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Mulher, Feminismo e Sociologia: uma análise teórica sobre a obra O Suicídio de

Émile Durkheim e o contexto social do século XIX na França

Janaina de Araujo Morais


Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

Resumo
Este artigo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre como o sociólogo
francês Èmile Durkheim (1858-1917) - apesar do seu papel central na criação da
sociologia - apresenta análises sobre o contexto social da França daquela época, que
podem ser fortemente criticadas, devido à omissão de uma conjuntura política
importante: o debate do século XIX sobre a “questão da mulher”. Esse tema será
abordado, tendo como objeto de estudo a obra O Suicídio (1897) e o contexto social em
que Durkheim estava inserido quando a escreveu.
Para que esta reflexão seja possível, este paper terá como base um trabalho
realizado pela professora Jean Elisabeth Pedersen1, intitulado Política Sexual em Comte
e Durkheim: Feminismo, História, e a Tradição Sociológica Francesa. As análises
históricas que a autora traz sobre o contexto social em que Durkheim vivia serão
complementadas com reflexões próprias, acerca do texto O Suicídio, com foco
principalmente na questão da taxa de suicídio de mulheres casadas, levando em
consideração que naquele momento estava em discussão a implementação do divórcio
por consentimento mútuo.

Introdução
Émile Durkheim é considerado um dos pais fundadores da sociologia, junto com
outros grandes nomes como Auguste Comte e Henri de Saint-Simon, anteriores a ele.
Contudo, apesar da relevância de suas obras para o pensamento sociológico, é possível
perceber, a partir da leitura dos livros de Durkheim, que suas análises contextuais do
cânone francês se tornam incompletas, ao negligenciar as ações e experiências das
mulheres e focar suas análises quase exclusivamente nas interações entre homens.
Essa crítica é também levantada pela professora Jean Elisabeth Pedersen, em seu
texto Política Sexual em Comte e Durkheim: Feminismo, História, e a Tradição

1
Jean Elisabeth Pedersen é professora de História do Departamento de Humanidades da Estman School
of Music da Universidade de Rochester.

1
Sociológica Francesa2, em que a autora argumenta que não só Durkheim foi
responsável por essa negligência, mas outros sociólogos, como Comte, por exemplo,
assim o fizeram.
A autora levanta a questão de que enquanto Durkheim reconhecia o significado
da Revolução Francesa em sua história centenária, nada disse sobre as calorosas
discussões acerca do verdadeiro relacionamento entre homens e mulheres, que segundo
ela, eram um legado destacado daquele conflito. Pedersen ainda acrescenta que Comte e
Durkheim, que desenvolveram suas ciências da sociedade no contexto dessas
discussões, “valorizaram a diferença sexual, dirigiram a atenção ao estudo da família e
insistiram que somente alguns tipos de casamento poderiam servir como base para uma
sociedade avançada” (2006). Assim, demostravam um conservadorismo não
simplesmente no relacionamento com as posições de intelectuais feministas hoje, mas
até mesmo no relacionamento com figuras feministas que eles confrontaram em suas
próprias épocas, visto que uma das discussões mais relevantes daquele momento era o
divórcio por consentimento mútuo, algo que Durkheim se posicionava contra.
Embora as influentes contribuições de Comte e Durkheim para a
ciência social não tenham sido idênticas, elas foram
fundamentalmente sexistas, marginalizando as mulheres ao definir a
sociedade e a história em termos de interesses e atividades masculinas.
(PEDERSEN, 2006, p.189)

