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rgBOLS04
Os novos princípios do urbanismo FRANÇOIS ASCHEll
Tradução e apresentação N,\DIA SOMEKH
Hcvis<lo preliminar FL.t\v10 coonou
Prqrnração e revisfio final de le.xto il.EGINA srocKLEN
francois
, ascher
Os novos princípios do urbanismo
Pr ojeto gráfü:o da coleção e diagramaçiío E:.-r,,ç,\o
Desenhos da capa LUCJA 1mc1-1
Gráfica P:\J'\/CR0/\1
Coordenaç;Jo editorial AlllLIO GUEI\IIA E SlLVANA ROMANO S,\NTOS
Edição original ASCHEII, I'ílANCO!S. LES i\'()LJ\'EAUX l'HINC/f'ES DE
L'UIWJ,\'/SME. L , \ TOUJI o'A!GUES, ÉDlTIONS DE L',\UBE, 2001. !SBN
2-87(178-9,p-:2

apoio cultural

Íffil SOLVAY
INDUPA

rgBOLS 04
A reprodução ou duplicação integra! ou parcial desta obra sem au-
tori111;üo e.\pressa do autor e <los editores se configum como upro-
priação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
© Éditions de L'Aube
Direitos para esta edição
Romano Guerra Editora
Rua General Jardim 645 conj 31 Vila Buarque 01n3-011 São H1Ulo
SP llrnsil
te!: (11) 3255.9535 I 3255.9560
rg@)romanoguerra.com.br wwv,r.romanoguerra.com.br
Printed in Brazil 2010 Foi feito o depôsito legal

A813n Ascher, François


Os novos principias do urbanismo/ François Asche-r;
tradução e apresentação Nadia Somekh -- São Paulo· Romano
Guerra, 2010
104 p. (Coleção RG bolso; 4)

ISBN: 978-85·88585-21-8 (Coleção)


ISBN: 978-85-88585-25-6 (volume 4)

1.Planejamento ternlorial urbano l.5omekh, Nadia li.Título


Ili. Série

21 . coo -711.4
Serviço de Biblmleca e Informação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP François Ascher (Metz, 1946 - Paris, 2009)
apresentação Velhos e novos princípios de urbanismo no capítulo 4 Os princípios de um novo urbanismo 81
Brasil, por Nadia Somekh 11 1. Elaborar e manejar projetos urbanos em um contexto
·incerto 82
introdução 17 2. Priorizar os objetivos em relação aos mei'os 84
3- Integrar os novos modelos de resultado 85
capitulo 1 Urban'1zação e modernização 19 4. Adaptar as cidades às diferentes necessidades 87
1. Cidade e sociedade; uma estreita correlação 19 5. Conceber os lugares em função das novas práticas
2. As transformações de longa duração da sociedade sociais 88
moderna 21 6. Aglr em uma sociedade fortemente diferenciada 90
J As duas primeiras revoluções urbanas modernas 24 7. Requalificar a missão do poder público 92
8. Responder à variedade de gostos e demandas 93
capitulo 2 A terceira modernidade 31 9. Promover uma qualidade urbana nova 95
1. Uma sociedade mais racional. mais individualista e m Adaptar a democracia à terceira revolução urbana 96
mais diferenciada 32
2. A emergência da sociedade hipertexto 42 notas/ bibliografia 99
3. Do capitalismo industria! ao capitalismo
cognitivo 48

capitulo 3 A terceira revolução urbana moderna 61


t A metapolização: as cidades mudam de escala e de
forma 62
2. A transformação do sistema de mobilidade urbana 65
3. A recomposição social das cidades 67
4. A redefinição das relações entre interesses individuais,
coletivos e gerais 72
nadia somekh
APRESENTAÇÃO

Velhos e novos princípios de urbanismo


no Brasil

Quando olhamos as cidades brasileiras, podemos


nos perguntar: quais foram os princípios de urba-
nismo que nortearam o processo de urbanização?
Conhecendo e estudando o urbanismo no Brasil,
E_9J/ {;!_ tf?, :iít:-lfii,9,YªqO,t
constatamos qu iJ:fi1 __ :':/
realizados, mas qi1ãSe Sempre ',eín Confronto com os
ditames do mercado, fenômeno qt.ie produziu um
espaço urbano que parece não obedecer a regras
claras. Além disso, verificamos que a legislação ex-
cluiu a maioria da população, que vive em péssimas
condições habitacionais, fora do alcance das regula-
mentações urbanísticas e edilícias. Nossas cidades
não previram a localização dos mais pobres, que in-
formalmente ocuparam áreas de risco, de proteção
ambiental, de preços fundiários depreciados, com a
anuência velada das autoridades governamentais.
Apesar de ter sido lançado em 2001, conheci este
livro de François Ascher entre 2 0 0 4 e 2005, quando
saía da presidência da Emurb e assumia a dire-
ção da Faculdade de Arquitetura da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. lVlinhas preocupações,
mais do que nunca, se voltavam para a necessida-
de de atualização e de conhecimento sobre como
melhorar nossas cidades e, principalmente, como
passar esse conhecimento com consistência e atua- unidade produtiva se concentrava na fübrica, hoje
lidade para nossos alunos de arquitetura. ela assume uma amplitude territorial cada vez maior.
Neste livro síntese, Ascher afirma que a moder- O desenvolvimento econômico tem, na maior mo-
nidade não é um estado, mas um processo cons- bilidade das cidades, um aumento de produtividade.
tante de transformação da sociedade, condição que Contudo, o elemento essencial da urbanização bra-
a diferencia das demais sociedades onde a mudan- sileira - a priorização do transporte individual em
ça não é o princípio essencial. Ascher destaca em detrimento do coletivo - compromete a produção
especial a falta de sincronia entre a mutação cada de uma cidade mais compacta.
12 vez mais rápida da sociedade contemporânea e o As questões ambientais, de mobilidade, de re 13

processo mais lento de transformações do quadro dução de desigualdades e de inclusão social que são
construído. No contexto brasileiro, tal constatação essenciais à realidade atual das cidades brasileiras
é preocupante, pois, ao lidar com esta dupla tempo- podem ser observadas à luz das propostas deste li-
ralidade, teremos que enfrentar os novos desafios vro: o· decálogo que Ascher nos apresenta no final
da contemporaneidade sem abandonar as deman- do livro, e que entendemos de grande utilidade para
das não resolvidas das nossas cidades. nosso urbanismo. No Brasil temos ainda, como
A quantas anda o processo de modernização das princípio extra, o Estatuto da Cidade, que ganhou
nossas cidades? De forma fragmentada, o processo vida através da Lei Federal nº 10257, aprovada em
de urbanização no Brasil ocorre para dar espaço ao 10 de julho de 2 0 0 1 . Tributário de uma luta pela re-

automóvel e ao desenvolvimento do capital imobili- fomm urbana que se origina nos anos 1960, o de-
ário, sem procurar a essência ela modernidade que bate do estatuto remonta ao início dos anos 1980,
é a superação das necessidades básicas do homem. quando o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Além disso, a concentração de renda e a urbanização Urbano - CNDU preparou o anteprojeto de lei que
dispersa produzem uma cidade difusa, comprome- foi discuticlo por outras duas décadas na Câmara
tendo o futuro das gerações, uma vez que na sua base dos Deputados.
está a busca de novas fronteiras de valorização, ação O processo de redemocratização e a Constituição
que desconsidera o custo ambiental de clilapidação Federal de 1988 também trme,:eram avanços para as
de recursos naturnis e de poluição da água e elo ar. leis de urbanismo, principalmente no sentido de l:imi
O fator mobilidade contemporânea assume tar o direito ele propriedade, tornando a cidade mais
uma tripla racionalidade: a global, a social e a de voltada para o cumprimento de sua função social a
transportes. Os fluxos internacionais se aceleram ser definida pelos Planos Diretores Municipais.
por questões econômicas, políticas ou ambientais As diretrizes do Estatuto da Cidade pennitem
produzindo refugiados que se somam aos mais hoje inovações que garantam do direito a cidades
pobres reduzindo as possibilidades de mobilidade sustentáveis à gestão democrática com participação
social. Por sua vez, a circulação assume um papel popular, à justa distribuição do ônus e dos benefícios
estratégico nas cidades, Se no modelo fordista a do processo de urbani:;,ação, à proteção e preservação
do patrimônio e do ambiente, à regularização fundiá- foi responsável pelo Institut Français d'Urbanisme,
ria e urbanização das áreas ocupadas pela população centro de pós-graduação voltado para a interven-
de baixa renda. Além disso, o Estatuto prevê que os ção sobre o território, professor da École Nationale
Planos Diretores delimitem as áreas onde poderão des Ponts et Chaussées, integrando visões entre
ser aplicados a urbanização, o parcelamento e a edi- arquitetura e engenharia, além de fundador do
ficação compulsórios. Vale dizer que ainda é muito Club Ville-Aménagement - que reúne os res-
difícil fazer valer as novas e democráticas regras de ponsáveis pelos grandes Projetos Urbanos - e do
utilização social das cidades brasileiras. Institut pour la Villes en Mouvement - que trata
14 O que se observa são os nossos velhos proble- da mobilidade contemporânea. 15
mas, que ainda aguardam o enfrentamento neces- Falecido neste ano de 2009, François Ascher
sário. O nosso futuro está em construção. Estamos nos deixa uma herança considerável. Resta-nos
em um período de transição de uma sociedade combinar nossas antigas lutas, ainda carentes de re-
urbano-industrial para uma sociedade da informa- alizações visíveis, com os nossos problemas contem-
ção e do conhecimento. A forma desse novo desen- porâneos, desenhando a agenda que teremos que
volvimento deve-se manifestar no espaço urbano, enfrentar para melhorar nossas cidades e a vida da
sobrepondo velhos e novos problemas. A pobreza população brasileira.
existente ainda espera ser combatida por políticas
públicas adequadas nas diversas escalas de governo.
Portanto, pensar as cidades hoje implica formula-
ções complexas que incluem as instâncias econô-
micas, sociais, políticas e culturais.
Quando resolvemos fazer a tradução, Ascher ao
telefone se mostrou entusiasmado com a possibili-
dade de seu livro ser útil no contexto brasileiro. Esta
sua preocupação de que o conhecimento sobre a
cidade deve resultar em uma ação eficaz sobre ela
é destacada pela apresentação de Jordi Borja para a
versão em espanhol. E o livro confirma que atual-
mente o conhecimento não está separado da ação e
que o estudo da cidade constituí-se em um instru-
mento eficaz de intervenção visando melhorá-la.
Borja nos lembra que Ascher fez parte de um
grupo da escola francesa de sociologia urbana que
trabalhou na revista Espaces et Sociétés no período
pós-1968. Destaca ainda que o sociólogo francês
introdução

