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rgBOLS04
Os novos princípios do urbanismo FRANÇOIS ASCHEll
Tradução e apresentação N,\DIA SOMEKH
Hcvis<lo preliminar FL.t\v10 coonou
Prqrnração e revisfio final de le.xto il.EGINA srocKLEN
francois
, ascher
Os novos princípios do urbanismo
Pr ojeto gráfü:o da coleção e diagramaçiío E:.-r,,ç,\o
Desenhos da capa LUCJA 1mc1-1
Gráfica P:\J'\/CR0/\1
Coordenaç;Jo editorial AlllLIO GUEI\IIA E SlLVANA ROMANO S,\NTOS
Edição original ASCHEII, I'ílANCO!S. LES i\'()LJ\'EAUX l'HINC/f'ES DE
L'UIWJ,\'/SME. L , \ TOUJI o'A!GUES, ÉDlTIONS DE L',\UBE, 2001. !SBN
2-87(178-9,p-:2
apoio cultural
Íffil SOLVAY
INDUPA
rgBOLS 04
A reprodução ou duplicação integra! ou parcial desta obra sem au-
tori111;üo e.\pressa do autor e <los editores se configum como upro-
priação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
© Éditions de L'Aube
Direitos para esta edição
Romano Guerra Editora
Rua General Jardim 645 conj 31 Vila Buarque 01n3-011 São H1Ulo
SP llrnsil
te!: (11) 3255.9535 I 3255.9560
rg@)romanoguerra.com.br wwv,r.romanoguerra.com.br
Printed in Brazil 2010 Foi feito o depôsito legal
21 . coo -711.4
Serviço de Biblmleca e Informação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP François Ascher (Metz, 1946 - Paris, 2009)
apresentação Velhos e novos princípios de urbanismo no capítulo 4 Os princípios de um novo urbanismo 81
Brasil, por Nadia Somekh 11 1. Elaborar e manejar projetos urbanos em um contexto
·incerto 82
introdução 17 2. Priorizar os objetivos em relação aos mei'os 84
3- Integrar os novos modelos de resultado 85
capitulo 1 Urban'1zação e modernização 19 4. Adaptar as cidades às diferentes necessidades 87
1. Cidade e sociedade; uma estreita correlação 19 5. Conceber os lugares em função das novas práticas
2. As transformações de longa duração da sociedade sociais 88
moderna 21 6. Aglr em uma sociedade fortemente diferenciada 90
J As duas primeiras revoluções urbanas modernas 24 7. Requalificar a missão do poder público 92
8. Responder à variedade de gostos e demandas 93
capitulo 2 A terceira modernidade 31 9. Promover uma qualidade urbana nova 95
1. Uma sociedade mais racional. mais individualista e m Adaptar a democracia à terceira revolução urbana 96
mais diferenciada 32
2. A emergência da sociedade hipertexto 42 notas/ bibliografia 99
3. Do capitalismo industria! ao capitalismo
cognitivo 48
processo mais lento de transformações do quadro dução de desigualdades e de inclusão social que são
construído. No contexto brasileiro, tal constatação essenciais à realidade atual das cidades brasileiras
é preocupante, pois, ao lidar com esta dupla tempo- podem ser observadas à luz das propostas deste li-
ralidade, teremos que enfrentar os novos desafios vro: o· decálogo que Ascher nos apresenta no final
da contemporaneidade sem abandonar as deman- do livro, e que entendemos de grande utilidade para
das não resolvidas das nossas cidades. nosso urbanismo. No Brasil temos ainda, como
A quantas anda o processo de modernização das princípio extra, o Estatuto da Cidade, que ganhou
nossas cidades? De forma fragmentada, o processo vida através da Lei Federal nº 10257, aprovada em
de urbanização no Brasil ocorre para dar espaço ao 10 de julho de 2 0 0 1 . Tributário de uma luta pela re-
automóvel e ao desenvolvimento do capital imobili- fomm urbana que se origina nos anos 1960, o de-
ário, sem procurar a essência ela modernidade que bate do estatuto remonta ao início dos anos 1980,
é a superação das necessidades básicas do homem. quando o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Além disso, a concentração de renda e a urbanização Urbano - CNDU preparou o anteprojeto de lei que
dispersa produzem uma cidade difusa, comprome- foi discuticlo por outras duas décadas na Câmara
tendo o futuro das gerações, uma vez que na sua base dos Deputados.
está a busca de novas fronteiras de valorização, ação O processo de redemocratização e a Constituição
que desconsidera o custo ambiental de clilapidação Federal de 1988 também trme,:eram avanços para as
de recursos naturnis e de poluição da água e elo ar. leis de urbanismo, principalmente no sentido de l:imi
O fator mobilidade contemporânea assume tar o direito ele propriedade, tornando a cidade mais
uma tripla racionalidade: a global, a social e a de voltada para o cumprimento de sua função social a
transportes. Os fluxos internacionais se aceleram ser definida pelos Planos Diretores Municipais.
por questões econômicas, políticas ou ambientais As diretrizes do Estatuto da Cidade pennitem
produzindo refugiados que se somam aos mais hoje inovações que garantam do direito a cidades
pobres reduzindo as possibilidades de mobilidade sustentáveis à gestão democrática com participação
social. Por sua vez, a circulação assume um papel popular, à justa distribuição do ônus e dos benefícios
estratégico nas cidades, Se no modelo fordista a do processo de urbani:;,ação, à proteção e preservação
do patrimônio e do ambiente, à regularização fundiá- foi responsável pelo Institut Français d'Urbanisme,
ria e urbanização das áreas ocupadas pela população centro de pós-graduação voltado para a interven-
de baixa renda. Além disso, o Estatuto prevê que os ção sobre o território, professor da École Nationale
Planos Diretores delimitem as áreas onde poderão des Ponts et Chaussées, integrando visões entre
ser aplicados a urbanização, o parcelamento e a edi- arquitetura e engenharia, além de fundador do
ficação compulsórios. Vale dizer que ainda é muito Club Ville-Aménagement - que reúne os res-
difícil fazer valer as novas e democráticas regras de ponsáveis pelos grandes Projetos Urbanos - e do
utilização social das cidades brasileiras. Institut pour la Villes en Mouvement - que trata
14 O que se observa são os nossos velhos proble- da mobilidade contemporânea. 15
mas, que ainda aguardam o enfrentamento neces- Falecido neste ano de 2009, François Ascher
sário. O nosso futuro está em construção. Estamos nos deixa uma herança considerável. Resta-nos
em um período de transição de uma sociedade combinar nossas antigas lutas, ainda carentes de re-
urbano-industrial para uma sociedade da informa- alizações visíveis, com os nossos problemas contem-
ção e do conhecimento. A forma desse novo desen- porâneos, desenhando a agenda que teremos que
volvimento deve-se manifestar no espaço urbano, enfrentar para melhorar nossas cidades e a vida da
sobrepondo velhos e novos problemas. A pobreza população brasileira.
existente ainda espera ser combatida por políticas
públicas adequadas nas diversas escalas de governo.