Além disso, de acordo com Pedersen, a influente exposição da história da


sociologia de Durkheim estabeleceu um precedente para trabalhos posteriores que
minimizaram a importância dos esforços sobre políticas sexuais que tinham marcado o
desenvolvimento da nova disciplina. E, seguindo o exemplo de Durkheim, a maioria dos
intelectuais da sociologia francesa fez vistas grossas ou subestimou as maneiras pelas
quais os trabalhos de Comte e Durkheim participaram dos contínuos debates sobre as
implicações políticas e sociais da diferença sexual.
Por conta disso, segundo a autora, nos últimos vinte anos, intelectuais feministas
têm desafiado o status canônico de Comte e Durkheim ao criticar suas sociologias,
antropologias e filosofias sobre mulheres e família e também ao redescobrir os trabalhos
sociais esquecidos de mulheres como Mary Astell, Mary Wortley Montague, Jane
Addams e Charlotte Perkins Gilman.
Assim, o trabalho de Pedersen também constitui um contraste ao integrar
abordagens da “história das mulheres, sociologia feminista, história e filosofia da
2
Texto traduzido por Denise Lopes de Souza e publicado na Revista de Estudos da Religião da PUC-SP,
em 2006.

2
ciência e ciência social” (2006). Ela acrescenta que, somente uma versão histórica
feminista consegue produzir uma história da sociologia que esclareça inteiramente as
causas e consequências da sua canonização.
Conforme historiadoras feministas como Joan Scott e Bonnie Smith
notaram, quanto mais sabemos sobre o que as mulheres conquistaram
no passado, mais temos razão para nos perguntar porque suas
conquistas têm sido tão freqüentemente esquecidas no presente (Scott
1988; Smith 1998). Para responder essa questão no caso da sociologia,
precisamos saber não somente o que o cânone sociológico deixou,
mas também como e porque ele foi criado. (PEDERSEN, 2006, p 189)

No texto, Pedersen tece um panorama histórico sobre a ciência social e seus


intelectuais, com foco em Auguste Comte e Émile Durkheim. Ela procura compreender
o contexto em que eles estavam inseridos e como as histórias fundadoras dos sociólogos
e de seus campos influenciaram em suas escritas e como contribuíram para eliminar a
presença e o esforço político das mulheres da história da sociologia.
A despeito da importância da história da sociologia para uma análise sobre
Durkheim e da influência de Comte para os escritos dele, neste artigo o enfoque será
exclusivamente no primeiro, mais especificamente a sua obra O Suicídio, no que tange a
questão da taxa de suicídio de mulheres casadas. Essa decisão é tomada por considerar
que, refletir sobre esse assunto específico, já é um grande desafio.
Assim, a próxima sessão deste paper dedica-se a uma reflexão sobre o contexto
da época em que Durkheim publica O Suicídio, as consequências de sua publicação e as
discussões geradas, buscando exemplificar o que Pedersen trata em seu texto - como o
posicionamento, ou o não posicionamento de Durkheim acerca das “questões das
mulheres”, contribuíram para a manutenção de uma sociedade desigual.

O Suicídio e as discussões sobre divórcio


O livro O Suicídio foi publicado em 1897 e foi considerado um dos pilares da
sociologia, pela abordagem inovadora sobre o suicídio – através de estudos sobre vários
tipos de suicídio, Durkheim conseguiu demonstrar o quanto um ato individual, como o
suicídio, origina-se de causas sociais identificáveis.
A sessão em que Durkheim escreve sobre o suicídio egoísta, ele destina boa
parte de sua análise aos dados sobre suicídios de pessoas solteiras, casadas e viúvas,
organizados em idade e gênero - homem e mulher. Suas análises demonstravam que
mulheres casadas se suicidavam mais do que mulheres solteiras, enquanto isso se