A sociedade contemporânea transforma-se rapida-


mente e, como estamos envolvidos por esta evolu-
ção, às vezes avalíamos mal a dimensão dessa trans-
formação, os objetos que utilizamos, nossa maneira
de agir e de trabalhar, nossas relações familiares,
nosso lazer, nossa mobilidade, as cidades em que
vivemos, o mundo que nos rodeia, nossos conheci-
mentos, esperanças e temores ...
No âmbito do urbanismo, percebemos com
muita dificuldade as mudanças, pois o quadro
construído evolui com relativa lentidão, e as novas
construções representam, anualmente, menos de
1% do parque existente 1 • Além disso, sentimo-nos
particularmente vinculados aos lugares mais an-
tigos e temos o sentimento de que eles poderiam
nos oferecer mais urbanidade do que aqueles que
a sociedade produz hoje em dia. De fato, estamos
preocupados com as Formas que as cidades estão
assumindo e com os riscos de toda ordem que elas
parecem gerar para a sociedade e para o ambiente.
Todavia, muitos indícios e análises nos levam a
pensar que as transfom1ações da nossa sociedade,
e especialmente das cidades, estão apenas come
çando. As sociedades ocidentais estão em mutação,
entrando em uma nova fase da modernidade, que
assiste à evolução profunda das maneiras de pensar
e agir, da ciência e da técnica, das relações sociais,
da economia, das desigualdades sociais e das for- capítulo 1
mas de democracia. Essas mutações implicam e URBANIZAÇÃO E MDDERNl?.J\ÇÃO
tornam necessárias transfonnações importantes na
concepção, produção e gestão de cidades e do ter-
ritório; elas engendram uma nova revolução urbana
moderna, a terceira desde a revolução da cidade
clássica e da cidade industrial.
A sociedade deve, portanto, dotar-se de novos
18 instrumentos para tentar controlar essa revolução ur- 1.Cidade e sociedade: uma estreita
bana, tirar partido dela e limitar seus eventuais preju- correlação
ízos. Para isso, é necessária a formulação de um novo
urbanismo, adequado aos desafios e às formas atuais Podemos definir as cidades como agrupamentos de
de pensar e de agir nesta terceira modernidade. população que não produzem seus próprios meios
O objeto deste livro é contribuir para a explicita- de subsistência alimentar. A existência das cidades
ção dos desafios maiores a ser enfrentados por esse pressupõe, portanto, deS"d -ãsiiã ongem, _ma di-_
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novo urbanismo, bem como a formulação de alguns visãtr-t:mmica otlál'Êt esJfàêíUF ai {)f @Çíf - ini-'
princípios fundamentais à sua concepção. -pliea-trocas-dêfüi1:üreza aiveisa en re }lCJUcl_es ,9.1:!.
E m uma primeira parte, destacaremos os víncu- -=PI-0.d 1rem-us-fr én sL ie"-SUGSíSt _e_o s_qu e.-prod! k,
los estruturais que articulam cidades e sociedades - Z e m bens manufãfüraâüSTãrl:esãos), benuimból_i-
modernas, revoluções urbanas e tipos de urbanismo ,----ros-(-re giosos;-artistns-<elê.},""ópÕcÍé"";-;; proteçã,;··
produzidos nas duas primeiras fases da modernida- =tguerrêtiÕs).Ã dinâmica da úrbanização está ligada
de. N a segunda e terceira partes, analisaremos as ao potencial de interação oferecido pelas cidades,
principais características da nova modernidade que à sua "urbanidade", ou seja, à potência multiforme
se esboça e os principais traços da revolução urbana que gera o reagrupamento de uma grande quantida-
que ela mesma provoca e sobre a qual ela se apoia, de de pessoas em u m mesmo lugar.
Finalmente na quarta parte apresentaremos dez de- O crescimento das cídades esteve correlaciona-
safios principais e esboçaremos alguns pÍincípios a do, ao longo da história, com o desenvolvimento dos
ser desenvolvidos para buscar sua solução. meios de transporte e armazenamento dos bens ne-
cessários para abastecer populações crescentes em
qualquer estação do ano. Também esteve vinculado
às técnicas de transporte e estocagem das informa-
ções necessárias à organização do trabalho e das tro-
cas, como demonstra o aparecimento conjunto da
escrita e da contabilidade. Por fim, o tamanho das
cidades dependeu dos meios de transporte e "arma-
zenagem" das pessoas, particularmente das técnicas 2.As transformações de longa duração da
de construção em altura, de gestão urbana dos fluxos sociedade moderna
e do abastecimento (sistema viário, esgoto, água etc,),
assim como das exigências de proteção e de controle. É usual caracterizar as sociedades ocidentais
A história das cidades foi assim marcada pela his- contemporâneas pelo qualificativo "moderno" para
tória das técnicas de transporte e estocagem de bens distingui-las simultaneamente de um passado rela-
(b), de informações (i) e de pessoas (p). Este sistema tivamente distante e de outras sociedades de regis-
de mobilidade, que ora denominamos "sistema bip", tros diferenciados. Mas essa noção é bastante vaga,
20 constitui o núcleo das dinâmicas urbanas desde a es- e de uso incômodo e ambíguo. Assim, é difícil datar 21
crita até a internet, passando pela roda, a imprensa, a o aparecimento dos "tempos modernos" que se ins-
ferrovia, o telégrafo, o concreto armado, o condicio- talaram progressiva e diferencialmente em diversos
namento, a pasteurização e a refrigeração, o bonde, o países do Ocidente europeu e da América. A noção
elevador, o telefone, a radiofonia etc. O crescimento de modernidade foi também utilizada em contextos
horizontal e vertical das cidades tornou-se possível e perspectivas que a tornam suspeita de manter um
graças à invenção e utilização dessas técnicas. projeto hegemónico do Ocidente ou a acusam de
As formas das cidades, sejam projetadas, sejam sustentar ambições demasiadamente füncionalistas,
resultantes mais ou menos espontaneamente de di- cujos prejuízos pudemos comprovar, notadamente
nâmicas diversas, cristalizam e refletem as lógicas das no urbanismo.
sociedades que as acolhem. Desse modo, a concepção De fato, é mais correto falar de "modemização",
das cidades antigas expressava, mais particulannente, pois a modernidade não é um estado, mas um pro-
os preceitos religiosos e militares que constituíam as cesso de transformação da sociedade. Pode-se dizer,
"justificativas" principais das cidades e grupos sociais inclusive, que o que diferencia as sociedades moder-
que as habitavam. Em um mundo pouco seguro, as nas de outras é o fato de a mudança ser o seu princí-
cidades medievais se protegiam atrás das muralhas pio essencial. N a verdade, muitas outras sociedades
e organizavam-se através de corporações em tomo à passaram e passam por transformações, têm hist6ria;
praça do mercado, torres e campanários, expressan- mas não se organizam necessariamente tendo como
do espacialmente de forma imbricada a solidariedade núcleo centrnl da sua dinâmica de funcionamento a
e a dependência que caracterizava as populações das mudança, o progresso, o projeto. Pelo contrário, é a
cidades no seio das sociedades feudais. Mais tarde, tradição que constitui seu princípio essencial, e a re-
o desenvolvimento das sociedades modernas impri- ferência ao passado que fundamenta, de forma geral,
miu progressivamente novas lógicas à concepção e suas representações de futuro.
ao funcionamento das cidades.
Hoje o urbanismo necessita, portanto, de uma O s componentes da modernização
compreensão fina da lógica que se estabelece na A modernização é um processo que emergiu bem
sociedade contemporânea. antes dos tempos que denominamos, usualmente,
modernos. Ela resulta da interação de três dinâmi- desigualdade entre grupos e indivíduos gerando as-
cas socioantropológicas, cujos traços podemos reco- sim uma sociedade cada vez mais complexa.
nhecer em diversas sociedades, mas que ao entrar Esses três processos alimentam-se reciproca-
em ressonância na Europa durante a Idade Média, mente e produzem sociedades cada vez mais dife-
produziram as sociedades modernas: a individuali- renciadas, fonnadas por indivíduos simultaneamente
zação, a racionalização e a diferenciação social. mais parecidos e mais singulares, com possibilidades
Pode-se definir a individualização, em primei- de escolha mais comple.xas.
ro lugar, como a representação do mundo, não a De fato, individualização, racionalização e di-
22 partir do grupo ao qual pertence o indivíduo, mas ferenciação não são exclusivas da modernidade; 23
a partir da sua própria pessoa. O uso na linguagem mas é a sua combinação que, em circunstâncias
do "eu" no lugar do "nós" e ainda a invenção da históricas particulares, desencadeou a dinâmica da
perspectiva, que foram se impondo, progressiva- modernização, como uma bifurcação na qual se in-
corporou o ' mundo ocidental" por volta do ano 1000.
1
mente, no fim da Idade Média, ilustram perfeita-
mente esse processo de individualização. Podemos Nenhuma sociedade anterionnente havia conheci-
falar igualmente de individuação, para explicar as do essa conjunção ou tinha entrado nessa espiral de
lógicas de apropriação e domínio individuais, que "desenvolvimento" específica da modernidade.
vão ocupando progressivamente o lugar das lógicas
coletivas. Assim, as sociedades modernas separam As primeiras fases da modernização
e reúnem indivíduos, e não grupos. Se a modernidade não é um estado, a moder-
A racionalização consiste na substituição pro- nização tampouco é um processo contínuo, sendo
gressiva da tradição pela razão na determinação possível distinguir três grandes fases.
dos atos. A repetição dá lugar às escolhas. Estas A primeira cobre aproximadamente o período
pressupõem preferências e projetos individuais e qualificado como tempos modernos e abarca do fim
coletivos; elas usam o conhecimento derivado da da Idade Média ao começo da revolução industrial.
experiência, os saberes científicos e mobilizam as Ela testemunha a transformação do pensamento e
técnicas. A racionalização é uma forma de "desen- do lugar da religião na sociedade, a emancipação da
cantamento do mundo", pois atribui às' ações hu- política e a emergência do Estado-nação, o desen-
manas e às leis naturais o que fora anteriormente volvimento das ciências e a e.xpansão progressiva do
atribuído aos deuses. capitalismo mercantil e, logo a seguir, do industrial.
A diferenciação social é um processo de diversifi- Pode-se classificar esta fase como "primeira" ou
cação das funções de grupos e indivíduos no interior "alta modernidade".
de uma mesma sociedade. Ela é amplamente refor- A segunda fase é a da revolução industrial, que
çada pelo desenvolvimento da divisão técnica e social assiste à produção de bens e serviços, subordinada,
do trabalho, e resultante da dinâmica da economia em grande medida, às lógicas capitalistas; o pensa-
de mercado. A diferenciação produz diversidade e mento técnico ocupando um lugar central na sacie-
dade e a constituição do Estado do bem-estar. É a se constitui paralelamente como uma disciplina
segunda, ou "média modernidade". moderna, reerguendo-se de um campo específico,
A cada uma dessas épocas corresponderam mo- integrando valores e novas técnicas, sem desprezar
dos de pensamento e criação, figuras dominantes e antigas referências, mas assumindo novas liberda-
concepções do poder, representações da sociedade, des, notadamente com o barroco.
critérios de eficácia, formas de organização e, certa- Esta primeira cidade é moderna porque é conce-
mente, princípios e modos de concepção e organi- bida racionalmente por indivíduos diferenciados. As
zação do território. A instalação da primeira e da se- eventuais referências dos seus criadores à tradição
24 gunda modernidades efetuou-se progressivamente, não são atos repetitivos, mas sim refletem escolhas 25
porém a amplitude das transformações nas diversas racionais com diversas motivações. Ela ex-pressa a
esferas da sociedade provocou crises de todo tipo - instauração do Estado-nação, a expansão dos terri-
econômicas, sociais, políticas, religiosas. A concep- tórios, a mobilização das novas ciências e técnicas,
ção, a construção e o funcionamento das cidades a autonomia nascente dos indivíduos. Esta cidade é
não escaparam dessas transformações e crises. também moderna porque é projeto; ela cristaliza a
ambição de definir o porvir, de dominar o futuro, de
3. A s duas primeiras revoluções urbanas ser o marco espacial de uma nova sociedade; ela é o
modernas desenho de um desígnio. D e fato, ela dará origem às
utopias que são em si formas derradeiras.
A cidade do renascimento e dos tempos
modernos A cidade da revolução industrial
A primeira modernidade produziu uma ver- A segunda revolução industrial começou com
dadeira revolução urbana. A cidade medieval deu a revolução agrícola que aumentou a produção ali-
lugar a uma cidade "clássica" na qual o novo poder mentar, porém e:qmlsou do campo grandes quan-
do Estado aparece em cena de forma monumen- tidades de agricultores de maneira concomitante
tal e se apresenta, através da perspectiva, ao olhar ao desenvolvimento do capitalismo industrial. Esse
do indivíduo, traçando avenidas, praças e jardins duplo processo provocou um enorme crescimento
urbanos que cruzam e dividem as ruelãs, aleias e demográfico nas cidades, acarretando um cres-
hortas, recuando e transformando muralhas, re- cimento espacial acelerado, gerando, ao mesmo
definindo e separando o público cio privado, os tempo, uma grande pauperização de uma parte das
espaços interiores e exteriores, definindo funções, populações urbanas.
inventando calçadas e vitrines. Esse movimento é É neste contexto que emergem progressiva-
crescente, as ruas se alargam e se diferenciam fun- mente novas concepções de cidade, marcadas fun-
cional e socialmente, as cidades se estendem, os damentalmente pelas mesmas lógicas que regiam
bairros periféricos proliferam, aglomerando de ma- o mundo industrial dominante. O urbanismo mo-
neira nova populações e atividades. A arquitetura derno (a palavra "urbanismo" aparece sob diversas
formas na virada do século 19 para o 20) aplica, no sidenciais de alta renda e bairros industriais para
campo da organização das cidades, os princípios es- fábricas e operários. Ainda aqui foi decisivo o pa-
tabelecidos na indústria. A noção-chave é a da espe- pel dos transportes urbanos para tornar possível a
cialização: o taylorismo a sistematizará na indústria, ampliação dos territórios urbanos e sua recompo-
onde tratará de decompor e simplificar as tarefas sição em grande escala.
para tomar sua realização mais rentcí.vel. O urbanis- Mais tarde, o automóvel individual e os eletro-
mo moderno vai colocá-la em prática sob a forma domésticos inscreveram o fordismo, quer dizer, o
de zoneamento que, mais tarde, L e Corbusier e a sistema combinado da produção e do consumo de
26 Carta de Atenas levarão ao extremo. massa, mais nitidamente no espaço urbano, com 27
Na cidade da revolução industrial, a mobilidade os grandes conjuntos de habitação social ou ca-
elas pessoas, das informações e dos bens assume sas individuais, hipermercados e infraestruturas
igualmente um lugar novo e mais importante. A pri- viárias. O advento do quarteto carro-geladeira-
meira necessidade é, com efeito, adaptar as cidades aspirador-máquina de lavar constituiu o âmago
às novas exigências da produção, do consumo e das das transformações urbanas, tornando possível o
trocas mercantis. Isto requer uma malha de gran- trabalho feminino assalariado, a compra semanal
des vias de circulação entre estações e grandes lojas, e a ampliação dos deslocamentos. O s bairros mo-
bem como redes de água, saneamento, energia (gás, nofuncíonais das atuais periferias urbanas são sua
eletricidade, vapor) e comunicação (telégrafo, tele- expressão mais clara.
fone, correio expresso). O desenvolvimento do Estado do bem-estar e de
As exigências de crescimento e de funciona- diversos serviços públicos contribuiu igualmente na
mento das cidades provocaram também uma forte estruturação das cidades, através da rede de linhas
mobilização científica e técnica para aumentar a de transporte coletivo, de escolas, de hospitais, de
rentabilidade no transporte e o armazenamento de banheiros públicos, de postos de correio, de equi-
bens, informações e pessoas. A eletricidade, parti- pamentos esportivos etc. Além disso, os poderes pú-
cularmente, teve um papel decisivo na liberação blicos foram levados a atuar cada vez mais tanto no
das potencialidades de crescimento das cidades, campo do urbanismo quanto no campo econômico-
verticalmente com os elevadores, horizdritalmente social, principalmente para enfrentar insuficiências,
com o bonde, o telégrafo e o telefone, depois o incoerências e disfunções das lógicas privadas e do
motor a explosão. mercado, particularmente no campo fundiário e
A diferenciação social inscrevia-se de outro imobiliário. Foi criada, assim, toda ordem de estru-
modo no espaço: com os elevadores, os pobres turas e procedimentos para "planejar" mais racional-
passaram a ocupar os andares inferiores, enquan- mente as cidades, ou seja, o mais cientificamente
to os ricos subiam aos andares mais ensolarados; possível, para agir apesar das limitações da proprie-
mais tarde, com o desenvolvimento dos transpor- dade privada, para ordenar, isto é, predefinir e esti-
tes coletivos e os bondes, formaram-se bairros re- mular a expansão periférica e a renovação.
As formas urbanas desta segunda revolução cer- mente passaram por transformações profundas e
tamente variaram na teoria e na prática, conforme deixaram de funcionar do mesmo modo que antes.
as diferentes cidades e países. fVlas todos os funda- A cada uma das duas primeiras fases da moder-
dores do urbanismo - particulannente Haussmann, nização, correspondeu uma mudança profunda na
Cerdà, Sitte, Howard e, certamente, Le Corbusier maneira ele conceber, produzir, utilizar e gerir, ele
- estavam movidos, através de suas práticas ou re- maneira geral, os territórios e, particularmente, as
flexões e apesar de suas diferenças, por esta mesma cidades. A Europa ocidental já conheceu assim
preocupação de adaptação das cidades à sociedade duas revoluções urbanas modernas. Pode-se levan-
28 industrial. As cidades e o urbanismo conheceram, tar então a hipótese de que se esboça uma nova 29
assim, uma verdadeira revolução cm relação às anti- fase da modernização e que as mudanças que se
gas cidades e concepções arquitetônicas e espaciais vislumbram no urbanismo atual apontam para uma
da primeira revolução urbana para chegar, por fim, terceira revolução urbana moderna.
a um urbanismo fordista-keynesiano-corbusiano,
expressão de uma racionalidade simplificadora com
seu planejamento urbano, seu zoneamento mono-
funcional, suas armaduras urbanas hierárquicas,
adaptado à produção e ao consumo de massa em
centros comerciais, suas zonas industriais e sua cir-
culação acelerada e uma materialização também do
Estado do bem-estar com seus equipamentos co-
letivos, serviços públicos e habitações sociais. Esta
segunda revolução urbana não eliminou totalmente
as cidades pree.xistentes, apesar de ter sido bastante
radical na França, desde a destruição massiva de
Haussmann às "renovações bulldozer" dos anos
1950-1970. De foto, muito frequentemente, o espaço
construído, assim como os cidadãos, demànstraram
suas habilidades de permanência, de resistência e
de readaptação. Dessa forma, mais uma vez as ci-
dades comprovaram sua capacidade de sedimentar
diferentes camadas de sua história, funcionando
como palimpsestos, esses pergaminhos que não
mudam, mas que acolhem sucessivamente escritas
diversas. TOdavia, mesmo as partes preservadas das
cidades antigas que foram conservadas material-
capítulo 2
A TERCEIRA l'VlODERNIDADE