Portanto, pensar as cidades hoje implica formula-
ções complexas que incluem as instâncias econô-
micas, sociais, políticas e culturais.
Quando resolvemos fazer a tradução, Ascher ao
telefone se mostrou entusiasmado com a possibili-
dade de seu livro ser útil no contexto brasileiro. Esta
sua preocupação de que o conhecimento sobre a
cidade deve resultar em uma ação eficaz sobre ela
é destacada pela apresentação de Jordi Borja para a
versão em espanhol. E o livro confirma que atual-
mente o conhecimento não está separado da ação e
que o estudo da cidade constituí-se em um instru-
mento eficaz de intervenção visando melhorá-la.
Borja nos lembra que Ascher fez parte de um
grupo da escola francesa de sociologia urbana que
trabalhou na revista Espaces et Sociétés no período
pós-1968. Destaca ainda que o sociólogo francês
introdução
ve em outra escala, e a coincidência das diferentes As estruturas sociais que surgem hoje, basea-
esferas das relações sociais está cada vez menor. O s das em vínculos frágeis e muito numerosos, e entre
vizinhos são raramente amigos de infância, colegas, organizações e pessoas afastadas entre si, são de
parentes, amigos. Todo dia e ao longo da vida, cada tipo reticular. A sociedade se estrutura e funciona
pessoa entra em contato com um número crescente como uma rede, ou melhor, como urna série de
de outros indivíduos, dentro e fora do trabalho; dali redes interconectadas, que asseguram uma mobi-
é possível escolher um ou mais cônjuges sucessivos, lidade crescente de pessoas, bens, informações. É
escolher amigos e vizinhos. Pode-se utilizar nas rela- a generalização dessa mobilidade que toma obso-
ções uma ampla gama de meios: o uso das telecomu- letas as estruturas aureolares antigas fundadas em
nicações permite diversificar as formas de interação, processos de "difusão", limitadas espacialmente em
o automóvel tornou-se a principal ferramenta de en- áreas de mobilidade restrita. Essa organização em
contros pessoais. O s vínculos econômicos e técnicos rede funda uma nova solidariedade de fato, como
socializam também os consumidores através de bens um sistema de interdependência entre as pessoas.
e de serviços comerciais: nossa alimentação cotidia- Depois da "solidariedade mecânica" da comunidade
na e os objetos que utilizamos são em grande medida rural e da "solidariedade orgânica" da cidade indus-
produtos concebidos e distribuídos por multinacio- trial, surge uma terceira solidariedade, "comutativa",
nais, a mais ínfima das atividades encontra-se inserida, que relaciona pessoas e organizações pertencentes
de foto, em uma multiplicidade de relações. a uma multiplicidade de redes interconectadas. O
O s vínculos sociais multiplicaram-se extraordi- desafio para a democracia consiste então em trans-
nariamente. Sua natureza é diversificada e eles se formar essa solidariedade comutativa em uma soli-
apoiam em modos de comunicação múltiplos; tro- dariedade "reflexiva", ou seja, urna consciência de
car mensagens na internet e encontrar-se em um pertencimento a sistemas de interesse coletivo.
bar são interações qualitativamente diferenciadas.
O s vínculos estão mais "débeis" que em outros U m a multiplicidade de pertinências sociais
tempos e também mais frágeis. Por outro lado, fi- A sociedade se compõe hoje de indivíduos "mul-
cou mais fácil produzirem-se novos: é a "força dos tipertencentes", gue se desenvolvem em campos
socíais distintos. Os campos mais importantes são o gundo uma "sintaxe'' esportiva etc. Estamos diante
trabalho, a família, o lazer, a vizinhança, as organiza- de "indivíduos-palavra", que constituem por si só
ções religiosas e sociopolíticas. Antigamente, nas co- os principais vínculos entre esses "textos-campos
munidades rurais, esses diversos campos sociais se sociais". Passam de um campo para outro, seja se
confundiam. Com o desenvolvimento da sociedade deslocando ou utilizando as telecomunicações.
urbana e industrial ocorreram as primeiras dissocia- Quando um funcionário liga do trabalho para casa,
ções, mantendo ainda algumas sobreposições. Hoje, de uma certa forma, muda de "texto".
suas intersecções são cada vez menos numerosas, O s diversos campos sociais são de natureza di-
46 Formando urna espécie de multiplicidade de cama- versa. A participação das pessoas em cada um deles 47
das sociais interligadas pelos próprios indivíduos ao pode ser mais ou menos voluntária e duradoura. As
passar de uma para a outra, várias vezes ao dia. interações podem ser econômicas, culturais, afe-
O s indivíduos se deslocam, real ou virtualmente, tivas, recíprocas, hierárquicas, normatizadas, pre-
em universos sociais distintos articulados em confi- senciais, escritas, faladas, telecomunicadas etc. O s
gurações diferenciadas para cada um deles. Formam campos têm escalas variadas (do "local" ao "global")
um hipertexto, como as palavras que se conectam em e são mais ou menos abertos. As redes que estrutu-
um conjunto de textos informatizados. O hipertexto ram esses campos podem ter a forma de estrela, de
é o procedimento que permite "clicar" sobre uma pa- malha ou ser hierarquizadas. E os indivíduos fazem
lavra de um texto e acessar essa mesma palavra em code-swit.cliing, ou seja, tentam fazer malabarísmos
uma série de outros textos. Em um hiperte.\'.to, cada com os diferentes códigos sociais para poder passar
palavra pertence simultaneamente a vários textos; de um ao outro.
em cada um deles participa na produção de sentidos Esta metáfora do hipertexto permite, igualmen-
diferenciados interagindo com outras palavras do tex- te, renovar a identificação e a análise das desigual-
to, porém segundo sintaxes que variam eventualmen- dades sociais. Nem todos os indivíduos dispõem
te de um texto para outro. A digitalização das imagens efetivamente, por razões diversas, mas facilmente
abriu a possibilidade de construir igualmente hiper- explic iveis pelas suas histórias sociais, das mesmas
mídias, que estabelecem vínculos entre textos, docu- possibilidades de construir espaços sociais de n
mentos sonoros e imagens (o prefixo hipCr é utilizado dimensões ou de passar de um campo para outro.
