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A LITERATURA E A ARTE

RIO: O IR de Arnaldo Antunes


O texto de abertura do capítulo está centrado em determinado
arranjo: a palavra-base é “rio”, que, invertida e desmembrada,
gerou a frase “o ir”.
Você pôde descobrir na leitura vários significados escondidos
no poema.
O poema rio: o ir, de Arnaldo Antunes, é tanto um texto para
ser lido como para ser visto.
Observem:
• a metáfora do rio como a vida, em constante curso;
• o rio em movimento constante e o fato da palavra “rio”
ser “o ir” ao contrário;
• a forma como o poema “Rio” é colocado no espaço (em
círculo, em movimento).
1. Antunes trabalha com as palavras como se estivesse armando um jogo: ele as articula intencionalmente de modo que elas sugiram
leituras variadas. Entre nesse jogo. Tomando a forma do poema como um todo, como você o interpreta?
2. Observe, agora, as particularidades da figura desenhada por Antunes: há um o no centro. O que pode ser?
3. Partindo de uma leitura de fora para dentro do poema, vemos que em todas as direções forma-se a expressão “rio: o ir, graças a
uma estrutura que aproveita e desmembra as letras da palavra rio. Consulte o dicionário: o que essa palavra significa,
concretamente? A definição pode ser útil para a interpretação do poema?
4. Segundo o critico literário Antônio Medina Rodrigues, “Não há autoridade nos processos genuinamente inventivos”, ou seja, não
importa se o artista deseja provocar deter minada leitura de sua obra, pois a interpretação depende de um jogo. O que ele quis
dizer com isso?
5. A interpretação de uma obra é sempre uma revelação. Considerando as leituras possíveis do poema rio: o ir, construa ao menos
uma frase que aponte o que o poema lhe revelou.
O texto de Arnaldo Antunes é literário. O artista criou um “mundo ficcional”, Isto é, imaginário, inventado, com a intenção de
transmitir uma mensagem ao seu leitor-intérprete. É claro que esse mundo imaginário, ficcional, mantém relações com o mundo
Físico, real: rio é um acidente geográfico, existe concretamente. O artista, no entanto, ultrapassa essa realidade e cria uma
própria, inventada.
Outros poemas visuais
"Olho" (1967), poema/processo de Anchieta Fernandes. Observe a sugestão de animação gráfico-visual e o processo
de transformação do signo não-verbal em signo verbal e suas reapresentações através do tempo.

ANCHIETA FERNANDES ANCHIETA FERNANDES GEORGE SMITH FALVES SILVA


 “Olho”(versão 1967)  “Olho”(versão 1968)   “Olho”(versão,década de 1970)   “Olho”(versão 2003)
Os arranjos estão no nascedouro da obra de arte. Determinados modos de enxergar a realidade e transpô-la para a
obra dão ao poema forma e substância, permitindo transmitir uma emoção ou uma sensação.

1. 2. 3. 4. 5.

1.Décio Pignatari 2. Avelino de Araújo 3.Arnaldo Antunes 4.Augusto de Campos 5. Joan Brossa

REALIDADE ARTÍSTICA E MUNDO REAL


A obra de arte é a criação que interpreta o mundo e permite que nós a interpretemos segundo nossa
experiência.

Acompanhe a tela acima, do pintor espanhol Salvador Dalí: Rosto de Mae West podendo ser utilizado como
apartamento surrealista – Salvador Dali Numa exposição, um artista ouviu o seguinte comentá tio sobre a figura
representada numa de suas telas: “Que mulher mais esquisital”. O pintor aproximou-se e replicou, serenamente: “Mas
isso não é uma mulher, isso é um quadro..... A advertência do artista é interessante se considerarmos que o quadro,
assim como qualquer obra de arte, representa uma realidade não é uma fotografia, uma cópia fiel. O pintor teceu uma
imagem com os recursos disponíveis: tela, pincel, momento histórico... e sua imaginação.