A modernidade saiu abalada do século 20, e a pas-


sagem para o ano 2000 ocasíonou múltiplas refle-
xões e comentários que ressaltaram não só o ex-
traordinário "progresso" realizado durante os cem
anos precedentes, mas também os dramas que o
mundo conheceu, proporcionais ao seu próprio
progresso, e que, por conta disso, constituem-se
em passivo da modernidade.
De fato, a modernidade sempre foi objeto de re-
ações hostis de todo tipo. Porém, há uns trinta anos,
a crítica assumiu uma nova forma, denominada
pós-moderna. Essa noção reagrupa, em um mesmo
balaio, desde filósofos e sociólogos que acreditam
discernir sinais de uma crise radical e de uma su-
peração da modernidade, até criadores, particu-
larmente os arquitetos, que se engajaram em um
projeto pós-modernista sob a forma de uma crítica
à estética funcionalista. Esse movimento não dei-
xa de ter seu interesse, pois chama a atenção para
as mudanças em curso. Todavia, estas mudanças
não anunciam nem apontam o fim da moderniza-
ção, mas ressaltam, porém, o fato de que a socie-
dade moderna se libera de um racionalismo que
se tornou demasiado simplista e de suas certezas,
e que ela desprende-se das formas de pensamento
messiânico ou providencial que ainda marcavam a
própria ideia moderna de progresso. D e certa forma,
estamos nos tomando verdadeiramente modernos, uma determinada situação, já que, estatisticamente,
e ele uma forma cada vez mais rápida. D e fato, o re- ela terá cada vez menos chance de já ter acontecido
forço recíproco das características que constituem ou de se reproduzir. A ação necessita, portanto, com
a modernidade dá a impressão de uma aceleração mais frequência, de uma reflexão específica que per-
da modernização. Entramos assim em uma tercei- mita elaborar uma resposta e não escolher uma de
ra fase ou terceiro episódio da modernização que um cardápio preexistente, de recorrer a uma receita,
diversos autores qualificaram de modernidade "ra- a uma rotina, a um hábito ou mesmo a uma crença
dical'', modernidade "avançada", de "sobremodemi- ou tradição. Por outro lado, a crescente comple).ida-
32 dade" ou ainda, "baixa" modernidade. de da vida social, real, mas também revelada pelos 33
novos conhecimentos científicos, toma necessários
1.Uma sociedade mais racional, mais novos avanços científicos e tecnológicos.
individualista e mais diferenciada
Novos procedimentos científicos e maior
A modernização reflexiva utilização das ciências e das técnicas
A racionalização, que é um dos três processos de As ciências que podem contribuir para a elabo-
base da modernização, prossegue marcando, cada ração das decisões passaram por rápidas mudanças
vez mais profundamente, todas as ações individuais e viram emergir novos paradigmas. Três avanços
e coletivas. Ela conduz a uma "refletividade·,, sobre importantes, de certa forma relacionados, porém
a vida social moderna que podemos definir como de origens diversas e relativamente antigas, modi-
"o exame e a revisão constante das práticas sociais, ficaram bastante profundamente os instrumentos
à luz das informações referentes a essas próprias da ação reflexiva: a teoria dos jogos e das escolhas
práticas". Dito de outra forma, não se trata mais de limitadas, as ciências cognitivas e as teorias da com-
simplesmente mobilizar conhecimentos prévios a plexidade, do acaso e do caos,
certas ações, mas examinar permanentemente as Os avanços que se seguiram a partir da teoria
escolhas possíveis e reexaminá-las em função da- das escolhas limitadas influenciaram consideravel-
quilo que elas já produziram. A refletividade é are- mente a economia, a sociologia, a ciência política e
flexão antes, durante e depois... tiveram, muito rapidamente, aplicações concretas.
De fato cada indivíduo, como cada coletividade, Esses evidenciaram que os meios para atingir um
está confrontado constantemente com um sem- fim podiam assumir uma multiplicidade de formas,
número de situações e circunstâncias individuais mesmo em situações incertas. Este tipo de aborda-
e coletivas cada vez mais diferenciadas e mutantes. gem conduziu a uma diversificação profunda da no-
Isto leva a dois tipos de consequências. Por um lado, ção de racionalidade enquanto adaptação dos meios
é cada vez mais raro que os atores possam recorrer a a um fim. Essas teorias tiveram um papel central
uma experiência direta passada, ou seja, um conhe- para o desenvolvimento das ciências que serviram
cimento operativo já estabelecido, para enfrentar de base à informática; elas também tiveram uma in-
fluência muito importante no campo da economia moderna, quando esses enfoques da incerteza, da
e do planejamento. complexidade, do caos, nada mais são do que o seu
O progresso das ciências cognitivas abre igual- pleno desenvolvimento, Essas "novas racionalida-
mente hoje, direta ou indiretamente, perspectivas des" constituem o núcleo da modernização reflexi-
imensas e até inquietantes sobre a possibilidade de va. A noção de feedback, por exemplo, central nos
explicar mecanismos do pensamento, de multipli- exemplos de avanços científicos que acabamos de
car suas possibilidades, isto é, de criar quase sujei- mencionar, é uma noção-chave para a ação refle.xiva.
tos. A ficção científica já nos familiarizou com essa O feedbacf.:. é uma retroação que permite modificar
34 angústia. Certamente não chegamos a este ponto, aquilo que precede por aquilo que segue. É um dis- 35
longe disso, apesar da "Lei de Moore" (teoria sobre positivo de regulação das causas pelos efeitos, que
a duplicação do rendimento dos computadores a implica um conhecimento e uma avaliação perma-
cada dezoito meses). Por outro lado, já estamos fa- nentes dos efeitos das ações. É um fundamento
miliarizados com os conhecimentos algorítmicos e das abordagens incrementais e procedimentais que
incorporamos de maneira prática as inovações, tais revolucionaram muitos campos e particularmente
como a distinção entre hardware e software que, as relações entre estratégia e tática, a gestão das em-
indiscutivelmente, fizeram evoluir nosso modos de presas, o planejamento. É um elemento dos chama-
representação e de organização. dos métodos heurísticos, que procedem a avaliações
À racionalidade limitada e às ciências cognitivas, sucessivas e hipóteses provisórias para permitir agir
deve-se acrescentar um terceiro campo, onde estão estrategicamente em contextos cada vez mais incer-
sendo elaborados, há dezenas de anos, novos para- tos. Cada ação se fundamenta sobre uma hipótese
digmas da teoria da complexidade. Esta categoria de resultado; a análise do resultado permite então
é evidentemente um balaio de gatos e engloba, de refinar ou invalidar a referida hipótese. A qualidade
certa forma, as ciências cognitivas. Mas ela é mui- e a velocidade do retorno da informação são deci-
to mais ampla e podemos incluir nela abordagens sivas e originam técnicas novas de monitoramento
advindas de reflexões matemáticas e físicas sobre o que superam as usuais planilhas gerenciais. O co-
caos, o acaso, os fractais, as bifurcações, a autoges- nhecimento não está mais separado da ação, mas
tão, que se difundem, hoje em dia, em' diversos e está dentro dela.
variados campos científicos, para além da física e da
biologia, direta ou metaforicamente. Esses avanços U m a sociedade do risco
científicos contribuem na renovação das formas de Paradoxalmente, o desenvolvimento das ciên-
representação e de modelização, e abrem perspecti- cias e da tecnologia é, de certa forma, fator de risco
vas consideráveis em termos de simulação. em relação ao projeto moderno. D e fato, o risco é
O grande erro dos pós-modernistas foi, prova- um conceito moderno que difere do perigo. O pe-
velmente, ter interpretado essa diversificação cien- rigo é o que ameaça ou compromete a segurança,
tífica e teórica como indício de uma crise da razão a e.xistência de uma pessoa ou coisa. O risco é um
perigo eventual, mais ou menos previsível e men- potencialmente calculáveis e mensuráveis. A eleva-
surável. U m risco pode ser potencial (hipotético) ção considerável do "nível" de educação, da cultura
ou concreto. Em situação de incerteza, a primeira científica e da infonnação difunde socialmente esse
etapa de urna análise racional consiste em formular fenômeno. A sociedade traduz, assim, cada vez mais,
hipóteses de risco. O risco surge então quando a suas dificuldades, seu temor e sua insegurança em
natureza e a tradição perdem sua influência e os termos de risco, isto é, em termos de perigos que ela
indivíduos devem decidir por si mesmos e, por con- deve ser capaz de identificar, medir e gerir. Surgem as-
seguinte, eles se esforçam para avaliar as probabi- sim novos conhecimentos especializados (a cindínica,
36 lidades de um determinado acontecimento e suas ou ciência do perigo, a gestão de riscos etc.), dispositi- 37
eventuais consequências, vos cada vez mais presentes na vida cotidiana e novas
O risco aumenta com o processo de moderniza- regras de atuação, como o princípio da precaução, por
ção, pois o perigo e o conhecimento que ele produz exemplo, que deve aplicar-se quando os e>.perts se de-
são maiores. claram incompetentes ou não chegam a um acordo.
De um lado, as tecnociências, pelos próprios O s riscos são assim construídos socialmente e
instrumentos com os quais elas dotam certos atores repousam sobre o estabelecimento de nonnas espe-
privados e públicos, criam novos perigos, como indi- cíficas. Ocupam cada vez mais o centro da vida de
cam os atuais problemas ambientais. Certamente, ao todos e do debate pllblíco em um mundo moderno
mesmo tempo, outros riscos passam a ser controlados. que não pode evitar os perigos, mas que pode tentar
Mas o "risco zero" é um horizonte que recua quando decidir quais ele aceita e a que preço.
pensamos alcançá-lo. Além disso, os riscos localiza-
dos e pessoais são substituídos por outros mais am- U m a autonomia crescente ante os limites
plos ou planetários. O próprio desenvolvimento dos espaciais e temporais
modos de comunicação e de transporte amplia a sua O s novos meios de transporte e armazenagem
difusão e seu conhecimento. A distância espacial de pessoas, informações e bens, que a sociedade
e temporal entre as causas e seus eventuais efeitos desenvolve e disponibiliza para organizações e indi-
também aumenta, formulando, de forma inovadora, víduos, permite a estes uma certa emancipação de
a questão da responsabilidade e da ética: limites espaciais e temporais. D e um lado, a presen-
Por outro lado, o risco cresce porque o conheci- ça física e a proximidade não são mais necessárias
mento reflexivo transforma a inconsciência do perigo, para um certo tipo de troca ou prática social, pois é
a incerteza ou o que em outros tempos era conside- possível telecomunicar-se ou deslocar-se mais rapi-
rado como a vontade dos deuses, em um futuro em damente. Por outro lado, a simultaneidade ou a sin-
parte previsível e eventualmente controlável; o avan- cronização das ações são menos indispensáveis, pois
ço das ciências dessacraliza e "desnaturali1.a", assim, muitas delas podem acontecer de maneira defasada
os perigos, e transforma o destino, o contingente, o ou assincrônica, graças às secretárias eletrônicas,
acaso, em objetos de conhecimento, em realidades gravadores ou serviços de mensagem de todo tipo.
É cada vez mais possível escolher individualmente em que se constroem essas decisões é mais comple-
lugares e momentos de comunicação e de troca. xo; os indivíduos, assim como as organizações, estão
O aumento das possibilidades de ação e intera- mais conscientes de decidir sob uma racionalidade
ção em uma distância espacial e temporal é tal que limitada, e suas escolhas dependem de um maior
os indivíduos podem ter a impressão de poder estar número de interações. Tanto as escolhas mais im-
em muitos lugares e tempos simultâneos. U m sen- portantes, quanto as pequenas decisões cotidianas
timento de ubiquidade e multitemporalidade acom- tornam-se assim sempre singulares.
panha assim um duplo processo de "deslocaçãd' e A multiplicidade de escolhas que os indivíduos
38 de "desinstantaneamento". enfrentam, que variam segundo seus próprios meios, 39
A deslocação se traduz concretamente pelo en- dá origem a "perfis" de vida e de consumo, cada vez
fraquecimento progressivo das comunidades locais. mais diferenciados, tornando cada vez menos per-
Isto não significa, evidentemente, o desaparecimen- ceptível a pertinência eventual a grupos sociais, ape-
to de toda a vida local, das relações sociais de pro- sar da permanência, sempre forte das determinações
ximidade, das escolhas locais; porém, o local já não econômicas e socioprofissionais. Esta diversificação
é o lugar obrigatório da maioria das práticas sociais coloca problemas tanto do ponto de vista sociopolíti-
nos diversos campos do trabalho, da família, do la- co - como representar interesses dos mais variados?-,
zer, da política, da religião etc. Todavia, os novos ins- quanto do ponto de vista econômico. Torna-se cada
trumentos de transporte e de comunicação abrem vez mais difícil fundamentar uma campanha de
novas possibilidades de escolha em matéria de loca- marketing em alg u mas categorias-tipo, que se trate
lização residencial, de atividades, e mudam a natu- de categorias socioprofi.ssionais, de idade, de níveis
reza do "local"; este não é herdado ou imposto, po- de renda, estilos de vida ou perfis psicossociológi-
rém é resultado das lógicas reflexivas, das decisões cos. As tipologias se desdobram em grupos cada vez
que são tão mais complexas quanto maiores forem menores. O s marketeiros, depois de um esforço de
os meios de deslocamento ou de telecomunicações recortar o mercado em "grupos de identidade restrita"
disponíveis a indivíduos ou organizações. Isto não e em "nichos", se veem hoje obrigados a considerar
evita problemas de coesão social, pois estas lógicas a singularidade crescente das demandas efetivas ou
podem resultar em novas formas de segregação. potenciais dos consumidores. A multiplicação das op-
ções e a personalização (o one-to-one) são o nec plm
Uma individualização cada vez mais pujante ultra da indústria e dos serviços. O s produtores e os
N a sociedade moderna, os indivíduos não só distribuidores criam assim megabases de dados a fim
podem escolher, mas devem fazê-lo continuamente. de conhecer de forma personalizada seus comprado-
O trabalho, o consumo, a religião, o próprio corpo, res potenciais e se esforçam em diversificar suas ati-
tudo se torna, ou parece tornar-se, passível de deci- vidades para adaptar-se aos seus hábitos e desejos. As
sões. As escolhas individuais são sempre, ao menos novas tecnologias da informação e da comunicação
em parte, determinadas socialmente, mas o sistema e.xercem, nesse assunto, u m papel decisivo.
Uma diferenciação social cada vez mais complexa A diferenciação dá-se também pela diversificação
A diferenciação social é crescente e marca de for- das histórias de vida. Os ciclos de vida, outrora mar-
ma cada vez mais forte todas as esferas da vida social. cados por algumas grandes etapas, quase idênticas
A divisão social do trabalho se acentua e se e.xpressa para todos, conhecem, hoje em dia, episódios va-
simultaneamente nas especializações profissionais riados, cíclicos, com o regresso de jovens adultos ao
mais numerosas e definidas, e em uma globalização domicílio familiar após uma experiência de distancia-
econômica que a induz a mudar de escala. A globa- mento ou o retomo ao celibato de divorciados. A di-
lização se distingue das fases anteriores da interna- versidade cresce igualmente pela aceleração das mu-
40 cionalização da economia, pelo fato de não se tratar danças nos modos de vida e nos sistemas de valores. 41
somente da movimentação de homens, capitais, ma- Outrora, cada geração reproduzia aproximadamente
térias-primas e mercadorias, mas por efetivar-se atra- os costumes das gerações precedentes, nas diversas
vés da organização do processo de produção em urna etapas dos ciclos de vida. A aparição do fenômeno
escala internacional e por uma mobilidade generaliza- dos teenagers nos Estados Unidos do pós-guerra evi-
da. A globalização, associando sociedades locais diver- denciou o enfraquecimento dessa reprodução inter-
sificadas em um mesmo processo produtivo, amplia a geracional. Hoje, numerosos observadores conside-
diferenciação social através de uma diferenciação ter- ram, por e.xemplo, que a proximidade intergeracional
ritorial. Ela contribui também para uma diferenciação dos adolescentes é mais forte em múltiplos campos,
cultural, pois no mesmo movimento em que parece particularmente no lazer (música, esporte, leitura),
"homogeneizar" as práticas e status sociais, difundindo do que dentro do mesmo seio socíoprofissíonal. As
os mesmos objetos, as mesmas referências e quase os desigualdades sociais subsistem, algumas se apro-
mesmos modos de organi1.ação, a globalização amplia, fundam, mas, para uma parte cada vez maior da po-
de forma inédita, o espectro sobre o qual os indivídu- pulação, elas implicam diferenças de grau, e não de
os, grupos e organizações podem realizar suas esco- natureza, e elas não se imobilizam constituindo cate-
lhas e desenvolver suas particularidades. gorias homogêneas. Na realidade, o preço da maioria
A diferenciação social transforma igualmente as dos artigos de consumo tem aumentado, chegando,
estruturas famíliares e seu funcionamento. A família no caso dos automóveis, a mais de cinquenta vezes.
típica - casal com filhos, que constituía a' referência A mobilidade social é o corolário da diferen-
econômica e política dominante - é hoje em dia mino- ciação. Ela aumenta muito lentamente, porém os
ritária . .Mas as famílias tradicionais são, elas mesmas, indivíduos apresentam trajetórias de vida e práti-
cada vez mais diversificadas, pois quase um quarto cas cotidianas menos determinadas, do que anti-
delas foi "recomposta", induzindo a uma estruturação gamente, pelas suas origens sociais. A socialização
familiar cada vez mais comple.xa, que demógrafos e inicial, pelo contato com o círculo paterno, perde
juristas têm dificuldade em classificar, com filhos que valor relativo em proveito de formas mais amplas
têm até oito avós, sem contar os meio-irmãos, os ir- de socialização nas quais os meios de comunicação,
mãos postiços e as quase cunhadas. informação e de deslocamento adquirem um papel
cada vez mais significativo. Esse processo concerne às vezes os políticos, os vínculos sociais não foram
evidentemente menos às categorias e.xtremas, como rompidos. Seguramente algumas pessoas e grupos
os jovens de conjuntos habitacionais ou aqueles de sociais experimentam sérias dificuldades e um con-
bairros nobres, cuja socialização é mais restritiva ou siderável segmento da população está excluído do
se efetuou em meios mais homogêneos. mercado de trabalho e encontra-se "desfiliado''; é
A mobilidade física das pessoas e das informa- foto que a diferença entre mais ricos e mais pobres
ções participa também ativamente na diferenciação aumentou em praticamente todos os países desen-
social, sendo ao mesmo tempo um instrumento e volvidos e a sociedade assiste a surtos de violência
42 uma resultante. Ela torna possíveis contatos e tro- e incivilidade. l.Vlas estamos longe de cair em uma 43
cas, esporádicas ou regulares, mesmo sem proximi- anomia massiva ou escorregar na barbárie. Pelo
dade. Expande também as bases sobre as quais as contrário, as exigências de segurança, de civilidade
diferenciações e as afinidades podem se apoiar. e estado de direito vêm crescendo. As sociedades
Os indivíduos passam a ter um multiperten- ocidentais, por enquanto, parecem perseguir sua
cimento social, passam a ser socialmente plurais. modernização sem sofrer ameaças essenciais e sem
Suas pníticas, seus sistemas de valores, suas esco- que apareça alguma alternativa verdadeiramen-
lhas individuais resultam de socializações e circuns- te fiável. Não ocorre evidentemente o mesmo em
tâncias diversificadas. Por exemplo, o esporte prati- outras sociedades que se encontram realmente em
cado por um indivíduo estará mais relacionado com processo de dissolução: seja porque elas se encon-
sua origem geográfica, a música que escuta terá re- tram brutalmente incluídas na globalização e experi-
lação com a sua fab:a etária, seu trabalho dependerá mentam de forma acelerada e acentuada os dramas
significativamente das origens socioprofissionais de sofridos pela Europa nos séculos 19 e 20; ou porque,
seus pais, suas escolhas turísticas serão Fortemente inversamente, estão excluídas da globalização e se
determinadas por uma negociação familiar, seu voto afundam na fome, na guerra e na doença.
político dependerá do lugar onde mora etc.
A diferenciação social parece assim ir pulve- Novos tipos de relações sociais
rizando-se pouco a pouco, em uma sociedade na Fica evidente que a busca da modernização em
qual os indivíduos, mais diferenciados e a tônomos, países já profundamente modernizados não provoca
compartilham apenas momentaneamente valores e o desaparecimento das relações sociais. A socializa-
experiências sociais. ção "funciona", mas os vínculos mudam de natureza
e de suporte.
2. A emergência da sociedade hipertexto Os vínculos fortes, espessos, tradicionais, que
conectavam (uniam) antigamente indivíduos homo-
Apesar dessa aparente pulverização da socieda- gêneos, nas comunidades rurais e medievais, eram
de em indivíduos mais autônomos, a socialização muito sólidos, multifuncionais e quase não necessi-
não desapareceu. E contrariamente ao que afirmam tavam de leis ou aparatos estatais para codificá-los ou
preservá-los. O s indivíduos passavam sua vida ao lado vínculos fracos", O tecido social constituído pelos
das mesmas pessoas. C o m a transição da comunidade vínculos sociais contemporâneos muda, assim, de
rnral ou burgo para uma sociedade urbana e industrial, textura. Está cada vez mais composto de "fios" mui-
os laços entre indivíduos diferentes diversificaram-se, to finos, de todo tipo, que não lhe dão mais solidez,
multiplicaram-se e começaram a se especializar. i'vlas, mas lhe conferem esbelteza e elasticidade. Este te-
nas cidades, subúrbios e burgos do século I9, o vizi- cido, constituído de fibras diversas, é também social
nho era frequentemente um colega, um amigo, um e culturalmente diversificado.
parente, um correligionário, um companheiro de luta.
44 Hoje, ao contrário, a vida nas cidades se desenvol- U m a estrutura social e m redes 45

