ordem da natureza, mas

porque õ a melhor maneira de suprir suas necessidades.

No Renascimento, o reino das necessidades ja não se

restringe mais ã esfera da vida privada. Bem vimos no primei-

ro capitulo que, na Grécia, o reino da liberdade (esfera prjblJ_

ca) não se confundia com o reino das necessidades (esfera pri-

vada). Era [) o r isto que Aristóteles achava impensável fundar

uma comunidade polTtica apenas para atefider as necessidades Itij

manas. Quando trabalharmos liaquiavel, veremos como toda esta

iDudança com relação a Grécia produziu um pano de fundo sobre o

qual constituiu seu pensamento. São estes referenciais que

deveremos ter claros para compreendermos como este pensador

apreendeu, de uma maneira muito sutil, as mudanças que se ope-

raram na cultura do ocidente e que deram origem a uma nova ma-

neira de pensar o político. O Bem, que era o fim da vida polT

tica em Platão e Aristóteles, deixa de ter significado numa S£

ciedade formada por indivíduos que não se prettdein a um télos,

mas sim aos acontecimentos ditados pela fortuna.

Outras duas diferenças marcam a Renascença com relaçao

aos gregos: as idéias de autonomia do indivíduo e de comunida-

de política. Quando se diz que a experiência ético-política do

homem grego visava a sua autonomia, não é no mesmo sentido que

usamos a palavra quando falamos do Renascimento. A autonomia

do homem grego é atingida no momento em que este interioriza o

éthos da comunidade. O homem na Grécia se tornava autônomo na

medida em que ele conseguia encarnar o principio racional so-

bre o qual se supunha fundada a cidade.


48

Mas no Renascimento as coisas não se darão desta forma.

Um dos motivos desta mudança está ligado a concepção de socie-

dade que nesta época já começa a se consolidar. A idéia de so

ciedade não pressupõe necessariamente uma ordem natural como

seu fundamento. Uma sociedade ê uma associação de liomens o

não uma totalidade onde as partes se interagem visando o l)em

moral. A sociedade (societas) é justamente este agrupamento

de itidivTduos que lutam para vencer suas necessidades, sendo

que este é o motivo de sua reunião. O direito natural da Ida-

de Moderna irã mostrar que o poder politico nasce para dar coe

são ao tecido social e não o contrãrio, ou seja, não é a união

dos indivTduos em tortio do bem comum que gera o poder.

Cê r arxl L e b r u n , ao falar da constituição da idéia de [)o-

der na filosofia política, mostra que a oposição entre vida

privada individual e a vida [lublica participante dos negócios

da cidade Itã muito ja não satisfazia nas reflexões sobre o po

der. Lebrun coloca que, fora do doniTnio [)rivado, o homem não

pertence ã cidade e sim "ã isoaiedad.: ( docí.' t.ic), ic.co .u.'

conjunto das i-aLa^^toun J iwí d i cciíí c caonõmicar, (jua o.', i >i i í v í d U'..- r

ou Oís jt'upos eútabüLeaem entye cri. Em outvur, palavi-aí', 1e

dca-poli ti-^ou-se"^^. Lebrun ainda nos mostra que jã Santo To-

más de Aquino não via o homem como o animal político de Aris-

tóteles, mas como um animal social. Mas, como jã a [)on taiDOS, a

sociedade não é a cidade grega, não e uma comunidade visando

o bem comum. Assim, Lebrun nos diz que

"e neste ponto i-eiiioto que pi'ituripia a nossa mo


devnidade; quando a coinunidcde não e mais ente^
dida aoino cong i>eg a(,'ão de homens que sao diveta
rnante encarregados de ::elai' pelo funcionamento
do Todo, e qiiCy por isso, deoem ser protegi-
dos pela instância política, em vede parti-
ciparem dela" .

LEBRUN, 1981. Pp. 37-38.

'^ Ibidem. P. 38.


Estas formulações de Lebrun têm em mira situar sua re

flexão sobre Ilobbes, ou seja, o autor quer situar as concep-

ções de um pensador que viveu num perTodo em que os governos

absolutos jã estavam consolidados e a burguesia em ascensão.

Mas, embora estejamos falatido do Renascimento, as colocações

de Lebrun servem para os nossos argumentos na medida em que é

neste período que a Europa sofre serias modificações em seu ma

pa político. A ruptura que Lebrun idetitifica entre a idéia de

cidade e a de sociedade, apontando ja em Santo Tomás esta rup-

tura, começa a se definir de uma maneira mais clara na Renas-

cença e o novo estatuto do homem, que procuramos mostrar neste

item, está intimamente relacionado com esta mudança.

2.3. A Itália no Heuuoij imonto

Falamos nos dois itens anteriores sobre algumas das nijj

danças na cultura do ocidente operadas pela Renascença. Isto

para situar o ho r- i 2on t e espiritual de r-la qu i a v e 1 . Neste i t eid

trabalharemos um pouco sobre a iDaneira como a Itália se const_i_

tuia na Renascença, principalmente do ponto de vista da organi_

z aç ão política.

Quando se pensa em termos de organização política, uma

das perguntas que nos vem ã mente e a que toca na problemática

do Estado. Mas ao se falar de Estado no Renascimento deve-se

ter um certo cuidado. Esta época foi um momento de transform^

ções na historia e nela uma serie de conceitos desaparecem e

outra série começa a se formar. A idéia de um Estado formado

por uma burocracia, um corpo impessoal de funcionários, embora

tenha começado a surgir na Renascença, ainda não está bem defj_

nida nesta época. A figura do sober-ano ainda e muito [presente

e ela consegue conviver com uma burocracia estatal em formação

durante algum tempo.

Os próprios indivíduos não possui ma uma idéia clara do


50

paTs em que viviam. Isto não é de se assustar levando em con-

ta a dificuldade de se estabelecerem fronteiras e pela impossi

bilidade do poder central controlar todas as áreas a ele subme

tidas^^. E claro que tais elementos dificultavam de sobrema-

neira que a concepção moderna de Estado se consolidasse na Re-

nascença.

Mas o certo é que não podemos ver a organização poHtj^

ca renascentista como uma mera continuidade com relaçao ã Ida-

de Média. A mudança da representação de mundo dos renascent is

ta s acompanha uma mudança na es t ru tu ra s õ c i o - p o 1 11 i c a da E u r* o -

pa. Sobre esta última J.R. Ilale escreve que

"a<3 puííiJo ijUü o L'lit.Liilo I'u t i.e.' cmfjíu pi'-


noücanünte da mia ariaáLida feudal oí) ftoiaiuná-
i'tOL'., a oh }'c t. Uilo advo ij a iJo í-, que o i*. a !-í rar:,
ei'am f ui'çudoj a unt aotnp fOfri. n lí o oiti-c a t:fiaa-
cia do pvojcto (para o (fuc x i a li um nod.,; l o):u
díveito romano e na uLi-a dor. domítiton indiví-
duaiúy tanto laicoa como mona c, t i ao a) J a tradi
(^•au, para acder ao i;cntimcnLo local u procurai-
obter cooperação iiiooando o fa^ci t.ío d.o twri,:
rcítl. Uenhutna promulgação i:'mi.tnaihi du
no ' j ai! audiência'.',, a:: p ri^'^ l amii çoi.'i.! e i.-'n edi-
tou eram apanaijio do rei"

Mas como se encontrava a Itália de Maquiavel no quadro

das estruturas européias? Ao responder a esta pergunta temos

que ter em mente que, no Renascimento, a Itália ainda não era

um estado unificado. Ela era composta por uma serie de cida-

des-estado que guardavam sua autonomia po1Ttico-a dministrativa.

Apesar desta ausência de unificação, a Itália exerceu grande

influência no quadro político europeu da Renascença. Isto se

deu não sÕ por ter sido motivo de vários conflitos entre na-

ções que aspiravam dominar-lhe o território, como pela propria

influência que exerceram algumas de suas cidades.

A Itália foi, de certa forma, berço de muitas das prá-

ticas políticas existentes durante o Renascimento. Perry An-

derson chega a afirmar que muitas das técnicas administrativas

' ^ HALE , b/d . Pp. 5U-Í, 1 .

'^ 1 bi dem. P. 8h.


51

e diplomáticas do Estado absolutista tiveram a sua elaboração

na Itália e o autor se pergunta porque, em face disto, nela não


?O
se constituiu um absolutismo nacional . Anderson tenta res-

ponder a esta questão dizendo que

"o dcijenvo L vímcyt to iJi'cmaliifO do capiid' inc n


til >ias cidadci- do novte da Itália, qu,- pci-ni-
tíu a foviria^uio de mri vod^e vo i-,o Ei-tad.o feudal,
veorijani-^ado ao nível nacrional. Fot a i>íque::a
e a vitalidade daí) aonnoiai; da Toí)aa>ia .. da Lot^
l>avdia que dern-otafam or. mate, i'eyior. e u foyç o í.í
pai-a a aona ti tuií^-ao de urna /.'lo u aíu/u i a j'eudal
unifiaadii que üet'PÍíJt.;e de bac.e a uni poacerioi-
abiiolu tijiiio (a tenlaLiOa ile F re íh: i'i ao If, >io
tseaulo XIII , pat'a alcn-.jaf o f.i'u l>ai'o>iato, j-,jla
tioaineiite p i-0(j vet) oi oo, a pavtiv da r.ua bcaie ko

O interessante desta passagem de Anderson é que nela podemos

notar o desenvolvimento desigual, do ()onto de vista econômico,

das cidades italianas. C s ta desigualdade i iii |j o s s i b i 1 i t o u uma

unificação sob os auspícios de um poder central como já aconte

cia com outros países da Europa. A falta de unidade na Itália

também gerava um clima de instabilidade política entre as cid^

des, pois não raro uma delas se unia a um pais estranho para

dar comba te ã outra.

Mas as cidades italianas prosfjeraram enquanto pequei»os

estados autônomos. Neste sentido há uma corta semelliança en-

tre elas e as cidades gregas. Perry Anderson, ao traçar para-

lelos entre a antigüidade clássica e o Renasc iiDento na Itália,

mostra que para além do fato de que ambos os períodos tenfiam

sido constituídos por cidades-estado, estas estavam sob o dom^

nio dos nobres

"e etn anhau a maioria da popula^;ao primitiva


poaíiuia propriedade fundiária nos ten-i tori ou
ruraia que rodeavam a cidade. A ambat) o mesmo
mar dava as principais vias comerciai s. Ambas
exigiam serviço militar aos seus cidadãos, ca-
valaria ou infantaria, segundo a tfUa qualida-
de de propicie tários. Ate mesmo algu>nas das
singularidades políticas das p ó l igregas t i-
yiham a sua contrapartida próxima nas comunas
italianas: altíssima peraen tagem de cídadaos

ANDERSON , 1 98'<. P. 1 65
que detinham Leinpoi'ur Cunia)ite cavgon publLaut:
ou o do íioptsío a esaoUia Ji- majtJti'ci
dots"

Mas não nos deixemos enganar por estas semelhanças. O

próprio Perry Anderson trata, em seu texto, de nos apontar al-

gumas diferenças essenciais entre as cidades gregas e as ita-

lianas. Segundo Anderson, embora na Antigüidade e tio Fíenasci-

mento as cidades se constituíssem como locais onde se trocavam

mercadorias ,

"aj aiiladeii ÍLalíanuú ei'ujn f un dwnc ti t-,.i Luu; í: L c


centrou de [.>i'odu';,^ao urbana cuja ofj an í •.■.a^^tao in
tei'yia í}e baseava naj juildas de o j'i e i i.a r,, ao
patsjo que ao cidades da An t-ijuidade ueniprc j'u-
vam p fimo I'd i a Ime n t e centrot; d.e contmr^u, aríLip-,^i
lados cm as so CL a'^'oe ü clanicas ou tei'vi tofiais" ' .

Estas formulações de Anderson são importantes para nos

na medida em que situam, do ponto de vista da organii;ação eco-

nômica, dois momentos na historia em cjue viveram e [iroduziram

Aristóteles e Maquiavel, respectivamente. E interessante no-

tar que embora formalmente hajam semeltianças entre as cidades-

estado antiga e renascentista, as diferenças se impõem na med^

da em que marcam a própria relação dos cidadãos com as respec-

tivas cidades. Ao se pensar em termos de estruturas econômi-

cas, podemos perceber que mesmo as semelhanças ao nível da or-

ganização po ri tiCO-administratiV a entre as duas formas de cida

des-estado (grande percentual de cidadãos detendo temporaria-

mente cargos públicos, magistrados escolhidos por sorteio) não

são suficientes para diminuir a profunda diferença entre elas.

Ora, cremos que um dos pontos desta diferença diz res-

peito ao quadro de representações que informava os dois momen-

tos aqui evocados ( a Antigüidade e o Renascimento). Não deve

mos perder- de vista em nenhum momento os referenciais utiliza-

dos pelos gregos (que nós abordamos no primeiro capitulo) para

ANDERSON, ]SSk. Pp. 17't-i7í>.

Ibidem. P. 175.
53

pensar sua experiência política. Na Renascença, alem de uma

outra forma de organização sõcio-econômica , teremos, como jã

mostramos neste capitulo, uma outra idéia de homem e uma outra

concepção da organização do mundo humano. Como vimos no item

em que falamos da concepção de homem na Renascença, o indiví-

duo neste período não mais se vê como ocupando um lugar fixo

na ordem do mundo.

Assim, nas cidades italianas temos um exemplo de como

se constituiu a política no Renascimento. Mesmo na o consegui^

do sua unificação nesta época, a Itália nos serve como um bom

referencial quando tentamos pensar a maneira como a política

se enquadrava no pensamento renascentista.

Mas, uma destas cidades deve nos chamar mais atenção:

F lorença. Além de ser a terra natal de Maquiavel , Florença erci,

segundo Perry Anderson, "o muior- centro índur.tfial


23
da pcnuiijula" . Esta posição a colocava em destaque com rela

ção a outras cidades italianas e a exiieriõncia política de Ha-

cjiiiavel se darã no convívio diário do universo político floren-

tino. Este universo, por sua vez, refletiu muito das ()uerelas

que se davam no todo da [lolltica na Itália do Renascimento.

Assim, Alberto Ten en t i escreve que

"no aoii:j^:o da ííe.jundíi >no iade du r.jculo .V/l',


1'i^n^'u fCgtii'ci enti'e as n tiiii<n'Oí: cia aofnoiuJ i>ídtj-
p^indcnta f, da penin-jula itaiiand. Oc, tiaiij i t.-, t í\i-
doi> da aidadc nao i-e aabein mia au Lo)' i da-le do cx
tei-iov c podem íi'a tav pat-a LjuaL corn cr, pi'í)tc í-
pets e a L fang ei i'o o . I'iiia, Sítnia c Lac-a, r,e bem
que mcuoij poderosar,, acham-se em tííLua^-ao íiná-
loija. Naa fegíoesi l imi tfo j'e a da Itália cen-
tvai e da Planicie do P3, pode-ae conaiaíiii' o
mcíjnio fenÔmoio. Floi'e>iça ae acha, aijüim, no
c.ova<^.ao de uma zona muito fi-agmentada politica_
m ente , no in t e i" i o da q ua l, t o da V ia , c l a na o
deixa main encapai' an ocauiõeií que n e api'er. c n-
tam para alavgav neu ppSpt'io tervitoi'io. A
p I'eoaitpa^tao maior da comuna é anoeguvai' a Li-
berdade e a t3eíjui'ança dan vian come I'ci^ que
a ligam a oeu enorme etípai^^o econômico"'' .

ANDERSON, 198'<. P. 185-

TENENT I , 1973 • P. I 2 .
64

Mas esta expansao de Florença não se deu apenas pelo

uso das armas. Em sua maioria, as cidades anexadas ao territõ


25
rio florentino foram compradas . Isto foi muito facilitado

pelo fato de ser Florença, como já dissemos aqui, "ia;: cculi-o

Lndui-, ti'ial e ba)u;'iv io". Mas nãü é sÕ isso. Segundo Jacob

Bu r c k li a r d t,

"uo Lado do ual-aulOj aplicado a iodou on j'ati'j


da üida uiatcvial, etiaoyitfamov, uma acrid
nua de tjuadi'oa da vida política. !•'l o I'd nç :i ex-
pe fimcnt a yiao .'só tiiaiíí forinuís e atnl'icn t ar. poli-
iicoii cotr.ü oú Jultja c dir>cutii i >i f i n i L ar.,: n l o tr.a^
Ihor do que outfon cr.t-adon lioi'cr, da It-alia ou,
cm (jci-al, do ocidcnti. . /l ííua h i :i! o r i oj ra j'i a c
o cnpelho inaíí; fiel íla ríjla!^'a^> que i:\i:i.>íe eu-
tfe alaiiaeíj e iiidioiduoí' dian '' t^d.'
mooel c em ttiudant,'i.i, pelo ouli-o"' .

Em grande medida e em Florença que se elahofam os mode

los de uma série de coisas que os italianos e os europeus irão


27
fazer . E servindo como paradigma c|ue esta cidade italiana

estará no centro de uma serie de convulsões na poiTtica ita 1 i£

na e será um lugar privilegiado \) a r a M a q u i a v e 1 refletir sobre

a polTtica. Por mais t|ue não tenlia se constituído num Estado,

no sentido moderno do termo, Florença foi uma espécie de esco-

la pela qual se pautou a Itália.

Mas liá outra coisa em Floronçú que nos chaiiiã a atenção.

Comuna constituída nos moldes da Idade Media, nesta cidade po

demos ver com muita clareza o conflito entre a organização ci-

tadina medieval e o surgimento de um pre-ca p i t a 1 i smo. A [)ar-

tir de 1293, tanto os obres quanto os assalariados e a tesa os

não têm direitos políticos. J.F. Duvernoy nos diz que

"na apoca em que ü ca pi tal i ratio out a eni viaij de


fofinação nas cidades i talianas y em que muta-
çõeu qualitativas se sobi'epoem a um j'ot'te au-
mento do volume de neíjócios que sao tratados
em F l o }'en^:a, em que setoies inteiros da ativida
de econômica assumem unia impo r tanc ia sem compa
raçao com a que tinham ate ai, os proprietá-
rios de fábricas texteis, os comerciantes c os

TENENTI, 1973. P. 17.

BURCKHARDT, s/d. P. 70.

Ibidem. P. 72.
banquei^^ii ae a ti'i budin o cxe vai'aio do podei' i'0_
L i tiao"

Duvernoy coloca também que estes comerciantes e estes banquei-

ros se reúnem em corporações de oficio (as chamadas "ai*r..ij")

partilhando um poder que pertence ao "oftaio" ao cjual se ligam.

Estes ofícios se dividiam em Art1 maggiori e os Arti Winori,SH2

do que os primeiros possuíam o poder supremo em Florença e os


29
segundos possuíam um poder menor . As Arti maggiori estão Ij.

gados os banqueiros e os mercadores e as Arti minori se com-

põem de artesãos e pe(|uenos comerciantes.

Assim era constituída Florença nos séculos XIV e XV.

l nela que veremos o nascimento de Maquiavel e é a partir de

sua política que este pensador ira elaborar suas idéias. A cj_

dade era um palco de tensões nuii)a época de mudanças. Estas ten

soes conseguem espelhar nao s5 a liistoria da cidade proprianien

te dita, mas também apreendem as modificações (]ue se operavam

na Europa. Jacob Burckhardt nos di/ ijue

"^ei'ia inJu.iLo un: i>lí>'cIcIo ciíIi-l.


u L ijumui; ílaa ontraí; pub l icui' í',i<e x í l í ^:r:i
neaitio .Y c a cidade do /■'Z oí-...'(jue foi, de
muito lo)i(je, o aeutfo mais inpoi-tcinte onde ae
elabui-üii o eapii'ito italian^ç^e aie o er.j'iyito
tnodet'no da L'ut'opa cm (jcí-al"

Desta forma, podemos compreender um pouco o mundo em

que Maquiavel viveu. Pertencendo ao Renascimento e vivetulo em

Florença, suas obras nos transmitem a exigência que era imane^i

te a toda Renascença: pensar sobre novas bases. No caso de

nosso autor, estas bases pretendem fundar o político como algo

autônomo, onde a questão do poder passa para o primeiro plano.

Num mundo que não tem mais centro fixo, só a ação liumana |)ode

manter um certo equilíbrio no jogo de forças tal como e a polT

t i ca concebida por Maquiavel.