A LITERATURA É UMA REPRESENTAÇÃO


O texto literário é uma representação do real, feita com palavras. A palavra texto origina-se no verbo “tecer”: é
um dos seus participios, bem como “tecido”. Assim, um texto é um tecido de palavras. Selecionando algumas,
combinando-as, o artista tece imagens do mundo.
Acompanhe a seguinte seqüência narrativa, o início do conto Eu era mudo e só, da escritora contemporânea Lygia
Fagundes Telles.
Sentou a minha frente e pôs-se a ler um livro à luz do abajur. Já está preparada para dormir; o macio roupão azul
sobre a camisola, a chinela de rosinhas azuis, o frouxo laçarote de fita também azul prendendo os cabelos alourados, a
pele tão limpa e tão brilhante, cheirando a sabonete provavelmente azul, tudo tão vago, tão imaterial. Celestial.
- Você parece um postal. O mais belo postal da Coleção Azul e Rosa. Quando eu era menino, adorava colecionar
postais.
Ela sorri e eu sorrio também ao vê-la consertar quase imperceptivelmente a posição das mãos. Agora o livro parece
flutuar entre seus dedos (...). Tia Vicentina dizia sempre que eu era muito esquisito. "Ou esse seu filho é meio louco, mana,
ou então..." Não tinha coragem de completar a frase, só ficava me olhando sinceramente preocupada com meu destino.
Penso agora como ela ficaria espantada se me visse aqui nesta sala (...) bem vestido, bem barbeado e bem casado com uma
mulher divina-maravilhosa (...).
(TELLES, Lygia Fagundes. Eu era mudo e só. In: BOST, Alfredo. O conto brasileiro contemporáneo. São Paulo, Cultrix, 1978.)

O texto mantém relações com o real, baseia-se na realidade física. No exemplo lido, há referências a um mundo
social (um rapaz e sua esposa; ela lendo um livro) e a um mundo psicológico (ele pensando no passado, em sua tia que
o achava esquisito). Há também referências a coisas físicas: o livro, o abajur, o roupão. No entanto, esse texto é uma
invenção: essa mulher, seu marido (o narrador), tia Vicentina, nada disso faz parte da vida real. Trata-se de uma
representação – Essas pessoas só existem no texto. A criação literária representa um mundo imaginário, um mundo de
ficção.
O ARRANJO E A NOVA RELAÇÃO ENTRE AS PALAVRAS
A literatura é uma forma de imitar a vida por meio de palavras organizadas de modo que formem uma supra-
realidade, isto é, uma realidade paralela ao ambiente que foi imitado. A nova relação que se estabelece entre as
palavras ocorre graças a um arranjo especial. Acompanhe o poema:

No Meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento


na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond de Andrade)


Qual é a nova relação existente no poema?
Trata-se do significado que a palavra “pedra” transmite aos versos:
a dureza, a dificuldade, o obstáculo.
O caminho, evidentemente, é a vida.

O ARRANJO TRANSFORMA AS PALAVRAS


Num matutino de ontem, num desses matutinos que se empenham na publicidade do crime, havia a seguinte
noticia:
João José Gualberto, vulgo Sorriso, foi preso na madrugada de ontem, no Beco da Felicidade, por ter assaltado a
Casa Garson, de onde roubara um lote de discos.
Pobre redator, o autor da nota. Perdido no meio de telegramas, barulho de máquinas, campainha de telefones,
nem sequer notou a poesia que passou pela sua desarrumada mesa de trabalho, e que estava contida no simples
noticiário de polícia.
(...) Distraído na rotina de um trabalho ingrato, esse repórter de polícia soube que um homem que atende pelo
vulgo de “Sorriso” roubara discos numa loja e fora preso naquele beco sujo que fica entre a Presidente Vargas e a
Praça da República e que se chama da Felicidade.
Fosse o repórter menos vulgar e teria escrito:
“O Sorriso roubou a música e acabou preso no Beco da Felicidade”.
(PONTE PRETA, Stanislaw. Notícia de jornal. In: Tia Zulmira e eu. Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1961.)
Note como o redator da nota deixou de aproveitar as múltiplas possibilidades de arranjo das palavras. É isso que
torna a mensagem especial: a intenção escondida por trás de cada palavra. Qualquer assunto pode inspirar uma obra
de arte, desde que o autor consiga transmitir a emoção estética. As palavras estão aí, à disposição de qualquer pessoa.
Se houvesse palavras literárias em si mesmas, para escrever um poema bastaria comprar, na livraria da esquina, um
dicionário de palavras poéticas e... pronto! Mais um novo autor na praça!
A crônica de Stanislaw Ponte Preta mostra que a relação nova dada entre as palavras, ou arranjo, as transforma
em arte. A matéria-prima da arte é a própria vida.
A literatura sempre se vale da palavra escrita, mas preste atenção! – nem tudo que é escrito é literatura. Há
uma preocupação importante na linguagem literária: a elaboração especial das palavras num texto. Por isso, existe
uma enorme diferença entre um texto de um manual de instruções e um texto literário; entre uma noticia de jornal e
uma página de romance, entre uma receita de bolo e um poema.