3
invertia em relação aos homens. No caso das mulheres havia um agravante: a taxa de
suicídio de mulheres casadas sem filhos era maior do que a taxa das casadas com filhos.
Antes de partir para uma análise específica do que estes dados representam, é
necessário introduzir o leitor ao contexto da época em que Durkheim publicou seu
estudo.
Desde a época de Comte, e isso só se agravou em Durkheim, “as relações
tradicionais entre homens e mulheres pareciam mudar com dramática velocidade”
(PEDERSEN, 2006).
Feministas que participaram de uma série de congressos cada vez mais
manifestos em 1878, 1889, 1896 e 1900 buscaram autonomia legal
para mulheres solteiras ou casadas, incluindo o direito de freqüentar a
universidade, administrar propriedade, testemunhar documentos
legais, ser tutoras, votar em eleições nacionais e divorcia-se nos
mesmos termos que os homens. Antes da virada do século tais
congressos, juntamente com pesquisas da imprensa, romances
populares, e peças parisienses, colocaram o casamento e o divórcio no
centro do que o historiador Edward Berenson chamou “um debate de
escala nacional” (1984, 41). (PEDERSEN, 2006, p. 200).

Segundo Pedersen, assim como Comte, Durkheim sustentou posições sociais


oficiais em debates sobre política sexual que o rodeavam.
Por exemplo, dedicou uma das suas primeiras séries de conferências à
“sociologia da família”, especialmente a “família conjugal”, em 1888
(Durkheim 1888, 1921). Em 1893, fundamentou-se naquele trabalho
anterior para insistir na diferença sexual como ingrediente essencial
para o casamento moderno e sociedade civilizada em seu primeiro
livro, De la division du travail social ([1893] 1984). Talvez mais
significante, terminou seu terceiro trabalho acadêmico, Le suicide, em
1897, ao expressar uma ansiedade sobre as conseqüências sociais do
divórcio, a qual repetiu em espaços mais explicitamente políticos
quando se opôs ao divórcio por consentimento mútuo em Revuebleue
em 1906 e num seminário sobre “Casamento e divórcio” em Union
pour l´action morale em 1909 (Durkheim [1897] 1951, 1906; Union
pour l´action morale 1909). (PEDERSEN, 2006, p. 200).

Pedersen afirma que desde a Revolução Francesa, no século anterior,


republicanos e católicos romanos tinham discutido sobre se o casamento era um serviço
civil ou um juramento sagrado, e se o divórcio era simples término de um contrato, ou
pecado ao rejeitar uma promessa permanente. Para as feministas, o divórcio era um
importante símbolo da autonomia da mulher, garantindo o direito de abandonar um
casamento ruim.
Para a mentalidade democrática, a revogação do divórcio foi a primeira vingança
contra o espírito democrático realizada pelo clero. Portanto o mesmo contrário deveria

4
ser feito contra o espírito clerical. Assim, a Lei Naquet trouxe de volta o divórcio à
França, em 1884 - foi um projeto de lei de meio-termo que rejeitava o divórcio
revolucionário com consentimento mútuo em favor de um divórcio por um limitado
número de causas.
Pedersen acrescenta que reformadores do divórcio ficaram insatisfeitos com essa
medida e as feministas não só continuavam exigindo a legalização do divórcio por
consentimento mútuo, como foram além e demandaram, no Congrès international de la
condition et des droits des femmes, em 1900, a legalização do divórcio quando
quaisquer um dos companheiros demonstrasse desejo persistente pelo fim do
casamento.
Em contrapartida, Durkheim demonstrou sua ansiedade sobre os efeitos do
divórcio fácil e sua consistente oposição ao divórcio por consentimento mútuo, em seu
estudo sociológico sobre o suicídio, em que, através dos dados mencionados no início
da sessão, Durkheim verificou que homens e mulheres embora tivessem interesses
comuns em formar uma família, tinham interesses opostos sobre o casamento, que era
bom para os homens, e sobre o divórcio, que era bom para as mulheres. Como
consequência, em países onde o divórcio era permitido a taxa de suicídio de homens era
maior, mas a taxa de suicídio de mulheres era menor.
Durkheim considerou essa prova de divergentes reações dos homens e
das mulheres em relação ao casamento e ao divórcio “especialmente
perturbadoras” ([1897] 1951, 384), mas intelectuais feministas têm
estado ainda mais perturbadas pela forma como ele tentou primeiro
explicar o problema e, depois, resolvê-lo (Sydie 1987; Lehmann
1994). Por exemplo, embora reconhecesse que as casadas enfrentavam
mais restrições sociais que os homens casados, dedicou a maior parte
de sua explicação sobre a diferença em taxas de suicídio para as
formas pelas quais as mulheres eram “criaturas mais instintiva[s]” que
os homens. Na sua opinião, os desejos sexuais “naturalmente
limitados” das mulheres estavam mais proximamente relacionados às
necessidades do seu[s] organismo[s biológicos]” (272). O casamento
diminuía a taxa de suicídio masculino porque os homens modernos
precisavam de regulamento sexual para sobreviver; e aumentava as
taxas de suicídio feminino porque os desejos das mulheres ainda eram
auto-reguladores. Embora Durkheim tivesse sustentado que o
propósito de seu estudo era mostrar que comportamentos individuais
poderiam ser compreendidos somente em termos sociológicos, seu
tratamento às mulheres como entidades biológicas parecia colocá-las
fora do todo plano de ação sociológico (Besnard 1973; Sydie 1987;
Lehmann 1994). (PEDERSEN, 2006, p. 204).