aqui no sentido matemático de hiperespaço, ou seja, Para certos indivíduos, as camadas das redes estão
espaço de n dimensões). niveladas; seus campos econômicos, familiares, lo-
O s indivíduos estão assim inseridos em campos cais, religiosos se sobrepõem. Assim, os excluídos
sociais distintos, como as palavras nos diferentes do mercado de trabalho não têm multipertinências;
documentos de um hipertexto. Eles interagem de moram em conjuntos habitacionais, vivem de uma
um lado com colegas, segundo uma "sintaxe" pro- economia informal local e só encontram as pessoas
fissional, e de outro com parentes, segundo uma do bairro. A possibilidade de deslocamento em uma
"sintaxe" familiar, em um terceiro com parceiros, se- série de campos abre potencialidades que não são
acessíveis a todos. Esta multiplicidade pode tam- coordenar as ações, de lidar com a comunicação
bém causar a certos indivíduos problemas psicoló- na ocorrência de uma crise. O caráter estratégico
gicos complicados e tomar difícil a constituição de da economia cognitiva se confirma, de certa forma,
sua identidade. Mas a sociedade hipertexlo renova pelo comportamento das grandes empresas dos pa-
profundamente as modalidades de constituição do íses desenvolvidos, que parecem deixar a produção
social, bem como as identidades pessoais. material para outros - e para o resto do mundo - e
que se concentraram nas novas tecnologias, atrain-
3. Do capitalismo industrial ao capitalismo do capitais e pessoas qualificadas do mundo inteiro,
48 cognitivo para assegurar o desenvolvimento. 49
Esta nova "economia cognitiva" aparece como
As mudanças econômicas em curso estão apon- a expressão da fase contemporânea da moderniza-
tando que as sociedades ocidentais começam a sair ção no campo da economia. Dito de outra forma, a
do industrialismo, ou seja, de um sistema econômi- economia cognitiva é para a ''sociedade hipertexto"
co fundamentalmente baseado na indústria, defini- e para a "sociedade comutativa", o que a economia
da como "o conjunto de atividades econômicas que industrial foi para a "sociedade urbana" e para a "so
tem por objeto a exploração das matérias-primas, lidariedade orgânica", e o que a economia mercantil
das fontes de energia e de sua transformação, as- predominantemente rural foi para a "comunidade" e
sim como dos produtos semielaborados e bens de "solidariedade mecânica" (ver quadro à página 58).
produção ou de consumo"; e que estão entrando
cm uma economia cognitiva, baseada na produ- O fim dos futuros previsíveis e planejados
ção, apropriação, venda e uso de conhecimentos, O sistema fordista, apesar de alguns percalços e
informações e procedimentos. Isto não significa crises, tinha funcionado bem por mais de meio sé-
que a indústria esteja fadada a desaparecer. Mas, culo. Estava fundamentado sobre uma previsibilida-
da mesma forma como a agricultura passou com o de bastante grande do futuro. As empresas podiam
capitalismo industrial a depender do modelo indus- produzir antes de vender, amortizar as variações do
trial, que havia redefinido tanto as suas finalidades mercado através dos estoques e investir a longo prazo.
quanto seus métodos e valores, a produção indus- O s trabalhadores podiam contar com o crescimento
trial depende, cada vez mais, das lógicas e poderes e esperar, a médio prazo, uma melhora do seu poder
da economia cognitiva. i'vlais concretamente, a aquisitivo e das suas condições de vida. Eles consu-
performance de uma empresa industrial, hoje em miam os bens que produziam. Estavam protegidos
dia, depende primeiramente de sua capacidade de em caso de doença e não tinham preocupação com a
conhecer os mercados, de mobilizar as ciências e aposentadoria. Apesar de não ser o melhor dos mun-
as técnicas, de inventar respostas, de desenvolver dos, como indicavam as constantes lutas sociais, a
capacidades criadoras, de organizar processos, de representação que a sociedade ocidental tinha de si
gerir as reações ante os fatos, de analisar custos, de própria era predominantemente otimista.
Esse sistema se apoiava na possibilidade de li- economia (as atividades econômicas diretamente
mitar as incerlezas. O planejamento era um elos vinculadas ao uso da internet), e mais amplamen-
instrumentos-chave, em nível nacional, nas empre- te a economia cognitiva (indústrias e serviços nos
sas, para o planejamento urbano e ordenamento do quais predominam a produção, a venda e o uso do
território. Entrou em crise progressivamente a partir conhecimento, da informação e procedimentos). O
do fim dos anos 1960. A produção repetitiva de mas- desenvolvimento desta economia se inscreve no
sa entrou em choque com a diferenciação social e processo de modernízação e está em ressonância
a diversificação das demandas. As tecnologias e os com a emergência da sociedade hipertexto.
50 modos de organização que tinham garantido o cres- Trata-se, pois, de uma economia cada vez mais 51
cimento da produção e da produtividade atingiram reflexiva que incorpora sob as formas mais diversas
seus limites. As receitas keynesianas tomaram-se o progresso das ciências e das técnicas: mediante o
contraproducentes em economias mais abertas; as desenvolvimento de máquinas cada vez mais sofisli
intervenções do Estado do bem-estar tornaram-se cadas, que integram um sem número de tecnologias
muito custosas e geraram toda ordem de efeitos per- de informação e comunicação (TIC), empregando
versos. A globalização, a aceleração dos movimentos uma mão de obra globalmente mais qualificada em
ele capitais, as políticas ele transferência de regulação tarefas cada vez menos repetitivas, recorrendo a mé-
para o mercado só ampliaram o quadro de incertezas. todos de gestão que exigem uma informação rápida
O conjunto dessas transformações pôs em xeque e abundante para enfrentar as maiores incertezas e
as formas fordistas-keynesianas do industrialismo. as escolhas mais complexas. A característica essen
Seus dispositivos baseados sobre o desempenho da cial dessa nova economia é que uma parte crescen-
repetição (a rotina taylorista e o consumo de massa), le das atividades econômicas e dos valores que ela
nas racionalidades simplistas delineadas por um ide- produz depende do capital cognitivo, incorporado
al de previsibilidade (a programação e planejamento nos homens, nas máquinas e na organização. Os
lineares) entram assim em crise, uns após os outros, modelos industriais de produção tornam se inúteis
acrescendo a incerteza e a instabilidade criadas pela e o valor do capital, difícil de medir, pois uma boa
dinâmica da modernização, mas criando igualmente parte se constitui de "ativos intangíveis", ou seja, de
as bases para o surgimento de uma no a forma de saberes e de conhecimento, de modos de Funciona-
economia de mercado. mento, de relações pessoais, de criatividade etc.
A nova economia também está mais individuali-
Uma nova economia do conhecimento zada, tanto em matéria de consumo, quanto de pro
e da informação duç1lo. Os consumidores exigem produtos cada vez
A expressão "nova economia !> está muito cm mais diversificados e específicos, um "sob medida
voga hoje, mas carece de precisão. Ela engloba os industrial"; o conhecimento das suas necessidades
setores de produção de novas tecnologias da infor- torna-se assim uma das chaves da competitividade
mação e comunicação (hardware e software), a net- do comércio, dos serviços e da indústria. A evolu-
ção da produção industrial é também testemunha mobilidade dos capitais, a aceleração dos ciclos de
do processo de individualização, seja em se tratando produção e desenvolvimento dos meios de transpor-
das qualificações, níveis e carreiras dos trabalhado- te e comunicação modificam também o potencial
res, dos modelos de organização, do funcionamento qualitativo dos territórios e tornam frequentemen-
por projetos, onde cada um encontra uma posição te obsoletas as antigas especializações industriais
temporária em um coletivo de trabalho, ou ainda locais. O desenvolvimento econômico elas cidades
dos horários de trabalho flexíveis e assincrônícos. repousa cada vez mais na sua acessibilidade, na sua
Enfim, essa nova economia está também mais conexão com as grandes redes de transportes terres-
52 diferenciada. A divisão da trabalho não para de se tres e aéreos, e ainda no potencial ela mão de obra 53
aprofundar, a gualificação dos trabalhadores au- qualificada. A atração das jovens camadas médias
menta e as empresas tornam-se mais especializadas. e superiores toma-se assim um elemento central
Esta evolução se acentua pela terceirização crescen- das políticas urbanas, que prioriza a qualidade de
te praticada pelas grandes empresas. De fato, o pro- vida, os equipamentos educativos, a cultura, o lazer
gresso das técnicas de transporte e de comunicação e ainda a imagem da cidade, dentro do coração do
rebaixa os custos das transações e facilita o acesso desenvolvimento local.