DUVERNOY, 198'<. P. 20.

^^ Ibid em. Pp. 20-21.

BURCHHAFíDT, s/d. P. 7.
2.4. O homem Maquiavel

Maquiavel nasceu em 1469, Em 15 de junho de 1498 en-

trou para a vida pública, ocupando o cargo de secretário da se

gunda Cliancelaria de Florença. Filtio de uma faiinlia da burgue

si a tos cana, nosso autor nao poderia imaginar o destino que o

aguardava em vida e as reverberações que o seu nome teria nos

séculos próximos. Paralelamente as funções na Chancelaria, Ha

quiavel foi colocado como secretario ã disposição dos Dez de

Liberdade e de Paz. Estes eram magistrados eleitos c|ue tinham

como função, além de uma variedade do serviços públicos, encar

regarem-se da co rres i)o ndên c i a com re[)res en t an t e s florentinos

no exterior.

lí neste trabaltio diplomático que Maquiavel encontrou

farto material que serviu de fomento às suas reflexões. Num [)e

riodo conturbado da historia de Florença, onde os diplomatas

iam e vinham em busca de soluções jio 11 t i c a s , nao é difTcil de

imaginar como os acontecimentos desta Õpoca se refletiam num

espirito fino e sutil como era o de i'1 a quiavel. O autor viveu

numa Florença insegura que tentava manter sua autonomia às eus

tas de frágeis tratados, numa Itália cobiçada pelas grandes po

tências estrangeiras. Maquiavel escreve calcado nestas expe-

riências.

Apesar disso, não é justo reduzir a reflexão maquiave-

liana apenas a este momento da historia. í necessário que fi-

que claro o painel que traçamos da Renasença, nos itens an te rio

res, para que se possa compreender as pressuposições do pensa-

mento de Maquiavel. Toda sua reflexão sobre a ação, a virtü e

o valor individual, encontra ressonâncias num imaginário que se

constituía. Ernst Cassirer sustenta que Maquiavel, ao escre-

ver sua obra, acreditava estar escrevendo não sÕ para seu tem-

po, mas também para o futuro. Isto porcjue sua concepção de

historia privilegia os elementos estáticos desta e não os dinâ

micos. Diferente da nossa concepção de história, que é pensa-


57

da era termos de uina progressão linear, Maquiavel acreditava (jue


3]
certos fatos se repetem em qualquer tempo

Estas formulações de Cassirer são feitas ten ta lulo apree^

der o ponto de vista em que Macjuiavel se colocou ao escrever

seus livros. Diríaiiios mesmo que Õ ui)ia tentativa de apreender

o autor a partir de suas intenções. Mas, teria Mat|uiavel con-

seguido objetivamente transcender sua própria época? Acredi-

tamos que sim. Nosso autor vive num momento em que as frontej_

ras da Europa não estão bem delimitadas, mas õ também o momen-

to em que isto está se fazendo. Mudam-se as correlações de

poder com o surgimento das grandes monarquias nacionais (como

França e Inglaterra, por exemplo) e o prõ[)rio conceito de po-

der político. Mesmo com a força que aittda tem a pessoa do so-

berano, vemos passo a passo constituírem-se nos estados corpos

de funcionários que irão compor uma administração imijessoal,

já antecipando a chamada burocracia governamental. T certo que

([uando Maquiavel fala do prTncipe, elo ainda esta pensando em

governos de aventureiros como um César BÕrgia mas, a nosso ver,

não é aT que esta a ciuestão. O importante em Haíjuiavel c que

ele consegue perceber o maior p rot) lema com o cjual irão se de-

frontar os pensadores políticos da modernidade: o poder.

Outra coisa importante em Maquiavel é a percepção do

lugar que a força e o conflito ocupam na experiência política.

A política não é mais o exercício dialÕgico da razão na praça

pública. Ela nasce do embate de põlos contrários, do conflito,

e a modernidade terá de aprender a gerenciar este conflito.

Maquiavel também retira toda transcendência do poder. l por

isto que Cassirer nos diz, ao falar sobre o principio formula-

do por São Paulo e utilizado pelos medievais, de que todo po-

der emana de Deus, que

"Maquiavel nem aequav o ataca; ícjnoi'a-o iyiinpla:^

CASSIRER, 1976. P. 1'0.


58

mente. Fala a pavlii' da nua expei-icf.c La polí-


tica; e a sua expevicnaia ensinou-1 hc que o po
dei'y o podei' político yeal e de fato, (.■ tudo
inoioü divino. Obser-oou os homens qUí: J'undai'a".
'os novos pvincipados ' e estudou p i'o f itn damen t. e
os seus métodos. I'ensaf que o poder ilesses
vos pvincipados pvovinlia de De^i^s nao ra sor.eK
te abs Ui'do como ate blasfemo""

Assim, o poder tião está fundado dgim no diálogo L'ntre

os homens e nem num Deus t>-anscendent e. A experiência [ioHlí-

ca se constrói a partir do conflito (pie marca a existência de

qualquer sociedade. Não se tem mais a comunidade grega, com-

posta de homens (|ue tinham como fim a vida melhor. O que te-

mos, a partir do início de nossa modernidade, é um conjunto de

homens que lutam para satisfazer as suas necessidades mate-

riais. Maquiavel percebe esta mudança e nos fala dela.

E claro que o pensador escreve com os pés em sua época.

Por mais geniais que sejam as suas intuições, ele esta limita-

do por um horizonte histÕrico-conceitua1 que não o permite pre

ver todo o desenvolvimento do Estado moderno. Mas o que quere

mos frisar aqui e a sua percepção da mudartça na ação polTtica

dos homens e mais: a contribuição que o pensador deu para a mo

dificação da nossa maneii-a de compreender o político. Maquiavel

não se preocupa com (ju es toes acerca da lei ou do direito, tão

caras aos teóricos do direito natural. Sabendo (jue a política

é um jogo de forças, ele centra ai suas reflexões. Sobre isto

Jean-Jacques Chevalier escreve que

"o leitor' (juú e spe 1'ar, se im debute pi-eoio sobi-e


as questões de direito, sobi-e a questão lia le-
<ji t i rn idade da a q u i s i i* a o , c o n h e c e í- i a tr: a l M aquia^
ve l; t i'ata-se de um domínio radicalmente estva_
nlio ao autor de O ' l-ste se nove ape-
nas no domí>iLo evicToite ão fato, isto e, da
força. Pois o triunfo do mais forte e o fato
essencial da história humana.^ Maquiavel o sa-
be e o diz implacavelmente"

Desta forma, Maquiavel captou o seu tempo e a política

CASSIRER, 1976. P.

CHEVALIER, 1980. Pp. 25-26.


que se fundava a partir do seu tempo. Ele rompe os laços que

prendiam o polTtico a moral e ã religião e reflete sobre um

tíomem que não tem mais seu lugar definido na ordem do mundo.

Pensando a partir da Florença do seu Leiii[)0, Macjuiavel [íercebe

todo um movimento de desagregação do liorizonte espiritual da

Idade Média e auxilia, ao nível do pensamento político, este

desmoronamento. Sem constituir propriamente um sistema de

filosofia política, o pensador muito contribuiu na preparação

do terreno para a reflexão polftica da modernidade. Isto des-

contando todas as leituras onde flaquiavel é visto como imoral,

perverso e cruel. Muito tempo correu antes que se pudesse ter

uma leitura menos apaixonada do florentino. Confundiu-se mui-

tas vezes as colocações do nosso autor' com a crueldade gratui-

ta de alguns regimes polTticos.

Mas e fato que a reflexão ma (| u i a v e 1 i a n a so[)ara a ética

da política. í necessário ao govtírnante, no jogo de forças do

mundo |)olítico, entender a polTtica como técnica. í". pi-eciso

que ele conheça e exercite estratégias capazes de leva-lo a

conquistar o poder e a mantê-lo. Não é o consentimento ()révio

dos homens que cria o espaço político. Os homens não téii) uma

tendência natural para a vida comunitária. O que eles têm são

tiecessidades e se batem para satisfazê-las.

Mas Maquiavel não conseguiu contribuir por toda a vida

com a cidade de Florença. Quinze anos depois de cliegar ã se-

gunda Chancelaria, o pensador é destituTdo pelos Médici, famí-

lia de ricos banqueiros que ja tinha estado no poder em rioren

ça e fora expulsa por duas vezes da cidade. J.F. Uuvernoy nos

diz sobre isto que

"a pai'tii' de sua de ís LÍ tuí , o dec. tino de Ma-


quiavel e o de Fluvcnça nao r>e ligam maií) r,c-
uao de longe y ao menoí) noa dctalhec. da lu'da da
noísâo homem. Maquiavel yião é maii' urn homem pú-
blico e itua cidade de nooo adotou o i-egii/ic
toai'dtiao que lhe deu o i-etovno dor, Mediai"^ .

DUVERNOY, P. kú.
60

Uma série de mudanças se operam na cidade de Florença e o ex-

secretãrio ainda tenta ganhar as graças dos novos senliores. Coj2

segue apenas pequenos encargos e ainda será prejudicado por is

to quando, ao se expulsar os Mediei pela terceira vez, Haquia-

vel não merecerá a confiança de Florença por ter andado por

perto dos senhores de[)ostos.


61

CAPÍTULO 2

MAQUIAVEL E A INSTAURAÇÃO POLITICA

2. 1. A questão do poder

No capitulo 1 pudemos ver que Aristóteles acreditava

que os homens se reúnem nuna cidade visando ui-ia vida eticanen

te melhor. A cidade existia anter i oniietite a esta associação,

pois era entendida como a realização da ordem da natureza. A

polis, ao invés de ser um simples aglonierado de homens, se

constituía como uma comunidade ética, un> conjunto de homens

reunidos em conformidade com o império da lei, do nÕmos.

üra , vimos no capitulo 2 como a Renascença opera uma

cisão com esta visão de mundo que encontrava sua grande siste

matização na obra de Aristóteles. ÍJa medida eii) que o Renasc_i_

mento operava modificações nos conceitos da antigüidade grega,

fazia-se necessária a produção de novos conceitos para abor-

tí a r novas realidades. T no i ti ter va 1 o destas mudanças que os

pensadores do Renascimento produzem suas obras e muitas das

Idcunas ou contradições que podeiDOS perceber nestas têm como

motivo a ausência de uma aparelhagem conceituai mais rigorosa

para pensar a realidade de uma época conturbada.

A Filosofia Política irá sentir o impacto de todo es-

te movimento. Com a perda do referencial cosmolÕgico grego e

a mudança na experiência política dos homens, novas questões

são colocadas para os pensadores políticos. Com a dissolução

do mundo feudal e a paralela destruição da visão de mundo que

o acompanhava, assistimos ao crescimento da centralização do

poder político encarnado nas grandes monarquias nacionais. De

um poder fragmentado na Idade Média passa-se a um poder unifi

cado. Ora, se a principal questão que os gregos se colocavam

dizia resneito a melhor forma de governo, temos, na Renascen-


62

ça, no lii'iiar da Idade Moderna, o poder elevado a condição de

questão central para o pensamento político. O que e o poder-?

Como conquistá-lo? Como mantê-lo?

Neste quadro flaquiavel escreve suas obras e atua na

política. Muitas são as leituras que se tem da obra do flo-

ren ti no. Sendo assim, nossa inieção aqui não éa de encontrar

uma interpretação original do pensador. O que desejamos, particu-

larmente neste capítulo, e esclarecer a ruptura operada por

ele com relação ã tradição de pensamento político nascida na

Grécia Antiga. C sabido que a cjuestao mais importante desta

ruptura está ligada ã idéia de autonomia da política que pei--

passa a obra de Maqu i a veI. O poder e a política, neste caso,

não precisam mais buscar fora de si a sua justificação. A po

lítica nao mais se funda numa ordem c o smo 1 õ g i c a , no |.ioder di-

vino ou num conjunto de valores morais que viessem a estabele^

cer parâmetros para a ação do governante. No Hvro O Prínci-

pe. Maquiavel discorre sobre uma série de ações e situações

que podem auxiliar um príncipe efetivo na conquista e na manu^

tenção do poder. Tentaremos, no decorrer deste capítulo, ex-

plicitar a importância deste livro de Paquiavel para se pen-

sar a ()uestao da instauração do [)oder político.

Logo no início de O Príncipe flaciuiavel nos diz, numa

pa s sa gem . 1 a rga men t e citada, que "tudoc, ou Ei:tadoi>, todos oíj do

tnlnioü quti iam haoido e que hÚ nobt-c oü homoia foi'ui'i u t'uo

púbLiauíi au pvitiij Cpadoí) ü autor escreve que os principa-

dos se dividem em hereditários, sendo estes dominados por príin

cipes que os herdaram por direito de sangue, ou novos. Os no^

vos são subdivididos em totalmente novos ou são acrescentados

ao Estado como herança adquirida pelo príncipe^. Mas toda r£

flexão de Maquiavel recai sobre os principados novos e isto

merece a nossa atenção. O autor justifica seu interesse di-

' MAQUIAVEL, 19 79. P. 5.


63

zendo que nos principados hereditários basta ao príncipe se-

guir a forma de agir de seus antepassados, ja que elo recebeu

o poder por herança. Lendo a suficiente habilidade para resol

ver dificuldades particulares que possam surgir. 0 príncipe

não precisa instaurar aT um poder, pois este ja existe.

Tal não acontece com relaçao aos principados novos.

Muitas sao as maneiras de conquista-los e de mantê-los, mas

muitas são também as dificuldades de se exercer sobre eles o

poder. I- aqui que nos interessam as preocupações de ria(|uia -

vel. Situado neste intervalo entre a dissolução do poder feu

dal e a formação dos estados nacionais, a questão da polTtica

como ato de fundação sera uma presença constante no seu pensa

mento. Como e por que se constitui o poder político? Vimos

no capitulo 1 como a dissolução da idéia grega de physis in-

viabiliza a fundação da política sobre a ordem da natureza,

flaquiavel vive em Florença, numa Itália que experimentei em

seu sonlio de unificação todas as dificuldades de um país de

estrutura feudal ja no in"ício do ca i:i i ta 1 i smo . Paul Larivaille

nos descreve a Italia a época do nascimento de Maquiavel como

IU'\ VIU ü lI L í' o lÍü t. íS L \.l ill. * c./ u' <.1 L ÍFÍk' H i.' t-' t i.' I* 1' l ( ~
riaíi), y^girncú ]>o !■ i l icon, ncA-ágioíS dc
ool i) ifieyi to oco>iorryico, ate aultuvuí'. Jtiuíto va-
i-iuücLií. C inao (ji'^Didcii Et: tcidoi^ ' .'-Lig i ok.u ic ' ,
opoatoo poj' j')-j q Ih: )t t e r,, dut^.íyiar! u
vida da pcjiiutsu Ia : o dc IJapolcc, naa
inaor> dos aragona u e n ; c.>a !■', i-, tado ü Pon t-i-j'i c íoi-;
o Eiitudo F Lui'cn t i>tü, há dcccnioü aob o cunti-c^
ifí da famíLLa Mediai; o Duaadu do '-111 ao, o a
Ktipub Itca do Vo}ie::a. Kr\ tovuo doiji^oc cir.oo
Kíitadoü (jvaoitam algunn Hutadoc: iKcnoi-oc, loo-
j'iaamen to indopondont or, o soberano j j mau, de
fato, ohx'igadoa, pafu neuti-ali:sai' aü air.bi^-õeü
o ísob i'e vive V, a alinhai', do acoi-do aorn ot: Deue,
iyi teve a soo, sua pol í tiaa.^ci de um ou outvo de
aeu3 püdevoüoa i^i ain hor> " .

Esta descrição que nos faz Larivaille mostra todo um

conjunto de fatores que produzem um diferente quadro de rela-

ções na Itália da Renascença. flaquiavel vive neste universo

^LARIVAILLE, 1988. P. 9.
64

e tenta compreendê-lo. Se O Príncipe não e um livro sistemá-

tico, também não e uma simples cartilha de consellios, pois,

ao aconselhar o príncipe, Maquiavel tem toda uma concepção de

política subjacente a estes consellios. O autor pe>'cebe, com

os olhos em sua época, que a e x [jer i ê n c i a política não nasce

do acordo dos homens em torno de uma vida eticamente mellior.

E justamente a partir do contrário, ou seja, é do conflito que

as relações políticas se tecem. flaquiavel formula isto clar^

mente cjuando no seu livro Comentários sobre a primeira década

de Tito Lívio (Discorsi) nos mostra cjue foram as dissensÕes en^

tre o povo e o senado que fizeram com que se produzissem leis

que garantiam a lit^erdade em um dado momento da historia de

Roma ^.

Toda uma maneira de se pensar a política e modificada

com esta formulação maqui a vel i ana . Em O Príncipe, o governan^

te não pode contar com o consenso dos homens em torno do seu

poder, pois ê este que possibilita uma certa união entre os

indivíduos. O príncipe é um senhor que exerce o seu |)oder en

tre dois desejos e isto e formulado quando flaquiavel fala do

principado civil. Segundo ele, o poder neste principado e

dado ao [)ríncipe pelos seus próprios concidadãos. Estes ou

são o povo ou são os poderosos. Isto se dá [)or(.]ue

' o d\.i'ò Cl íj íJ L ciciiJ íj íi C lí H Li U yí t l* lí !U tJ iJ Í íj cÍ IílI í-I


tendenaiaú dCvei'imc j ií:tú naiíco do J\itu de-
que o povo não deúcja uai- govciniado tuMn opu'i-
tnido pelos gvatidca, a eirteu dene Jam govei-nai'
e opx'Lmiv o povo. Vestety doia ape li te íj dife-
ventea nanoc nas aidaden um dev,teo cfci-
tots: pvincipado^ l ibevdadc, de uoi'dem" .

Ora, vemos assim que ao invés de compreender a polity

ca como a esfera onde os iguais irão operar o consenso pelo

debate, pela palavra, o príncipe para Maciuiavel tem que com-

preendê-la como algo que se funda num conflito de interesses.

^ MAQU IAVEL , 1 ^379- P. 3 1.

* Ibidem. P. 39 -
6b

O príncipe exerce seu poder num jogo onde ele tera de arbi-

trar a convivência das duas partes em conflitos. Seu poder,

que não esta fundado em nenhuma ordem transcendente, dependo

de sua liabil idade em jogar com estas duas forças opostas. Es-

Les dois desejos sao irreconciliãveis e toda a dificuldade do

prTncipe será a de exercer seu poder tendo como suijosto este

conflito. Ao fazer- isto deve o prTncipe ter a cort s c i ê ric i a de

que uma das maiores preocupações do governante tem que ser a

de nao contrariar o povo. Para Maquiavel não se pode satisfa

zer plenamente os grandes sem agredir o povo. Segundo nosso

autor

o o oo o iJ t.' i* i' t i íj J íJ L t u , l* íj t'ii c v-' í' J í.' l i-


vo do povo ii inaiíi houci:to do cjuo o doa podai-o
ijoa; catcú ({iicrctn op r Irn'- r c aciuc l c nao ú r
op I'itriido. Co>ití>a a hostilidade do povo o
pvi-ncipü não üe podo aiMsd jui-ar nunca, i'ur.;u^:
nao muitOij; com i-üla^^un^ (/í.'ü (ji-andt:a, c poi.-!Ji-
oc l ]! o í'q li e sao po uc o u ".

Vemos assim. (|ue a relação de dominação para Maquia-

vel e algo complexo. Não se trata simplesmente do uso da fo£

ça bruta. Apesar das leituras neste sentido que se fez da

obra do florentino, Maquiavel ()ede ao príncipe (luo tenlia uma

capacidade de jogar o jogo polTtico a partir de uma visão lú-

cida e estratégica das forças em conflito. T necessário ciue

o príncipe tenha poder suficiente para evitar que certos pro-

blemas aconteçam, pois e muito mais seguro para ele prever as

dificuldades e evita-las do que ter que remediã-las posterior

mente. £ desta forma que Maquiavel escreve, ao falar da polí_

tica de Roma para com as nações conquistadas, que

oíj i'OfhanOtj 11 o s t' cij casos J i*ao cj uo t- o do


príncipe prudente da o a fa:',ei': não só ramo d i ar
o pi'e sente, tuas prever os casos futui'os i3 p J"£
üeyii-los aom toda a perícia, de forma que se
lhes possa faa ilmente levar corretivo, e nao
deixar que se aproximem os aco)t teciruef.tos, vois
deste modo o remedio tiao chtuja a ter^po, ten-
do-se tornado iyicuravel a moléstia"^.

