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28/05/2018 O mosaico que é o Brasil: mestiçagem ou racismo?

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ARTES

O mosaico que é o Brasil:


mestiçagem ou racismo?
Os diferentes estratos, sedimentações, peças e fragmentos que
vemos na exposição Histórias Mestiças evocam esse mosaico de
culturas que é o Brasil. Porém, o modo de entender tal mosaico
extravasa a exposição e só a custo pode ser reduzido à figura
do mestiço e à prática da mestiçagem.

DIOGO RAMADA CURTO • 25 de Setembro de 2014, 14:26

 
Bem entrado o século XVIII, um viajante
estrangeiro perguntou a um índio do
Brasil:

– Porque pinta você o seu corpo?


– Porque não pinta você o seu – respondeu
o índio. Quer-se parecer com um animal?

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Histórias como esta ilustram bem o direito


à diferença nas relações entre culturas. A
seu lado, na exposição intitulada Histórias
Mestiças do Instituto Tomie Ohtake de São
Paulo, que permanecerá até Outubro,
constam: artefactos das inúmeras culturas
ameríndias e africanas que compõem o
Brasil, obras-primas da sua pintura
modernista, telas descritivas dos séculos
XVII a XIX, fotografias, desenhos,
instrumentos de trabalho, de coerção ou de
carácter ritual e, pelo menos, uma
instalação de grandes dimensões que
pretende reconstituir o sentido de um
candomblé. Neste último caso, a recriação
da cerimónia é levada a sério, mas exige
marcação que só contempla um reduzido
número dos visitantes.

Sem preocupações exaustivas, o inventário


de todos esses fragmentos – num total de
400 objectos – sugere que o Brasil é um
mosaico de culturas. Compõem-no muitas
e variadas sedimentações, em camadas
tantas vezes contraditórias que mais se
parecem anular umas às outras do que
convergir num qualquer processo de
mestiçagem ou de miscigenação.

Tal como se a exposição transcendesse o


seu próprio título. Quer porque este não
cobre a riqueza de significados da própria
exposição, quer também por haver
conotações de mestiço ou de mestiçagem
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mestiço fosse inadequado para dar conta


do mosaico, que a exposição oferece –
inadequado, note-se bem, por conter em si
ecos de uma imagem de fusão luso-
tropicalista cara a Gilberto Freyre.

Ora o que sucede com a exposição é que ela


concede autonomia às culturas africanas,
em parte reinventadas no Brasil, em
comunidades de escravos, quilombos
formados à custa de fugas bem sucedidas
ou bairros suburbanos. A mesma
autonomia encontra-se, também, nos
inúmeros utensílios, instrumentos rituais e
formas simbólicas associados aos grupos
de ameríndios. É o que acontece com os
objectos que Claude Lévi-Strauss recolheu
para o, então, Musée de l’Homme de Paris,
presentes na exposição. Paralelamente,
vários são os géneros e as disciplinas a
partir dos quais tem sido feita a valorização
– que, neste caso, quer dizer conhecimento
e uso – de tais culturas, pelo menos desde
finais do século XIX.

Os estudos de Mário de Andrade – grande


intelectual brasileiro do século XX,
responsável pela Semana da Arte Moderna
de 1922 e autor de Macunaíma (1928) –
sobre as danças africanas e, mais em
particular, o samba rural em São Paulo
demonstram a força do olhar douto,
moderno, sobre aquilo que muitos
consideravam primitivo ou selvagem, a
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racismos. Por isso, o retrato de Mário por


Cândido Portinari não podia estar ausente
da mostra.

Porém, é numa das fotografias que mais


interpelam o visitante que se encontram
melhor os traços de racismo e violência que
caracterizam esse mosaico que é o Brasil.
Trata-se de uma fotografia feita por volta
de 1860, no Recife, representando um
menino junto a sua ama, ambos vestidos
para a ocasião, encenada por família e
fotógrafo. Na antologia de textos que serviu
de base para a preparação da exposição, o
historiador Luiz Felipe Alencastro explica
melhor que ninguém o sentido da mesma
fotografia, ao descrever que a ama não se
tinha movido:

“Presa à imagem que os senhores queriam


fixar, aos gestos codificados de seu
estatuto. Sua mão direita, ao lado do
menino, está fechada no centro da foto, na
altura do ventre, de onde nascera outra
criança, da idade daquela. Manteve o corpo
erecto, e do lado esquerdo, onde não se
fazia sentir o peso do menino, seu colo, seu
pescoço, seu braço escaparam da roupa que
não era dela, impuseram à composição da
foto a presença incontida do seu corpo, de
sua nudez, de seu ser sozinho, da sua
liberdade”.

“O mistério dessa foto feita há cerca de 130


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fundada no amor presente e na violência
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pregressa. Na violência que fendeu a alma


da escrava, abrindo o espaço afectivo que
está sendo invadido pelo filho de seu
senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa
foto”.

Mais do que enaltecer a capacidade


descritiva no belo texto de Alencastro, o
que mais importa é perceber o modo como
uma fotografia desta natureza nos pode
ajudar a pensar a violência, a discriminação
e o racismo, no rés-do-chão, ou seja, no
quotidiano do mosaico brasileiro.