ao mercado. A subcontratação, as joint ven.tures, as O uso dos meios de transporte rápido e das tele-
parcerias, os franchisings substituem o modelo orga- comunicações pelas empresas contribui assim para
nizacional da grande indústria. reestruturar cidades e territórios. O desenvolvimen-
to da net-economia (comércio eletrônico de varejo
Uma economia mais urbana e entre empresas, ou "e-comércio'', e-formação e
A produção e os serviços deixam as empresas, teleclucação, e-recrutamento e e-mão de obra tem-
atribuindo ao contexto espacial uma importância porária, e-saúde e telemedicina, e-seguros, e-bolsa,
econômica nova. Antes, a maior parte da atividade e-segurança e televigilância, e-informação e teleno-
das grandes empresas se desenvolvia no seu próprio tícias etc.) muda os critérios de localização das ativi-
recinto. Hoje, com a exteriorização de uma parte dades e participa principalmente na reconfiguração
crescente da produção e dos serviços, a atividade das centralidades e na especialização comercial. Os o
acontece cada vez mais fora de seus Tnuros, trans- distritos empresariais veem reforçado seu papel ê
a
formando de fato as cidades e os territórios em es- através das atividades altamente qualificadas e de .o
5
paços produtivos. Isto aumenta a importância das alta intensidade informacional. A logística toma- o
"O
"externalida<les" de toda ordem, e gera novas respon- se uma função-chave no processo de produção e ill
o
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sabilidades para o poder público que deve contribuir, suscita novos tipos de equipamentos multimodais ·e
e
mais do que nunca, para a criação de um ambiente e mukisserviços (as plataformas logísticas). Os ae- ·e
o
material, econômico, social e cultural propício às roportos passam a ser rodeados de inúmeras e va- ill
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atividades econômicas. Porém, as recomposições riadas empresas atraídas pela acessibilidade aérea o
e
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e reconversões rápidas e brutais das empresas, a e terrestre.
O papel das tecnologias da informação ência ou tecnologia cujo desenvolvimento não de-
e comunicação penda do uso das TICs, particulannente nos novos
A dinâmica da economia capiLalista persiste e campos, como o da genômica ou da cognítica.
assume um papel crescente na sociedade, principal- A internet tem neste contexto um papel princi-
mente porque uma grande parte das atividades hu- pal, funcionando como uma metamídia que associa
manas é objeto de produção e de serviços de merca- e articula os diversos modos de produção e de circu-
do. As tecnologias da informação e da comunicação lação das informações. De fato, assistimos progres-
(TICs) desempenham um papel central nessa dinâ- sivamente à "convergência" em tomo da internet
54 mica. Elas não mudam por si só a sociedade, porém, de todos os meios de comunicação, bem como a 55
suscitadas e utilizadas pelos atores econômicos e pe- aparição de novos objetos que se integram a objetos
los consumidores, elas podem contribuir para dar-lhe móveis como a televisão, o computador, a agenda, o
urna nova fonna, pois estão especialmente adaptadas livro, a máquina fotográfica e a filmadora.
a ela. De fato, por um lado, integram-se ativamente
nas dinâmicas de racionalização, de individualização Novas regulações do capitalismo cognitivo
e diferenciação da sociedade hipertexto; e, por outro, A acumulação e a concentração de capital se-
são Ferramenta e suporte do capitalismo cognitivo guem crescendo de forma acelerada no conte.xto da
que pode aproveitar - no sentido mais amplo da Pª* globalização e da nova economia cognitiva. lVlesmo
lavra - os rápidos avanços dos seus resultados. Estes em campos muito novos, as atividades se organizam
estão amplamente ligados à digitalização que, ao mo- e se reorganizam em nível mundial em torno das
dificar de maneira decisiva a produtividade na produ- maiores empresas. O processo de crescimento e de
ção, a acumulação e a circulação da informação, con- crise também aumenta, e não devemos nos iludir
tribui de maneira determinante para a dinâmica do com o fenômeno do start-up, cuja e.xistência inde-
capitalismo cognitivo. As TICs participam também pendente é bastante breve, tampouco pela prolifera-
ativamente da aceleração de todos os movimentos de ção de pequenas e médias empresas, ainda depen-
pessoas, informações e bens, levando em conta que dentes dos grandes grupos, mais ou menos de forma
todo aquele que produzir uma diferença, principal- direta e durável. Não se pode, pois, confundir o fim
mente em termos de rapidez, estará esPecialmente do industrialismo com o fim da economia capitalista.
bem inscrito nas kígicas capitalistas baseadas na con- As leis econômicas não são novas, mas se aplicam
corrência e na acumulação. em um conte.xto diferente. O mercado talvez esteja
Essas tecnologias estão longe de ter esgotado mais transparente, os custos de transação mais Fra-
suas potencialidades. Elas ocupam progressiva- cos, as informações menos assimétricas, os sistemas
mente, como já havia acontecido com a eletricidade de adaptação da oferta e da procura mais sincrônicos,
anteriormente, uma posição genérica, penetrando as origens do valor diferentes, os modelos de produti-
em todos os setores econômicos e todas as esferas vidade renovados: só resta que a dinâmica de acumu-
da vida social. Já não existe nenhuma indústria, ci- lação prossiga, e isto tem tudo para acontecer.