^MAQUIAVEL, 1979. P. O .

^ Ibidem, P. 12.
66

Portanto, o príncipe atua na política com uma visão

estratégica que lhe permite perceber inclusive o movimento fu

turo das peças do jogo. Não que tenha de partir de abstra-

ções, ao contrário, é a observação dos fatos que acontecem e

dos que jã aconteceram que permite a suposição de como as

coisas podem vir a acontecer.

Ü assim que Maquiòvel fala do exercício efetivo do po-

der. A instauração deste e que permite que a associaçao dos

homens seja possível. An teriormente a existência deste poder

sõ existe a desordem, o caos e Maquiavel vê isto cone ret a men-

te na Itália dividida de sua época. A instauração do poder

feita pelo príncipe coloca um terceiro elemento na relação p£

vo versus grandes que será o mediador e o ordenador destes

dois desejos.

Desta forma, o próprio poder para o florentino deve

ser visto como instância mediadora de conflitos. Isto está

implícito em suas reflexões, eiDbora ele nao nos dê uma defin^

çao de poder político. Isto se deve ao fato de que seu pensa

men to se constrói a partir da própria dificuldade que o pens£

dor tem de precisar os conceitos de uma |)ossível Ciência da

Política. Concretamente, como jã vimos no capítulo 2, a Euro

pa e p a rt i c u 1 a rmen t e a Itália, enfr-entavam na Renascença uma

série de tran s fo rmações ao nível de sua organização |)olítica.

Enquanto Aristóteles, em meio a desagregação da Grécia, con-

seguiu encontrar numa cultura solidamente constituída os refe

renciais para pensar a política, Maquiavel tem diante de si

não sõ uma experiência imediata de mudanças radicais, mas uma

cultura absolutamente fragmentada. Mas no seio de toda esta

fragmentação, o poder existe efetivamente. Para Maquiavel, o

príncipe no exercício deste poder nao encontra certeza a pr1o^

ri e somente sua ação pode estabelecer alguma espécie de or-

dem. O campo da política, entendida como um jogo, é uii. terre-

no de incertezas que sõ a perspicácia do príncipe |)oderã con-


67

trolar. Desta forma, Maquiavel diz que

"Nao pen'cc nunaa ticnhuni goocinio pudcf tor.ar


daaiiiões abf^ o lutament o aer'tar,; per.i-.c antcc c"'.
que tomá-las lijinpyú inccvtai', o o ir ijtu
na Oi'd cm daü c o ti, as, que nu>ic^' deixa,
qiiuudu se pi'oaiii'a e oi La r a!>juin i )u.\j >: V t, n i c n v-j,
de inc-Ji'i-e}' em uutfO. A pt-udenaia esta Juata
r.ente em saber conhecer <; natitre::a cos í>ícok-
venientes «j adotar o menos p rej udie i a l ■rn,,
sendu boni" .

Percebe-se, então, o que significa a política como

técnica para Maquiavel. A polÍLica, em sua concepção, não

tem o caráter sapiencial como em Aristóteles, onde o homem

virtuoso consegue encarnar em sua praxis a lei, o nõmos, como

ordem reguladora do universo. Sendo a política encarada como

um jogo onde a conquista e a manutenção do poder sao a iiieta,

cabe ao príncipe elaborar estratégias e dominar técnicas cap^

zes de assegurdr o seu exercício. O que está em jogo para I-U

quiavel não é o bem a que certas práticas podem levar, mas a

utilidade que elas têm. Quando a associação dos homens perde

o caráter de comunidade, como vimos no capítulo 2, e passa a

se constituir como sociedade, onde os homens lutam por suas

necessidades, perde-se a dimensão de um poder nascido do con-

senso, pois õ o interesse de cada um em manter sua propria vi

da que passa pa r-a ])r i me i ro plano.

3.2. Poder e soaicdade

Vimos no item anterior o poder surgir como uma ques-

tão fundamental no pensamento de Maquiavel. Este poder não

mais se funda no condenso, mas, pelo contrário, e ele que po£

sibilita a associação dos homens. Ele sÕ se sustenta se pode

garantir aos homens a sua segurança e a sua liberdade, não po

dendo ser exercido apenas dentro da lógica da força. Tanto e

^ MAQUIAVEL, 1979- P. 9í).


68

assim que, mesmo atribuindo todo poder ao príncipe, Maquia-

vel o desaconselha a ser odiado pelos súditos. O ideal, para

ü pensador, Õ que o príncipe seja temido e consiga ao mesmo

tempo não ser odiado. Ele escreve que

poi'tunLo, ü i) f i nc ipc i- .A.


t:]uncLi'u qi(0 ^ íJu' nau aa J'í:.wi' amado, pelo i:.,:-
>íOij evite o údio^ pí> i i; c fácil ^íü i\ejiru.
Icr.yo túinidu e nau odiado, o que imeedei-Õ. uma
vez que ije abuteriha de :;e apode}'ar dor. hene
e daü mulhei'ei} doa neuu aidadaoa e doü seui'
t:údiLOLt, e, /neijuio íiendo obrigado a de i'j'ai'.a}-
o aangue de alijueni, poderá j'ai:e-lo quando hou
ver Jujt t i f i eat i va aonVt: nie n t e t.* eauea nan-ij',.:í'
ta. DeOe, nobre tudo, abe<ter~ce de üe aprove i^
tar doa betíc doa outror., porque oa l.u!\e>ta ec-
(lueeein ina ia dt'prea aa a rnurt e do pai do ijue a
pei'da de aeu pa t r imÔniu" .

Ilã um limite, então, para a ação do príncipe e este

se encontra na esfera da vida privada dos liomens, onde estes

buscam segurança, possuem bens e suprem suas necessidades. Na

Renascença, esta esfera privada não e o mundo doméstico, a ca

sa, como para os gregos. Não 5 o lar- onde o chefe da família

exerce a dominação sobre os outros iDembros. Na Italia, por

exemplo, hã um grande desenvolvimento econômico e já podemos

assistir na Europa o surgimento do (jue se chama lioje a esfera

do social. O reino das necessidades não se restringe mais ã

esfera domestica, mas ele gantia o espaço público na forma do

social. Estando os fiomens, na esfera do social, em constante

luta, jã que movidos por interesses opostos, a questão que se

coloca é a de como governa-los sem deixar ciue a sociedade se

transforme num caos ou seja sujirimida enquanto sociedade ci-

vil pelo exercício de um poder tirânico.

Hannah Arendt mostra muito bem como se da esta passa-

gem da esfera das necessidades do espaço da família, na Gré-


- Q
cia Antiga, para o espaço publico na Idade Moderna". Ela

® MAQUIAVEL, 1979. P. 70.

^ ARENDT, 1961.
69

identifica um abismo entre a vida do lar e a vida na esfera

polTtica, colocando Maquiavel como o pensador que tentou dar

conta desta questão. Segundo ela,

"o que conLiniiu a üi'." ijui'p I'tjenda): i/iu- o


LiHÍaO tüòvico pó ú-íi l áü üi a o quo, níí/.-j í-, f o r o
t'X i i>ao !'dí>iá)'io pai'a devolva' à poLíiie^ cu.i
diyuidíidc, cuti'c viu cat-í' uhicr.o e a ,-l/i-aje r.
necec úcíi'í u pui'a t I'an üpa-l o , ienhu. cidc' '-luciuia
vc L , que müútva corm.» 'o c ondo t t i c i-c í-e eieVa
de uma baixa aondií^wio ate uina aor.dii^'uo eleva-
da', da vida privada aa pvinaipado, daa eü^^i_
(^'oeü eornunü à glória dao ijrandeD j'a'^-ar.hae"

Concordamos com as colocações de Hannah Arendt, mas

temos que chamar a atençao [)ara um fato: seguramente Maquia-

vel nao está querendo resgatar a dignidade da política tal

como os gregos a compreendiam. Quando ele busca exemplos na

historia ele os encontra na cidade de f^oma. Ora, a visão dos

gregos e a dos romanos sobre a jJolTtica são diferentes e a

própria Hannah Arendt percebe isto quando nos mostra, ao dis-

cutir as diferenças entre os conceitos de social e de políti-

co, que em Sêneca já encontramos a tradução do animal polTti-

co (Zoon politikon) de Aristóteles por animal social (animal

social is). A autora diz qu e "iite l ho 1' i/ ue to di-i t e í^' i' la , t jLa

j ub t> ti tiiiao do político pelo úueiai tnoúlra ate que po>:iu ee-

tava p,!i'dida a eoncep^^rao oi'i.jinal grega ihi po l í t i ea . T de^

ta forma que acreditamos que flaquiavel elabora uma nova con-

cepção da política sem querer resgatar o sentido ou a dignida

de que esta tinha para os gregos. A nosso ver, sua teoria se

produz justamente no espaço entre o fim da possibilidade de

se pensar a política tal como os gregos o faziam e a conse-

qüente necessidade de fundar um outro corpo de conceitos para

refletir sobre ela. flaquiavel escreve em um momento em que

não sÕ o Estado moderno começa a se configurar, mas também uma

ARENDT, 1961. P. k'j. (tradução minha)

'' Ibidem. P. 32. (tradução minha)


70

sociedade com problemas que não se reduzem ã esfera jjolTticd

mas têm, de uma forma ou de outra, que ser equacionados por es-

ta. Maquiavel escreve tendo como pano de fundo estas questões.

A economia na Itália, por exemplo, já não estava mais restrita,

como na Grécia, a organização do lar em co n t ra |)o s i ção ã esfera

poHtica. Como escreveu Perry Anderson, num texto ja citado

no capítulo 2 desta dissertação, as cidades italianas se cons-


- 12
tituiam, diferentemente das cjregas, como centros de produção

O comércio era intenso e também a indústria têxtil. Segundo a

crônica de um viajante da época, Florença teria, por volta de

14 72, duzentas e setenta oficinas especializadas na Ia, oiten-

ta e t r-ês especializadas na seda e trinta e três ba rico s ^

Assim, embora M a c] u i a v e 1 n a o centre s u c> s reflexões nos

problemas da economia, estes existem de fato e exigem uma or-

dem política que não entrave seu desenvolvimento. Mas a eco no

mia nao é a polTtica e aí está a questão. São duas esferas

distintas mas que vao, a medida em (|ue se com[)l ex i f i cam as re-

lações numa sociedade, se i n ter penetrando cada vez mais. íia

Itália renascentista, economia e política se cruzam, por exem-

plo, no momento em que ricos banqueiros, como os üédici, exer-

cem influência nos negócios políticos. Maquiavel, como se-

cretário da embaixada florentina, viu de perto estes problemas.

A esfera das necessidades onde a dominação se exercia na Gré-

cia antiga ganha espaço público e o poder, enquanto dominação,

se exerce neste es()aço. O |)rTncipe do qual Maquiavel nos fala

encarna este poder e muitas são as leituras que o vêem como o

sTmbolo da tirania. Mas é a esta leitura que não nos apegamos

e no capítulo 4 poderemos mostrar mais detidamente o porquê do

nossa posição. Por ora, as reflexões que fizemos sobre a im-

1 o
Ver nota 2^ do capílulo 2.

'^ LAR I VA ILLE, 1988. Pp. 111-112.


7]

portãncia da economia e o surgimento da esfera do social têm o

objetivo de corroborar nossa afirmação anterior, de que Maqui^

vel vê limites para o poder do príncipe. Este, enquanto repre

senta o Estado, não pode s i iiipl e sinen te absorver em si a esfera

em que se desenvolve a vida pri vatla dos seus súditos e c]ue já

se constitui na Renascença de Maquiave!, conto o esboço de uma

sociedade civil entendida a(|ui como uma esfera de relações en-

tre [la r t i cu 1 a res, cjue se auto-regula sem a necessidade do [loder

coativo do Estado^*^. Isto ê claro (juando Maciuiavel, ao falar

das atitudes do príncipe para conseguir a estima do povo, es-

creve:

"DdOa uinJu um p v hic i pc noji í. ívíi'urL.intt: .Lu.;


vi r tuJd a e honi-ar oí: i-i' tw ! ü tn j f,i>i ({,.■ r. >!u
ir.u cirtn ({uu Iciuc . Alem dir.c.o, u n í ru; r u;:
acur, aidadaoíj a d .rc ra íJ }• 1 t >.• u:: ::uíiíí h t i
V L dude íi, )io cuméi-ciu, nu iiji-!\u<!t-urí.i i.'''; qu.;!
qtíCi' ouii'u tex'X'Oio, de nioiio íjih: o
d tj L tXj C" d cí í> í> li (i *' d^i í t--'
u (jutnavj iwite não dt:ixi; de í!u u t: nvu l vc r u r.u
yiccjocio poi' ir.e du de itnp^-> f, t u o . 1'elo c. ■ n t I'.i r i. o ,
deve inii i LÍuiv pfemLor, imi ra oa que quíúei-eir. r.
l taíc, aoíüi/ü l.' paiui í cdoi' oí; qut', poj- qií.:!
quer inuneCi-a, pexj^arern ein ampliar a cua cidade
ou ü oeu Matado"

vê-se pela citação acima fjue Maquiavel percebe uma es-

fera de relações que não pertence ao Estado, mas é fundamental

para a existência deste. Isto n a o (| u e r dizer c] u e a relação

Estado/Sociedade Civil seja algo claro e jã bem constituído em

Maquiavel. O que estamos tentando mostrar e c|ue o florentino,

vivendo as mudanças de sua época, começa a perceber o surgimon_

to de certas questões que irão balizar o pensamento poético

desde então. Diferentemente dos gregos, a política para Ma-

Utilizamos o conceito de Sociedade Civil aqui tal como o d£


fine, num primeiro momento, Norberto Bobbio. No texto que uti
I izamos deste autor é demonstrada toda a complexidade e o de-
senvolvimento deste conceito na Filosofia Política. Mas, para
nossos objetivos, basta a primeira definição que visa nomear a
esfera de interesses privados que não se confunde com o Estado,
Para maiores detalhes sobre o conceito de Sociedade Civil ver:
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: p<:ira uma teoria
ü e r a I da política . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1 'JB"? , cap. II.

^ maquiavel, 1979. Pp. 95-96.


12

quiavel é onde a dominação se exerce o nosso autor crê que o

desejo de dominar e algo natural nos homens^Mas esta domi-

nação não pode ser tirânica, onde o poder e totalmente polari-

zado na figura do príncipe. A esfera em que o príncipe se si-

tua não pode absorver a esfera em que se situam seus súditos

que, como já mostramos a n t er-i o rinen t e , não se apresentam como

uma massa única mas se dividem entro os grandes e o povo. O

prTnci ()e , ao fundar o Estado, possibilita (]ue do conflito e xi^

tente entre estes dois pólos, venha a surgir a sociedade polí-

tica.

Sondo assim, não 5 apenas o uso da força bruta que as-

segura o poder do príncipe. O uso da força sõ e valido quando

ela e bem utilizada e isto implica saber da necessidade real

deste uso, o momento e o contexto certos para (jue ele tenha lu

gar.

o. ,5. O poder aomo joíjo

Constatamos então, no ultimo Ttem, que o poder do prTn

cipe têm limites e que não pode ser exercido apenas [lelo uso

de força bruta. Isto ê importante porque não foram raras as

vezes em que se confundiu a teoria de Mac]uiavel com uma apolo-

gia da violência. [T bem verdade que a violência aparece nos

textos do florentino, mas e necessário compreender como ela se

inscreve no quadro geral de suas formulações.

Sobre este aspecto ê famosa uii)a passagem de O Príncipe

onde Maquiavel fala da tomada da Romanha por César Borgia. Se

gundo nosso autor, a Romanha se encontrava mais espoliada do

que governada por seus antigos senhores. Havendo muitos dis-

túrbios e muita revolta por causa disto. César Bõrgia deu ple-

nos poderes a um homem chamado Ramiro de Ürco para restaurar a

MAQUIAVEL , 19 79. P. t'i -


73

ordem e este, usando de grande crueldade, conseguiu se desin-

cumbir da tarefa. Sendo isto feito, para não atrair o ódio do

povo. César Bórgia constituiu um juTzo civil na província e foz

com que o [)ovo visse que as crueldades praticadas focam causa-

das não por ele, mas pelo excessivo rigorde Raiiiiro de Orço.

Pos ter i o rmen te a isto, mandou cortar o ministro em dois [)eda-

ços e exibi-lo em praça pública^''. üra, tuío é a ferocidade do

espetáculo que impress ioiía flatiuiavel, mas sim a habilidade de

César BÕrgia em jogar com ela |)ara acalmar os ânimos do povo.

Sendo comum este tipo de punição na Renascença, o (jue c It ama a

atenção de nosso autor é que neste episódio não se tem u uso

da brutalidade pela simples brutalidade, mas a utilização des-

ta com o fito de garantir a manutenção do jjoder. O uso da for

ça não pode ser indiscriminado, pois tem-se que observar a ut_i_

1 i d a d e (HJ não c| u e ele |) o s s a ter.

Desta forma, os atos do prTiu, ipe nao podem ser irraci£

nais sob o risco de que ele venha a perder os seus domínios.

Como já demonstramos, ü príncipe não é um déspota ciue governa

em benefício proprio. Ele nao |)ode simplesmente aumentar im-

postos, roubar os súditos e violar suas mulheres. Quando co-

menta a morte de Raiiiiro de Ore o, Maquiavel frisa, e jã o mos-

tramos acima, que a Romanita era mais espoliada do que governa-

da por seus antigos senhores e isto vem reforçar nossa formula

ção de que o florentino não Õ um adepto do despotismo. Por

mais que quisesse, ao escrever O Príncipe, agradar aos Mediei

no poder, nosso autor era um republicano que sabia muito bem

qual o valor da liberdade. O Príncipe, aliás, foi escrito du-

rante a elaboração dos Comentários sobre a primeira década de

Tito L^vio, livro onde Maquiavel expõe seus ideais republica-

nos e que trabal haremos no próximo cap'itulo. Sem desconhecer

as diferenças quanto ao tema entre os dois livros, cremos que

'^ MAQUIAVEL. 1979- P. 30.


74

ambos fazem do exercício do poder objeto do reflexão.

Assim, se o poder para Maquiavel õ o que deve estar em

primeiro plano nas preocupações do príncipe, este nao deve pou

par esforços para mantê-lo. Não podendo fazê-lo apenas [)elo

uso da força, pelas razões que já a[) resen tamos , deve o prínci-

pe unir a esta a prudência. Maquiavel comenta que

"c >iLÍLijjaa2-LO ij ito ü i> j'L na iju.' isí;ju tao p j'hdj n t d


quj úuihu coíLar oa que lh<j lí fí\ú>at a-
i-iain o íjüvcfyio c pi\it-L.c\!r aj ua í i. du dijpró-
jn'iuu I'ui'a lhe ai' ue (jiu-ur a uoú:)e dciite, ae Lhe
e poüJÍJdL; r.au, nao poiL;nd:i, cotn runiíf pj-eoe^
pui,:aOj pode - 3 e ^ de ixa f que a.' coicuii c,i.ja>n aeu
(jui-üo iiaLui'al"

A prudência neste caso e uma capacidade de cálculo, c o saber

agir medindo a utilidade ou não de suas ações e o favorecimen-

to ou não do conjunto de cir'cunstancias do momento. Sendo a

política um jocjo, i necessário saber a hora certa de movimen-

tar suas peças e, inclusive, o momento certo de blefar. O que

conta ê a vitoria e, depois desta, todas as estratégias usadas

para atingi-la encotitram justificativa. Sem acreditar que se-

ja importante saber se Maquiavel, encjuanto cidadao comum, apo ia

va ou não estas ações do príncipe, o importante acjui ê nos lem

brarmos de que as suas opiniões não se fundam em abstrações. I!!

muito claro o princípio metodológico do tlorentino ao refletir

sobre a política quando, no capítulo XV de O Príncipe, ao fa-

lar sobre a maneira do príncipe de se comportar com os seus sú

ditos e amigos, Matiuiavel diz:

"ToduVÚa, como e meu i>itent:u eneveoei- eoida


útil pai'u os que tsa in te re ijtj avem, pui'eeeu-n:e
maic co>iVen ioitü pt'oaufav a verdade pelo efei-
to dais ooiúaa, do que pelo que delaa íse poniía
i inuíj i}ia 1'. E muita <je>ite imaginou repúl l ic aí> c
pi'ina ipados que nunca i>e víj-am nem jamaia fo-
ram re aonheoidoü como verdadeiros. Vai tanta
diferen(^'a entre o oomo ise vive e o modo por
que je deveria viver^ que quem ne pi-ea.iupai- aom
o que deveria fazer am vez do que se faz api'en_
de antes a ruína p róp ria, do (jue o modo de
se pres ervai'j e um homem cjue quisei' fazer pro-
fissão de bondade e natut^-.^! que se arruine eli-
tre tantos que sao maus"
775
MAQUIAVEL, 1979. P. 6').