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Esse posicionamento causa ainda mais inquietação quando Pedersen cita uma
fala de Durkheim sobre essa questão “Um dos sexos deve necessariamente ser
sacrificado, e a solução é somente escolher dos males o menor” ele acrescenta, “Nada
mais parece possível desde que os interesses do marido e da mulher no casamento sejam
tão obviamente opostos” (384). Dessa forma, aparentemente era mais importante manter
a taxa de suicídio de homens baixa, ao se limitar o divórcio, do que se preocupar com a
taxa de suicídio de mulheres que disso resultaria.
Em seu texto, Pedersen mostra que, depois de alguns anos da publicação de seu
livro Durkheim faz uma releitura e admite a necessidade do divórcio limitado, mas
continuou defendendo a importância social do casamento como uma maneira de regular
o desejo, especialmente dos homens e, alertou que facilitar o divórcio aumentaria a taxa
de suicídio. O sociólogo também afirmou que os interesses sociais envolvidos no
casamento e na vida doméstica são demasiados sérios, para deixa-los ao arbítrio dos
indivíduos.
As resistências públicas ao feminismo permaneceram tão fortes, que as francesas
não conquistaram o direito ao divórcio com consentimento mútuo até 1975, trinta anos
após conquistar o direito ao voto.
A partir dessas informações é possível perceber, assim como Pedersen, que a
participação de Durkheim no debate sobre o divórcio, sugere a medida em que ele
“estava criando suas teorias científicas sociais sobre homens, mulheres, casamento e a
família, não como um reflexo de, mas como uma reação a outras ideias que estavam
disponíveis para ele naquela época”. Assim, a constante oposição do sociólogo ao
divórcio por consentimento mútuo como uma ameaça à sociedade sugere a forma pela
qual seu trabalho reagiu contra o feminismo de sua época.

Outras reflexões sobre O Suicídio: Beauvoir e a mulher casada


Após tecido este panorama sobre o contexto político da França do século XIX,
no que concernem as discussões feministas sobre divórcio e a participação de Durkheim
nestes debates, além da importância de sua obra O Suicídio para aquele momento, esta
parte do artigo será direcionada a uma análise própria sobre a obra e a questão da taxa
de suicídio de mulheres casadas.
Diante dos dados apresentados em seu livro, Durkheim busca a causa social
dessa diferença na taxa de suicídio de mulheres e homens casados e de mulheres e
homens solteiros. E sinaliza para onde suas atenções estariam voltadas: “É pois na