A economia cognitiva conhece e conhecerá, te ela sua proteção previdenciária e primordialmente
portanto, múltiplas disfunções do capitalismo: suas garantir e financiar sua aposentadoria. O fordismo
oscilações e crises econômicas, sociais, ambientais, transformou os trabalhadores de massa em con-
ao mesmo tempo em que os interesses sociais au- sumidores. Atualmente o trabalhador-consumidor
mentam e a concorrência entre empresas e territó- toma-se acionário, diretamente comprando ações,
rios se acirra. Deve ser, portanto, "regulado", pois indiretamente pelos investimentos das caixas de
ele não pode Funcionar de forma sustentável sem aposentadoria. Esses "Fundos de Pensão" assumem
instituições representando as diversas coletividades uma importância social e econômica considerável,
56 sociais e territoriais, sem regras comuns, sem pode- tornando-se investimentos imobiliários. Por outro 57
res coletivos legítimos e capazes de Fazer respeitar lado, a crise do Estado do bem-estar, gue também
essas regras, sem intervenções corretivas e compen- é uma crise do seu modo de organização e de sua
sadoras, sem modalidade de gestão de conflitos. performance, leva o poder público nacional e local
Porém, as regulações desenvolvidas no período a recorrer cada vez mais a atores privados para as-
precedente funcionam cada vez pior no contexto do segurar todo tipo de prestações, mesmo tendo que
capitalismo cognitivo, entre outros motivos porque a subsidiar esses atores ou mesmo aqueles que devem
globalização contribui em minar as bases nacionais comprar seus produtos e serviços. A<; concessões e
dos Estados de bem-estar social, tomando ineficazes as parcerias público-privado multiplicam-se sob di-
as políticas keynesianas, pois a relação salarial fordista versas formas. A globalização, o enfraquecimento elas
dá espaço a contratos ele trabalho muito mais instüveis, barreiras aduaneiras, a aceleração dos movimentos
os investimentos privados de longo prazo tomam-se de bens, de homens, de informações e de capitais
raros, o ciclo elos produtos se encurta, e porque emer- tornam necessária a criação ou o reforço das institui-
gem novos problemas sociais e novas desigualdades. ções supranacionais de regulação, enquanto o poder
Todavia, um novo Lipo de regulação parece se esboçar, público local tem seu papel econômico e social refor-
ao qual poderíamos classificar de "regulação de parce- çado em um contexto de concorrência interterritorial
ria", na medida em que os atores, com lógicas diferen- exacerbado pela internacionalização e pelo desenvol-
ciadas e com interesses divergentes e conflitantes em vimento elos meios de transporte e comunicação.
1
uma série de pontos, se esforçam ou são obrigados A<; parcerias entre diferentes tipos de atores são
a elaborar gestões comuns, negociar compromissos uma forma "reflexiva" de regulação mais adaptada a
duradouros e criar instituições coletivas. urna sociedade aberta, diversificada, móvel e instável.
O capitalismo cot,rnitivo apoia-se ainda mais for- As instituições que derivam das parcerias dão urna
temente do que o capitalismo industrial sobre a Bolsa relativa estabilidade em um contexto marcado por
e sobre o capital fimmceiro, sendo que esses são hoje incertezas de todo tipo.
em dia fortemente alimentados pela poupança dos A amplitude das convulsões sociais, econômicas,
assalariados e dos profissionais liberais que utilizam o culturais, políticas e territoriais engendradas pelo
mercado de ações para assegurar uma parte crescen- surgimento da sociedade hipertexto e do capitalismo
cognitivo reafim1a a tese sobre a entrada das socie-
dades ocidentais em uma nova fase do processo de
modernização. Esta, como as duas precedentes, faz Comunidade Sociedade Sociedade
necessárias mutações múltiplas, ao mesmo tempo industrial hipertexto
em que as gera. Assim, a sociedade hipertexto e oca- Paradigmas Crenças, tradição Haz.1o universal, Complexidade,
pitalismo cognitivo provocam uma terceira revolução dominantes e continui<la- fundnnalidade, incerteza,
urbana moderna. É ela que agora iremos caracterizar, de, destino, simplificação e autorregulação,
para deduzir os problemas específicos que ela apre- força, nutoridade, especia!izaçfüi, flexibilklade,
sa senta e os desafios mais gerais da sociedade moderna sabedoria democracia governançu
avançada, os princípios e os métodos de ação para a representativa
concepção, a produção e a gestão das cidades. Ações Hepetitivas Hucionais Hellexivas
e rotineiras
Quadro esquemático de dinâmica da moderni- Principais Costumes, chefe Estado e !eis Sistemas estatais,
zação ocidental e do conte.'\to das três revoluções reguJações subsidiários,
urbanas modernas direito e cem-
tratos, parcerias,
Comunidade Sociedade Sociedade opiniílo pública
industrial hipertexto Atividades t\gríeolas lndustriais Cognitivas
Elos sociais Pouco numerosos, Mais numerosos, !\luito numc• econômicas
curtos, nflo de diversos tipos, rosos, muito dominantes
diversificados, evolutivos, fortes, variados, através i Cultura De caráter domi- Fortes Diversil\c;Jda e
não estabelecidos em vias de de mídias e nantemente local componentes híbrida {mui-
através de mídias, especializaçílo diretos, frágeis, socioprolissionais tipertínência
estáveis, fortes e especializudos social e cultural)
multifuncionais Tipo urbano Cidade-mercado Armadura urbana Sistema
Tipo de Mecfmica Orgilnica Comutativa dominante hierarquizada, cí- metapolitano
solidariedade eludes industriais
Territórios Amplamente Integrados em Abertos, mú!ti- Instituições Paníquias, juntus Comunidades, re- Aglomera,;iio,
sociais autárquicos um conjunto pios, mutantes, de freguesias, giôes, administra· país, regiões,
(espaço das e fechados, mais amplo, em escalas vari.-í- Estado-nação ção centraliwda, Est<1do-nm,-J.o de
relações de caráter local semiabertos, de veis (do local : Estado-nação de bem-estar social,
sociais) base nacional ao global), reais bem-estar social, organitações
e virtuais pactos, alianças intern.icíonais e
Morfologia Alveolar Aureolar Heticular ' e trntados supranacíonais,
sacio territorial i ONGs
capitulo 3
A TERCEIHA REVOLUÇÃO URBANA MODERNA
particularmente nos Estados Unidos, de uma re- não só na vida política, mas no funcionamento
cusa mais ex-plícita em pagar ímpostos locais, sob dos aparelhos públicos e estatais, não questiona
o pretexto de que esses bairros poderiam tornar- a democracia representativa, as regras majoritá-
se progressivamente autossuficientes. Por fim, um rias e a responsabilidade dos políticos. Mas esta
terceiro processo contribui, de certa forma, para a democracia "moderna avançada" deve ser mais
segregação social: trata-se do aumento da veloci- deliberativa, pois em uma sociedade hipertexto
dade de deslocamento. Uma mesma "força segre- complexa e não program<-ivel, não só a maioria elos
gadora" diferencia socialmente o espaço, no plano problemas a resolver são imprevisíveis e não cons-
do edifício, em uma cidade onde nos deslocamos a tituem objeto de um mandato dos eleitores, mas
pé a seis quilômetros por hora; no plano do bairro, também as maiorias estáveis sobre várias guestões
em uma cidade onde nos deslocamos de ônibus tomam-se raras, enquanto as minorias variáveis
ou bonde a vinte quilômetros por hora; e no plano se agregam de maneira aleatória, conforme as cir-
do município, nas cidades onde o deslocamento é cunstâncias. O político deve considerar que a ação
feito por automóvel a cinquenta quilômetros por pública se constrói no âmbito local, atualmente,
hora. De fato, o aumento de velocidade dos deslo- muito mais através da dinâmica dos projetos elo
camentos leva a repensar as questões de mistura e que pela implementação de um programa, muito
de diversidade nas cidades contempor:âneas. mais por soluções ad 110c do que pela aplicação
de normas, mais através de consensos parciais do
Uma democracia de procedimentos e que por grandes acordos globais. Ainda assim, as
deliberativa, uma solidariedade mais reflexiva regras gerais e as responsabilidades dos políticos
O desafio que se coloca para a sociedade mo- não devem ser desagregadoras, mesmo quando
derna avançada é o da renovação dos conceitos houver desacordos explícitos em questões impor-
e das modalidades do político e da política, e da tantes ou tiverem fracassado todas as tentativas de
construção das decisões públicas, particularmen- se produzir um grande consenso. A legitimidade
te no campo das políticas urbanas. Aqui não é o de uma decisão pública e sua eficácia são maiores,
lugar para discutir propostas concretas, mas fica na medida em que tenha sido elaborada através
de um processo que reúna os protagonistas em que segue modificando as relações da sociedade e
torno de um projeto comum. Este suplemento de dos indivíduos, ante o acaso e os perigos que as
legitimidade, trazido pelo processo de negociação, transformam em riscos. A sociedade moderna tem
é particularmente necessário em uma sociedade como característica típica o esforço para controlar
onde as referências e códigos proliferam. É a van- o futuro e, para tanto, busca conhecer e medir as
tagem definitiva de uma governança interativa em probabilidades de acontecer tal ou qual problema
relação aos métodos tradicionais de governo. para prever possíveis soluções. O risco, caracterís-
As reivindicações de classe, assim como o tico da modernidade, invade as práticas sociais e dá
76 individualismo tal como se institucionaliza atu- lugar a uma "sociedade do risco": tanto os indivídu- 77
almente, não devem ser consideradas como ego- os quanto os atores econômicos e sociais Fazem do
ísmo, mas como expressão de novas estruturas risco uma questão-chave e permanente da sua vida
sociais que necessitam redefinir as noções de so- e de suas ações.