'^ Ibidem. P. 63-


Mas, o principio metodológico acima vem nos lembrar aj_

go de que jã falamos an teri ormen te; o terreno da |)olTtica, não

sendo um modelo abstrato, mas a realidade concreta, e um jogo

onde se pode perder ou ganhar. Sendo assim, todas as ações

que Maquiavel sugere ao princijje não tem o caraLcr de um abso-

luto e o governante que aplicasse cegamente não teria aprei^

dido nada sobre a prudência que o florentino aconselfia. Como

jã mostramos neste capTtulo, Maquiavel vê o cami)0 da polTtica

como um campo de relativa indeterminaçãu e desta forma nao ha

nenhuma essência, nenhuma verdade inscrita no terreno político

que possa ser apreendida pelo [)rTncipe. Para Maquiavel, em

0 Príncipe, o exercício do poder não é uma cjuestão de sabedo-

ria, mas de calculo. üiante da impossibilidade de possuir uma

verdade que ilumine suas ações, cabe ao príncipe observar as

diferentes situações que se lhe apresentam e agir eiii conformi-

dade com elas. As circunstancias lhe mostram qual a mellior m^

neira de agir, mas nem todo prTnci|)e fcirã uma boa leitura de-

las.

Desta forma, o príncipe deve ser um fiomem do açao e

a ação humana c algo de muito importante no universo mental re

nascent ista, como jã mostramos no ca|)ítu]o 2. S5 a açao ca leu

1 a da pode i n sta ura r o poder, id a s esta ação e também i íii p o r t a n t e

porque so ela pode manter o poder. Üepois de instaurado o po-

der num principado novo, não tia nenhuma garantia de que este

poder será mantido. O príncipe que s5 tivesse condições de

agir com perspicácia no momento da instauração do poder prova-

velmente o perderia. Isto porque a capacidade de agir de acojr

do com as circunstâncias deve ser uma constante, pois o poder

nunca estará plenamente garantido justamente porque, para Ma-

quiavel, ele não se funda na razoabilidade e sim no conflito.

O príncipe não extingue este conflito mas joga com ele para a

própria manutenção do listado. Mas jogar com o conflito, em

nosso autor, é perceber também que existe um conflito (|ue di-


76

rTamos funcJanienta 1, que existe entre os grandes e o povo, e ou-

tros conflitos circunstanciais, como entre partidos ou facções.

Estes últimos podem ser evitados ou mantidos de acordo com a

necessidade, época ou circunstâncias. No capítulo XX de ü

Príncipe, quando Maquiavel Cala sobre a utilidade ou iiao do

uso das fortalezas para proteger uma cidade, nosso auLor es-

creve Cl u e:

"üa >iUiSi!uíj iin t cp uj íí ud^jí: aqutjlji' i,'iu.* c t'ur:i it-


doa ijomo p i-ii de >i t ij L', a oíí !■ urna vatn dL::.i.:i' (jUi:
tóia tinha de aer inuut-ida pclu dívi.:u^' doe
Lidoey e Pt eu pe 1 ue foi-lnLa::ae, e aee.in ají^irt
de r^'iLi H e L i'c* d l x)e i*o li k<.í e e i dn íl<..■ «> e o k u » e t cí e p
va podei- conee fva- l ae nui i e, i 1 ine n te .
i,jr'a a púlítiaa ma i r, íjabia pi'OVuve ! f.e >: t )iaqi<e~
leií teinpüú eri que a 1 talzu r, ta oa de cei'to n.u-
do e q H í l i h va da , n.a íj na o e ri • i o ,7 u e p oe ea c c ro: i-
hoje como pi-eceito; luio acredito que ae dioi-
e>oei; t j-ouxújjem qualqu^.')- l>,;!n; antce., pelo cO>:-
tvavio, aeO)iteee ([Ue quando o initr.iyo ee a O i^
nJia , OtJ aidadaOíj pe rdetn-r,e lo<jo, poi-qiiL. a par-
te )iiaÍL> fraca ade ri ra ae foi^^^ai' e j' ie rna í) e a
outra não ne ].>odcra manter"'' .

Vemos, assim, que a necessidade e o tem|)o ditam se se

deve manter ou extinguir os conflitos (|ue chamamos de circuns-

tanciais. Tal não acontece com o conf 1 ito entre os (jr-arides e o

povo que deiwin i n a 1110 s fundamental. Sendo impossível ao príncipe

acabar com ele, jã que acabaria com o prófirio listado, deve en-

tão jogar com sua existência para o benefício do prõ()rio jjoder

e isto ele fará mediando o cttrito existente entre os grandes e

o povo.

A constatação destes dois ti|)os de conflito deixa bem

clara a descrença de Maquiavel na propensão natural dos homens

para a vida associativa. Swn um poder que os coagisse, os lio-

mens se matariam, cada um defendendo o que é seu. Não lia em O

Príncipe nenhuma referência a um estado de natureza onde o ho-

mem seria o lobo do próprio homem, como em Hobbes. Maquiavel

não se inscreve nas querelas do direito natural moderno justa-

mente porque este reflete sobre uma idéia jã bom constituída cie

2° maquiavfl, 1979. P. «8.


TI

poder politico. Para o florentino, vivendo na Itália de sua

época, a grande questão é a de compreender o que e o poder e

pensar como ele pode se constituir em sua pátria como possibi-

lidade de unificação face ao caos político em (|ue ela vivia.

Mas [)ara isto é tiecessaria uma grande habilidade do prTnci[)e.

O homem como lobo do tioiiiem em Macjuiavel não é a situação, como

já foi dito, de um estado de natureza anterior ao estado de

sociedade. Os homens se batem antes e depois da instituição do

poder, mas o exercício deste pode controlá-los canal i.íando os

conflitos para o bem do Estado.

Mas f'1 aq u i a Ve 1 nao acredita muito na capacidade dos

príncipes italianos. No ca|)Ttulo XXI V, depois de explicar por

que estes perderam seus Estados, conclui assim suas observa-

ções:

t.'ó" j t'j 1' j'i-u ,.• / p I • <!U'' pJ j í< í j


püi- mui toíi unoijj ccu.: j-> r í. n i: i tui do, i-'uya c/.-'pc.'
^ ~ í Cj ^ ^ f l lí Cí tL ij i.' !'t il íj Í.J l' t- tj ^ tfl lÍ i' L *'l
pvjpi'Ca ■íjnaOLu: poí-quc >iac' toido
o JL PU i.> poyii'ildo t-' o í) Lt.'nípi.fi) P
rnudur (ii c comiou noa honwní' nao ííc p o.j uo a r ,
>iu bonuH',\it com cm t oi/ipi: í; tu dc'j ) , c/uuud.' vi >: !\!':í
tijihpoj udvti i'ú o í: j i>ij >i a 1'íirn cm fuijir nuo n: dc
fjíidt: 2'-i:o d ctsp o j''.n'a'ri ijUi: p 0['u ! u o a
du>j du i Hit O L Cn a i íl doíi íK'n a: du l'C i! ou oh ''>1-
>t o iKiim. n L d . h'ajc I'o cKi't' t' r; I'om, meu quuudiO oj
outfoü h.-m muu, püj-Ji.-;, da i-xui' o.-,
out 1'OiS rcmcdioi; cr: troou dci^üc"" .

2. -1. A ví i'tu d a foi'lLoiu

Já falamos muito sobre a perspicácia, a habilidade que

o príncipe deve ter para conquistar e manter um principado. Co

mo vimos, ela é fundamental ao exercício do poder, pois é atra

vês dela que o príncipe poderá enfrentar as diferentes situa-

ções que podem surgir no exercício deste. Maquiavel denomina

esta liabilidade de virtú, A tradução desta palabra por virtu-

de não seria feliz, pois pode dar a entender que ela se refere

MAQUlAVtt, 1979. P. 10?.


78

ã virtude (aretê) dos gregos, ã esta excelência que um homem

deveria ter em sua vida moral e política. Pode-se confundir,

também, com uma certa exigência crista de santidade. Na verdci_

de, qualquer uma destas formulações estaria beii) distante do pen

samento do florentino. Nem a excelência grega e nem a santid^

de cristã são, para o nosso autor, elementos cjue possam auxi-

liar de forma efetiva no exercTcio do poder. A excelência e

a santidade prescrevem certas regras universais para a conduta

e para as ações humanas e Maquiavel exige do príncipe justamen

te a capacidade de agir de acordo com a i)a r L i c u 1 a r i da de inseri

ta nas diferentes circunstancias. O oportunismo da açao vale

mais do que um conjunto de regras cuja universalidade i^ode im

pedir que se acoiiipantie o fluxo contínuo dos acontecimentos no

bojo do qual se inscreve o inesperado de certas situações.

te inesperado Macjuiavel o chama de fortuna.

A questão sobre as relações entre virtu e fortuna eram

comuns na Renascença e jã o mostramos no cai)ltulo 2 desta dis-

sertação. Maquiavel se apropria da tradição liuinanista do Re-

nascimento e busca estas duas noçoes nos romanos. Para estes

afortuna er-a uma deusa e havia uma |)reücupação em se descobrir

como conseguir os seus favores. Mas os moralistas romanos nao

viam a fortuna como algo necessariamente ruim. Pensavam eles

que valia a pena atrair seus favor-es para conseguir glória,


22
honra e poder . O cristianismo ira abandonar esta analise ne
2^
gando a possibilidade dos liomens influenciarem a fortuna*^ . P^

ra Quentin Skinner, o pensador cristão I^oêcio une a fortuna a

providência e isto ira influenciar por muito tempo a literatu-

ra italiana. Mas com a tentativa do humanismo renascentista

em recuperar os valores clássicos, esta concepção da fortuna

22 skinner, 1983. P. '.5.

2^ Ibidem. P. 't 6 .
70

foi abandonada ao se retomar a dos idéia antigos de que havia


o4
uma distinção entre fortuna e destino" .

Desta forma, talvez a tradução mais aproximada de for-

tuna seja sorte, querendo com isto abarcar este conjunto de

circunstâncias produ-^idas pelo acaso e que, funindo do contro-

le dos homens, |)Odem ter efeitos positivos ou negativos sobre

estes. Ora, ja mostramos neste capítulo que Macjuiavel julga a

política um caiDpo onde não se pode ter certe^üas absolutas. Sen

do necessário ao príncipe operar neste campo, e preciso c|ue ele

possua vlrtú para que sua açao possa fazer frente ãs incerte-

zas produzidas pelas circunstâncias e c|ue tr-azem a marca da

fortuna. Maquiavel inicia o capitulo XXV de O Príncipe dizen-

do :

!1 ClU ÍulÍ ij c /ij ü t-í C> M /i t.- l' í L / u' tíU /.'i i í 1 í- 1 ■' 1' í' w i iJ
Lcm u opiniíio líc ijiic cio coica.: cio )\ukJj JuJ
íJi,'jvi a (ia;; pela fortun.i j pur iK-im, di: q
a jj fud-J Hij !■ u doa hot::cni'> >iao i>udc a j rr i j í - /a;; ,
i.: r.tj ii r,':u Híiu Iíu:í; Ira:: i-ijuwdío a'jur:i. I'j:- í\:-
íjü, p o diJ i'-iJ ij ~i u Juhjai- i/nau dc Jt.: alijucri t >i-
í:oi:iJí!a j'-ii »ini ! a r,, inuí" di^ixav-.'".' joiu.r
na r pe l a ;; u i' L c "

Em seguida, o florentino mostra que mesmo estando propenso a

aceitar tal opinião ele não o faz portiue acredita que, sendo o

homem um ser que possui livre arbítrio, ele pode dominar pelo

menos metade de suas ações^^. flaquiavel com[)ara a fortuna a

um rio que na época das enchentes destrÕi tudo eii) seu caminlio

mas, quando se acalma, pode ter as calamidades que provocou

pr even i das pel o homem que, construindo barragens e fazendo repa_

ros, sem conseguir evitar as enchentes, pois estas fogem de

seu controle, pode diminuir-1hes os danos causados. Assim aco£

teceria com a fortuna que s5 teria influência absoluta nos ne-

gócios humanos se não encontrasse, por parte dos homens, uma


. - .26
forma de resistenc i a

SKINNER, 1988. Pp.

MAQIJ I AVEL , 1979. p. 103.

^^ Ibidem. P. 1 ü 't .
80

Por isto a virtú será a qualidade fundamental em um

príncipe. O seu exercício irá possibilitar ao governante o do

nnnio das mais diversas situações e imprevistos que, tal como

as enchentes, podem ser evitados. ü que se espera do príncipe

que possui virtú não é a ação moralmente boa, mas a ação útil

para a conquista e matiutetição do poder. O interessante, a no^

so ver, e que a virtú maqu i a ve 1 i atia espellui aquela mudança no

estatuto do tiomem operada pelo Renascimento, quando este homem

passa a ser o centro dos interesses humanistas e a ação tiumana

ganha dimensões de grande importância. Ü liomem de Maquiavel ,

por exemplo, não e um simples brinquedo nds mãos do destino.

Ele domina pelo menos metade das coisas cjue lhe acontecem e es

ta metade, segundo o florentino, não deixa c]ue a fortuna aja

com toda a sua força. Segundo Ernst Cassirer, esta conce|.ição

em que a fortuna dirige apenas metade das coisas do mundo c-

uma inovação de Ma(|ui a vel ^.

As formulações sobre a virtú e a fortuna não são, a

nosso ver, uma simples curiosidade no i)ensamont.o de Ma c] u i a ve 1 .

Quando o florentino introduz estds duas noções, no capitulo

XXV, suas intenções são bem claras. Ele deseja mostrar como

os príncipes da Itália nao consegu i raii) se precaver contra as

armadilhas da fortuna, justamente por nao possuírem a virtú ne

cessaria. Parece-nos sintomático que o capitulo sobre a for tu

na esteja situado exatamente eritre o capitulo XXIV, onde Ma-

quiavel fala sobre o porquê dos príncipes da Italia terem per-

dido os seus reinados, e o capitulo XXVI, que 6 o último, onde

o pensador pede apaixonadamente a um príncipe possível que li-

vre a Itália dos bárbaros. Assim, Maquiavel escreve no capT-

tulo XXV, ao comparar a desordem da Itália com as enclientes de

um rio, que;

CASSIRER. 1976. P. 177.


81

tSíi aon3 i iU I'CLi'dcii a l La Li a, quo J u jcde c.


a origem ãeis taa I'evo l ii^'oea, vaveic, qur r c ia
como ntr.a I'^rjiao cciii cliqucu e iscni >i oihurui bur~
ve C ra , e que, ae foíSLíd co>ivcyi ioi tcmcv. : c proic-
cjida aoino u A l ctnatihu, a t'r.punha i' a cu
eu; ahciaís uao caimariarn a;: vcii'í.ck^-O'^:^^ qn,.: há,
ou nwíMiio II a o Ltc i cri uni Vr )■ i f ií'a do "^ .

Ora, este despreparo com relação aos movimentos da for

tuna se dá, segundo Manuiavel, quando um [jrTncipe se baseia in

teiramente nela. A fortuna, sendo extremamente variável, arras

ta consigo todo aquele que nao souber- ligar sua ação as suas

variações. Maquiavel escreve (jue: "Tuni.cin JuJjo j\,! i

l/íú:- aoiiibinu o i', c u modo de p ruce de r com c t; pu >• t-i cu ! l: ri du de ü deú

tempoü, e íiifelii'. o que J'u:: di-tJCi'rdar íiot.; tempoí: i.i íí u^t r:;a>iei}\i
28 . -
de proceder" . Assim, a virtu [lossibilita que o príncipe nao

tenha uma maneira unívoca de agir. Teiiipos diferentes ()edem

ações diferentes e sendo assim o príncipe, sem ser arrastado

pela fortuna, age no mundo se apropriando do seu |ir5|)rio movi-

men to .

lintão chegamos a um ponto importante. Como jli disse-

mos, citando Cassirer, a idéia de ()ue a fortuna s5 domina met^

de de nossas ações é uma inovação de Maquiavel e agora podemos

compreender o porquê do florentino ter elaborado esta conceii-

ção. Se o prTnci()e. e pri nci [lal men te o prTnci(je novo, ê o ins

ta ura dor da ordem política, esta instauração tem (jue t) use ar o

seu sentido em alguma coisa. Co id o sabemos, o legislador grego

tentava com a elaboração das leis ordenar o mundo fiumano de

forma a reproduzir neste a ordem da natureza. Na Idade Média,

o exercTcio do poder político estava submetido ao poder maior

de Deus. Ora, vemos então que a instauração política nestes

dois momentos da [listoria do Ocidente é garantida por algo ciue

transcende o proprio i)oder. Hesmo sendo os homens o instrumen^

to desta instauração, o sentido e a justificação desta vinlia

da necessidade de conformar estes homens a alguma coisa que

maquiavel, 1979. P. 10't.


transcendia a própria ordem humana. Em Maquiavel tal não acon

tece. Filho da Renascença, sua antropologia vê o liomem como o

agente capaz de operar por sua pr5i)rid conta o mundo. Sendo

assim, cremos, quando nosso autor fala da fortuna ele não pode

ria concebê-la como algo c| u e anulasse a p o s s i l) i 1 i d a d e da açao

humana. Sendo a fortuna sempre pensada com relaçao ã vlrtú, o

florentino nada mais tem que fazer a não ser atribuir a esta

a capacidade de diminuir a força da primeir-a.

Mas é necessário lembrar aqui (|ue virtú e fortuna sao

conceitos muito comuns no universo mental renascentista, o ((ue

os tornam desprovidos de um caráter rigorosamente teórico. Mes

mo assim, estes elementos iluminam muito a cjuestao da instaura

çao polTtica que deve ser levada a efeito jjelo [iríncipe. O

príncipe que possui virtú sabe muito bem ()ue a manuUMiçãü do

seu priricipado está intimamente ligada coii) a sua capacidade de

mudar de acordo com os movimentos da fortuna. A instauração e

a manutenção do poder só estarão segur-as se o príncipe dominar

a pa r t i c u 1 a r i dd d e das diversas situações que surgem no esfjaço

da [)olTtica. A ação do [)rT'ncipe não deve estar balizada por

valores morais, mas por- sua virtú, por sua [ler spi cac i a e impe-

t u o s i (Jade.
83

CAPITULO 4

ÉTICA, POLÍTICA E PODER EM MAQUIAVEL

4.2. O pod>-:v t-* a natu}'ei:a }iuinana

Nü capTtulo driLerior tentamos mostrar a importância da

constituição do poder para a instauração política em Maquiavel.

Agora ireiDos discutir o tema que mais gerou polêmicas nas di-

versas i nter[)retaçoes que foram feitas do sua obra: a ruptura

eri t r e a ética e a política. Esta r up t ur-a , c| ue de fato Maq u i ^

vel realiza, fez de nosso autor alvo de múltiplas condenações

e de leituras apaixonadas que acabaram desviando o olhar dos

seus intérpretes de muitas questões realmente importantes no

florentino. Mostramos, também, no capTi.ulo antori(j)", loiiio um

novo conjunto de correlações de forças no plano [tolítico e so-

cial colocou o pensador em face de questões que ele [jercebia e

tentava exprimir iDesmo nao possuindo uma aparelhagem concei-

tuai rigorosa. No quadro destas mudanças a rjuestão da melhor

fordia de governo, pergunta fundamental para a filosofia [)olTt_i_

ca antiga, deixa de ser colocada em primeiro plano e em seu lu

gar surgem as questões acerca do podei'.