O TECIDO LITERÁRIO
O texto literário é formado por palavras polivalentes, isto é, palavras que podem ter mais de um significado, que
podem representar mais de uma face da realidade. Ele se caracteriza exatamente por sua capacidade de transmitir
significações diversas, por sua ambiguidade. Acompanhe o poema.
SERENATA SINTÉTICA (Cassiano Ricardo)
Rua
Torta
Lua
Morta
Tua
Porta

Cassiano Ricardo faz uma imagem de um encontro à noite, numa rua torta até chegar a porta da amada. É um
poema curto onde a forma fonêmica é tudo, as palavras são evocativas:
RUA TORTA - uma pequena cidade com ruas sinuosas
LUA MORTA - uma lua pálida
TUA PORTA - e a sugestão de um caso amoroso
É através das rimas próximas e do ritmo que traduz o impacto ao poema . “Serenata sintética” de Cassiano
Ricardo é composta por apenas seis versos, e todos formado estrofes de apenas uma silaba poética. Ele fala que o Eu
poético ou o Eu lírico anda por um caminho incerto em uma noite luar até a porta da amada.
O que é Eu poético e Eu lírico?
Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico são nomenclaturas utilizadas para indicar a voz que enuncia o poema. O
gênero lírico é aquele destinado a expressar emoções, sensações, disposições psíquicas, ou seja, a vivência de um eu
em seu encontro com o mundo. Mas esse eu lírico, essa voz do poema, não é necessariamente o autor, mas sim um eu
fictício, que pode ou não ter características do eu autoral.
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Meu caro amigo Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui 'tá preta
Meu caro amigo, me perdoe, por favor Muita mutreta pra levar a situação
Se eu não lhe faço uma visita Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
Mas como agora apareceu um portador E a gente vai tomando, que, também, sem a cachaça
Mando notícias nessa fita Ninguém segura esse rojão
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Meu caro amigo, eu não pretendo provocar
Uns dias chove, noutros dias bate sol Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui 'tá preta
A lhe contar as novidades Muita careta pra engolir a transação
Aqui na terra 'tão jogando futebol E a gente 'tá engolindo cada sapo no caminho
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll E a gente vai se amando, que, também, sem um carinho
Uns dias chove, noutros dias bate sol Ninguém segura esse rojão
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui 'tá preta
É pirueta pra cavar o ganha-pão Meu caro amigo, eu bem queria lhe escrever
Que a gente vai  cavando só de birra, só de sarro Mas o correio andou arisco
E a gente vai fumando, que, também, sem um cigarro Se me permitem vou tentar lhe remeter
Ninguém segura esse rojão  Notícias frescas nesse disco
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Meu caro amigo, eu quis até telefonar Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas a tarifa não tem graça Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui 'tá preta
Eu ando aflito pra fazer você ficar A Marieta manda um beijo para os seus
A par de tudo que se passa Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
Aqui na terra 'tão jogando futebol O Francis aproveita pra também mandar lembranças
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll A todo pessoal, adeus.
Uns dias chove, noutros dias bate sol
(CHIME, Francis & BUARQUE, Chico. Meu caro amigo. In: Chico Buarque, letra e música 2. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.)
I. A letra dessa música parece ser o conteúdo de uma fita magnética enviada a um amigo distante, na qual o
remetente coloca-o a par da situação do Brasil. Apesar de sabermos que se trata do envio de notícias, não podemos
imaginar que se trata de apenas uma fita dada a relação nova entre as palavras.
a) O que torna a mensagem da fita tão especial?
b) Retire do texto exemplos de expressões cotidianas carregadas de duplo sentido.
c) Comparando as estrofes, nota-se que alguns trechos repetem-se literalmente, apesar de o remetente insistir em que vai
contar as novidades. O que você acha que ele quis enfatizar?
d) O remetente registra que, sem cachaça, sem cigarro e sem amor, dificilmente consegui ria “segurar esse rojão”. Apesar
de serem hábitos ou vícios considerados impróprios, a bebida e o fumo, ao lado do amor, significariam o quê?
PROJETO DE PESQUISA
Junte-se a um grupo para trabalhar num pequeno projeto integrado de pesquisa. Como a letra da música Meu caro
amigo foi composta em 1976, procurem saber a que se refere afinal, o trecho do refrão “A coisa aqui tá preta”. O
grupo pode consultar o professor de História ou pesquisar na biblioteca da escola a respeito do contexto político-social
dos anos 70. Alguns livros contemporâneos tem essa época bem-documentada. Há também boas documentações
cinematográficas do período disponíveis em vídeo: Anos rebeldes (1992, direção de Denis Carvalho), Lamarca (1994,
Sérgio Rezende) Que É isso, Companheiro? (1998, Bruno Barreto)...

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