lidariedade e de responsabilidade. Então, em vez O paradoxo da modernização é que o desen
de se falar de um declínio da moral, deve-se vis- volvimento do conhecimento e da técnica, bem
lumbrar, com essa modernidade avançada, uma como a circulação acelerada e expandida das in-
"transição moral'' que conduza à emancipação dos formações, aumentam os riscos: o progresso da
indivíduos ante as obrigações impostas por regras ciência traz consigo a emergência constante de
usuperiores" e em relação às definições normativas novos riscos relacionados à poluição, às emissões
do valor das condutas, que fundamentam o res do gás carbônico na atmosfera, ao uso dos siste-
peito às regras, aos códigos e aos valores coletivos, mas de refrigeração etc. O avanço da informação
e a uma consciência reflexiva com sua real neces- trouxe também a imediata difusão dos aconte-
sidade para a sociedade. É evidente, no entanto, cimentos, contribuindo para a imagem de um
que todos os problemas não poderão ser resolvi- mundo urbano pleno de perigos. i'vlas o aumento
dos pelo debate e, inclusive, para alguns deles, os do risco não se traduz necessariamente no sen-
conflitos serão inevitáveis e até necessários. timento de que a sociedade está mais perigosa.
Pois, de um lado, as necessidades de segurança
As cidades de todos os riscos aumentam e, de outro, certas incertezas aumen-
Se, como afirmava o ditado medieval "o ar da ci- tam efetivamente. O progresso da técnica é uma
dade liberta", a contrapartida é que a cidade é tam- faca de dois gumes: abre novas possibilidades,
bém local de todo perigo, físico e moral. De fato, as mas também aumenta os estragos que pode pro-
cidades Foram sempre ambivalentes, do ponto de vocar. Além disso, a sociedade hipertexto emer-
vista da segurança, garantindo proteções diversas, gente tem dificuldade em achar novas formas de
mas suscitando igualmente toda sorte de perigos. regulação, assiste se assim, em muitos países, a
Essa dupla natureza da cidade pode ser constata- um aumento da "violência urbana" e delitos de
da, atualmente, pela dinâmica da modernização toda ordem.
Essa nova relação com os riscos, com a incer- Risco e princípio de precaução constituem, as-
teza e com o futuro constitui, em grande parte, o sim, elementos determinantes do contexto no qual
sucesso das questões referentes ao desenvolvimen- atuam hoje o poder público, os urbanistas, os pla-
to sustentável, afinal, em simultâneo, a busca do nejadores e todos os atores privados e associativos
processo de modernização segue transformando a implicados na produção e gestão das cidades.
relação da sociedade com a natureza. Hoje a "natu-
reza" é vivenciada como algo inserido no social, que
supõe decisões de controle e proteção. A noção de
78 "patrimônio natural" exprime uma atitude profunda- 79
A consideração das práticas urbanas conduz, xidade onde anteriormente havia problemas passíveis
por fim, os mentores à integração progressiva dos de solução: a experiência que Fundamentava as dcci
limites da exploração e gestão de espaços e equipa- sões qualificadas pelo interesse geral foi substituída
mentos urbanos. Isto contribui para a redefinição pela controvérsia entre especialistas, o que remete as
das fronteiras e das modalidades de exercício dos decisões a espinhosos princípios de precaução. Uma
diversos campos do urbanismo, pois este deve inte- decisão só pode ser entendida como sendo de interes-
grar mais diretamente as exigências da gestão futura se geral ou comum através de sua substância objetiva.
dos espaços que ele ajuda a produzir. É o modo, o procedimento como ela foi elaborada
e eventualmente construída pelos atores envolvidos,
6. Agir em uma sociedade fortemente que lhe confere, in fine, seu caráter de interesse geral.
diferenciada As divergências e conflitos se resolvem assim menos
pelas maiorias, pois elas são circunstanciais, e mais
Do interesse geral substancial ao interesse por compromissos que pennitem tralar uma varieda-
geral modulado' de de situações coletivas.