ve em outra escala, e a coincidência das diferentes As estruturas sociais que surgem hoje, basea-
esferas das relações sociais está cada vez menor. O s das em vínculos frágeis e muito numerosos, e entre
vizinhos são raramente amigos de infância, colegas, organizações e pessoas afastadas entre si, são de
parentes, amigos. Todo dia e ao longo da vida, cada tipo reticular. A sociedade se estrutura e funciona
pessoa entra em contato com um número crescente como uma rede, ou melhor, como urna série de
de outros indivíduos, dentro e fora do trabalho; dali redes interconectadas, que asseguram uma mobi-
é possível escolher um ou mais cônjuges sucessivos, lidade crescente de pessoas, bens, informações. É
escolher amigos e vizinhos. Pode-se utilizar nas rela- a generalização dessa mobilidade que toma obso-
ções uma ampla gama de meios: o uso das telecomu- letas as estruturas aureolares antigas fundadas em
nicações permite diversificar as formas de interação, processos de "difusão", limitadas espacialmente em
o automóvel tornou-se a principal ferramenta de en- áreas de mobilidade restrita. Essa organização em
contros pessoais. O s vínculos econômicos e técnicos rede funda uma nova solidariedade de fato, como
socializam também os consumidores através de bens um sistema de interdependência entre as pessoas.
e de serviços comerciais: nossa alimentação cotidia- Depois da "solidariedade mecânica" da comunidade
na e os objetos que utilizamos são em grande medida rural e da "solidariedade orgânica" da cidade indus-
produtos concebidos e distribuídos por multinacio- trial, surge uma terceira solidariedade, "comutativa",
nais, a mais ínfima das atividades encontra-se inserida, que relaciona pessoas e organizações pertencentes
de foto, em uma multiplicidade de relações. a uma multiplicidade de redes interconectadas. O
O s vínculos sociais multiplicaram-se extraordi- desafio para a democracia consiste então em trans-
nariamente. Sua natureza é diversificada e eles se formar essa solidariedade comutativa em uma soli-
apoiam em modos de comunicação múltiplos; tro- dariedade "reflexiva", ou seja, urna consciência de
car mensagens na internet e encontrar-se em um pertencimento a sistemas de interesse coletivo.
bar são interações qualitativamente diferenciadas.
O s vínculos estão mais "débeis" que em outros U m a multiplicidade de pertinências sociais
tempos e também mais frágeis. Por outro lado, fi- A sociedade se compõe hoje de indivíduos "mul-
cou mais fácil produzirem-se novos: é a "força dos tipertencentes", gue se desenvolvem em campos
socíais distintos. Os campos mais importantes são o gundo uma "sintaxe'' esportiva etc. Estamos diante
trabalho, a família, o lazer, a vizinhança, as organiza- de "indivíduos-palavra", que constituem por si só
ções religiosas e sociopolíticas. Antigamente, nas co- os principais vínculos entre esses "textos-campos
munidades rurais, esses diversos campos sociais se sociais". Passam de um campo para outro, seja se
confundiam. Com o desenvolvimento da sociedade deslocando ou utilizando as telecomunicações.
urbana e industrial ocorreram as primeiras dissocia- Quando um funcionário liga do trabalho para casa,
ções, mantendo ainda algumas sobreposições. Hoje, de uma certa forma, muda de "texto".
suas intersecções são cada vez menos numerosas, O s diversos campos sociais são de natureza di-
46 Formando urna espécie de multiplicidade de cama- versa. A participação das pessoas em cada um deles 47
das sociais interligadas pelos próprios indivíduos ao pode ser mais ou menos voluntária e duradoura. As
passar de uma para a outra, várias vezes ao dia. interações podem ser econômicas, culturais, afe-
O s indivíduos se deslocam, real ou virtualmente, tivas, recíprocas, hierárquicas, normatizadas, pre-
em universos sociais distintos articulados em confi- senciais, escritas, faladas, telecomunicadas etc. O s
gurações diferenciadas para cada um deles. Formam campos têm escalas variadas (do "local" ao "global")
um hipertexto, como as palavras que se conectam em e são mais ou menos abertos. As redes que estrutu-
um conjunto de textos informatizados. O hipertexto ram esses campos podem ter a forma de estrela, de
é o procedimento que permite "clicar" sobre uma pa- malha ou ser hierarquizadas. E os indivíduos fazem
lavra de um texto e acessar essa mesma palavra em code-swit.cliing, ou seja, tentam fazer malabarísmos
uma série de outros textos. Em um hiperte.\'.to, cada com os diferentes códigos sociais para poder passar
palavra pertence simultaneamente a vários textos; de um ao outro.
em cada um deles participa na produção de sentidos Esta metáfora do hipertexto permite, igualmen-
diferenciados interagindo com outras palavras do tex- te, renovar a identificação e a análise das desigual-
to, porém segundo sintaxes que variam eventualmen- dades sociais. Nem todos os indivíduos dispõem
te de um texto para outro. A digitalização das imagens efetivamente, por razões diversas, mas facilmente
abriu a possibilidade de construir igualmente hiper- explic iveis pelas suas histórias sociais, das mesmas
mídias, que estabelecem vínculos entre textos, docu- possibilidades de construir espaços sociais de n
mentos sonoros e imagens (o prefixo hipCr é utilizado dimensões ou de passar de um campo para outro.
aqui no sentido matemático de hiperespaço, ou seja, Para certos indivíduos, as camadas das redes estão
espaço de n dimensões). niveladas; seus campos econômicos, familiares, lo-
O s indivíduos estão assim inseridos em campos cais, religiosos se sobrepõem. Assim, os excluídos
sociais distintos, como as palavras nos diferentes do mercado de trabalho não têm multipertinências;
documentos de um hipertexto. Eles interagem de moram em conjuntos habitacionais, vivem de uma
um lado com colegas, segundo uma "sintaxe" pro- economia informal local e só encontram as pessoas
fissional, e de outro com parentes, segundo uma do bairro. A possibilidade de deslocamento em uma
"sintaxe" familiar, em um terceiro com parceiros, se- série de campos abre potencialidades que não são
acessíveis a todos. Esta multiplicidade pode tam- coordenar as ações, de lidar com a comunicação
bém causar a certos indivíduos problemas psicoló- na ocorrência de uma crise. O caráter estratégico
gicos complicados e tomar difícil a constituição de da economia cognitiva se confirma, de certa forma,
sua identidade. Mas a sociedade hipertexlo renova pelo comportamento das grandes empresas dos pa-
profundamente as modalidades de constituição do íses desenvolvidos, que parecem deixar a produção
social, bem como as identidades pessoais. material para outros - e para o resto do mundo - e
que se concentraram nas novas tecnologias, atrain-
3. Do capitalismo industrial ao capitalismo do capitais e pessoas qualificadas do mundo inteiro,
48 cognitivo para assegurar o desenvolvimento. 49
Esta nova "economia cognitiva" aparece como
As mudanças econômicas em curso estão apon- a expressão da fase contemporânea da moderniza-
tando que as sociedades ocidentais começam a sair ção no campo da economia. Dito de outra forma, a
do industrialismo, ou seja, de um sistema econômi- economia cognitiva é para a ''sociedade hipertexto"
co fundamentalmente baseado na indústria, defini- e para a "sociedade comutativa", o que a economia
da como "o conjunto de atividades econômicas que industrial foi para a "sociedade urbana" e para a "so
tem por objeto a exploração das matérias-primas, lidariedade orgânica", e o que a economia mercantil
das fontes de energia e de sua transformação, as- predominantemente rural foi para a "comunidade" e
sim como dos produtos semielaborados e bens de "solidariedade mecânica" (ver quadro à página 58).
produção ou de consumo"; e que estão entrando
cm uma economia cognitiva, baseada na produ- O fim dos futuros previsíveis e planejados
ção, apropriação, venda e uso de conhecimentos, O sistema fordista, apesar de alguns percalços e
informações e procedimentos. Isto não significa crises, tinha funcionado bem por mais de meio sé-
que a indústria esteja fadada a desaparecer. Mas, culo. Estava fundamentado sobre uma previsibilida-
da mesma forma como a agricultura passou com o de bastante grande do futuro. As empresas podiam
capitalismo industrial a depender do modelo indus- produzir antes de vender, amortizar as variações do
trial, que havia redefinido tanto as suas finalidades mercado através dos estoques e investir a longo prazo.
quanto seus métodos e valores, a produção indus- O s trabalhadores podiam contar com o crescimento
trial depende, cada vez mais, das lógicas e poderes e esperar, a médio prazo, uma melhora do seu poder
da economia cognitiva. i'vlais concretamente, a aquisitivo e das suas condições de vida. Eles consu-
performance de uma empresa industrial, hoje em miam os bens que produziam. Estavam protegidos
dia, depende primeiramente de sua capacidade de em caso de doença e não tinham preocupação com a
conhecer os mercados, de mobilizar as ciências e aposentadoria. Apesar de não ser o melhor dos mun-
as técnicas, de inventar respostas, de desenvolver dos, como indicavam as constantes lutas sociais, a
capacidades criadoras, de organizar processos, de representação que a sociedade ocidental tinha de si
gerir as reações ante os fatos, de analisar custos, de própria era predominantemente otimista.
Esse sistema se apoiava na possibilidade de li- economia (as atividades econômicas diretamente
mitar as incerlezas. O planejamento era um elos vinculadas ao uso da internet), e mais amplamen-
instrumentos-chave, em nível nacional, nas empre- te a economia cognitiva (indústrias e serviços nos
sas, para o planejamento urbano e ordenamento do quais predominam a produção, a venda e o uso do
território. Entrou em crise progressivamente a partir conhecimento, da informação e procedimentos). O
do fim dos anos 1960. A produção repetitiva de mas- desenvolvimento desta economia se inscreve no
sa entrou em choque com a diferenciação social e processo de modernízação e está em ressonância
a diversificação das demandas. As tecnologias e os com a emergência da sociedade hipertexto.
50 modos de organização que tinham garantido o cres- Trata-se, pois, de uma economia cada vez mais 51
cimento da produção e da produtividade atingiram reflexiva que incorpora sob as formas mais diversas
seus limites. As receitas keynesianas tomaram-se o progresso das ciências e das técnicas: mediante o
contraproducentes em economias mais abertas; as desenvolvimento de máquinas cada vez mais sofisli
intervenções do Estado do bem-estar tornaram-se cadas, que integram um sem número de tecnologias
muito custosas e geraram toda ordem de efeitos per- de informação e comunicação (TIC), empregando
versos. A globalização, a aceleração dos movimentos uma mão de obra globalmente mais qualificada em
ele capitais, as políticas ele transferência de regulação tarefas cada vez menos repetitivas, recorrendo a mé-
para o mercado só ampliaram o quadro de incertezas. todos de gestão que exigem uma informação rápida
O conjunto dessas transformações pôs em xeque e abundante para enfrentar as maiores incertezas e
as formas fordistas-keynesianas do industrialismo. as escolhas mais complexas. A característica essen
Seus dispositivos baseados sobre o desempenho da cial dessa nova economia é que uma parte crescen-
repetição (a rotina taylorista e o consumo de massa), le das atividades econômicas e dos valores que ela
nas racionalidades simplistas delineadas por um ide- produz depende do capital cognitivo, incorporado
al de previsibilidade (a programação e planejamento nos homens, nas máquinas e na organização. Os
lineares) entram assim em crise, uns após os outros, modelos industriais de produção tornam se inúteis
acrescendo a incerteza e a instabilidade criadas pela e o valor do capital, difícil de medir, pois uma boa
dinâmica da modernização, mas criando igualmente parte se constitui de "ativos intangíveis", ou seja, de
as bases para o surgimento de uma no a forma de saberes e de conhecimento, de modos de Funciona-
economia de mercado. mento, de relações pessoais, de criatividade etc.
A nova economia também está mais individuali-
Uma nova economia do conhecimento zada, tanto em matéria de consumo, quanto de pro
e da informação duç1lo. Os consumidores exigem produtos cada vez
A expressão "nova economia !> está muito cm mais diversificados e específicos, um "sob medida
voga hoje, mas carece de precisão. Ela engloba os industrial"; o conhecimento das suas necessidades
setores de produção de novas tecnologias da infor- torna-se assim uma das chaves da competitividade
mação e comunicação (hardware e software), a net- do comércio, dos serviços e da indústria. A evolu-
ção da produção industrial é também testemunha mobilidade dos capitais, a aceleração dos ciclos de
do processo de individualização, seja em se tratando produção e desenvolvimento dos meios de transpor-
das qualificações, níveis e carreiras dos trabalhado- te e comunicação modificam também o potencial
res, dos modelos de organização, do funcionamento qualitativo dos territórios e tornam frequentemen-
por projetos, onde cada um encontra uma posição te obsoletas as antigas especializações industriais
temporária em um coletivo de trabalho, ou ainda locais. O desenvolvimento econômico elas cidades
dos horários de trabalho flexíveis e assincrônícos. repousa cada vez mais na sua acessibilidade, na sua
Enfim, essa nova economia está também mais conexão com as grandes redes de transportes terres-
52 diferenciada. A divisão da trabalho não para de se tres e aéreos, e ainda no potencial ela mão de obra 53
aprofundar, a gualificação dos trabalhadores au- qualificada. A atração das jovens camadas médias
menta e as empresas tornam-se mais especializadas. e superiores toma-se assim um elemento central
Esta evolução se acentua pela terceirização crescen- das políticas urbanas, que prioriza a qualidade de
te praticada pelas grandes empresas. De fato, o pro- vida, os equipamentos educativos, a cultura, o lazer
gresso das técnicas de transporte e de comunicação e ainda a imagem da cidade, dentro do coração do
rebaixa os custos das transações e facilita o acesso desenvolvimento local.
ao mercado. A subcontratação, as joint ven.tures, as O uso dos meios de transporte rápido e das tele-
parcerias, os franchisings substituem o modelo orga- comunicações pelas empresas contribui assim para
nizacional da grande indústria. reestruturar cidades e territórios. O desenvolvimen-
to da net-economia (comércio eletrônico de varejo
Uma economia mais urbana e entre empresas, ou "e-comércio'', e-formação e
A produção e os serviços deixam as empresas, teleclucação, e-recrutamento e e-mão de obra tem-
atribuindo ao contexto espacial uma importância porária, e-saúde e telemedicina, e-seguros, e-bolsa,
econômica nova. Antes, a maior parte da atividade e-segurança e televigilância, e-informação e teleno-
das grandes empresas se desenvolvia no seu próprio tícias etc.) muda os critérios de localização das ativi-
recinto. Hoje, com a exteriorização de uma parte dades e participa principalmente na reconfiguração
crescente da produção e dos serviços, a atividade das centralidades e na especialização comercial. Os o
acontece cada vez mais fora de seus Tnuros, trans- distritos empresariais veem reforçado seu papel ê
a
formando de fato as cidades e os territórios em es- através das atividades altamente qualificadas e de .o
5
paços produtivos. Isto aumenta a importância das alta intensidade informacional. A logística toma- o
"O
"externalida<les" de toda ordem, e gera novas respon- se uma função-chave no processo de produção e ill
o
'êi
sabilidades para o poder público que deve contribuir, suscita novos tipos de equipamentos multimodais ·e
e
mais do que nunca, para a criação de um ambiente e mukisserviços (as plataformas logísticas). Os ae- ·e
o
material, econômico, social e cultural propício às roportos passam a ser rodeados de inúmeras e va- ill
o
>
atividades econômicas. Porém, as recomposições riadas empresas atraídas pela acessibilidade aérea o
e
ill
e reconversões rápidas e brutais das empresas, a e terrestre.
O papel das tecnologias da informação ência ou tecnologia cujo desenvolvimento não de-
e comunicação penda do uso das TICs, particulannente nos novos
A dinâmica da economia capiLalista persiste e campos, como o da genômica ou da cognítica.
assume um papel crescente na sociedade, principal- A internet tem neste contexto um papel princi-
mente porque uma grande parte das atividades hu- pal, funcionando como uma metamídia que associa
manas é objeto de produção e de serviços de merca- e articula os diversos modos de produção e de circu-
do. As tecnologias da informação e da comunicação lação das informações. De fato, assistimos progres-
(TICs) desempenham um papel central nessa dinâ- sivamente à "convergência" em tomo da internet
54 mica. Elas não mudam por si só a sociedade, porém, de todos os meios de comunicação, bem como a 55
suscitadas e utilizadas pelos atores econômicos e pe- aparição de novos objetos que se integram a objetos
los consumidores, elas podem contribuir para dar-lhe móveis como a televisão, o computador, a agenda, o
urna nova fonna, pois estão especialmente adaptadas livro, a máquina fotográfica e a filmadora.
a ela. De fato, por um lado, integram-se ativamente
nas dinâmicas de racionalização, de individualização Novas regulações do capitalismo cognitivo
e diferenciação da sociedade hipertexto; e, por outro, A acumulação e a concentração de capital se-
são Ferramenta e suporte do capitalismo cognitivo guem crescendo de forma acelerada no conte.xto da
que pode aproveitar - no sentido mais amplo da Pª* globalização e da nova economia cognitiva. lVlesmo
lavra - os rápidos avanços dos seus resultados. Estes em campos muito novos, as atividades se organizam
estão amplamente ligados à digitalização que, ao mo- e se reorganizam em nível mundial em torno das
dificar de maneira decisiva a produtividade na produ- maiores empresas. O processo de crescimento e de
ção, a acumulação e a circulação da informação, con- crise também aumenta, e não devemos nos iludir
tribui de maneira determinante para a dinâmica do com o fenômeno do start-up, cuja e.xistência inde-
capitalismo cognitivo. As TICs participam também pendente é bastante breve, tampouco pela prolifera-
ativamente da aceleração de todos os movimentos de ção de pequenas e médias empresas, ainda depen-
pessoas, informações e bens, levando em conta que dentes dos grandes grupos, mais ou menos de forma
todo aquele que produzir uma diferença, principal- direta e durável. Não se pode, pois, confundir o fim
mente em termos de rapidez, estará esPecialmente do industrialismo com o fim da economia capitalista.
bem inscrito nas kígicas capitalistas baseadas na con- As leis econômicas não são novas, mas se aplicam
corrência e na acumulação. em um conte.xto diferente. O mercado talvez esteja
Essas tecnologias estão longe de ter esgotado mais transparente, os custos de transação mais Fra-
suas potencialidades. Elas ocupam progressiva- cos, as informações menos assimétricas, os sistemas
mente, como já havia acontecido com a eletricidade de adaptação da oferta e da procura mais sincrônicos,
anteriormente, uma posição genérica, penetrando as origens do valor diferentes, os modelos de produti-
em todos os setores econômicos e todas as esferas vidade renovados: só resta que a dinâmica de acumu-
da vida social. Já não existe nenhuma indústria, ci- lação prossiga, e isto tem tudo para acontecer.
A economia cognitiva conhece e conhecerá, te ela sua proteção previdenciária e primordialmente
portanto, múltiplas disfunções do capitalismo: suas garantir e financiar sua aposentadoria. O fordismo
oscilações e crises econômicas, sociais, ambientais, transformou os trabalhadores de massa em con-
ao mesmo tempo em que os interesses sociais au- sumidores. Atualmente o trabalhador-consumidor
mentam e a concorrência entre empresas e territó- toma-se acionário, diretamente comprando ações,
rios se acirra. Deve ser, portanto, "regulado", pois indiretamente pelos investimentos das caixas de
ele não pode Funcionar de forma sustentável sem aposentadoria. Esses "Fundos de Pensão" assumem
instituições representando as diversas coletividades uma importância social e econômica considerável,
56 sociais e territoriais, sem regras comuns, sem pode- tornando-se investimentos imobiliários. Por outro 57