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constituição do grupo familiar que se deve encontrar a causa principal do fenômeno que
estamos estudando” (DURKHEIM, 2000).
Apesar de tentar buscar a causa sociológica para a diferença nos índices de
suicídio entre homens e mulheres casados, por vários momentos ele se desvia deste
caminho e levanta hipóteses com fundamentos biológicos - como já demonstrado em
outra passagem. Outro exemplo disso, seria quando ele procura uma causa anterior, que
não o casamento para justificar os índices de suicídio. Neste momento ele cogita que o
homem teria talvez uma imunidade anterior, biológica, que o faria se adaptar melhor ao
casamento que a mulher. Depois de abrir essa hipótese e perceber que seria improvável,
ele afirma que o que poderia acontecer é que homens adquiririam um temperamento ao
longo do casamento, vindo de causas exteriores (p. 231-235).
O que é intrigante no trabalho de Durkheim é que, apesar de ter todos esses
dados em mãos e estar inserido em uma época de efervescência das concepções
feministas sobre mulheres, homens, casamento e família, ele negligencia
acontecimentos sociais importantes para o seu estudo, em detrimento de uma percepção
ainda carregada de concepções herdadas do evolucionismo, procurando causas naturais
e biológicas para situações conjunturais.
Diante disso, o que é pretendido nesta parte do artigo é tentar fazer outra leitura
dos dados que Durkheim apresenta no livro, procurando entender como a construção da
percepção sobre o casamento é diferente para homens e para mulheres, e como a
diferença de papeis atribuídos para um e outro dentro do casamento pode ser o caminho
para se entender os índices de suicídio. Para auxiliar esta reflexão, o trabalho de Simone
de Beauvoir, O Segundo Sexo – A Experiência Vivida3, será de imensa utilidade, visto
que a autora dedica todo um capítulo sobre a mulher casada. A despeito de, neste livro,
Beauvoir apresentar dados de estudos psicanalíticos, o foco será nas informações que
ela apresenta sobre o comportamento social de homens e mulheres da época, e a
construção social e cultural destes perfis. Mesmo o livro sendo um ensaio filosófico, a
autora consegue um retrato fiel da dinâmica social que envolvia homens e mulheres.
O Segundo Sexo é considerado um dos maiores legados feministas de todos os
tempos, porque Beauvoir consegue examinar a condição feminina em todas as suas
dimensões: sexual, psicológica, social e política. E ao fazer uma análise sobre a situação

3
Apesar do livro ser uma publicação de 1949, o registro que Beauvoir faz sobre o comportamento social
de mulheres e homens na França ultrapassa temporalidades. Isso se dá por dois motivos: primeiro ela faz
referência a estudos anteriores do século XIX e segundo é que o momento em que Beauvoir publica o
livro, a sociedade ainda estava digerindo as discussões sobre o divórcio.

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da mulher, desde a infância até a vida adulta, a autora também avalia a situação do
homem, mostrando as diferenças na educação oferecida a cada um e como isso se
reflete na formação de homens e de mulheres e como vão interagir no meio social.
Bauvoir inicia o capítulo sobre a mulher casada dizendo que “O destino que a
sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento”, e acrescenta: “Em sua
maioria, ainda hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se preparam para sê-lo, ou
sofrem por não o ser”. Ela ainda complementa dizendo que nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a mulher assume no seio da sociedade, e sim a
sociedade que elabora esse produto intermediário entre o homem e a mulher. Somente a
mediação de alguém pode constituir um indivíduo como outro.
É procurando desnaturalizar a concepção do que é ser mulher ou do que é ser
homem, que a autora procura mostrar como as crianças aprendem a se tornarem
mulheres ou homens, a partir da criação dos familiares. Desde a infância, enquanto os
pais ensinavam à menina que precisava ser educada, bonita, prendada, delicada, e que
todos estes atributos eram necessários para conseguir um marido, e que era este seu
destino, ao menino eles ensinavam que deveria ser forte, viril e independente. A figura
passiva e oprimida da mulher se contrapunha à figura viril e liberta do homem.
Assim, como afirma Beauvoir “O casamento sempre se apresentou de maneira
radicalmente diferente para o homem e para a mulher”, e ainda “integrada como escrava
ou vassala nos grupos familiares dominados por pais ou irmãos, a mulher sempre foi
dada em casamento a certos homens por outros homens”. O casamento era considerado
a única justificativa social para a existência da mulher, ou seja, ao constituir sua própria
família ela cumpria o papel que lhe era destinado e deixava de ser um peso para o pai ou
o irmão, passando a ser responsabilidade do marido.
Dessa forma, enquanto a mulher não podia querer outro destino para si e sofria
com a possibilidade de jamais conseguir se casar, o homem poderia desfrutar de toda a
liberdade que a sua posição lhe garantia e o casamento para ele não era tido como algo
prioritário, mas apenas como mais um step para o status social almejado.
É possível perceber que a escolha da moça é o mais das vezes muito limitada -
só seria realmente livre se ela se julgasse igualmente livre de não se casar. Assim, como
afirma Beauvoir, a sociedade a convence da superioridade viril do homem, seu prestígio
econômico e social, tudo para persuadir a adolescente de que é de seu interesse tornar-se
vassala e dedicar seu amor ao homem. “O casamento não é apenas uma carreira honrosa