Quando Maquiavel elabora a sua obra, os referenciais

greco-medievais estão sendo colocados em questão. O poder po-

lítico funda a si mesmo e não tiã nenhum fim ao qual ele deva

atingir a não ser a dopiinação dos homens. Pa ra nosso autor, os

homens ou se coníiuistam ou se exterminam e, no exercício do po

der, o príncipe legifera sobre homens que não tendem natural-

mente para a vida associativa^. T necessário notar, então, que

o florentino parte de um pressuposto a n t ro [)o 1 õg i co compl et aniein

te diferente do de Aristóteles. LsLe, como sabemos, definia o

' maquiavel, o Príncipe. P. 31.


8^

homem como um animal político. Para Haquiavel isto não é ver-

dade. Os homens não têm propensão para a vida política e, sej]

do assim, esta tem que ser instaurada e seria um engano acredi_

tar que esta posição de Maciuiavel esta ligada somente ao gove£

no monárquico do |)rlncipe. Nos Comentários sobre a |)riiiieira de

cada de Tito Lívio, livro em que Matiuiavtíl reflete sobre o tjo-

verno das repúblicas, ele escreve:

"Como dcmonn t: fiim Lodo:; o.-' í/ia' li a i-I'o i\: i'ot'i'c


poLÍLÍca, burn como itume ron oíí ox^riplor, h.iútovi-
aoiJ, o U;'a a a r/'o Í/UJ qurm cc Lahc l d a,:' u
de um L'í;t.ado, a in-omu l (j a nuaii ! ci i> , ./i,
rfi}icípio dc, qii^: todoij or, íiomoic- luio mauii, or-
iundo dlispo.'! í OI! u ujíi' oi'in jn: r Od rr i. tLidi: ror.j'f,
(juo haja oaaritio. L'cota malihido:: oouítix
duvauio um aarto tompo, i.rüo íjo dc oo a ahjuna
í-auiui dc íii; orili c c; i dii, cjuo a o xp o i-t c n cri ii aí}!d,a
ucio dcr>Vclou; mar c.' tcm.po - c nlio i d o Jur.i.ar.^K
tc como o pai da Oo fdadc - Lh.i f- ma n i. j'o r I a ~ ! a " .

Assim, a nature;;a humana é mã e, para o florentino, no momento

da elaboração das leis, o legislador deve ()artir deste pressu-

posto .

£ in)[iortante notar cjue o Macjuiavel cjue escreve estas

linhas e o republicano e na o o defensor do r'egime |) r i nc i [) es c o .

Isso nos mostra que a [) e s a r da diferença de o b j e to e n 1e O Pr í t]

cipe e os Comentários..., podemos extrair deles peh) menos um

ponto em comum: os homens têm (lue ser dominados, pois do con-

trário dariam vazão a toda sua virulência e tornariam a vida

associada impossível. Isto fica claro quando nos Comentários...

o pensador fala da expulsão dos Tari|uínios de Roma. Segundo

Maquiavel, depois qiie tal fato ocorreu, tinha-se a impressão

de reinar uma grande concórdia entre o povo e o senado. Isto

acontecia porque aos nobres tinha sido tirado o orgulho e as-

sim eles aparentemente se revestiam de uma " d i. r.pot; i./ao popu-

lar'" e isto fazia com que as "alauíseti ma ir modes tar" os acei-

tassem melhor. Enquanto os Tarquínios viveram esta aparente

união durou. O florentino diz que a nobreza temia não só os


8'j

TarquTnios, mas tanibéiii um afastameiUo do povo ao se sentir ofeji

dido e isto fazia com que ela tratasse este povo com modera-
~ O
çao . Mas flaquiavel escreve que;

"ToíLioia, lojo Cl n<j ciJ 'I\i i\i li í n i-Oi; i:,o f r^: tuifi, i' i,'..:
nobi-aa pc fdai-am o nu; cio , a oirn' ra fiirn a r )'af.
bi-c o 1>000 o OiJUt^no í{uc j u<.i i^in: n-.' r./i'i/.i.,
a<j rcdi ndu-o cuin todciú ar, iK: XíI O i; it que r o Ai.ir.
aonacbi.'!'. O q iitj proiui i-c j u n t i.: o ,/íí..' w'/'
LUitcii: uti hoiutnii) c J\i::ain o lu:iii {(uandí.' c ncac.'
líiifLo; quatidü aaiLi um t t.')n a l l h^: vdadi.' di' i >'
cuin abanduno e a i.r(jnj'u;! í/o c a iLir.ur-
dijin nao tardam a üt.' mau i j'c i': !. a y p ,:> r Li'dii parti. .
I'or íiitu c! li d C y. que a fome o a riii-.oria -
Lam a op e roa i da'.it' , t- que aa !í:ir, loj-):ar': a,; hi.>-
meiuí bonr> . í^uando uma caui^a i/üa /1/ii< r r.^roau::.
boui! (íoriij eq ÍL; na i a.; c.em, a i r. t-e rv,/n íe )ie i-a Ia
er.ta e inútil; maú ciuafido ta; d i í:pOú i t,'^o prop^
cia )!~io exii^t,-, a lei e i >id i f, pe nr, a Oe l ".

vê-se, na citação anterior, como a idéia de uma nature

za humana ma funda a necessidade da coerçao pelas leis em Ma-

quiavel. O poder existe para coil) ir- esta maldade natural que

se configura nos conflitos (|ue se [íode ver num Estado, pois

este, como já vimos no capítulo anterior, se funda sobre o con

flito essencial entre os grandes e o puvo. Se os liomens nao

fundam a vida associada espontaneamente, cria-se a exigência

de um poder cjue efetive esta associaçao. Tanto em O Príncipe

quanto nos Comentários... Maquiavel utiliza de vários exemplos

[la ra fundamentar esta sua tese, nao a extraindo de abstrações.

Sua prática como homem de Estado o levara a observar atentamen^

te a ação dos homens e dai ele tira suas reflexões. O iuteres

sante é que não é comum esta visão da natureza humana na Rena^

cença. Em Maquiavel ela nao se confunde com a idéia da queda

do homem pelo pecado, tao cara ã Idade Média e é fundamental pa

ra que o pensador elabore sua teoria sobre o exercTcio do po-

der. Este poder deverá ser exercido sobre Itomens em constante

conflito e deverá ter condições de equacionã-1 o.

E refletindo sobre a natureza humana no florentino que

discordamos da formulação de Ernst Cassirer quando este autor

^ MAQ.U I AVE L , ÍJL ^ •


85

escreve que "MaquLavcL^ }ia i> ua Leovia, eiiqujcd ci uc o jotjo I'oli

tico üd joga (join v<j I'duclei I'or, hoirie>u'>, a nao com fcr,;.: , c que

que eatá em jogo e a fcliaidada ou deisgraça Lt 1-- f Í (^ J < t ^ 1 t J ,

Ora, a nosso ver flaquiavel não se esquece que os fiomens são se

res humanos. C a sua concepção cia natureza humana que se cons

Lrõi de uma maneira diferente da de toda uma Lradiçao da filo-

sofia política. C necessário não perder do vista taiiihõm as

C|uestões que Maíjuiave! tenta responder com isto. A nature/:a

perversa dos homens, para o florentino, é um dado e esta liqa-

da ao fato de que os hoDiens sempr'e dominaram uns aos outros.

Maquiavel nos mostra que a c|uestão da dominação é fundamental

no jogo político e tenta compreender os mecatiismos di?sta. Se-

guramente o florentino võ no Estado a i:toss i b i 1 i da de de uma vi-

da socialmente organizada e sem a mediação deste seria impossT

ve 1 a constituição desta vida. Os homens têm desejcjs e inte-

r-esses opostos, sendo necessária uma instância (.juc! faça a me-

diação destes para evitar a dissolução da cidade. Macjuiavel es

creve (lue

"dcj Juio, K.I n a t u i\: y, a u;: /u-ricnit


dd dc tudo d a impo lê nc í a dc uL it.g :
toda:.' i/J CO i-íuiv, . Como o ddi'djo i!d i>o;'.-uÍ!-
main foi'td do (j uu a faculdade dc adqui."if, di.-
to va is u L t a um i;c'ci\.'t(' de i! gou t o i>ci.or, que po^:-
r,UiJi!i, CO qual r,c junta o da: con ! c n tant.m l íj
r> i i> rop 1-i Oíí . l-!ota c a origem doí^ ,:cu,; íKii-ia-
doj der>ti)i0i>. Uni) ijUí^fem poi: t: u i y maii'> , outfot:
temem ]'erdev o que já gLinhavam; </>.;' aH'ito i
a guei'i-a, que pov nua Ve í: p foOoaam a dec>t}'ui~
^•ão (Je um império pti i-a ;:ervír ã cl,:i\i.çâo de ou
t i-o " .

Maquiavel nos parece muito claro nestas linhas. Ele

parte de uma evidência, que são os conflitos nas cidades, para

elaborar suas idéias. Fossem os homens seres naturalmente in-

clinados para a vida em sociedade, não seria necessária a exis

tência de um Estado. Assim, esta questão acerca da maldade na

^ CAS5IRER, 1976. P. l60.

5 maquiavel, Come n t á r i us . . . P. 122.


87

tural dos homens não é uma mera banalidade em nosso autor. Ela

é extremamente importante porque é a partir dela cjue |)odeiiios

compreender porcjue os homens tem C|ue ser dominados, ou seja,

porque 6 necessário o poder. Somente conliecendo esta natureza

mã do tiomeiii, o governante poderá efetivamente exercer a sua

força. Isto porque, ao exercer o poder político, é necessário

ao príncipe ou ã república o conhecimento daciueles sobre os

quais o poder se exerce e sobre isto lirnst Cassiser nos di/,

comentando Maquiavel, (|ue

"u ['i-imci i\i I'uir'i j u r>: .1 !• i.v: l.' l-u


nhtiajr o horioni. E nunj.i o ironj)t.'}: .Ij i;,o .•<
quanto a r> t i ihj rinoi: iij c i to:' ci ÍLicu.io r,uu
'bunda.Id Oi-ítjinul'. Tal poJ, r-.hf
to 'iiiriana c' hy^lc ü> l on i c , rui:' na V ' t.la i> o l l t ía
j lan ah.Uii-do" ^ .

Desta forma, o conlieci mento dos governados õ fundamental |)ar-a

quem detém o poder. Jã no texto introdutório de O Prínci|)e,

ao oferecer o livro a l.orenzo de Mediei, flaquiavel escr-eve cjue

"pai'ii conhocei- bom a n <i t ii ro r. a do:', .j /'."'k-

cipe, o piWa aunhooov a do:', p ri na ipo.J >io o,á r L oor i/.'

üo"'^. Ora, Maquiavel escreve estas linlias tentando argumentar

sobre a importância que seu 1 ivro pode ter |)ara quem e [)rínci-

pe. E como se, ao ler o seu 1 ivro, o [)rítu;ipe efetivo |)udesse

conhecer a maneira como o povo o conhece e sendo assim passas-

se a conhecer mais o povo. Isto mostra o (juanto o fundamental

para Maquiavel que aquele que esta no poder possua um saber o

mais correto possTvel acerca dos governados.

í assim, cremos, que se torna im|,iortante no florentino

suas reflexões sobre a natureza humana. Sendo a ex[)eriõncia

dos homens em sociedade quase sempre pautada pelo conflito de

interesses opostos, qualquer forma de governo que se estabele-

ça deverá ter os homens sobre a ótica da 5us|)eição, ou seja.

^ CASSIRER, 19 76. P. I 6.

7 MAQUtAVEt, O Príncipe. P. 'i


88

deverá entender que o uso da força aliada ã prudência e ã pers

picãcia são fundamentais para o exercTcio do poder. Nao é sõ

Maquiavel que fala dos principados ([ue defende esta tese. Nü£

malmente, (]uando se (|uer criticar o amo r-a 1 i siiio de Ilacjuiavel

ta-se O Príncipe. Mas, como já falamos neste item, nao õ sõ

neste livro que se encontra o pressuposto da maldade dos ho-

mens. Nos Comentários... Maquiavel narra uma pequena revolta

do povo romano quatido este cjueria além de restabelecer os tri-

bunos e de permitir o apelo das sentenças dt? todos os may is ti-a

dos, matar todos os decênviros. Maquiavel d i .7 que os rei.tre-

sentantes enviados pelo senado para uuvic as reivindicações

aplaudiram as primeiras e discot'daram da última. O tlorentino

conclui c| u e

l runu: n t t: j -
ilcn tii c colo lÍíiíiJí-, ,io d La lond. (•o / .íú-,
i* o )*ij L tj íi íjlí L i- i í. •» Li i y i í* í' f 1t'<í o í) i'- /1 u' í*1.-.*.' t-
quem ct d,!. Nao ;j<j íh'!h: ifui ti í j\: r, t a i- [ricdí tld-
i:ujnid (t !>i-oprt.a inícu^/do, 1; r.ifn j' ■•i.'i-u i-.i r cJ'T-cr
li quulijUdr pvc-i^^ü o (fuc iu: j't: c 11 da . .•Io r.olici
t-Lir a;: urir.iití dc tuio r-J dii'.i: ;> rj
/ ík: I'd fit ma t. a t'~ La . í,U<autlo ai" iirnia;' úr.CtVcr, r.
Cl:: i!(jü:uí:; maor, , podu j;ao na r <.■ mp i-a. jadar. para
fim <j iia j.> ra J\: ri riiior, " ' .

Quem escreve estas linlias é o Macjuiavel re|ujb 1 i cano .

Desta forma, podemos [lerceber que, para além da distinção en-

tre repijblicas e principados, a ciuestao da instaur-açao do ()0-

der como um momento em que se suprime a pro[jria moralidade vi-

gente perpassa tanto O Príncipe quanto os Comentários... e o

pressuposto da maldade natural dos hometis está presente nos

dois livros, pois é a partir daí que se explica o exercTcio

do poder político. O objetivo da vida política para Maquiavel

não é a felicidade da qual Aristóteles nos fala. Nada mais dis

tante do pensamento de Maquiavel do (|ue a concepção grega de

política, onde esta era entendida coido a realização da liberda

de fundada na igualdade dos cidadãos. Mesmo o Maquiavel dos

Comentários..., que tem a liberdade como um valor fundamental,

® maquiavel, Comen t á r i os . . . f. 1't 3 .


89

se distancia ext reinanien te dos gregos. A liberdade para o flo-

rentino não tem como garantia o consenso dos cidadãos. Ela só

é possível através da mediação do Estado, pois os liomens não a

buscam naturalmente. Segundo o pressuposto da natureza ma

dos homens, estes, se entregues ã |.ir5pria sorte, viveriam num

individualismo radical defendendo cada um os seus próprios in-

teresses .

Por isto Maquiavel nos diz nos Comentários... cjue

"nao i>d pode duf UJ;; <j ti,i r, l i a<: r. du liicrduír.: /.ii".
EiMado difcito tihiif, util i.; u <j i.v,'í: ;; J c d, o qu,.'
dá podcf (laiir.ai-, o pooo, ou diante' dj
um niajir.t i-ado ou i vil>una l , c;! cidiuldci; que te-
nham iitoitadü l í íu; ri!:i dr . ,7. ■ -
drda tem tiuma i\.:pí(b 1 i,.-a , iloi!; uft.itir, .r f, r.-
i inpo }• t. an t. .J í; : p riru.; i r o <' </k..; aíd.i-
daui), temendo í'>ev ucu!uuior> , >:ao uu:uir. í.noei.itLf
aont.r.i ii r, í; <j u i-an do h'r.tuiio;
lo, feeebem i irie d i íI t n in e n t e (> cai: t t (jo >^:ei'eeLcio.
ü uuti'o e o de ae c on d t í t u i i' nur.a Oa:vula Je
eíicape a paixao que, de um moda (ju ,/.■ cííí í-ü ,
ííempfe J'e rntcnta eo>iiva al.jum (ridadac. .^uandt
eiitu paixao nao eneunira um meíu t j a l de vir
a li upe rf L c i. e , auniore uma importância extras, rai
nana, (jue abala uf, j'undament-oi: da república.
Níula a e>i fraqueae rã ta'.to, toiiavia, (juan o r~
an i- *■* 11111 c) b li t i.i o \ie m tf o La! c^Ui' i 1 J r 1' i n t a
çao de uaLxoes poi-.t:a e luuipa r [.>or uci ca>ii:L auto
yii-.adu"\

A liberdade é realizada pelo Estado porc|ue este faz o papel de

mediador. fias esta mediação s5 õ possível por(]ue o Estado tem

o monopólio da força e usa deste nionoi)olio para manter os cida

dãos reunidos. Assim, para Maquiavel, so a constituição de uid

Estado unificado pode impedir que a divergência dos interesses

existentes entre os liomens venha a implodir a cidade.

4.2. Ética e política

Pelo que vimos no item anterior, para Maquiavel os ho-

mens são fundamentalmente maus e na ausência do um poder que

os coaja, seria impossível a vida em sociedade. È i^or isto que

^ maquiavel, Come n l ã f i o s . . . P. -ti.


90

se torna tão importante o momento da instauração política, co-

mo mostramos no capítulo 3, quando a constituição do poder pos

sibilita a vida associada. Mas este poder na o busca sua jus ti

ficativa fora de si mesmo. Seu exercício, para Maquiavel, não

se pauta por normas morais que indicassem previamente (.jual a

melhor conduta para o governante. As ações deste só podem ser

medidas pelo seu resultado, |)ois õ a manutenção ou não da or-

dem no Estado que indica sua capacidade d(! governar. Ilaciuiavel

escreve cjue

"o LcjicLador >:nLi-!ado du dcccj'.' c j:,-L k.'. i


vo dj ííci-Di.f tuuJ oii f >t 1.1.: t',j r. r. >: r, ír,
inUí; ou do piil.! l ico: d,.' t I'uha l fu; r >:~io cm j'.:\ior
dot) [) }'01'}•!■ o i' Iw fdc l n.':' , tUlli' U 1'tU .•< -
muni, nã<j poiíj/Ln-n </.• J'o oc t\'t r
ludou todíi a uii t o }■ i du d.:. /,' >1^-nh ui': c.:.i'^ríto
aítJ!\.'cido lUJViiru qKcm r.c tct:hui I'.v/ii/iv
unut a<,ujo c X t )-ao I'd, t )ut 1'!■ u I'uru > tnU. i t ui ur:. r.;;'-
)íO ou iitaa J-C}'uh ! ÍUii. Álgucm podr r.,: )■ a-íiUadu
pd lu.í q ííd roínc id II, u j in't. i f [■ ca du ;'o l ur,
i'o o u l t a do o d'.:í'tat', ijuando u rcuul í-ílIo j'o j-
horn, isotno no excmpLu de h'oiriul :j , ii J ur, l-i. fi
nao fal t.íira. t'o dcocn !• >'•: p t-ovo da í' u,'
aiíjd violcnaLi tcrn por cd?jdt-ÍVO dcf.lfui:-, cn
Vc:: do r-opa r(.if"

Esta cita ç ao de Maquiavel õ i iii[)ü rt a n te |)a ra nos. T es

ta justificativa dos meios (lelos fins c|ue motivou grande parte

dos ataques a|)aixonados que se fez a obra do florentino atra-

niés dos séculos, e se citamos um treclio dos Comentários..., e

iustamente para mostrar que este princípio nao estã sõ em 0

Príncipe. Ele não é um bom argumento, se deslocado da refle-

xão do florentino, para acusã-lo de imoral. De fato, a obra

de Maquiavel não estã cheia de máximas morais e nos cliocam al-

gumas das sugestões que ele faz ao príncipe. Mas em nenfium mo

niento dos dois livros que estamos abordando nesta dissertação

Maquiavel sugere que os homens, em outras esferas de suas vi-

das, devam abrir mão dos preceitos morais. C na esfera da |)o-

lítica que Maquiavel não vê como estes preceitos podeii) aprio-

risticamente auxiliar no exercício do poder que se exerce so-

MAQUIAVEL, Coíiien l á r i os . . . P. 'ly.