res coletivos legítimos e capazes de Fazer respeitar lado, a crise do Estado do bem-estar, gue também
essas regras, sem intervenções corretivas e compen- é uma crise do seu modo de organização e de sua
sadoras, sem modalidade de gestão de conflitos. performance, leva o poder público nacional e local
Porém, as regulações desenvolvidas no período a recorrer cada vez mais a atores privados para as-
precedente funcionam cada vez pior no contexto do segurar todo tipo de prestações, mesmo tendo que
capitalismo cognitivo, entre outros motivos porque a subsidiar esses atores ou mesmo aqueles que devem
globalização contribui em minar as bases nacionais comprar seus produtos e serviços. A<; concessões e
dos Estados de bem-estar social, tomando ineficazes as parcerias público-privado multiplicam-se sob di-
as políticas keynesianas, pois a relação salarial fordista versas formas. A globalização, o enfraquecimento elas
dá espaço a contratos ele trabalho muito mais instüveis, barreiras aduaneiras, a aceleração dos movimentos
os investimentos privados de longo prazo tomam-se de bens, de homens, de informações e de capitais
raros, o ciclo elos produtos se encurta, e porque emer- tornam necessária a criação ou o reforço das institui-
gem novos problemas sociais e novas desigualdades. ções supranacionais de regulação, enquanto o poder
Todavia, um novo Lipo de regulação parece se esboçar, público local tem seu papel econômico e social refor-
ao qual poderíamos classificar de "regulação de parce- çado em um contexto de concorrência interterritorial
ria", na medida em que os atores, com lógicas diferen- exacerbado pela internacionalização e pelo desenvol-
ciadas e com interesses divergentes e conflitantes em vimento elos meios de transporte e comunicação.
1