O urbanismo moderno foi construído em con- Os procedimentos de identificação e formula-
cepções substanciais de interesse geral ou de inte- ção dos problemas, de negociação das condições,
resse comum. Deve-se entender que, a ravés desse assumem uma importância crescente e decisiva. A
ponto de vista, as decisões públicas, os planos com participação - sob diversas formas - nesse processo,
suas regras e proibições, as realizações públicas, as desde o seu início, dos habitantes, usuários, vizi-
exceções ao direito de uso da propriedade (servi- nhos e todos os atores envolvidos, torna-se essen-
dão), as desapropriações, os impostos, eram legiti- cial. Não se trata somente de um debate entre opi-
mados pelos interesses coletivos admitidos como niões divergentes, de melhorar soluções propostas,
superiores aos interesses individuais. mas de construir o quadro de referência e a própria
A sociedade hiperte.xto, composta de multiper-. solução dos desafios.
tinências, de mobilidades e de territórios sociais e Esse enfoque modulado por procedimentos mo-
individuais de geometria variável, confronta o neour- difica a natureza da intervenção de especialistas e
profissionais, mais particularmente o trabalho dos no âmago de um sistema de atores, cujas lógicas
urbanistas. Estes devem inscrever sua intervenção são variadas e que funcionam em um meio cada
em processos de longa duração, que às vezes se ar- vez mais aberto. Para tanto, deve produzir qua-
ticulam mal com as lógicas do mercado e com as dros comuns de ação e regras do jogo que não se
mudanças políticas locais. Além disso, fica cada vez oponham às lógicas dos atores, mas as conciliem,
mais difícil associar as intervenções ao interesse ge- e as utilizem em proveito dos próprios projetos,
ral, conduzindo-os a colocar suas competências à produzindo sinergias'°; ainda arbitra quando situ-
disposição de diversos atores e grupos. Isto introduz ações parecerem nebulosas ou quando a autorre-
92 de forma nova as questões de ética e de deontologia gulação estiver falhando. 93
no campo profissional. O neourbanismo privilegia, portanto, a regu-
O neourbanismo privilegia a negociação e o lação em detrimento da administração. O poder
compromisso em relação à aplicação da regra majo- público se esforça, assim, para assegurar o Funcio-
ritária, o contrato em relação à lei, a solução ad !toe namento "regular" elos sistemas de atores urbanos,
em relação à norma. atuando de maneira a limitar as disfunções e as in-
coerências; impulsiona os enfoques modulados em
7. Requalificar a missão do poder público procedimentos que visam o interesse geral. Tanto
quanto possível, coordena a elaboração mais do que
Da administração à regulação elabora para aproveitar melhor a competência e o
O poder público administrou o urbanismo mo- conhecimento dos especialistas. Mas também con-
derno, isto é, assegurou a aplicação das leis, dos pla- trola, avalia, corrige, compensa e eventualmente
nos e das regulamentações, as missões de interes- aplica sanções. Isto demanda competências técni-
se geral e o bom andamento dos serviços urbanos. cas, sistemas de observação e bases de dados muito
Esta "administração'' era coerente com um urbanis- mais elaborados que os que estavam à disposição
mo que proibia e controlava tanto quanto projetava, das administrações, cuja atividade era muito mais
que aplicava princípios e soluções, e, para que isso normatizada e repetitiva. O neourbanismo supõe
acontecesse, mantinha uma tendência estrutural assim uma reformulação dos objetivos e dos servi-
de negar as especificidades das cidade , dos lugares dores públicos.
e das culturas, reduzindo-os a meros cenários.
O neourbanismo esforça-se em construir os 8. Responder à variedade de gostos
problemas caso a caso, e em elaborar respos- e demandas
tas específicas para cada situação. Acumula e
mobiliza a experiência, os saberes e as técnicas, De uma arquitetura funcional a um desenho
não para aplicar soluções repetitivas, mas para urbano atraente
aumentar suas possibilidades de adaptação aos O urbanismo moderno apoiou-se sobre uma
contextos particulares, mutantes, incertos. Atua arquitetura e formas urbanas que correspondiam à
sua ideologia funcionalista e esforçou-se por genera- de escolha, tornar poss1ve1s as mudanças na
lizü-las. Elaborou concepções globais da cidade, por escala metapolitana. De certa forma, confere
vezes totalitárias, não hesítando, em alguns casos, uma importância renovada à questão dos estilos
em fazer tábula rasa do passado ou em induzir que arquitetônicos, separando-os das questões de
isso ocorresse. Entretanto, desenvolveu também a funcionalidade e morfologia urbanas. Mas tam-
noção tipicamente moderna de "patrimônio", ccm- bém inscreve essas escolhas estéticas - quando
servando cidades que o precederam, vestígios, mo- afetam os espaços públicos - em procedimentos
numentos para a memória e elementos particulares no debate democrático, modificando a esfera de
94 de valor artístico. ação dos criadores e sua relação com o público e 95
O neourbanismo, por outro lado, admite a o político
complexidade e deve propor uma variedade de
formas e ambientes arquitetônicos e urbanos 9. Promover uma qualidade urbana nova
a uma sociedade cada vez mais diferenciada
na sua composição, nas suas práticas e gostos. Das funções simples a um urbanismo
Confrontado com uma cidade cada vez mais mó- multissensorial
vel, na qual os atores ampliam a sua capacidade O urbanismo moderno desenvolveu um Fun-
de escolha de localização, o neourbanismo deve cionalismo bastante elementar, tanto pela es-
seduzir. E'.sforça-se em propor um tipo de cidade colha das funções (trabalhar, morar, divertir-se,
à la carie, que oferece combinações variadas de abastecer-se, deslocar-se), quanto pela forma de
qualidades urbanas. Para tanto, não hesita em realizá-las.
utilizar as Formas antigas e os estilos vernaculares, O neourbanismo desenvolve um enfoque Fun-
tanto quanto os tipos modernos. Tendo rompido cional muito mais fino, considerando a complexi-
com as ideologias simplificadoras e totalitárias dade e a variedade das práticas urbanas, e respon-
cio progresso, acomoda-se na complexidade das dendo a elas através de soluções multiFuncionais.
cidades que herda e em que atua. Também pa- Enfrentando demandas cada vez mais elevadas, e
trimoniaHza cada vez mais o quadro construído múltiplas formas de concorrência entre espaços,
existente, seja museificando-o e inlegrando-o à tenta oferecer, em lugares públicos e espaços ex-
nova economia cultural e turística urbana, seja ternos, uma qualidade equivalente à dos espaços
reutilizando-o ou designando novos usos. O novo privados e de espaços internos. Leva em conta as
urbanismo tenta tanto quanto possível utilizar as dimensões multissensoriais do espaço e elaborn
dinâmicas do mercado para produzir ou conser- não somente o visível, mas também o sonoro, o tátil
var valores simbólicos da cidade antiga. e o olfativo. O desenho multissensorial das cidades
O novo urbanismo aproveita a variedade ar- permite criar ambientes diversificados, mais atra-
quitetônica e de formas urbanas para fabricar entes e mais confortáveis, inclusive pma pessoas
cidades diversificadas, ampliar as possibilidades portadoras de deficiências sensoriais e motoras.
10. Adaptar a democracia à terceira A governança urbana implica um enriqueci-
revolução urbana mento da democracia representativa, atrnvés de
novos procedimentos deliberativos e consultivos.
Do governo das cidades à governança São necessárias, ao mesmo tempo, a relação mais
metapolitana direta com os cidadãos e as formas democráticas
O urbanismo moderno necessitava de formas de representação na escala das metápoles, que
de governo municipais firmes, decididas e que representa a escala na qual devem ser tomadas
dispusessem de poderes fortes para ser c<1pazes as decisões urbanas estruturantes e estratégicas.