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e menos cansativa do que muitas outras: só ele permite à mulher atingir a sua dignidade
social integral e realizar-se como amante e mãe”.
É visto, pois, que o casamento tem finalidades diferentes tanto para homens
quanto para mulheres, e essa concepção pode ser um indício para as taxas de suicídio de
mulheres casadas. Mas, ainda não é suficiente, existem outros desdobramentos que
podem influenciar. Pelo fato de homens e mulheres terem sido criados em esferas tão
antagônicas, com essa percepção diferente sobre o casamento e sua função social,
existem alguns agravantes levantados por Beauvoir, que tornam a experiência do
casamento algo doloroso para as mulheres.
A autora apresenta vários casos de mulheres que tiveram experiências
traumáticas em relação ao ato sexual com os maridos, revelando nojo, angústia e horror
sobre essa experiência, muitas vezes por terem sido violentas, ou por não estarem
preparadas. Ela relata casos de mulheres que precisaram de tratamentos médicos por
conta do trauma e outros casos de mulheres que não melhoraram com o tratamento,
recorrendo ao suicídio. Neste mesmo patamar, existem outros tantos casos de mulheres
que haviam perdido a virgindade antes do casamento, e viviam temerosas com a ideia
de o marido descobrir o segredo na lua de mel, e assim, causar vergonha e desonra para
a família4.
Outra questão importante que a autora levanta são os casos de mulheres que não
querem casar e abandonar a família. Acostumadas com o lar em que vivem, já que suas
ligações com o lar paterno são muito mais fortes do que a do rapaz, não querem se
arriscar a viverem longe do carinho da mãe, e assim, quando ocorre o casamento muitas
não se adaptam à vida de casada.
Viver o início de um empreendimento é exaltante; mas nada é mais
deprimente do que descobrir o destino sobre o qual não se tem mais
nenhum domínio. É desse fundo definitivo, imutável, que a liberdade
emerge com a mais intolerável gratuidade. Antes, a jovem abrigada
pela autoridade dos pais, usava de sua liberdade na revolta e na
esperança; empregava-a em recusar e em ultrapassar uma condição em
que encontrava ao mesmo tempo segurança; era para o casamento que
se transcendia do seio do calor familiar; agora ela é casada, não há
mais diante dela outro futuro. As portas do lar fecharam-se atrás dela:
será esse seu quinhão na terra. Ela sabe exatamente que tarefas a
aguardam: as mesmas que sua mãe executava. Dia após dia, os
mesmos ritos se repetirão. Jovem, tinha as mãos vazias: na esperança,
no sonho, tudo possuía. Agora ela adquiriu uma parcela do mundo e
pensa com angústia: é apenas isto, para sempre. Para sempre este
marido e esta casa. Nada mais tem a esperar, nada mais de importante
a querer. (BEAUVOIR, 1980, p. 211).
4
Para saber mais sobre esses casos ler O Segundo Sexo – A experiência Vivida pg 174.