uma série de pontos, se esforçam ou são obrigados A<; parcerias entre diferentes tipos de atores são
a elaborar gestões comuns, negociar compromissos uma forma "reflexiva" de regulação mais adaptada a
duradouros e criar instituições coletivas. urna sociedade aberta, diversificada, móvel e instável.
O capitalismo cot,rnitivo apoia-se ainda mais for- As instituições que derivam das parcerias dão urna
temente do que o capitalismo industrial sobre a Bolsa relativa estabilidade em um contexto marcado por
e sobre o capital fimmceiro, sendo que esses são hoje incertezas de todo tipo.
em dia fortemente alimentados pela poupança dos A amplitude das convulsões sociais, econômicas,
assalariados e dos profissionais liberais que utilizam o culturais, políticas e territoriais engendradas pelo
mercado de ações para assegurar uma parte crescen- surgimento da sociedade hipertexto e do capitalismo
cognitivo reafim1a a tese sobre a entrada das socie-
dades ocidentais em uma nova fase do processo de
modernização. Esta, como as duas precedentes, faz Comunidade Sociedade Sociedade
necessárias mutações múltiplas, ao mesmo tempo industrial hipertexto
em que as gera. Assim, a sociedade hipertexto e oca- Paradigmas Crenças, tradição Haz.1o universal, Complexidade,
pitalismo cognitivo provocam uma terceira revolução dominantes e continui<la- fundnnalidade, incerteza,
urbana moderna. É ela que agora iremos caracterizar, de, destino, simplificação e autorregulação,
para deduzir os problemas específicos que ela apre- força, nutoridade, especia!izaçfüi, flexibilklade,
sa senta e os desafios mais gerais da sociedade moderna sabedoria democracia governançu
avançada, os princípios e os métodos de ação para a representativa
concepção, a produção e a gestão das cidades. Ações Hepetitivas Hucionais Hellexivas
e rotineiras
Quadro esquemático de dinâmica da moderni- Principais Costumes, chefe Estado e !eis Sistemas estatais,
zação ocidental e do conte.'\to das três revoluções reguJações subsidiários,
urbanas modernas direito e cem-
tratos, parcerias,
Comunidade Sociedade Sociedade opiniílo pública
industrial hipertexto Atividades t\gríeolas lndustriais Cognitivas
Elos sociais Pouco numerosos, Mais numerosos, !\luito numc• econômicas
curtos, nflo de diversos tipos, rosos, muito dominantes
diversificados, evolutivos, fortes, variados, através i Cultura De caráter domi- Fortes Diversil\c;Jda e
não estabelecidos em vias de de mídias e nantemente local componentes híbrida {mui-
através de mídias, especializaçílo diretos, frágeis, socioprolissionais tipertínência
estáveis, fortes e especializudos social e cultural)
multifuncionais Tipo urbano Cidade-mercado Armadura urbana Sistema
Tipo de Mecfmica Orgilnica Comutativa dominante hierarquizada, cí- metapolitano
solidariedade eludes industriais
Territórios Amplamente Integrados em Abertos, mú!ti- Instituições Paníquias, juntus Comunidades, re- Aglomera,;iio,
sociais autárquicos um conjunto pios, mutantes, de freguesias, giôes, administra· país, regiões,
(espaço das e fechados, mais amplo, em escalas vari.-í- Estado-nação ção centraliwda, Est<1do-nm,-J.o de
relações de caráter local semiabertos, de veis (do local : Estado-nação de bem-estar social,
sociais) base nacional ao global), reais bem-estar social, organitações
e virtuais pactos, alianças intern.icíonais e
Morfologia Alveolar Aureolar Heticular ' e trntados supranacíonais,
sacio territorial i ONGs
capitulo 3
A TERCEIHA REVOLUÇÃO URBANA MODERNA

A primeira modernidade e sua revolução urbana


suscitaram novas concepções, que classificaremos
como paleourbanisrno, e as primeiras utopias; a
segunda modernidade e sua revolução urbana pro-
duziram os modelos e deram nome ao urbanismo.
A terceira modernidade e sua revolução urbana
fizeram emergir novas atitudes diante do futuro,
novos projetos, modos de pensar e ações diferen-
ciadas; é o que chamaremos de agora em diante
de "neourbanismo" ou de "novo urbanismo" (ain-
da que esta exvressão tenha assumido um sentido
particular nestes últimos anos, notadamente nos
Estados Unidos)'.
Esta terceira revolução urbana já começou faz
tempo: em trinta anos, a evolução foi considerável
nas práticas dos cidadãos, nas formas das cidades,
nos meios, motivos, locais e horários dos desloca-
mentos, das comunicações e das trocas, nos equi-
pamentos públicos e serviços, na tipologia dos lu-
gares urbanos, nas atitudes em relação à natureza
e ao patrimônio etc. Surgiram inovações de grande
importância na vida urbana, tais como o vídeo, o
celular, os computadores pessoais e a internet. A
generalização do segundo automóvel e do TGV
(trem de grande velocidade) contribuíram igual-
mente para a modificação profunda do território.
lVIas essas mudanças apenas começaram. Existem
tendências substanciais a caminho, levadas a cabo serviços de altíssimo nível, um grande número de
e determinadas pelo novo processo de moderniza- equipamentos e de infraestrutura, e boas conexões
ção. Trata-se de identificar essas tendências o mais internacionais. O emprego, o comércio, os equipa-
precisamente possível, não só para prever o futuro mentos de saúde, de educação, os culturais e de
ou decidir sobre ele, o que seria ilusório, mas tam- lazer das grandes aglomerações atraem igualmente
bém para avaliar o impacto que possam ter sobre a população mais qualificada.
as cidades e as formas de vida urbana e elaborar A metropolização, como ocorreu com o cres-
consequentemente instrumentos passíveis de aju- cimento das cidades, apoia-se no desenvolvimen-
62 dar a gerenciar da melhor forma possível essa evo- to dos meios de transporte de estocagem de bens, 63
lução estrutural. de informações e de pessoas (sistema bip) e nas
Cinco grandes mudanças parecem caracterizar tecnologias que potencializam seu rendimento.
a terceira revolução urbana moderna: a metapo- Assim, a velocidade de deslocamento das pessoas
lização, a transformação dos sistemas urbanos de nas cidades europeias aumentou 30% em quinze
mobilidade, a formação do espaço-tempo indivi- anos, enquanto ao mesmo tempo se desenvol-
dual, a redefinição das relações entre interesses viam o telefone celular e o uso da internet, os
individuais, coletivos e gerais, e as novas relações C D s e as transmissões via satélite, e ainda gene-
de risco. ralizava-se o uso dos congeladores e dos fornos de
micro-ondas. Esses meios de transporte e esto-
,. A metapolização: as cidades mudam de cagem, eficazes e cada vez mais individualizados,
escala e de forma conferem formas novas às aglomerações urbanas.
Dessa forma, constituem-se "metápoles", ou seja,
A metapolização é um duplo processo de metro- vastas conurbações, extensas e descontínuas, he-
polização e de formação de novos tipos de territórios terogêneas e multipolarizadas,
urbanos, as metápoles. O processo de urbanização e crescimento das
Podemos definir a metropolização como a busca cidades, que acompanhou as duas primeiras fases
da concentração de riquezas humanas ,e materiais da modernização e lhes serviu de ponto de apoio,
nas aglomerações mais importantes. É um proces- se mantém, porém, sob novas formas. O cresci-
so constatado em todos os países em desenvolvi- mento interno das aglomerações, por extensão à
mento, mesmo assumindo formas diversas com periferia imediata e por adensamento, é substi-
especificidades regionais e nacionais; resulta prin- tuído por um crescimento externo, ou seja, pela
cipalmente da globalização e do aprofundamento absorção, na sua própria zona de funcionamento
da divisão do trabalho em escala mundial, que tor- cotidiano, de cidades, bairros e aglomerações cada
nam necessárias e mais competitivas as aglome- vez mais distantes, Os limites e as diferenças fí-
rações urbanas capazes de oferecer um mercado sicas e sociais entre cidade e campo tornam-se
de trabalho amplo e diversificado, a presença de cada vez mais tênues. A dilatação dos territórios
urbanos frequentados habitualmente pelos cida- locais são cada vez mais numerosas e a relação
dãos enfraquece a importância da proximidade na entre territórios "locais" com o "global" explicita e
vida cotidiana: o bairro deixa de ser o lugar de in- amplia as diferenças. Essa dupla dinâmica ele ho-
tegração das relações de amizade, familiares, pro- mogeneização e diferenciação constitui o marco
fissionais, cívicas; os vizinhos imediatos não são das políticas de desenvolvimento local e abre um
mais necessariamente os amigos, ou parentes, ou campo de debate, de troca, de parceria entre os
colegas, salvo nos guetos de ricos e pobres. O local atores econômicos móveis e locais. A globalização
muda de natureza e sentido: ele é cada vez mais estimula o local, porque é dentro dele que ela se
64 escolhido e apenas contempla realidades sociais confronta e toma vida. E é, em última instância, a 65
fragmentárias. De foto, mesmo os habitantes das diversidade entre territórios que estimula o movi-
cidades privadas norte-americanas (gatecl comnm- mento de pessoas, bens, capitais e informações.
11ities ou condomínios fechados) vivem na escala
metapolitana: eles se deslocam bastante, cotidía- 2.A transformação do sistema de mobilidade
namente e cada vez para mais longe. urbana
As formas metapolitanas, muito ligadas aos
meios de transporte e de comunicação, impri- A globalização e a metapolização se nutrem
mem suas marcas progressivamente sobre todo das tecnologias de transporte e de comunicação,
o territõrio, tanto nas zonas das grandes cidades e estimulam seu desenvolvimento. Porém, con-
quanto nas cidades médias. As estruturas das re- trariamente ao que se teme ou se espera, essas
des de transporte rápido (em lwbs e spohes, ou tecnologias não abalam a concentração metropo-
seja, polos e conexões radiais) marcam cada vez litana, nem substituem as cidades reais por outras
mais os sistemas e redes urbanas. As cidades virtuais. O uso das TICs não substitui em absolu-
pequenas e médias se esforçam assim em se co- to os transportes: o presencial, os contatos diretos
nectar da melhor forma possível às maiores aglo- continuam sendo meios de comunicação privi-
merações, para se beneficiar ao máximo da sua legiados; a acessibilidade Física e a possibilidade
urbanidade (do seu potencial). do encontro são mais do que nunca as principais
A metapolização, como a globalização, induz riquezas das zonas urbanas. Exemplo disso é a rá-
a um duplo processo de homogeneização e de di- pida valorização imobiliária que ocorre próximo 1s
ferenciação: homogeneização, porque os mesmos infraestruturas de transportes, assim como a con
atores econômicos ou o mesmo tipo de atores eco- centração espacial das atividades corporativas, do
nômicos estão presentes com as mesmas lógicas comércio e das atividades de lazer. De certa forma,
em todos os países e em todas as cidades; dife- assistimos a um paradoxo: o desenvolvimento das
renciação, porque a competição entre cidades se telecomunicações banaliza e acaba por desvalori-
amplia e se aprofunda, acentuando a importância zar tudo que é audiovisual - que se midiatiza e se
das diferenças. As escolhas ao alcance dos atores estoca facilmente - e valoriza econômica e simbo-
licamente o que (ainda?) não se telecomunica, o comerciais, shmvrooms, objetos passíveis de ser to-
''direto", as sensações táteis, olfativas, gustativas, os cados, grandes feiras onde se pode experimentar
eventos, as festas ... O boom das atividades esporti* produtos e materiais, inclusive aprender a usá-los.
vas e gastronômicas de lazer, o sucesso das salas de O uso dos meios de transportes rápidos e as
cinema multiplex, a crescente mobilidade ligada T I C s afetam também os antigos sistemas de centra-
aos encontros familiares e amistosos, a importân* lidade e as organizações urbanas radioconcêntricas.
eia dos grandes eventos esportivos e festivais são O centro geométrico das cidades deLxa de ser o lu-
índices da importância renovada do presencial e gar mais acessível, principalmente para os cidadãos
66 da experiência direta na vida urbana. que dispõem de automóvel. Assistimos assim, espe- 67
Entretanto, as telecomunicações contribuem cialmente no campo comercial, a uma multiplica-
para uma transformação do sistema de mobilidade ção das polarizações.
urbana, de bens de informações e de pessoas, bem A terceira revolução urbana não gera, portanto,
como para novas estruturações espaciais. Assim, o uma cidade virtual, imóvel e introvertida, mas sim
comércio eletrônico substitui parte da mobilidade uma cidade que se move e se telecomunica, consti-
dos consumidores pelo transporte de informações tuída de novas decisões de deslocamento das pesso-
via internet e pelo deslocamento comercial e pro- as, bens e informações, animada pelos eventos que
fissional do entregador. Isto pode acarretar modi- exigem a copresença, e na qual a qualidade dos lu-
ficações importantes na localização de uma parte gares mobilizará todos os sentidos, inclusive o toque,
do comércio, já que os bens de consumo não pre- o gosto, o cheiro.
cisam estar disponíveis nos centros comerciais de
aluguéis caros, mas sim em entrepostos próximos 3. A recomposição social das cidades
a plataformas logísticas. A importância dos fluxos
de entrega modificará igualmente os problemas e A individualização do espaço-tempo
as modalidades de gestão da circulação urbana e A maior individualização pressupõe mudanças
dos estacionamentos, favorecendo particularmen- na maneira como os cidadãos organizam seu terri
te o desenvolvimento dos sistemas de lç, calização e tório e emprego do tempo. Eles se esforçam para
de monitoramento via satélite, Porém, o comércio controlar individualmente seu "espaço-tempo" e,
eletrônico não substitui o comércio "tradicional", para tanto, utilizam mais intensivamente todos os
ele o recompõe. O crescimento do consumo pros- instrumentos e tecnologias que aumentam sua au-
segue paralelo ao e-commerce. Entretanto, a atra- tonomia, que abrem a possibilidade ele se deslocar
tividade das lojas se estabelece em novos termos: e de se comunicar ela forma mais livre possível. O s
os consumidores devem poder encontrar produtos, meios de transporte individuais (automóvel, mo-
informações e experimentar sensações que o co- tos, bicicletas, patinetes etc.) expressam, cada um
mércio eletrônico não proporciona. Isto explica o à sua maneira, essa crescente exigência de auto-
desenvolvimento do "comércio de lazer", eventos nomia e velocidade. O s objetos portáteis e, antes
de tudo, o celular, são testemunhas dessa busca locamento e "substituição". O sucesso da dupla
do "onde quero, quando quero, como quero". Esta micro-ondas/congelador evocado anteriormente
exigência de autonomia torna-se assim uma obri- ilustra bem: favorece a autonomia alimentar dos
gação, na medida em que a sociedade se organiza indivíduos e ao mesmo tempo torna possível refei-
baseada nessa individualização. A história recente ções coletivas de pratos individuais diferentes. É
do celular indica: pouco a pouco, tomou-se in- o instrumento por excelência da família contem-
dispensável na inserção na vida urbana, e mesmo porânea na qual os indivíduos se esforçam "em
aqueles que resistiram a tê-lo são obrigados, em ser livres, juntos". O telefone celular é, ao mesmo
68 algum momento, a adquirir um. A flexibilidade e a tempo, instrumento de conexão e deslocamento: 69
personalização crescentes de horários de trabalho permite, por exemplo, a organização rápida e de
ilustram igualmente o modo em que a sociedade última hora de organização das raves.
se organiza hoje, fundamentada na individualiza- A preocupação de poder escolher o lugar e
ção crescente, inclusive para maximizar os resul- o momento da sua atividade é, ao mesmo tempo,
tados econômicos. uma resposta à incerteza de uma vida cotidiana
O desenvolvimento dos meios de transporte menos rotineira, composta de minieventos, e ainda
e das telecomunicações abre para cada indivíduo um fator de desmontagem da rotinização e de au-
equivalências e vínculos diretos entre espaço e mento das incertezas. A flexibilidade toma-se uma
tempo: as distâncias físicas não se traduzem mais noção-chave dentro e fora do trabalho, pois permite
em tempos fixos de deslocamentos, mas mudam a adaptação a um contexto mais variado e de cir-
conforme os modos de transporte e comunicação cunstâncias menos previsíveis.
e segundo as horas; os cidadãos podem cada vez Isto conduz a uma crise dos antigos modos de
mais escolher o lugar e a hora da sua atividade; regulação. A sirene da fábrica, o sino da igreja, o si-
podem também arbitrar entre uma mudança de nal da escola já não marcam o ritmo da vida urbana
local (um deslocamento) e uma mudança tem- e o serviço de trânsito se revela cada vez mais inca-
poral (uma dessincronização). De fato, as ferra- paz de prever as horas ou os dias de congestiona-
mentas, técnicas e modalidades que permitem mento. O horário comercial se amplia para permitir
modificar o tempo e o lugar das ativÍdades indi- a todos aceder a ele a qualquer momento, enquanto
viduais e coletivas constituem um dos principais em alguns países, as cidades e diversos atores so-
traços da nova revolução urbana moderna. O uso ciais buscam estabelecer novos dispositivos para as-
do correio eletrônico ilustra perfeitamente essa segurar a todos o acesso à cidade e a seus serviços:
evolução, pois permite a transmissão acelerada conciliação de horários, planos diretores temporais,
de informações e sua gestão coordenada a partir centros comerciais e de serviços 24 horas. A socie-
de qualquer lugar conectável. dade promove igualmente vários eventos gue têm o
Todas essas técnicas são, por sua vez, técnicas mérito de permitir "relocalizações" e ressincroniza-
de dessincronização e ressincronização, de des- ções coletivas, da escala do bairro à do planeta, do
almoço anual entre vizinhos aos torneios esportivos que não dispõem de transporte individual, par-
mundiais, passando por festivais, feiras, colóquios e ticularmente do automóvel, tornam-se deficien-
congressos etc. tes, pois a cidade lhes é menos acessível com o
transporte coletivo clássico, embora ela lhes seja
Novos tipos de serviços públicos cada vez mais indispensável. Com a diminuição
A individualização da vida urbana provoca das necessidades de mobilidade, decorrente do
também uma crise na concepção e funciona- retomo aos centros antigos pela maioria da po-
mento dos equipamentos e dos serviços públicos. pulação, é preciso desenvolver serviços públicos
70 Da mesma forma que os produtores privados de transporte mais individualizados, atendendo 71
enfrentam uma segmentação fina e flutuante do o conjunto dos territórios metapolitanos, combi-
mercado, que obriga o desenvolvimento de um nando diversos modos de transporte e utilizando
marketing personalizado, os serviços públicos, as possibilidades que oferecem as TICs, de modo
tradicionalmente concebidos para servir a todos, a aproximar-se de um serviço "porta a porta", guc
devem responder à Falta de atualização de seus seria, em relação ao transporte, o mesmo que o
equipamentos e prestações ante a diversificação one-lo-one é para o marketing.
das necessidades sociais. O caso dos transportes A autonomia crescente dos indivíduos é redo-
públicos ilustra particularmente essa crise e a brada pelo aumento da sua dependência ante os
necessidade de desenvolver novas concepções. sistemas técnicos cada vez mais elaborados e so-
Nas metápoles, com efeito, os cidadãos se des- cializados. Os mínimos atos cotidianos dependem
locam cada vez mais em todas as direções, a toda assim de dispositivos complexos, geralmente de
hora do dia e da noite, de formas diferenciadas e mercado. Estes constituem-se, de fato, nos pon-
mutantes a cada dia ou temporada. Os desloca- tos de apoio para desigualdades sociais, visto que
mentos pendulares domicílio-trabalho, tornaram- as multiplicam, criando novas desvantagens. As
se minoritários, assim como os deslocamentos dificuldades econômicas e/ou culturais de certos
concêntricos. De fato, os transportes públicos, grupos sociais ou etários, que se utilizam desses
trens, bondes, ônibus clássicos foram concebi- instrumentos, são fatores de desigualdade que tor-
dos segundo o modelo fordista, base do em um nam mais importante o desenvolvimento de novos
princípio de repetição, de produção em massa e tipos de serviços públicos adaptados às cidades da
de economias de escala: o mesmo transporte, no terceira revolução urbana.
mesmo itinerário, para todos, simultaneamente. A complexidade das práticas sociais e das ne-
Este tipo de transporte continua sendo eficien- cessidades, e, ainda, a indispensável individualiza-
te, inclusive do ponto de vista ecológico, nas zo- ção do fornecimento tomam igualmente necessá-
nas densas e nos grandes eixos. Porém, isso só rio recorrer a princípios de equidade mais do que
representa uma parte minoritária e decrescente de igualdade, quando da criação desses serviços e
dos transportes. Os habitantes das metápoles do seu correspondente financiamento.
4. A redefinição das relações entre interesses ção), não é mais viável a médio prazo, na forma
individuais, coletivos e gerais atual. Em uma sociedade de n dimensões e em
territórios que mudam de tamanho e de natureza,
A diversificação dos interesses individuais conforme as práticas e as mobilidades individuais,
e coletivos torna-se necessário elaborar dispositivos de âmbi-
A terceíra fase de modernização caracteriza-se to estatal com escalas relativamente flexíveis, fun-
notadamente pela existência de vínculos sociais damentadas mais fortemente sobre o princípio da
mais "frágeis", menos estáveis, porém muito mais subsidiaridade, permitindo mecanismos ele con-
72 numerosos, variados, conectados nas múltiplas re- sulta à população e aos atores de forma continu- 73
des da sociedade hipertexto. Nesse contexto, os gru- ada e diversa. A democracia eletrônica apresenta
pos sociais, entendidos como grupos de pertinência, perigos, pois não deixa muito tempo para reflexão
cujos membros compartilham de forma duradoura e debate, porém também abre outrns possibilida-
um grande número de características (renda, cul- des de enfrentar novos desafios da democracia.
tura, nível de formação etc.) tendem a perder sua Em segundo lugar, a dinámica da sociedade
importância objetiva e subjetivamente. Os indiví- hipertexto obriga a renovação profunda das moda-
duos já não têm a sensação de compartilhar com lidades de definição dos interesses coletivos e de
outros indivíduos um grande número de interesses construção pública das decisões, tratando-se des-
comuns, em diversos campos. Isto complica pro- de o interesse geral à francesa ou mesmo do inte-
fundamente o funcionamento da democracia re- resse comum anglo-saxão, O chamado "nimbismo"
presentativa que está precisamente fundamentada (not in 111)' backyard, ou seja, não no meu quintal)
na capacidade de representar um grupo de eleitores e o desenvolvimento do contencioso no domínio
entre duas eleições. Isto abala também aquelas or- do planejamento refletem a crise da legitimidade
ganizações que pretendem integrar posições sobre pública, a diversificação e a instabilidade dos inte-
os mais diversos assuntos em um mesmo conjun- resses coletivos.
to ideológico ou programático. Esta evolução tem Em terceiro lugar, finalmente, assistimos
múltiplas consequências que conformqm a terceira à emergência de problemas ligados ao desen-
revolução urbana moderna. volvimento de novas formas de segregação so-
Em primeiro lugar, ela torna necessária uma cial. Estas são produzidas por diversos fatores.
refundação da arquitetura institucional territorial Primeiramente, existe uma tendência de forma-
e uma renovação das modalidades de funciona- ção de guetos de pobres, nos quais se agrupam,
mento da democracia, em geral, e da democracia através de diferentes mecanismos econômicos,
local, em particular. O encaixe de diversos níveis, sociais e políticos, populações excluídas do desen-
assumindo o princípio de encai.xe das bonecas rus- volvimento econômico, ou seja, rejeitadas pelas
sas (do bairro ao continente europeu, passando mudanças sociotécnicas. O desenvolvimento dos
pelo município, aglomeração, estado, região, na- meios de transporte oferece novas possibilidades
de escolha das localizações residenciais, provo- claro que a democracia será tão mais eficaz, quan-
cando agrupamentos de população em bases gue to mais estiver em consonância com as estruturas,
podem ameaçar a coesão social e urbana. Assiste- os modos de funcionamento, os tipos de represen-
se, assim, em certos países, à formação de bairros rnção característicos da sociedade hipertexto. lsto
privados cercados de muros. Essas tendências implica uma democracia mais de procedimentos,
à fragmentação social e ao fechamento espacial mais reflexiva e mais "compreensiva", isto é, que
se somam à tentação de ruptura do pacto social considere um formato onde os próprios indivíduos
e dos vínculos de solidariedade local e nacional. representam suas situações, seus comportamen-
74 Esse movimento é acompanhado, em todo lugar, tos, suas ações. O lugar que o debate eleve assumir, 75