9 1

bre homens em conflito. Enquanto Aristóteles partia da pres-

suposição de que os homens têm uma propensão natural para a po

Vítica e fundava sua reflexão na ido ia de identidade entre ra-

zão e bem, Maquiavel parte de outras [> remi s s a s e nossa análi-

se da natureza fiumana, no item anterior, procurou demonstrar

isto no que se refer'e ã maldade natural dos tioinens. Mas, a

moralidade continua existindo na esfera política como em ou-

tras esferas da experiência liumana. A diferença ê que na polf

tica a moral está submetida, como varias outras coisas, aos in

teresses do [)oder. Ela jã nao ê algo de fund aiiien i.a 1 , como pa-

ra Aristóteles, e nao e através do exercício das virtudes mo-

rais que um principado ou mesmo uma república se sustenta. Cas

s i r e r nos diz c) u e

">111.inJ^ üd j\i l a lIo ' l mo í\i l l r. III.J ' !-íuqniai\; l,


nao cUjVíMuoú t l i' o tcmOr >iu r:^
dd)'no. Maq ii iava l nao Jnlija a.í itunana.:
cia um ponto de vit)ta ' pa i'a a l j nt do l.'cn. d,.i
mal ' . Ele nao dec.pvc ::a üa a mo va l idade , mai< tí-
)iha os iiomcna em muito pouca eí-tiria. :.:e era um
t-e( iao, o •"|'|' ce t ! a i. rno c: >'a fia i humano do ue
f i l o i'> o j'i ao"

Maquiavel obser'va como os homens governam e sao gover-

nados e fala sobre o (jue vê. Para alem disso, como jã mostra-

mos no capítulo 3, ele vive numa época em c]ue se faz necessá-

ria uma Diudança de [lerspectiva na reflexão sobre a política,

tendo o poder emergido como tema central desta reflexão. Po-

de-se questionar o amoral i sino de Maquiavel, mas juntamente con)

ele é preciso questionar a ação concreta dos liomens. Ora, e

esta ação que o pensador quer apreender. Para tanto ele não

parte de nenhum sistema metafísico a partir do qual ele |)udes-

se fundar sua visão da política. Toda a reflexão aristotõlica

sobre as relações entre a ética e a política não têm lugar na

obra do florentino, Para ele, todas as qualidades que Aristó-

teles vê no homem virtuoso, ao príncipe só servem quando [jodeni

ser usadas como uma estratégia onde o soberano finge ser vir-

'' CASSIRER, 1976. P. 165.


92

tuoso para manter o poder. l por isto que Cassirer escreve

q ue

"do fato dü O P t'í }i(i i pi! não c.c-x' nciu iir,


de pedagogia norii um t-i-atado da ir.új\i!, nao deoe
dOna l Lii }'-tte que r, e írata de um lioi-o in.oral: e
um lioi-o téatiiao. !ium ! i.Ofo t eoiiro nao .íc
oe er.pci'af enaont i\ii' j'agvai' t/t' conduta elí a,
do bem e do mal. Har, ta->jipi' que no:.; diga ;■ quij
J út-il e o que e inui il" ' .

Sem coiiipreeiuie r as mudanças na estrutura |)olTtica euro

pé ia na época de Haquiavel e as (questões colocadas d partir

daT no que diz resfjeito ao poder-, é e x t r e ma me n l e difícil com-

preender a separaçao entre a ét. ica e a política operada pelo

pensador. Se fi/ermos tabula rasa deste pano de íundo sobre o

qual o fiorentino escreveu, o que fica dele ê a imagem de um

homem absolutamente cTnico e sem princípios morais. Mas, na

verdade, Maquiavel nao ataca o prot)lema da e'tica diretametUe,

pois sua questão é o exercício do poder. Lie elabora sua re-

flexão jã com o pressu|)osto de que a porít.i(.d possui uma auto-

nomia e todo o seu [)ensamento segue esta or i utitaçao.

Mas Maquiavel nao desconhece o que a tradição do íiuma-

nismo clássico pensava sobre a moral do príncipe. Segundo Quen

tin Skinner, os moralistas romanos indicavam (juatro virtudes

que deveriam compor o car-ãter do lioiiiem virtuoso: a sal)edoria,

a justiça, a coragem e a temperança. Skinner diz (|ue Cícero,

na linha de Plat ao,


fala destas (|uatro virtudes no início de
- 1 3
seu livro A obrigação moral . Mas para alem destas virtudes,

os moralistas romanos prescreviam para o homem virtuoso um con

junto de qualidades que eram consideradas fundamentais [)ara o

exercício da-atividade do príncipe e a principal delas, que Cí

cero assinala em seu livro, era a honradez. Para Cícero, se-

gundo Skinner, o príncipe que possuísse esta qualidade trata-

ria de maneira tionrosa os homens em qualquer circunstância ma^

CASSIRER. 1976. P. !70.

'3 ^i^INNER, 1988. P. 60.


93

tendo assim os seus bons princTpios^^. Skinner continua sua

reflexão mostrando que a honradez seria, para Cícero, coiiiple-

menLada por mais dois atributos citados em A obrigação moral,

mas que foram trabalhados mais [) ro f und amen te por ScMieca. Estes

atributos sao a magnanimidade e a I ibera1idade. De uma manei-

ra geral, os que escreveram livros de consellios para os |)rMici

pe-^ na Renascença se pautaram integralmente por este referen-


1 b
ciai dos moralistas clássicos

Mas Maquiavel nao aceita a idéia liiimanista de que o

príncipe, para o exercício do seu ()oder, tenlia (lue adtjuirir as

virtudes prescritas pelos moralistas romanos. Lie nao acredi-

ta que o príncipe possa ser bom e exercer o poder num mundo on

de os fiomens nao o são. O prínci])e que tem por obrigação man-

ter seus domínios, se arruinaria num abrir e fecliar de ollios.

Para a antigüidade sempre houve uma e(| u i va I cmu; i a entre ra^ao e

moral, entre racionalidade e bem. Esta idõia, c|ue nasce com os

gregos e chega até os moralist os r'omanos, será modificada pe-

las formulações de Maquiavel. A razao da política para o flo-

rentino é a rdzao de Estado, ou seja, tudo o (]ue o prínci[)e fi

zer, desde que seja praticado para salvaguardar o Estado, é

justificável. Assim, Maquiavel nao só vai contra as concep-

ções clássicas sobre a moral principesca, mas também contra a

ética cristã que submetia o poder do prínci[ie ao poder de Deus.

Sobre isto Quentin Skinner escreve;

"'•lui-! aariio fica ./ objtji^rau cflota J.,: (/(<>■ j alem


de SC)' pe j'i>o i'i-i a j c itnin poaíçdo (a poci\'(io
de aülocav o Er, Ladu acima da moral) qae ucria
tolo adotai', já que, ai'sim, r.e estfuece do dia
do Ju-íkiO, quando todaü aa i n,j ua t-.-.Cí-ão fi-
na Luian t e piDiidaa'/ !.iol>rc esta ((i<cc tuo , Maquia-
ve L }iao dtí: ahú olutamen te nada. ucii o i I enaío
c eloíiüante e, de J'at.o, memoi-aoel, ma f a an do o
início de uma nona cr-a: ele ecoou por i-oda a
h'ufopa at'iata, encontrando como i','r, p otUa, p)'i-

SKINNER, 1988. P. 60.

'^ Ibidem. P. 61.


94

meii'O, um uí; a ornb i-ado oilcncio e, ddpcrta, wn


alamoi- de k^xecyação qiit: fina I men
T*. • -'«flu
itujuii^a

Assim, Ma(iuidvel fez desabar Lodo um edifício que se

erguia sobre a união da ética com a política. De nada vale a

moralidade, para nosso autor, se ela não [loile ser vista sobre

a ótica utilitária de quem estã no poder. Maquiavel, que como

já demonstramos não desconttece os moralistas clássicos, satie

que existe toda uma expectativa em torno da moralici.ide do f)rTii

cipe. Espera-se (jue ele seja bom, |)iedoso etc. Ora, pat-a nos

so autor, o príncipe nao deve fa^er tabula rasa desta demanda

ti já í|ue ela existe o (jovernante deve saber fingir que |)ossui

estas qualidades e, desta forma, agradar os c|ue a exigem dele.

üs valores morais neste caso nao fundam uma pratica politica,

mas sao apropriados por uma prática política já em curso.

Mas nosso autor não pede s i m|) 1 e s me n t e ao príncifie (lue

seja cruel, exercendo a crueldade pela simples crueldade. O

príncipe que agisse assim estaria traindo um dos preceitos tiá-

sicos do nosso autor-, ja abordado (uir nós, que diz ser necessá

rio saber agir de acordo com as circunstãncias. A crueldade

só se justifica se as conseqüências de sua prática retot-narem

como benefício para o Estado. Maquiavel escreve cjue

UorjLu <j i-a c ó Hi) i d,: i\:d, ■ ^:rticL i-, ijL'nC.u-


do, í) LI lí c t'uc Idiidc h u V i i-i fCtJi'jiiido u h a n li
c OH íi t.'ij u L do lini-lu c a o H d ic.t — / (.1 u pur, <; c; ]''•
O ifuc heni conií i. díj i-udü, n:o t rn ru (j inj r 11: foi tnn i
to rnaij piedoso do que o povu f io Ví-nit ino ,
(jualj j>at'U avitui' u di: I'i'url , duixi:.>u qu>..
I'ii-'totci Joísttd dcitt'i'ui du. Nilo dciu.' poi't<!nto i. i'i
povt-Lif ao pvLnuipc, a q ua l i fi aai^-uo dc pu
i'a rnant-tij' ou íJlíUu nudi-t-OíÀ untdoü com j'fí, poi'
(fue corn farati ex<.;e , e ele maifí pieduno do
<iue aquelei} que por muita alemSnaia deixam
(iconte ee I' dei'i ovdeiu^, í/jí: quair, podem nar.c^ef ati
tí atí iS i noLS ou vap i}ia<j em" . ~

Este ê O Maquiavel de O Príncipe que fala e nem por isto exis-

te, a nosso ver, discordância entre esta postura e a que nos õ

' ^ SKINNER. 1988. P. 63.

MAQUIAVEL, O Príncipe. P. 6y.


95

revelada nos Comentários..., quando o florentino diz que

" na L ui-a Ime n te, ondo não existe a oírtu 1,: ni-i~i
ijii podu' djpc'j'ui' ád bütn; por ir, to n(i(.> .Jo pode,
wni /lOiJisoii díüí!^ contar com inuitOi.: paÍJcr> ncnt
ijuaiú rc.Lna a aorrupi^-ao, c í']uj cia íincn tc cotti a
Jtãliu - oird'ora a 1'runçu c a Eí-panha ■■:'tcjar.
longe dc ccaapai' a cr. La li.í-,:n<^-a J' "' r.i'i-:-ad.:
do:; cor, t litncii . Sc ncr.rcr, ]>aí.-cr nav há tant-ar
dc.iordcnr, i^uan.to na l t ii I l a , f. í: t o nao .• c d.: 0<:
a r.ua.s virtudca ~ vírtUilcr. íiuc c: .!:\;nd,.- parte
Uic a a o cíitranhaa niai- a p )'cj c >:./a dc w:í rei -
cujo ])itlro mantém a união no !!rt.a.!o c ac inc-
t i tu i •^■õcr, ai)ida não c c< r roi:ip i ila r, .7:/. / i
tcm"^"^.

Vemos, ent-ao, que Larito no llariuiavel cjue fala dos |) r i n

cipados quanto no republicano existe a idéia de que as virtu-

des por si mesmas nao auxiliam o |)ríncipe no exercício do po-

der. Também podemos notar (lue as duas citações mostram com

muita clareza que Macjuiavel nao exclui simplesmente a moral de

todas as esferas da vida liumana. ioda a sua luta é contra a

idéia de que a política deve se sutjiiieter a ética, pois, para

nosso autor, as diuis esferas não se pertencem necessariamente.

Mas não 5 isto (|ue Maciuiavel vê cone re t ai)ien te em sua ê|)Oca? Os

jogos políticos neste momento de nuidança do mapa [lolTtico euro

peu, jogos dos quais nosso autor participou enquanto secretá-

rio da eiDbaixada florentina, estão fundados nuDia lógica onde

s5 o fiin alcançado õ o ciue importa e este fim é a manutenção

do Estado. Mas o florentino faz (|uestao de deixar claro que

este Estado não tem um fim em si mesmo e tem a função de garan

tir a união e a segurança dos homens, homens estes que, como

vimos no primeiro item deste capi'tulo, não tendem naturalmente

[)ara a vida associada.

Desta forma, a ordem da sociedade em ílaquiavel depende

de um Estado forte e unificado e a existência deste c que ga-

rante que as virtudes tenham lugar numa comunidade e não ao

contrário, ou seja, não são as virtudes que fundam um bom Esta

do e sabemos que o exemplo italiano está presente todo o tempo

MAQUIAVEL, Comeu t á r i os. . . P. l/l.


96

nas reflexões md(iu i a vol ianas . 1'ara o florentino, mesmo sendo

um re publ i c a.4^ü , era necessário um poder forte e centralizado

para conseguir a unificação de seu país. T por isto (|ue no ú1

time capítulo de O Príncipe ele clama por uii) redentor que deve

rã ter a virtú suf iciente para real \ zi\r a unificação da Itãl id

a partir da instauração do [loder político. Nao adiantaria a es

te príncipe se pautar [)elos padrões da moralidade coinuni, pois

esta ou s5 funciona fora dos limites da política, ou sõ tem

valor dentro de um Lstado organizado.

Assim, o príncipe de Maquiavel tem uma função: fundar

e preservar o Estado e desta forma zelar pela vida dos homens

que vivem sob o [)oder deste. Sejam quais forem suas ações elas

se justificam na mud ida em (lue ele se desincumt)ir l)em desta ta

refa. A idéia de (jue os fins just i t ic.am os meios oiii Maíjuiavel

não é simplesmente uma concepção cínicu do mundo. Lia se ins-

creve 110 quadro desta importante tarefa de instauração da or-

dem política no seio do pr-oprio cnos. Se e um fato c|ue os ti o-

mens vivem em constante conflito e ligados somente aos seus in

teresses pa rt i cu I a res , de nada adianta a referÕni ia a valores

morais, pois estes estão submetidos a lógica destes interesses.

Sobre a questão da moralidade em Maquiavel, Duvernoy nos diz

q ue

"a poLttiuii tiíj Lantfo; c> j u í-:: a lí i'i


J'o i\i cio Larnjio. Nao auo (Jj modo cilgutn íj bom c o
mal quo eat.ao auJoCloa a:' ap ro ai uçàooiruiow,-
tanaiadaí', c bem maiii nua folaçao com i; catcijo
via do político, llá no f, c ore tã i'i o aoii-cu-, quo
'valem' a oulvai\ (/uo 'não va/om', J'o lui dai)
oportunidades da J'ortuna o daa at- uat^toeti po Lil^
cat) datadao. Mats, então, í'e é uma rola(^'ao qut:
e pi-ectiío julgar, Maifu-iavel dela afirma duar.
eoiíiaí!. A primeira L'onoer)je a apai'i'^'ao da poli
Oioa: e a dej> ravaí^rao, dadii como hir.tóriea, dor.
noístumoíj huruinoa que i)itroduz o divórcio e}tt)'c
a política e a ética. A r,ecju)ida dectiir, afirma
çõet> conoiíjte numa va Io rízm^-ao do político con.
relaçao a íp.fecunda p e rr:anê )tc i a de uvui ética
impo ten te "

'9 duvernoy, 198'<. Pp. 2 0 2 - 2 U3.


9/

4. '6. A vacionali'^ação da fofça e a ina títui^^ao do Ectado

Uma leitura apaixonada de Maqiiiavel [)ode coin[n'eendG-1 o

como um pensador a bs o 1 ut amen te despido de quaisc|uer |j a d roes de

moralidade, como um cTnico que nao condenaria nos fio mens o dar

vazão ãs suas mais torpes paixões. EsperaiDos ter mostrado em

nossos itens anteriores t|ue esta leitura deve ser feita no iiiT-

n i mo com um certo cuidai do. Em primeiro lugar Mac]uiavel nao

c>-ê que os tio mens sejam naturalmente bons e acha qut; eles se

destruiriam não fosse a presença de um ijoder cjue os coagisse.

Em segundo lugar, o pensador nao abole a validade de toda e

qualquer ética, mas deixa claro (|ue, no ter-reru) da |)olttica, o

que vale e a eficácia d ds ações e os conceitos de bom e de ma u

são substituídos pelos de útil ou nao-útil. Uma crítica a es-

tas conce[)Çoes maci u i a ve 1 i a n.i s s5 pode ser feita se se compreen^

de o encadeamento geral das idéias do florentino, O Li raç o foi-

te que Maquiavel exige do príncipe se justifica (luando se fa;:

referência a virulência dos homens.

Mostramos, também, no segundo item deste ca|iitulo, (|ue

Maquiavel não desconhece a reflexão dos iDoralistas ronianos so-

bre a exigêftcia de retidão iDoral do príncipe e ciiie conliece tam

bém a apropriação que o liumanismo re n a s ce n t i s t a fe:' desta re-

flexão. Com isto pudemos ver cjue a ruptura operada pelo flo-

rentino com relaçao a reflexão clássica (pelo menos a romana)

é algo consciente e não uma sim|)les consíMj l^ênc i a do seu ()ensa-

mento. Este nasceu da comprovação feita [lor Maiiuiavel, erujuan

to funcionário da embaixada florentina, de que as especul aç(5es

sobre repúblicas ou principados que nunca existiram de r\ada

adiantavam para se com|)reender a realidade efetiva da polTticd.

E neste sentido que Gerar Namer comenta que a moral do [)rTnci-

pe é dirigida pela situação política, não se constituindo o

bem e o mal como um ideal. O prfnci|.ie deve distinguir a manei

neira como se vive da maneira como se deveria viver'^*^.

2''^ namer, 1982. Pp. 36 - 3 7.


98

Has Maquiavel reconhece em meio a todo o seu uLiliLa-

rismo polTtico ações que ele julga criminosas. No capítulo Vlll

de O Príncipe ele trata justamente dos homens que conciu i stariuii

o poder através de ações criminosas. No início do capítulo cj_

tado, o pensador escreve que além da fortuna ou do valor exis-

tem dois outros elementos ati'aves dos quais um homem pode se

tornar um |)ríncipe. Lstes dois valores sao: em primeiro luyar,

o exercício da maldade ou o uso de ca min li os cuja perversidade

contraria toda e (|Udl(|uer lei liumana e divina. Em seyundo lu-

gar, pode um homem tornar-se príncipe pelo favor de seus con-

terrâneos^'. Maquiavel, na verdade, se atem ao comentário ries

te capítulo, da primeira forma de adquirir o poder, ou seja,

pelo crime. Cie comenta soljre AgãtüLlos Siciliano tjus; se tor-

nou rei de Siracusa através de uma série de inaldades e sobre

Oliverotto da 1'ermo c|ue ao se apoderar da cidade de feniio nao

liesitou em matar seu próprio tio e uma série de outras pessoas.

Maquiavel chama a atençao para o fato de que l)OM)ens assim po-

dem concjuistar o mando, mas ri a o a glória. Jamais serão celebra


— ') ')
dos pela fiistõria como homens i 1 u s t re s^ . Aqui tiõs acredita-

mos que Macjuiavel reconhece a existência de ações cjue ferem nos

so senso moral. Ve-se mais uma ve:< (jue a moral nao e algo ine

xistente para o nosso autor. O problema está em adecjuar esta

moral a necessidade absoluta de manter o Estado que nasce jus-

tamente porque os homens não tém regras morais inerentes ã sua

própria natureza.

Jã no final do capítulo VIII Maquiavel volta a mostrar

que a moral deve ser utilizada com vistas ã sua utilidade ou

não para o Estado. Mas o i n t e r o s r. o e que, além de mostrar sua

dificuldade de trabalhar com os conceitos de bom e de mau eii]

face de sua teoria, ele deixa muito claro que as crueldades

maquiavel, o Príncipe. P. 35.