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Assim, como Beauvoir argumenta “o casamento é hoje a sobrevivência de
costumes defuntos” e a situação da esposa é muito mais ingrata do que antes, porque ela
ainda tem os mesmos deveres, mas não os mesmos direitos – tem as mesmas tarefas sem
tirar delas recompensa nem honra. Dessa forma, o trabalho que a mulher executa no
interior do lar não lhe confere autonomia; não é diretamente útil à coletividade, não
desemboca no futuro, não produz nada.
Como é possível perceber, apesar de ser no casamento que a mulher se integra à
sociedade, não é a mesma integração que o homem possui, ela não se integra de uma
forma legítima e autônoma como o homem, a mulher se coloca na dependência do
marido e dos filhos e é através deles que sua existência é justificada.
Esse destino poderia ser tratado como algo bom e feliz por muitas mulheres, mas
não por todas. Diante destes dados, percebendo a condição da mulher naquela época, é
possível entender a causa social da taxa de suicídio de mulheres casadas ser maior do
que a de homens. Afinal, enquanto os homens tudo podiam, as mulheres só podiam o
que lhes era destinado, tinham que reprimir seus desejos e seus sonhos, para se tornarem
mulheres ideais para cumprirem seu papel naquela sociedade. Quando solteiras ainda
podiam desfrutar de certa liberdade, já casadas se ousavam algo além do que podiam
alcançar poderiam ser violentamente tolhidas pelos maridos. Sem a permissão para abrir
mão do casamento, de duas uma: se resignavam ou se suicidavam.
Porém, diferentemente do que muitos pensavam, as mulheres não são tão
distintas dos homens, e assim como eles queriam se sentir indivíduos autônomos e
donas de suas vidas. Diante disso, é possível entender também as lutas de mulheres que
por alcançarem um esclarecimento de suas condições, não se resignaram e buscavam
outra realidade para todas as mulheres. Ao contrário de Durkheim, elas não viam aquela
situação como natural, e sim como conjuntural e passível de mudanças.

Considerações Finais
A partir das considerações anteriores é possível destacar que a mulher tem sido
historicamente relegada de seu espaço na construção de sua própria história. Seu papel
social sempre foi suprimido às necessidades do homem: nunca protagonista, sempre
figurante. Contudo, felizmente, o movimento feminista surgiu para mudar essa
realidade, em busca de direitos e mais dignidade pra existência das mulheres.

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Apesar de Durkheim ter presenciado discussões importantes levantadas pelas
intelectuais feministas de seu tempo, seu posicionamento foi conservador. Entretanto,
não foi responsável pelas omissões anteriores que herdou, mas seu próprio trabalho
pode ter criado novos silêncios para estudiosos posteriores. E isto é compreensível, visto
que o movimento feminista ainda engatinhava e a ciência social era uma atividade
masculina.
Assim, este trabalho buscou trazer informações novas sobre o contexto social da
época e a condição da mulher francesa, com o intuito de aprofundar nas discussões
sobre o livro O Suicídio, na tentativa também, de suprimir minimamente o vácuo
analítico do livro, no que concernem as causas sociais para taxa de suicídio de mulheres
casadas ser maior do que a dos homens. Por fim, este artigo também procurou ampliar o
leque de discussões sobre feminismo, mulher e sociologia.

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. 2. A Experiência Vivida. Tradução Sérgio


Milliet. Rio de Janeiro, Nova Fronteira S.A, 1980.
DURKHEIM, Émile. O Suicídio. Tradução Monica Stahel. São Paulo, Martins Fontes,
2000.
______ Da Divisão do Trabalho Social. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo,
Martins Fontes, 1999.
PEDERSEN, Jean Elisabeth. Política Sexual em Comte e Durkheim: Feminismo,
História, e a Tradição Sociológica Francesa. Tradução Denise Lopes de Souza. Revista
de Estudos da Religião. Nº 1, pp. 186-218, 2006.

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