particularmente nos Estados Unidos, de uma re- não só na vida política, mas no funcionamento
cusa mais ex-plícita em pagar ímpostos locais, sob dos aparelhos públicos e estatais, não questiona
o pretexto de que esses bairros poderiam tornar- a democracia representativa, as regras majoritá-
se progressivamente autossuficientes. Por fim, um rias e a responsabilidade dos políticos. Mas esta
terceiro processo contribui, de certa forma, para a democracia "moderna avançada" deve ser mais
segregação social: trata-se do aumento da veloci- deliberativa, pois em uma sociedade hipertexto
dade de deslocamento. Uma mesma "força segre- complexa e não program<-ivel, não só a maioria elos
gadora" diferencia socialmente o espaço, no plano problemas a resolver são imprevisíveis e não cons-
do edifício, em uma cidade onde nos deslocamos a tituem objeto de um mandato dos eleitores, mas
pé a seis quilômetros por hora; no plano do bairro, também as maiorias estáveis sobre várias guestões
em uma cidade onde nos deslocamos de ônibus tomam-se raras, enquanto as minorias variáveis
ou bonde a vinte quilômetros por hora; e no plano se agregam de maneira aleatória, conforme as cir-
do município, nas cidades onde o deslocamento é cunstâncias. O político deve considerar que a ação
feito por automóvel a cinquenta quilômetros por pública se constrói no âmbito local, atualmente,
hora. De fato, o aumento de velocidade dos deslo- muito mais através da dinâmica dos projetos elo
camentos leva a repensar as questões de mistura e que pela implementação de um programa, muito
de diversidade nas cidades contempor:âneas. mais por soluções ad 110c do que pela aplicação
de normas, mais através de consensos parciais do
Uma democracia de procedimentos e que por grandes acordos globais. Ainda assim, as
deliberativa, uma solidariedade mais reflexiva regras gerais e as responsabilidades dos políticos
O desafio que se coloca para a sociedade mo- não devem ser desagregadoras, mesmo quando
derna avançada é o da renovação dos conceitos houver desacordos explícitos em questões impor-
e das modalidades do político e da política, e da tantes ou tiverem fracassado todas as tentativas de
construção das decisões públicas, particularmen- se produzir um grande consenso. A legitimidade
te no campo das políticas urbanas. Aqui não é o de uma decisão pública e sua eficácia são maiores,
lugar para discutir propostas concretas, mas fica na medida em que tenha sido elaborada através
de um processo que reúna os protagonistas em que segue modificando as relações da sociedade e
torno de um projeto comum. Este suplemento de dos indivíduos, ante o acaso e os perigos que as
legitimidade, trazido pelo processo de negociação, transformam em riscos. A sociedade moderna tem
é particularmente necessário em uma sociedade como característica típica o esforço para controlar
onde as referências e códigos proliferam. É a van- o futuro e, para tanto, busca conhecer e medir as
tagem definitiva de uma governança interativa em probabilidades de acontecer tal ou qual problema
relação aos métodos tradicionais de governo. para prever possíveis soluções. O risco, caracterís-
As reivindicações de classe, assim como o tico da modernidade, invade as práticas sociais e dá
76 individualismo tal como se institucionaliza atu- lugar a uma "sociedade do risco": tanto os indivídu- 77
almente, não devem ser consideradas como ego- os quanto os atores econômicos e sociais Fazem do
ísmo, mas como expressão de novas estruturas risco uma questão-chave e permanente da sua vida
sociais que necessitam redefinir as noções de so- e de suas ações.
lidariedade e de responsabilidade. Então, em vez O paradoxo da modernização é que o desen
de se falar de um declínio da moral, deve-se vis- volvimento do conhecimento e da técnica, bem
lumbrar, com essa modernidade avançada, uma como a circulação acelerada e expandida das in-
"transição moral'' que conduza à emancipação dos formações, aumentam os riscos: o progresso da
indivíduos ante as obrigações impostas por regras ciência traz consigo a emergência constante de
usuperiores" e em relação às definições normativas novos riscos relacionados à poluição, às emissões
do valor das condutas, que fundamentam o res do gás carbônico na atmosfera, ao uso dos siste-
peito às regras, aos códigos e aos valores coletivos, mas de refrigeração etc. O avanço da informação
e a uma consciência reflexiva com sua real neces- trouxe também a imediata difusão dos aconte-
sidade para a sociedade. É evidente, no entanto, cimentos, contribuindo para a imagem de um
que todos os problemas não poderão ser resolvi- mundo urbano pleno de perigos. i'vlas o aumento
dos pelo debate e, inclusive, para alguns deles, os do risco não se traduz necessariamente no sen-
conflitos serão inevitáveis e até necessários. timento de que a sociedade está mais perigosa.
Pois, de um lado, as necessidades de segurança
As cidades de todos os riscos aumentam e, de outro, certas incertezas aumen-
Se, como afirmava o ditado medieval "o ar da ci- tam efetivamente. O progresso da técnica é uma
dade liberta", a contrapartida é que a cidade é tam- faca de dois gumes: abre novas possibilidades,
bém local de todo perigo, físico e moral. De fato, as mas também aumenta os estragos que pode pro-
cidades Foram sempre ambivalentes, do ponto de vocar. Além disso, a sociedade hipertexto emer-
vista da segurança, garantindo proteções diversas, gente tem dificuldade em achar novas formas de
mas suscitando igualmente toda sorte de perigos. regulação, assiste se assim, em muitos países, a
Essa dupla natureza da cidade pode ser constata- um aumento da "violência urbana" e delitos de
da, atualmente, pela dinâmica da modernização toda ordem.
Essa nova relação com os riscos, com a incer- Risco e princípio de precaução constituem, as-
teza e com o futuro constitui, em grande parte, o sim, elementos determinantes do contexto no qual
sucesso das questões referentes ao desenvolvimen- atuam hoje o poder público, os urbanistas, os pla-
to sustentável, afinal, em simultâneo, a busca do nejadores e todos os atores privados e associativos
processo de modernização segue transformando a implicados na produção e gestão das cidades.
relação da sociedade com a natureza. Hoje a "natu-
reza" é vivenciada como algo inserido no social, que
supõe decisões de controle e proteção. A noção de
78 "patrimônio natural" exprime uma atitude profunda- 79

mente moderna de apropriação da natureza pelas


sociedades humanas.
O aumento do risco na sociedade, isto é, apre-
ocupação crescente com a segurança física, econô-
mica, social, familiar, resulta das incertezas de toda
ordem, bem como da ambição crescente de realiza-
ção de projetos, de implantação de estratégias, de
controle do futuro. Por isso, atores sociais e econô-
micos estão cada vez mais à procura de tudo que
possa garantir, assegurar, produzir confiança. Nesse
quadro, deve ser entendido o "princfpio de precau-
ção", tão difundido a ponto de dificultar a sua apli-
cação. O princípio de precaução surge, com efeito,
quando há incerteza sobre as consequências de
uma decisão, seja porque não se pode conhecê-las
ou mensurá-las, seja porque não existe consenso a
respeito entre os especialistas. Quando 9s impactos
são conhecidos ou previsíveis, o princípio de pre-
caução já não é necessário, porque nos encontramos
no âmbito de um exercício normal da escolha e da
responsabilidade. E não se deve confundir o fato de
ser precavido com o "princípio da precaução", Este
último remete especificamente aos procedimentos
a ser tomados quando não se sabe: desloca para o
político o peso da decisão, da medida suspensiva ou
dilatória, ou a tomada de risco.
capítulo 4
OS PRINCÍPIOS DE Ul\·I NOVO URBANISi\--10