Em 2008, Serge Gruzinski organizou em


Paris, no Museu do Quai Branly, uma outra
exposição intitulada Planète Métisse: to
mix or not to mix. A entrada impressionou-
me. Umas plumas que, logo, julguei de
índio, nas suas cores garridas, do vermelho
ao amarelo torrado, pareciam representar
um qualquer artefacto de chefe índio da
Amazónia. Mas, afinal, a surpresa estava
no paradoxo. Tratava-se de um colete de
alta costura num tronco de manequim
assinado por Jean-Paul Gautier. O
propósito de uma tal encenação era
evidente: consistia em lançar a
ambiguidade, própria de qualquer operação
ou conceito de mestiçagem, em que se
atenuam os contrastes, a ponto de pólos
opostos poderem passar a ser reversíveis. A
ambiguidade era também lançada em
relação aos modos de representação do
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“choque de culturas” –
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conceptualização com que Samuel P.


Huntington pretendeu descrever o mundo
pós-Guerra Fria – , Gruzinski opôs um
planeta de ambíguas mestiçagens.

A exposição Histórias Mestiças, que


Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz
souberam organizar, não cede tão
facilmente às operações de estetização das
relações dos colonos e das elites brasileiras
com os grupos de escravos e de
descendentes de africanos e ameríndios.
Ao visitar as suas seis salas – Mapas e
Trilhas; Máscaras e Retratos; Emblemas
Nacionais e Cosmologias; Ritos e
Religiões; Trabalho; Tramas e Grafismos
– constata-se mesmo uma clara intenção
de contrariar essas mesmas operações, de
dois modos diferentes.

Primeiro, terminando de uma vez por todas


com o cânone da grande pintura, douta,
sobretudo modernista, auto-sustentado
por ideias de arte pela arte ou de
reinvenção das formas geométricas e
abstractas. Por isso mesmo, as telas de
Portinari ou de Tarsila do Amaral são
expostas ao lado do trabalho de pintores
índios e de muitos outros artefactos. E é,
aliás, nesta sobreposição de registos, que
melhor encontramos o próprio sentido do
mosaico que o Brasil forma. A este
respeito, Lilia Schwarcz confessou o mal
estar que a mesma dessacralização já teria
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provocado junto dos curadores dos museus
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modernistas mais consagrados.
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Um segundo modo de quebrar essa mesma


estetização – que surge geralmente sob a
forma da imputação de uma determinada
estética, considerada nova porque douta, a
níveis culturais relegados para baixo – está
fundado na atenção conjunta que a
exposição dá tanto aos rituais, como à
questão do trabalho. É que se os rituais,
com os seus instrumentos simbólicos e
encenações, percorrem a exposição, a
presença constante da questão do trabalho,
a começar pela da escravatura, constitui a
melhor forma de eliminar falsas operações
de estetização.

A seriedade com que a exposição foi


preparada, ainda antes da publicação do
catálogo, pode também ser comprovada
pela interessante antologia de textos de
reflexão que os dois curadores entretanto
publicaram.

Haverá na exposição em causa aspectos


semelhantes aos que o visitante encontra
no Museu Afro Brasil. Emanuel Araújo, o
seu director, está bem presente no museu
que dirige. Artista plástico baiano da
geração de Maria Betânea e Caetano,
cidadão do mundo, grande conhecedor das
culturas africanas, com particular
incidência nas do Golfo da Guiné, o seu
museu provoca no visitante uma
revolução. Também ali se encontram – até
à exaustão e numa escala que nenhuma
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culturas africanas. Ficando dele excluídas


as culturas ameríndias, os processos de
criação artística envolvendo africanos, a
começar pelos escultores que trabalharam
nas diferentes igreja do barroco brasileiro e
dos pintores dos séculos XIX e XX que
formaram um novo cânone de artistas, são
vistos a par das representações da cultura
africana no Brasil. Impossível esquecer
esses fatos de orixás, com a sua
exuberância e cores garridas!

Ao sair do Museu Afro Brasil, do outro lado


do Parque Ibirapuera, num outro edifício
de Niemeyer, lá estava a Bienal de Arte de
São Paulo. Este ano, sob o lema da
politização e da intervenção. Porém, frente
ao que vi no Instituto Tomie Ohtake e no
Museu Afro Brasil, a Bienal parecia não
passar de uma figura pálida.

Foi, então, que me lembrei que as histórias


da exposição, tal como as do museu
lembravam um confessionário escrito por
um jesuíta por volta de 1700, que
permanece em manuscrito na Biblioteca
Mário de Andrade. Para esse padre
anónimo, a questão do Brasil no período
colonial tinha nome e uma causa principal:
a escravatura. Os pecados em que a
sociedade brasileira de então vivia tinham
origem no carácter lascivo, erótico e sexual
dos escravos. Com as suas danças
diabólicas e, no espaço doméstico, com as
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transformara num teatro de vícios. A
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perversão dos costumes provinha, pois, de


baixo. Só acabando com o tráfico é que o
problema se resolveria. O projecto de
abolição da escravatura do jesuíta tinha,
assim, origem numa atitude de profundo
racismo – ódio racial – em relação aos
africanos que viviam no Brasil.

Enfim, é a partir dos diferentes estratos,


sedimentações, peças e fragmentos –
como os que se encontram em Histórias
Mestiças, nas colecções de Emanuel Araújo
do Museu Afro Brasil e na Biblioteca Mário
de Andrade – que será possível
compreender melhor esse mosaico de
culturas que é o Brasil. Só não sei, repito, à
guisa de conclusão, se o modo de entender
um tal mosaico fica contido na figura do
mestiço e na prática da mestiçagem.
Pessoalmente, creio que não.

Historiador

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