^^ Ibidem. P. 36.
99

praticadas pelo príncipe devem ter o caráter passageiro, ou se

ja, elas devem ter lugar no momento de instauraç?)o do poder de

tal forma que não fiaja necessidade de se fazer um recurso coiis

tante a elas. O exercício do poder nao pode ser um constat\te

exercício do terror'. O florentino trcita destas questões na

passagem do Capítulo VI II, onde ele fala das dificuldades de

se compreender o porquê de algutis prTiu, i|)es, como Agãtocles Si

ciliano e outros, terem conseguido manter o poder cie[)ois da

prática de tantas crueldades, enquanto outros príncipes, tam-

bém praticando crueldades, nao conseguiram assegurar seus domí

i)ios nem nos tempos de guerra e nem nos tempos de [)az. Ha(]uia

Vd1 escreve ci u e :

"Cfijio ij Utj ií)tO íí tj J Cl a o >i íí i.,'íi ■ >i c i ii (/,' a;;


a rua l diJ rial ou bem pi-utii-ci.ln.i.
tsii poüuJin chamai' acj lia 1 eu', (r>c a que -.'a di-
:u'r hcni do mal) cjiia íuia j\: i t a.) , li,.' muu
Va:: j [> a l a na ae ià i> i da de da nvoth'r ■iltjuain rr'-
píua a jti ranr'a, a ílayuii- :;a.' iMujta:' a i:: .t j'j <.■ r. ^
t ran a J'o i-man do-1; a o main [j eu: r. í va l ar: i\;nt.ajar.
para uií Judi toi) . Mal imadai-. r.ao rr.' cjH^. , linda
íjua a princiipio najam poin-íi.-, .'li c, ;; i;\;
ij u i. i-a ni -1; a j arar, cam aom n ti:mpu"^^

Vemos (lue se o objetivo do prínci[)e é manter o Estado,

ele não pode gerar um cl iiiia tal que faça com que a insegurança

se aposse dos seus súditos. Se isto acontfíce, o próprio |.)oder

não se encontra seguro e o príncipe que nao evitar tal coisa

não estará cumprindo acertadamente sua iDissao. C iDuito impor-

tante termos isto em vista ao abordarmos a obra de Maqiiiavel ,

pois percebendo estas sutilezas em seu pensamento 5 que pode-

mos compreender o quão apaixonados foram vários dos comentá-

rios que a posteridade teceu sobre sua obra. A preocupação de

Maquiavel em distinguir entre dois [)rínci[)es que conquistaram o

poder pela crueldade, o que age corretamente e o que não age,

é fundamental para se questionar a imagem que se criou do nos-

so autor como um simples defensor da crueldade e do despotismo

político. 0 príncipe que ao praticar atos vis consegue manter

^ maquiavel, O Príncipe. P. 3B.


1 00

o Estado demonstra sua capacidade de? gartintir a ordem política

e isto o livra de possíveis acusações quanto aos seus atos an-

teriores. As crueldades do príncipe, desta forma, devem ter o

caráter passageiro, constituindo-se como atos de exceção s5

justificáveis no mo m e n t o de i n s t a u r a ç ã o ou r e i n s t a u r' ç ã o do Es

tado. Se se coriseyue estabelecer uma urdfMii [joMtiua bem estr'u

turada, os atos cruéis do príncipe perdem sua ra^'ao de ser.

Mesmo que acjuele que está no poder deva esta» sem|)re pronto

para usar da força para manter seus domínios, isto só deve ser

feito em momentos específicos quando o Lstado está em jjerigo.

Deve, pois, o príncipe, ter um domínio sobre sua cruel

dade, sendo cjue ela deve ser praticada dentro de um calculo,

uma r-ac iona 1 i zaçao (|ue ob -jetiva o seu uso correto para a funda

ção ou a manutenção do Estado. Assim, ele terá sempre o con-

trole da s i t uaça o e o domínio sobre suas ações. S(}m se to rna r

um tirano ele consegui r'ã estabelecer um Estado forte (jue garan

ta a segurança e a liberdade dos súditos. ü domínio sobre o

exercício da crueldade implica r-econtiecer os limites de sua

aplicação. As leis, [)or exemplo, nao deixam de existir |)ara

nosso autor. S5 que num mundo dt! Itomens [)erversos as leis náo

subsistem sem a existência das armas^'^. ü príiu.ipt.' deve iiui n-

ter o equilíbrio destes dois elementos para conseguir a manu-

tenção do poder. Por isto Maquiavel escreve:

tsabijt', portanto, í/íaj exit; tem duac j'of


rnas da ue oonã) ate )•: uma pcíao leir., outi-:i pclci
füi\ui. A primei, ya e propria do homem; a Líe.jur.
da, dot: iniimaia. Como, poi'éui, muita:'
primeira não neja r. uf i ai eu te , é precii-.o recor-
rer a se (jutida. Ao prí naipe tor>ta-r.a neecsi'a-
i-io, por'cm, íí í-j/vc í*2ip wp )'(■ lya í' convcni,.n teuicn te o
animal e o homem"

Para o florentino, o príncipe que náo souber utilizar estas


25
duas formas de combate vivera sempre na instabilidade

^maquiavel, o P I f nc i pe . P. h3 .

^^ Ibidem. P. 73.
101

Mas não nos deixemos engctnar. Se em O Príncipe Maquia

vel privilegia o uso da força é portiue ele fala neste livro de

um momento de exceção no Estado, ou seja, ele esta refletindo

sobre o momento da constituição do poder politico nu id a época

de crise, pois seu pano de fundo é a Italia dividida. Nos Co-

mentários..., embora nao negue o uso da í'ürça, o florentino

traballia o tempo todo a partir- da idéia lie (]ue o rcs|)eito ãs

leis é fundamental para o listado. 1:1 e escr-eve:

".jau' uíDt th-puir. (/;; i> r í uc f 1'k. ./lu/ ,.v,-


nicjuin LI t>tj I'l.Iu !• o c-onivolc sobi'C O r,cu i t'lj.'C ri.
nu rnorncuto dtn ({lu. l',! r, j-í: i" ju; i t. <íi-í cn; li\' t' i-.:
aor, t ur:.L\' t t\i il i c i o lUi ir,.^ íj uc c r ! t: n t citn hii cuiiti:
dou c* í\7a liiíi' í!. .''i.'j iU) jii'i'du'f lu
p uJlJ í: ií l: in i>c-rache r aomo J j\iai l <j o Vc rn af ui'. i r.~
urvio qii.inJo r<(> r< u oiiiu; licxir, íw 1 u <.•./< r. ,
r, a f ijoit.íilo pala perda do poder :■ e r í a fia i r.
vi Pa, u c r, t a )•!■ atrt p'ru>!tor. c l-O n da >i ii r-r. í: a aa>i ;
ainda riiaii.! ü c Pi. i'liJ i/u qua ar, ri: i-a l.'t d a r>
r.L!iifj audit-or,; pai:; a l>citi tua i r, j'aai! ar
do puíoa hotií- do ijua rnau.; ; . d'luia aa
l d i r, do (j!<d lUibma t a - ! a

[Jão ha, a nosso ver, contradição entre ciS formulações

dos dois livros no ciue concerne ao res()eito as leis [lor i^arte

do príncipe. Seguramente í-laquiavel era um re p u I.) 1 i c a n o semgran

des paixões pelo regime monárquico. Mas, como ja dissemos, o

livro O Príncipe fala de um momento de exceção onde o Estado

tem que ser constituído e tem como j)ano de fundo a Itália divi

d ida e explorada. F! necessária, neste momento, a instauração

de um poder uni fica dor. lü sintomático que em O Príncipe Ma-

quia v e 1 não fale do surgimento de u id [) r i n c i [j a d o no 1 uga r de

uma república. São sempre principados cjue surgem no lugar de

outros ou no lugar da desordeii), ou seja, em nenlium momento do

livro o florentino defende a mudança de um regime re[)ublicano

para um regime principesco. Se o príncipe governa com poderes

extraordinãrios é para instaurar a ordem e tão logo isto seja

feito, seguramente o ideal de Maqu lavei é que se constitua, en

tão, uma república. O florentino não o diz, mas é como se o

maqu I AVEL, ComenIáI ios . . . P. 311


1 oz

prTncipe tivesse o cdriter- du dilador em Roma. Coiiiu se sabe,

a ditadufd romana era prevista pela prõi)rid lei da r-epGt)lica,

com ü tenipü de duragao de ter mi na dü , onde o ditador, (lue era de

signado pelos cônsules, exercia o poder em regime de exceção

para enfrentar crises internas e e x t er n a s ^. Esta nossa anãli

se é corroborada pelas formulações de Maquiavel no capítulo no

no dos Comentários..., onde ele trata justamente da fundação

da república. O pensador inicia este capítulo comentando o

assassinato praticado pelo fundador de Roma, Rômulo, contr-a

seu prÕ|)rio irmão. Segundo Maquiavel, alguns condenam este ti

po de ato, ()ois pensam que os cidadãos podem seguir-llie o exem

pio e tal coisa deve ser e v i t a d a ^ . Ma q u i a ve 1 e s t r e v e f| u e :

"Eúiu opinião aci'ia bem J'lirtJ.utntni t^uLi .;j n,i>j .;c.'


ItjOaftiiC em i:o>il,i o m^t-ioo i/uc (;oh>!u::í< iiomulu
aquele Íloíu i aí d i o. f! por íir.r.ini liir.i.'!' íinm reji-u
ijeral u de que ui: renul.'l icar, e Oí: fe inoij ijtie
)iao i-ecelie ram ii:: r.inu; lei:-, de um únir.o l c j i e l i
doi-, cio r,eiu:m fundudíií! ou du)\inie a i q urto yej'oi-
iru! j'unduttie)i I t.i l (jue v, e Límlu! j'eit i./, híio poat'um
aei' bem o vjit n i :j li dot'. . P. >ie iw i". c, o >'i o quij um r. o
honrem ímprinui a j'o rrnu e o eijpii;^^Lo do qu-í! de-
pende a o I'.jiini :: oi^uio do Ec tudo"''

Cremos que nesta citação Maquiavel é claro. Para fun-

dar o Estado é necessário um só liomem que tenha virtú suficien

te [)ara esta empreitada que i rã instituir, no lugar do caos prc)

d uz i do pela incapacidade de associação dos homens, a sociedade

política. C a este liomem ()ue Maquiavel clama no último capítu

Io de O Príncipe. T ele que deve exercer o [)oder, em regime

de exceção, de forma a possibilitar a unificação da Itália. Não

há, assim, contradição entre O Príncipe e os Comentários... e

as formulações de Maquiavel deixam isto claro.

Mas o exercício dos po de re s de exceção do príncipe de-

ve ser passageiro. Tao logo a ordem for estabelecida ou rees-

tabelecida, o poder deve passar para as mãos da maioria a quedi

P . 91.

p. 'i S)
103

efetivamente compete governar. Maquiavel escreve que

" uin i>ftnci-vc de.ve tcf Ima tatilx'j a a b oria c


tudij p^ii'a HdO Icijaf a oulycm u a n t o/'í da iIj da
(jual íia apoficou; da fato, a ai': o Oí: h o nana aa
i na li nam tuaii' aa mal do ijua ao I',.'m, r, a u auai:.--
ii o >■ poiici'a amp ra ja r am!> i-a i-oa a'l.a n t a o [n-^LÍa r d>'
<1 ua l o \>i-iuiaifo pfi.naipa ao r.aroíai di: r.ana:'
ra O i >■ t noa a. '>íít.)-íj Lido, ;!<■ ur. a' liun.au: '
capai: da aa Labalacta r >iOi-n:ar. para um r.;/w, i./.;
La dui'aya ham }>oitao tau.pi.', aa um lar.
h,jm con tal. nua r a a upo >• ta n luiio c .w;i pa.,.'. a.
a ao)t t. a .-a o mca,tiu.) ({uayiilo a r, ua ijuat-díi i.' confia-
da u um ijfanda numaro da pai;r>OiU'. L, da i:iaai::a
forma ijUa um ji'upo lia liomcnt: .-.ara í>:ca;>a:: da
fun^lai' uiiui L ni'i L 1.1 u i a o , aa nao lha r^.-'c o nn a>-a :■
aí; oan La<jana, poi\fua a lH oa ra idada d,a opínía-'
obaaairaca o aau j u l j ama n L (•, ^wpoia //h. a i-
itiitam a u Li li. (Lula , Jamai ^cjpodai-ao p;jr~aa da
acordo para iibivulinia- l ía"

Temos falado desde o ca|)lLulo 3 (jue o poder do prínci-

pe para Ma(|uiavel nao se confunde com o despotismo e acjui está

a c ompr o va (; ao . Vê-se, [)ela citaçao acima, o ca rater provisó-

rio do poder do [irTncipe (lue, se perpetuado para além do moiiien

to da fundação do Lstado, torna-se Lir(inia. Se (jura men te esta

é abominada |)or Mdquiavel. O que ele deseja ê que um i)ríncipt.í

de virtü fundasse o Estado unificado italiano e que ])ost(írior-

iiiente a isto o poder passasse [)ara as mãos do povo que, |)ara u

nosso autor, é o verdadeiro gucirdiao da li herdado.

maquiavel, Come n t .5 r i o s . P . 5 0.
1 04

CAPÍTULO S

MAQUIAVEL E A LIBERDADE

5.1. O povo e o deaejo de liberdade

Neste nosso último capítulo trabalharemos alguns ele-

mentos que podem auxiliar na compreensão da idéia de liberdade

em Maquiavel. O tema será apenas introdu7ido, pois, por si so,

poderia se constituir em objeto de uma dissertação. Lm nosso

trabalho este capitulo se impõe |iela necessidade de mostrar,

depois de termos refletido sobre a constituição do poder polT-

Lico em Maquiavel, que o objetivo principal deste poder é a ya

r a n t i a da liberdade no t s t a ti o .

Sendo assim, rec a p i t u 1 emos um |)ouco. No [)rimeiro item

do capitulo 4 expusemos as idéias de Maquiavel sobre a nature-

za mã dos homens. No seyundo item mostramos como a política

se constitui pelo cerceamento desta nature/.a e isto gera uma

concepção de político onde a ética e submetida ã ofica cia do

poder em coagir a maldade natural dos homens através do uso da

força. Por fim, no ultimo item, mostramos C|ue a força não po-

de ser usada indiscriminadamente, segundo nosso autor, mas de

forma calculada, pois por si mesma ela não garante o Estado.

Ora, estas reflexões de nosso capítulo anterior par-

tiam da suposição de que Maquiavel não é um defensor da tira-

nia. Vimos que, malgrado as leituras que não vêem relação en-

tre os Comentários... e O Príncipe, os dois livros se perten-

cem. A primeira vista pode causar estranheza a exigência que

O Príncipe faz de um governo forte, que detenha toda a autori-

dade em suas mãos, com as reflexões dos Comentários... que,

versando sobre as repúblicas, demandam um governo oposto ã mo-

narquia. Para mostrar (|ue não ha propriamente oposição entre


105

os dois livros nos acompanhamos os ruciocTnios de Maquiavel

nos Comentários..., onde o autor coloca claramente que o regi-

me do prTncipe é importante ct)mo momento de instauração do po-

der politico face ao caos de uma cidade ou um país (Lal como

acontecia na Italia). Posteriormente a esta instauraçáo, o po

der deveria passar para as mãos da maioria. Assim, se a su-

pressão da liberdade pelo prTncipe deve ser um mometito passa-

geiro, a sua forma de governo não õ a melhor e sõ se justifica

na medida em que possibilita a instituição desta cjue, para o

florentino, e a república.

A maior qualidade da república e a garantia da liberda

de dos cidadãos. Sendo assim, se o jjoder do prTncipe Õ neces-

sário em tempo de crise para a instauração desta forma de gove£

no, pode-se colocar a questão da lil)erdade como algo (jue per-

passa os dois livros que trabalhamos de Maquiavel, mesmo que

em O PrTncipe ela nao seja objeto principal de reflexão. Mas

esta liberdade para Maquiavel s6 õ possível com a instituição

do Estado, pois c este que faz a mediação dos conflitos e coa-

ge a maldade dos homens. [! bom cíiamar a atençao que ao afir-

marmos isto não estamos querendo defender Maquiavel como um

teórico do tstado constitucional, mas creioos (lue seguramente a

sua paixão pela liberdade nos impede de vê-lo como um arauto da

tirania.

Assim, se a idéia de liberdade é tão importante para o

florentino, o primeiro passo para compreendê-la õ analisar a

atenção que ele dispensa ao povo. Ja mostramos que para Ma-

quiavel uma cidade é composta de dois desejos: o de dominar,

que diz respeito aos grandes, e o de não ser dominado, que se

refere ao povo. Vimos como este conflito é essencial numa ci-

dade e o prTncipe deve media-lo, já que não pode suprimi-lo sob

o risco de destruir o próprio Estado. Mas na mediação deste

conflito, mesmo governando em regiiDe de exceção, o prTncipe nun

ca deverá perder o apoio do povo. Maquiavel nos diz no capTtu


106

Io XIX de O Principe que

"oú Eiitaãos bem ovganizadoú e oú i' t'Í n>j l p


pvudeyit.es pr'ooaupai'am-iic seinpi'e em nuo i-eclui-.iv
ot! (ji'undeti ao ' des SLipc i>o de íia tia f a:^e i' l; aonten
tai' o povo, pofque eísua c uma daí< <i ue.; toai nkui-^
i nii>o í't, an t er> que utn pr'í)ici[>e deve ter ,rri ihentt'" .

Também no capítulo XX, depois da ter feito uii)a serie de refle-

xões sobre a importância ou não das fortalezas na defesa das

cidades, Maquiavel escreve (lue:

" CoyiJ ícit: vau (Lj-3 e , poíts, todar, eiiLat' aoiiu.u', lou
Vavei ot> (}ue cotm l vuí vem J'ovta l e:uia e também
oti que não an aonif t i'uí ve m ^ e lamentarei a<iu,.-
lei> que, fiando-ae em taia metoi: de defeciLi, nao
tje [> ve oe upavem com o J'ato de aevem Oíit>ído.-, p -
Io povo'

Vê-se, então, que ja em O Príncipe Maquiavel demonstra

uma grande preocupação com o povo (e povo para nosso autor, õ

necessário frisar, nao é a [ilebe, des[lossuTda de direitos polí

ticos em Florença, mas a ascendente burguesia) que é aquele que

s5 deseja não ser dominado, ou seja, é aquele que des(;ja a li-

berdade. Ora, toda a reflexão de Maquiavel iDOStra que jiara

ele a obrigação do Estado é garantir a liberdade dos cidadãos

e esta 5 a liberdade dos vários indivíduos que somada se torna

um bem público. lí claro que esta concepção onde o Estado tem

como função garantir as liberdades individuais está ainda inci

piente na obra do Florentino, pois, como temos mostrado desde

o capTtulo 2 desta dissertação, nosso autor vive em uma época

de mudanças radicais e lhe faltam conceitos para pensar certas

realidades na esfera política, inclusive porque estas realida-

des ainda estão se formando, Maquiavel tenta pensar o estatu-

to do nascente Estado moderno em face de uma sociedade civil

também em formação. A questão da legitimidade do poder não é

colocada (como fara a Filosofia Política posterior a Renascen-

ça) porque não so tem ainda, nesta época, um poder político

' MAQUIAVEL, O Príficipe. P. 79.

^ I b i d fi II). Pp. 9O"9 1 .


1 Ü7

claramente constituído. O Estado maquiaveliano coaye a natur^

za mã que se manifesta ou pode se manifestar nos homens com o

objetivo de instituir a sociedade política e nela garantir a

liberdade do povo. Este povo, que já sabemos ser i derit i f i cado

por Haquiavel com a bur-guesia florenlina, Õ a verdadeira razào

de ser de uma republica e nosso autor sabe o porquê. Efetiva-

mente Õ o povo que mantém a cidade. T a ascendente burguesia

florentina que controla a economia, destruindo pouco a pouco

as estruturas feudais. Cremos que Maquiavel, um espirito arg^

to, podia perceber com muita clareza o lugar que esta classe

ocupava. Tanto que os aristocratas (os grandes) não são bem

vistos por nosso autor. Nos Comentários..., ao falar do pre-

juízo que a a r i s toc rac i a leva para (j s bons cos t uii)es no Estado,

o florentino escreve ciue:

"i'uj'U que fiíjUij l/ciii alufO, unLuuJo por ufiatu-


uvaLíi a 11IIX.: i li ({ue vi oe no óaio, r,na ten tci'l :>
loii fi'iitots dot.' DüUi' bem;; cjue [jíií^íui t'ju.: dia:;
rui ahiiyidancia, tsctn p reoc u]) a v-c, e corn ou nic i ou
de ts ob re o i vc n cia, como a a g ri a u l t u ra ou ou t. ro
trabalho (jualquer. l-Juuati pcucoau uao perijo-
íjãí' para todos ot: L't'tadort. Dentye eícu, daoe-
u e temer acima de tudo Oíi ijuc, alem dar, i>anta~
íjenu aij ij i)ia l a dau ^ pousuem car, te lot; e oauua lou
í; ob uuats ordena" .