96 ni'io só de impor regras e de Fazê-las cumprir, Esta nivelação da democracia local é um dos ele- 97
mas também de estimular as transformações de mentos-chave do futuro das cidades e, mais am-
maneira espontânea. Essa autoridade apoiava- plamente, das sociedades ocidentais.
se em engrenagens sociais locais de todo tipo: O risco de que a maior autonomia dos indiví-
a escola, a igreja, o comércio local. Esse tipo de duos e a força crescente da economia de mercado
governo urbano esteve assegurado conforme o aumentem as desigualdades sociais existentes ou
país de origem. criem novas é, de fato, muito alto. E a democracia
O neourbanismo enfrenta grupos sociais di- de vizinhança sem a democracia metapolitana não
versificados, indivíduos de múltiplas origens, basta para que os cidadãos tenham consciência de
territórios social e espacialmente heterogêneos,. que seu futuro está interligado. Pelo contrário, o de-
uma viela associativa prolífera, porém, efêmera, bate democrático sobre o futuro e a gestão das metá-
o enfraquecimento dos mediadores locais encar- poles pode contribuir para o desenvolvimento dessa
nados pelos educadores, padres, comerciantes de solidariedade reflexiva, necessária a todas as escalas,
bairro, zeladores etc. Deve apoiar-se nas lógicas da mais local à mais global, dependendo dessas cir-
técnicas e econômicas privadas que diferem mui- cunstâncias o futuro das nossas sociedades.
to profundamente da cultura e lógica de operaçi'io Concluindo, para resumir e qualificar esse
pública. Necessita de novas formas de concep- neourbanismo que se esboça atualmente, ao menos
ção e realização das decisões públicas, permitin- no mundo ocidental, podemos dizer que é:
do consultar e associar habitantes, suários, vizi- • um urbanismo de dispositivos: trata-se menos de
nhos, atores, especialistas os mais variados, em fazer planos do que de aplicar dispositivos que os ela-
todo o processo de tomada de decisão. borem, discutam, negociem, que os façam evoluir;
O governo das cidades dá lugar, dessa forma, • um urbanismo reflexivo: a análise já não precede a
a uma governança urbana, que pode ser definida regra e o projeto, mas está presente permanentemen-
como um sistema de dispositivos e de formas de te. O conhecimento e a informação são produzidos
ação que associa às instituições alguns represen- antes, durante e depois da ação. Heciprocamente, o
tantes da sociedade civil, a fim de elaborar e im- projeto torna-se, plenamente, um instrumento de
plementar as políticas e as decisões públicas. conhecimento e de negociação;
• um urbanismo de precaução, que dá lugar às notas / bibliografia
controvérsias e que permite meios de conside-
rar as externalidades e exigências do desenvolvi-
mento sustentável;
• um urbanismo convergente: a concepção e a re-
alização dos projetos resultam da intervenção de
uma multiplicidade de atores com lógicas diferen-
ciadas e combinadas entre si;
98 • um urbanismo reativo, flexível, negociado, em sin- Introdução
tonia com as dinâmicas da sociedade; 1. N T - No caso francês.
• um urbanismo multifacetado, composto de ele- Capitulo 3
mentos híbridos, soluções múltiplas, redundân- 1. O nO'vU urbanismo norte-americano remete a três tipos de práti-
cias, diferenças; cas: um estilo estético, desenho urbano e modos de urbanização. A
• um urbanismo estilisticamente aberto que, ao estética proposta é a de uma arquitetur.i de tipo contextual amiüde
separar o desenho urbano das ideologias urba- pastiche e /Utscli; o desenho urbano privilegia um urbanismo de ruas,
nísticas e político-culturais, dá lugar a escolhas de espaços püblicos, de densidades elevadas; o modo de urbaniza-
formais e estéticas; ção Fundamenta-se em princípios de mistum funcional e social, no
• um urbanismo multíssensorial, que enriquece a uso de transportes püb!icos e no combate ao espmiamemo urbano.
urbanidade do lugar. Uma cartílha codifica o novo urbanismo estabelecendo princípios
Dito de outra forma, o neourbanismo é um que estão longe de ser novos, mas que rompem com as fomms ur-
caminho particularmente ambicioso, que neces- banas desenvolvidas nos Estados Unidos, em gmndes aglomemções.
sita de mais conhecimento, mais experiências e Sua.<; referências iniciais emm o Seasidc (uma estaçilo balneária bas-
mais democracia. tante chique) e Celebmtion (uma cidade privada concebida e reali-
111da pela Disney). fvlas os promotores do novo urbanismo buscam
desprender-se dessa imagem de cidade para classes médias, de fato
bastante parecida com modelos implantados nas gata! commmiities
(condomínios privados), e convencer que seu projeto pode servir
também para requalificar e regenemr as zonas degradadas.
Capítulo 4
1. Gestão: aplicnção ele um conjunto de conhecimentos vol-
tados à organização e ao gerenciamento, a fim de assegurar o
funcionamento de uma empresa ou de uma instituição, para
elaborar e realizar projetos conjuntos.
2. Estratégia: conjunto de objetivos operacionais escolhidos
para pôr em prática uma política previamente definida.
3. Método heurístico: gue serve para a descoberta, que opera BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Rejlexit,e
em avaliações sucessivas e hipóteses provisórias. A!odemiwt/011. Politics, Tmditio11 m1d Aestlietics in tlw Modem
+ Iteração: método de solução de uma equação por aproxima- Social Order. Cambridge, Po]it}' Press, 1994-
ções sucessivas. BONNET, Michel; DESJEUX, Dominique (org.). Les terriloires
5. Incremento: qwmtidade que se acresce a uma variável a de la 111obili1é. Paris, Presses Universitaires de Frnnce, 2000.
cada cido de giro de um programa. BOUHDIN, Alain. La question locale. Paris, Presses
6. Série recorrente: em que cada termo é uma função dos ter- Universitaires de Fnmce, 2000.
mos imediatamente anteriores. CAi\-lPBELL, Scott; FAINSTEIN, Susan S. (org.). Readiug s
100 7. Feedlmck: regulagem das causas pelos efeitos. Modilicaçiio ili Plm111i11g 11wory. Oxford, Blackwell Publishcrs, 2001. 101
do precedente pelo subsequente. Contrarreilçiio e retroação. fleadillgs i11 Urba11 Theory. Oxford, Blackwell
8. Regras de exigência sào aquelas impostas por alguma disci• Publishers, 2001.
plina, uma submissão numa ordem ou lei. Regras de resultado, CASTELLS, Manuel. La era tle Ia i11fornmció11: economia, so•
que preveem um resultado ótimo, próximo àquele que uma ciedml y criltura. 3 volumes; vol. 1: La sociedad red; vol. 2: EI
máquina, um ser vívo ou uma organização pode obter. poder de 1u idcntidad; voL 3: Fln de milenio. i'vh1dri, Alianza
9. Substancial: que pertence li substância, à essência, à coisa Editorial, 1998.
em si. Modulado: que permite decompor um programa em mó- CRANG, !'vlike; CRANG, Phil; MAY, Jon. Virtual Geog mp lzies.
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