Desta forma, o interesse que Maquiavel tem pelo povo não é al-

go abstrato, pois ele sabia muito bem (]ual era a importância

deste, pa rt i c ul a rmeti t e em FHorença.

lias o certo e que é difícil dar uma definição precisa

de liberdade em Maquiavel. Se ela não se assemellia ã concep-

ção grega de liberdade política como possibilidade de partic^

par da coisa pííblica, ao mesmo tempo não pode ser tomada como

o conceito moderno de liberdade, tão bem formulado por Benja-

min Constant, onde liberdade é justamente ter a esfera privada

da vida garantida não sõ com relação aos outros cidadãos, mas


_ 4 „
também com relaçao ao Estado . Os cidadãos, neste caso, nao

^ maquiavel, o Príncipe. P. 79.

'' CONSTANT, I'i: Filosofia po 1 T t i c a 2 .


1 08

participam diretamente dos negÕcios públicos, mas se fazem re-

presentar na política por alguns dentre eles que são eleitos

para tal função. Seguramente não é este o conceito Maijuiave-

liano de liberdade. Para nosso autor, a liberdade ê simples -

mente a possibilidade de se viver em segurança na esfera priv^

da. O ()roblema é que as relações entr-e a esfera pública e a

esfera privada não sao claras em f^aquiavel tanto quanto não são

claras no prõ()riü momento histórico em que ele vive. O floren

tino percebe a dissolução dos laços de obrigação que ligavam

os homens no regime feudal e a formação de um outro quadro de

relações onde a economia, como esfera de relações entre parti-

culares, tem uma grande importância na formação da incipiente

Sociedade Civil na medida em que garante sua auto- regulação,

sua subsistência e conseqüentemente sua independência com rela

ção ao também nascente Estado moderno.

Claude Lefort, comentando a i iDportãnc i a do econômico

para o po d e r político em Ma q u i a ve1 , escreve que

"o objctu da Mnq triaVd l yuio J a iácniau cio po-


de)- maio do que a do a o má i-,.ri o. !'odc>noü ac rtu-
incntij di^^í- que vua que^t-ao yiu-ai e t.; a a >ia i a liua n
te tto!i)'C a po l.í ii cci, itiatí aorn n condição de en-
tende f etítí: tet'tno em sua maii.' ampLa aeepi^-Cio,
if'to e, <j 1 üí':> i t;a. 1% a quei-tao dii forma dar.
relaijoeu c.ociaiís que ele coloca ati-aoer. da dí-
vir.ão Qfandei-, / povo. A t-eflexão r.obre o podei-
esta no ccnt-ro de t:ua ob i\.i, ma:: [>e l ii i'a::cio de
que, a i;eus olhoa, a t)Oí'te da divi r.ão social
ü e decide em futição do modo de d í-via a o do po-
dei' e da tioaiedado civil e í/ua cnuiim t-o deter-
minam ar> üondfçõea gei-aiü dor, dive)\ioü tipor,
de íj o a i e da de .

Não queremos fazer de Maquiavel um arauto da burguesia

mas perceber como, ao pensar sobre a política, nosso autor

apreendeu a importância polTtica de uma classe, que ele cliama

de povo, que Õ fundamental na esfera da economia e para qual,

segundo o florentino, a liberdade tem um extremo valor.

^LEFORT, 1979. I": As formas da li i s t õ r i a , p . ] hh


109

5.2, A república e a realização da liberdade

Como vimos no item anterior, o desejo do povo e o de

viver em liberdade. Por isto, pa r-a Maquiavel, dificilmente es

Le povo iria (luerer usurpar a autoridade num Estado, pois ele

deseja simplesmente ser livre^. vlã os grandes têm o desejo de

dominar e quanto mais coisas têm mais quereii/. C imjiossTvel,

desta forma, que a eles interesse a salvaguarda da liberdade.

Ür-a, se os grandes não têm este interesse e o povo o tom, o

Estado, como instância mediadora, tem (|ue garantir a liberdade

do povo, pois, para Maquiavel, este é o objetivo principal do

Estado e, quando este nao o atinge, coloca sua própria integrj_

da de em risco. Quando os que detêm o |)oder, i)or exem|)lo, go-

vernam em causa própria, o Estado esta muito perto de sua de-

sintegração. Jã, ao contrario, quando um |)ovo vive em liberd^

de, a cidade progride e enriquece. Neste sentido, Ma(|uiavel

escreve:

" l'e fajbíi-iSt.: faaílniuntd il,.: o>icie yiat>í;c o aniui' a


libei'dade dor, povor,; a axpc vicuciu }ioa uioaiva
que. a3 cCdudei; cffCf, acin <.;m podei' c em i-iiiueza
eiujuanto sau livi'ei->. E nui luiv f l lioc'o, p o !• exem-
plo, corno efei'iceu a jeandei^u de A t-eiiae dii te
Oil eew anotj que ne Jarede I'uni a di tadura de l'i -
íit t; 11U.I Lo . Contudo, nui i a admivávei atndu J a
cjrandey.a aleançada ]>c!a vepub l i cci eornann de-
poía que foi l i l/e )• t-adci do::> nem: reíi:. Cotiii.> re e n_
de-ise a i'ii::ão diuLo: noo é o inteyesDe puft i au_
lar (j ue fui', a gra}idei:a doe, L'otadoi:-, nun; o i n-
t o reuse aoleli oo. E e evidente que o interer^-
ot' aomum nó e reape i tmlo nat; j'epúl.> í leaií: tudo o
que pode trazer oantagem ijeral á nelai; aoruse-
íjuido t:en\ obú táeu I or,. Se uma carta medida pre-
judica um ou outro itidivtduo, não tácitos oa
que ela favorece, que tu.i chega a far.ê-la preva
lecer, a despeito das res i f> teuciar,, devido ao
pequeno número de pessoas prejudicadas"''.

Assim, d república c o melhor sistema de governo para

salvaguardar a liberdade. O regime do príncipe, como jã o mos-

tramos, s5 e va1i do enquanto nele se exerce um poder forte mas

^ MAQUIAVEL, Comen tá r ios. . . P. 33.

^ Ibidem. Pp. 3 "35 .

^ Ibi dem. Pp• 19 7-198.


1 1 Ü

temporário, em épocas do crise, justamente quando a liberdade

é ameaçada. Mas, como forma de governo permanente, o governo

de um só torna-se um perigo para a vida livre do povo. Se a

república visa o bem comum, Ma(]uiavel diz que

"o aonLváfio aaont-caa )iu>na inou a i-q k i a: com fi'c


qfienaicij o qua o iiioKi vca j'a:.: era í-cu jifoprio ir.
pi'cjiicliaa o h'st^cido - o o que bcHC-fiaiii
o Eüíado e yioaivo aoii í n La yrj ;j ei: [jcw L i a u I a fc
lio tnoníi )-ca. Atíaiiri, quaiuio a t. í rcin t\t J Icocni-
t.a )iO tncio de um pooo I i. d re , o í. nao iive >ii e te v.e
>ioi' que t-rui: e a t: un t-eu t. a o do p yo j i\: a r, o, dei
xando o paiíj de at'ejeey em poder e em i'i(iue::a;
l>oi-que o yioymal e q'-n'-', ner.i-e i-cir,o, o Er.tado )-e
ji-ida. 'de r.uftje poi- actano um liva)io líoLado de
aLijunia virtude, que nom valoi- e capa^: i dcide mi-
litar Liumen t(i o íieu doiniuío, ir, to não t ray. u
repuhl-i-Cii (juciLquer vaut.aqem: o ilrefiu e o uni-
ão bene ft a i íido. Htítara impeiiido de home nag etw
aeui' iiuditou iiuiir> ^■abioij e eorciJor,Oi', para ncio
te-lots aomo i niinigois; e nao t ra m: J'o ri:ui rã c\:
Ei\tadoí} ao)iij ui t ado f, em t ri !■' u t ái-i oj , poit) fiai>
lhe i.ntereiiúa fa'^^er ima cidade maic poderoaa.
Para ele, o loiiao ciue conta e (j ue tí)dar, a;; ci-
dades e p i-o i> iTici as o recon/tet^\nn como mestre.
Quel- semeai' a desunião ex t ra i ndo das suas con-
(I u i s tas ^proVe i to para si prop ri o, >iao pc.ira a
pat ria" .

vê-se, desta forma, o quanto e importante |)ara Maquia-

vel a liberdade de um povo e como esta sõ é possível sob um

regime republicano. Mas ao mesmo tem|.)0 5 difícil, como já mos

tramos neste capítulo, dar uma definição exata de liberdade no

florentino. Se nos podemos chamar a liberdade grega de parti-

cipativa, porque está fundada na [jar-ticiijaçao dos cidadãos nos

negócios públicos, e a liberdade moderna de restritiva, porque

se tem a liberdade constituída a partir do momento em que a so

ciedade estabelece o que não se pode fazer e até onde se pode

ir, em Maquiavel o estatuto da liberdade fica um tanto obscuro,

pois o autor não se preocupa em defini-la. Apesar disto, cre.-

mos que se pode perceber no conceito maquiavel iano de liberda-

de certos elementos que anunciam o conceito moderno. O Estado

de Maquiavel também exerce uma função restritiva no momento

em que coage a maldade dos homens possibilitando a instauração

^ maquiavel, Come n t á r i os . . . P. I'jB.


111

da sociedade política. Nesta sociedade, Maquiavel, coiiio j a mos

tramos nesta dissertação, reconhece que a esfera da vida priva

da dos súditos deve ser protegida pelo príncipe e nela este não

pode intervir, tendo neste fato um limite ao seu poder. Neste

sentido, a liberdade para nosso auLor não implica a participa-

ção nos negócios da cidade, mas a [) o s s i b i 1 i d a d e de viver a

sua vida privada em segurança. Como mostramos neste capítulo,

se se consegue isto o Estado se desenvolve e enri(|uec(>.

Por isto, cremos, jã existe de forma incijnente em Ma-

quiavel a idéia de uma liberdade indivi(iual que se diferencia

da liberdade [)olTtica tal como os gregos a c om p ree n d i a n). Sen-

do assim, o florentino se aproxima mais da liberdade moderna.

Benjamin Constant escreve:

lihci-Jadc i>idivídiial, fepilOj, J a Otii-dadei-


ra libeiuliidc mode rna. A lihcydade política á a
r.ua 'jarcintía e ]>o r t<i)i Lo , i tidi úpc nv> ÚVl: l . Men:
pcdii' iiüíi povos de hoje pa/ut i-ck-ri fia i; r, conto
or> dd antiíjatncnt e, a total idtidi; da r.ita libcvd^
de individual à l ib<: niada política c o meio
i/iati-í íj,.j<jui'o da a J'aii t a-l of> da p riutai ra , corn a
a oncaq l\cnc i a de feito a r.e fjunda na o
tai-da)\i a lhe t;ey ari-ebatada"

Este é o conceito moder-no de 1 iberdade e pensamos que e para

ele que Maquiavel aponta, ja que ele vive num momento em que o

indivíduo se constitui de uma maneira definida e, em Florença,

a burguesia demonstra a importância do esforço individual com

sua inserção na economia. Cremos que Macjuiavel percebe este

quadro, embora não haja em sua obra uma reflexão detida sobre

questões tais como os direitos individuais, o direito de pro-

priedade etc. Nunca será demais reafirmar que creditamos isto

não ã deficiências da teoria do florentino, mas ao próprio mo-

mento histórico em que ele vivia, onde estas realidades e os

conceitos que tentam dar conta delas estão em formação.

Mas Maquiavel reconhece que num Estado devem existir

leis e instituições com o objetivo de garantir a segurança dos

CONSTANT, 1985. In: F M o s o f i a p olítica 2, p. 21.


1 1 2

cidadãos. Se não esta claramente formulada em sua teoria a

idéia dos direitos individuais, e certo que para ele a seguran

ça dos cidadãos de uma república é elemento vital para que es-

tes não se revoltem incitados pelo medo'^. Uesta forma, as

I).ods leis garantem a ordem no tstado porque garantem a segura^

ça dos cidadãos e esta segurança di/ respeito, para Haquiavel,

não só aos males que os cidadãos podem causar entro si, mas

aos que lhes podem ser infligidos pelo próprio Fstado. O pen-

sador escreve que

"nada rruiii> funcistü do i h f Lt(Dunia )• a cada dia,


enti-e oa ai dad ao c., tiooot: i-c r, r, c n t i nicii toa pcloa
ulbi'ajcí> cunictidoa i híJí. í\i> an loncnt o contra al-
giini- dci'tas, como ac on tc c i a ein }\\>r:ia dcpoit.: do
dtJ cc n vi pato . De fato, todoú oí; d^j cÕ >t iri í-oj , c
niuitofy outi'Oi' cidadãoii, J'oi-ani cm oáfii.if, opoi'tu
nidadiiij aciiiiadoi} c co>idc>iador, . O t-cmoi' c i'a
ijci'al cntvc oa no/n'ca, que não o iam o fim Jí?;:-
iuiij conde)ia>^.OJi^ ante:.; qtm <uj duct i'uí í:í:.c toda. a
nua cluüííe. I.'iiito teria renultado i nc o)ivcni eti
teu doa inaiii de a ao t )'or> ot; pa j'a a repubi ica ae o
tribuno Marco Uuélio nao liouoer,;:,e ponto termo
ã nituaí^rão proií.<indo, du)\intc um ano, citar ou
acusar ciua Lquer cidadao romano, o (jite com
que Oi> nobrea recobrassem a s a g ura n

E Maquiavel continua dizendo que

"este exemplo mostra como e perigoso para uma


repúb l ica ou para um príncipe number os cida-
dãos em regtme de terror contínuo, a ti >í<ji ndo-os
sem cessa}- com ultrajes e suplícios. Nada hã
dti mats pe I'i (jos o do que este tipo de procedi -
mento, j>oj'qne os homens que temem pela rrópria
segurança começam a tomar as p)'aaauçõ.'s contra
os perigos que os ameaçam; depois, sua audácia
ci'esae, <^2^'" l>^'(iOe nada mais pode conter sua
o us adi a"

Pelo exposto acima, vê-se a importância das leis para

o florentino, na medida em que regulam os cidadão e impedem o

arbítrio do Estado. Mas estas leis, para Maquiavel, não são

boas por si mesmas ou em função de alguii) abstrato [)rincTpio de

justiça. As boas leis estão fundadas nos bons costumes de uma

repíjblica e elas por sua vez garantem a conservação destes co^


Al

'' MAQUIAVEL, Come n t ã r i os. . . P. 71.

'^ Ibidem. P. ! 't 6 .


1 1 3

1 '"i — ~
tumes . Aqui esta o motivo de tocld a preocupação de Maquiavel

com o problema da corrupção nas repúblicas. Esta corrui)ção mar

ca justamente a dissolução dos costumes, dando origem a uma

instabilidade tal que a segurança dos cidadãos não pode mais

ser garantida. üra, findando a segurança termina com ela a

liberdade, pois os cidadãos, moviilos pelo medo, nao mais se

submeteriam ao poder do Estado e isto |)rovocaria o fim da so-

ciedade política. £ neste momento (jue se pode compreender a

formulação de Maquiavel em O Príncipe, onde ele d i -í que [)a ra

se manter as boas leis e preciso ter boas armas. Isto não en-

tra em contradição com o trecluj dos Comentários... que trans-

crevemos acima, onde os bons costumes fundam as boas leis. Se

gun do Maquiavel, quando uma cidade atinge o ápice da corrupção,

as leis e as instituições de uma reitública nao são suficientes

para restabelecer a ordem. Desta forma, depois de falar no ca

pTtulo 18 dos Comentãrios... sobre vários problemas ligados ã

corrupção de uma república, Maquiavel escreve:

"/Jo que acabo de di:u;í', t. fan .:p aí'c cc a difiaul-


dadii, ou meúmo a impor, il)i l i dcidc, dj inantüi' o
goi>i2rno vepub 1 i cano numa cidade c o vyotupi da , ou
do ali e3tahelcac-1 o. De qualquer maneiva,
maiís Vale a monayquia do que o catado populai'
pai'a así-egui-aí' c/ue ou indivíduoú cuja i híj o lê>i-
cia ais leití nao ])odem i-ei^'^imi r r>ejam a u!)J ugadi\:
pov uma autoridade x-eal"

Fica claro, assim, que o fundamento das boas leis para

o florentino são os bons costumes. O uso das armas só se faz

necessário quando falha a força da lei com a corrupção da cid^

de. Compreende-se aqui mais uma vez o porque das formu1 ações de

Malqui avel . em O Príncipe e a aparente distância que iiá entre e^

te livro e os Comentários... Na Italia corrupta e fragmentada,

as leis perdiam a força e se fazia necessária aconstituição de

uma "autoridade veal" pois, como vimos, quando a corrupção se

instala numa cidade, perdem os cidadãos a segurança e a liber-

MACIUIAVF. L, Con\e n t ã r i os . . . P. 75.

' Ibidem. P. 77-


1 4

dade. Tal coisa, para Maquiavel, deve se constituir numa preo

cupação constante do Estado.


1 1 5

CONCLUSÃO

A obra de Maquiavel continua a nos colocar problemas.

Quanto mais se discute a importância do Estado, da polTtica e

da liberdade, mais se faz necessária uma reflexão sobre as for

mulações do florentino. Como cremos ter deixado claro em nos-

sa dissertação, não tivemos a pretensão de i n o v a r, mas de es-

clarecer. Não raro, ou se ataca Maquiavel ou simplesmente se

nega a discutir questões mais polêmicas de seu trabaltio. Ten-

tamos evitar as duas posiçoes. O (|ue pretendemos ter feito 5

mostrar que o florentino tinha questões concretas a [lartir das

quais ele refletia e de que seu [)ensamet)to pode sobreviver ã

sua época na medida em que não di/ respeito somente ã Itália

renascentista, mas ao prÕprio projeto político da modernidade

que estava nascendo. O Estado-nação se constituía e com ele

um novo conjunto de problemas se afigurava no horizonte do

pensamento político.

Seguramente Maquiavel na o podia prever a extensão de

sua fama. Sua obra O Príncipe, escrita na esperança do jjossi-

bilitar sua volta ã cena política, dominada neste momento pe-

los Mediei, não consegue seu intento na época. Hoje, o que se

impõe é uma releitura atenta de Maquiavel. lí necessário perce^

ber em que medida sua obra nos fala e como a ela somos remeti-

dos quando se discute questões ligadas ã polTtica. O problema

do Estado, por exemplo, de fundamental importância para os pe^i

sadores posteriores a Renascença, já se encontra colocado na

obra do florentino. A fundação do Estado é sua preocupação

constante na medida em que este Estado é a condição da socia-

bil idade humana Met modernidade.

A Renascença, como vimos nesta dissertação, elaborou

um novo ideal de homem, onde este deixa de se submeter ao des-


1 1 6

tino ou ã natureza e constitui o seu próprio caminho. Ao ní-

vel da reflexão polTtica, Maquiavel encarna este ideal. Ao

concluir este trabalho, deixamos registrado o esforço realiza-

do para apreender algumas das articulações da obra deste pens^

dor. Se Maquiavel e ate hoje estudado Õ porque ele nos inconio

da, nos interroga e nos leva a interrogar. Quando assisti nos a

criticas que pretendem destruir o tstado e ao niesino tempo per-

cebemos o agigantamento deste, muitas questões nos são dadas a

pensar. Podemos nos perguntar, por exemplo, sobre como devem

ser as relações entre o Estado e a Sociedade Civil ou sobre co

mo tornar este Estado efetivamente num Estado de direito. Mes

mo que estas questões não tenham sido levantadas por Maquiavel,

elas só são possíveis em nossa modernidade e ele viveu no li-

miar desta. Seja qual for a nossa posição com relaçao ao Est^

do, ele existe, é um fato. Maquiavel foi o [irimeiro pensador-

político a enfrentar e dar importância a este fato e tenta ar-

ticular com ele a idéia de liberdade. Tal articulação se colo

ca como um problema que ainda inquieta nossa contemporaneida de.


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