A terceira revolução urbana moderna, que se es-


boça com a nova fase de modernização das socie-
dades ocidentais, produz mudanças profundas nas
formas de concepção, implementação e gestão das
cidades. A evolução das necessidades, das formas
de pensar e agir, dos vínculos sociais, o desenvolvi-
mento de novas ciências e tecnologias, a mudança
da natureza e de escala dos desafios coletivos, dão
lugar, progressivamente, a um novo urbanismo que
denominaremos neourbanismo para distingui-lo
do paleourbanismo da primeira revolução urbana
moderna e do próprio urbanismo, conceito inven-
tado durante a segunda revolução moderna.
As categorias que antes estavam contidas na
própria concepção das cidades devem assim ser
revisitadas para questionamento e atualização. O
que acontece hoje em dia com a noção de limite
e como conceber espaços, quando os conceitos de
cidade e campo, público e privado, interior e exte-
rior, estão completamente revoltos? O que ocorre
com as noções de distância, de continuidade, de
densidade, de diversidade, de mistura, quando a
velocidade de deslocamento dos bens, de informa-
ções e de pessoas aumenta de maneira considerá-
vel? O que sucede com os equipamentos coletivos
e serviços urbanos em uma sociedade de práticas
e de necessidades cada vez mais variadas e indivi-
dualizadas? Como decidir e agir para o bem da co- de aberta democrática e marcada pela aceleração
letividade em uma sociedade mutante e diversifi- da nova economia. Articula de forma inovadora as
cada? Como pensar e criar cidades que funcionem, oscilações, o curto e o longo prazo, a pequena e
atrativas e justas, em um contexto da sociedade a grande escala, os interesses gerais e particula-
hipertexto e do capitalismo cognitivo? res. É, ao mesmo tempo, estratégico, pragmático e
São essas questões que propomos responder iden- com senso de oportunidade.
tificando alguns desafios essenciais, esboçando a for- A noção moderna de projeto está mais do que
ma a que um novo urbanismo poderia corresponder. nunca no cerne do urbanismo. lVIas o projeto não
82 é somente um desígnio acompanhado de um de- 83
1.Elaborar e manejar projetos urbanos senho. É também um instrumento cuja elabora
em um conte.xto incerto ção, expressão, desenvolvimento e execução re-
velam as potencialidades e as limitações que são
D o planejamento urbano à gestão 1 urbana impostas pela sociedade, pelos atores envolvidos,
estratégica ,. pelos lugares, circunstâncias e acontecimentos.
O urbanismo moderno definia um programa de O projeto é simultaneamente urna ferramenta de
longo prazo para as cidades aplicando os princípios análise e negociação.
de organização espacial (sob a forma de planos di- O neourbanismo derruba assim a antiga cronolo-
retores, por exemplo), depois decorriam planos de gia que encadeava o diagnóstico, a identificação das
urbanismo visando o enquadramento da realidade necessidades e a elaboração eventual dos cenários,
futura em um quadro predefinido. Os planos e os a definição de programa, o projeto, a realização e a
esquemas eram destinados a controlar o futuro, a re- gestão. Ele substitui essa linearidade por uma ges-
duzir a incerteza, a realizar um projeto de conjunto. tão heurística\ iterativa\ incremental 5 e recorrente6,
O neourbanismo se apoia em atitudes mais isto é, através de ações que servem simultaneamente
reflexivas, adaptadas a uma sociedade complexa para elaborar e provar hipóteses, com realizações par-
e a um futuro incerto. Elabora múltiplos projetos ciais que reinfonnam o projeto e permitem procedi-
de natureza variada, esforça-se por torpá-los coe- mentos mais cautelosos e duráveis, pelas avaliações
rentes, constrói uma gestão estratégica para sua que integram o feedbacJl; e que se traduzem na rede-
implementação conjunta, leva em consideração, finição dos elementos estratégicos.
na prática dos desdobramentos que ocorrem, a O planejamento estratégico urbano não é um
evolução prevista, as mudanças que decorrem, re- urbanismo leviano com ideias sem valor; ele se
visando, se necessário, os objetivos definidos ou os opõe às teses espontaneístas, postulados do caos
meios estabelecidos previamente para a sua pró- criativo, ideologias simplistas do liberalismo de
pria realização. Torna-se uma gestão estratégica mercado. fVIas esforça-se em explorar os aconteci-
urbana que constitui a dificuldade crescente de mentos e as mais diversas forças de maneira positi-
reduzir as incertezas e o aleatório de uma socieda- va, em relação aos seus objetivos estratégicos.
2. Priorizar os objetivos em relação aos meios técnicas e profissionais muito mais elaboradas.
São necessárias não só novas capacidades para
Das regras de exigências às regras de resultado8 definir projetos de maneira mais essencial e es-
O urbanismo moderno assegurava a realização tratégica, mas também conhecimento e ferra-
dos seus projetos através de regras simples, impe- mentas para integrar as lógicas dos atores, avaliar
rativas e estáveis: zoneamento, funções, densida- suas propostas, julgar sua adequação em relação
des, gabaritos etc. As regras eram exigentes, isto é, aos objetivos e sua eficiência para a coletividade,
fixavam, ao mesmo tempo, os objetivos e a manei- identificando e avaliando seus possíveis efeitos.
84 ra de atingi-los. Esse urbanismo é também muito mais criativo, 85
O neourbanisrno privilegia os objetivos, os pois mobiliza inteligências variadas e múltiplas
resultados a ser obtidos, e incentiva os atores pú- lógicas, particularmente aquelas dos atores que
blicos e privados a encontrar modalidades de re- realizam operações urbanas.
alização desses objetivos, os mais eficientes para
a coletividade e para o conjunto de agentes. Isto 3. Integrar os novos modelos de resultado
demanda novos tipos de formulação de projetos e
de regulamentação. Deve-se achar os meios para Da especialização espacial à complexidade da
qualificar e quantificar as características desejá- cidade de redes
veis de um lugar, seu ambiente, sua ambiência, O urbanismo moderno, muito marcado pelo
sua acessibilidade, seu nível de equipamentos pensamento taylorista e fordista, buscava resul-
coletivos e serviços urbanos. Este aumento de tados na economia de escala, na simplificação e
complexidade das normas toma-se particular- na repetição das funções urbanas destinadas a
mente necessário, pela diversidade crescente dos espaços específicos. O zoneamento e os grandes
territórios e das práticas urbanas, pelo aumento conjuntos habitacionais exprimiram fortemente
das exigências qualitativas, pela maior dificulda- essa lógica.
de de se aplicar decisões igualitárias, bem como O neourbanismo íntegra modelos novos de
pela necessidade de substituir estas últimas por produtividade e gestão, contribuições das ciências
enfoques mais sutis e menos estandardizados, administrativas, tecnologias da informação e comu-
fundados em princípios de equidade. Os planos nicação. Não busca simplificar realidades compli-
de urbanismo qualitativos inscrevem-se nessa cadas e se esforça, antes de tudo, em dar conta de
nova perspectiva de regras que privilegiam o pro- territórios e situações comple.xas. Sua performance
jeto mais do que os meios, inclusive dos pontos e sustentabilidade são obtidas pela variedade, flexi-
de vista arquitetônico e paisagístico. bilidade e capacidade de reação.
Esse urbanismo de resultados deve se esfor- As soluções únicas e monofuncionaís, frágeis
çar para produzir regras ao mesmo tempo incen- ou pouco adaptáveis, dão lugar a respostas multi-
tivadoras e limitantes. Isto requer competências funcionais e redundantes, capazes de fazer face à
evolução, à variedade das circunstâncias, às dis- O progresso das c1encrns e das técnicas, em di-
funções e às crises. Os resultados urbanos estão versos campos do urbanismo, tornará igualmente
mais fundamentados na articulação e coordenação necessária a renovação do perfil profissional dos
de potenciais variados do que na massificação. As tipos de dispositivos multidisciplinares permanen-
economias de variedade predominam sobre as eco- tes (serviços técnicos locais, agências de urbanis-
nomias de escala. mo, organismos de planejamento, escritórios de
Isto deve se traduzir por uma maior diversida- estudos multidisciplinares). O desafio consiste
de funcional das zonas urbanas, por uma multi- em assegurar simultaneamente a continuidade e a
86 centralidade, pela polivalência de uma parte dos capitalização das experiências e do conhecimento, 87
equipamentos e serviços, e pelo reforço do papel bem como o funcionamento através de projetos
dos transportes e das diversas redes que, mais do que permitam a incorporação de especialistas de
que nunca, asseguram a eficiência do conjunto alto nível.
dos sistemas urbanos metapolitanos. Os lugares
de conexão entre diferentes redes assumem uma + Adaptar as cidades às diferentes
importância crescente e transformam a intermo- necessidades
dalidade nos transportes em desafio-chave das
dinâmicas urbanas. Dos equipamentos coletivos aos
Os limites permanentes e não circunstanciais equipamentos e senriços individualizados
da economia de recursos não renováveis, de preser- O urbanismo moderno privilegiava as soluções
vação de patrimônios naturais e culturais, e de luta permanentes, coletivas e homogêneas, a fim de res-
contra o efeito estufa, criam igualmente exteriori- ponder às demandas da habitação, do urbanismo,
dades que modificam os cálculos econômicos e as do transporte, do lazer, do comércio. A produção
escolhas urbanas, que atuarão progressivamente so- em massa repetitiva do serviço permitia amortizar
bre as formas urbanas favorecendo uma reavaliação equipamentos custosos: o mesmo serviço para to-
de uso, uma reutilização mais intensiva de zonas já dos e, geralmente, de forma simultânea.
urbanizadas e um controle mais efetivo tjo consumo O neourbanismo e os serviços públicos urba-
do espaço. nos devem, hoje em dia, considerar o processo de
Os profissionais do urbanismo terão que de- individualização que marca a evolução da nossa
senvolver suas próprias práticas introduzindo no- sociedade. A diversificação das situações e das
vos modelos de resultados, bem como utilizar as necessidades torna assim necessárias uma maior
potencialidades das TICs nas suas próprias ativi- variedade e uma personalização das soluções. Esta
dades. Os bancos de dados urbanos, os modelos evolução não é nova: o banheiro público se tomou
de simulação e de visualização em três dimensões banheiro Familiar e individual; o relógio e o sino,
abrem, de fato, possibilidades consideráveis que antes equipamentos coletivos, viraram relógios in-
retroagem sobre o conteúdo dos próprios projetos. dividuais; o telefone passou igualmente de equipa-
mento coletivo a privado e, depois, com o celular, cipalmente ao "público" a responsabilidade pelos
a equipamento pessoal. espaços externos, grandes infraestruturas e equi-
Essa personalização dos serviços necessita de pamentos coletivos, e ao privado a responsabilida-
redes e de sistemas técnicos mais complexos que de pela superestrutura. Os limites e a definição de
recorram de modo determinante às novas tecno- público e privado diferem de um país para outro,
logias da informação e da comunicação. Todos os mas é esse mesmo modelo que estruturou global-
equipamentos coletivos tradicionais não se tor- mente as cidades ocidentais.
nam obsoletos {universidades, hospitais, estádios O neourbanismo se depara com a confusão des-
88 etc.), mas devem integrar de maneira nova esta se modelo. Um número crescente de infraestrutu- 89
noção de serviço individualizado e apoiar-se nas ras e equipamentos mistura intervenções públicas
técnicas avançadas de transporte e telecomunica- e privadas sob formas diversificadas de parcerias,
ção. Surgem assim novos dispositivos complexos, concessões e prestações cruzadas de serviços. Os
como, por exemplo, o sistema que associa, graças estatutos jurídicos e práticos dos espaços são cada
a um uso intensivo dos transportes e telecomuni- vez menos homogêneos e não abarcam mais a dis-
cações, centros hospitalares que reúnam todas as tinção entre acessos públicos e privados, acessos
especialidades com um alto grau de especializa* livres e reservados, interior e exterior, infraestrutura
ção, hospitais-dia, assistência em domicílio, servi- e superestrutura, serviços e equipamentos. As no-
ços de ambulatórios, centros de saúde e médicos vas tecnologias participam nessa recomposição: elas
de Família. No campo dos transportes, aparecem permitem, por exemplo, desassociar a produção, o
"centros de mobilidade", que coletam e colocam transporte e a distribuição dos diversos fluidos (água,
à disposição dos usuários informações em tem- eletricidade, telefone), minando os fundamentos
po real sobre o horário dos transportes coletivos, antigos das modalidades de exercício dos serviços
a disponibilidade dos táxis, dos transportes de públicos; tomam possíveis a modificação das tarifas
aluguel, dos estacionamentos, os problemas do e, em decorrência, a evolução da concepção e do
tráfego, as tarifas etc. Esses dispositivos abrem a financiamento da infraestrutura; enfim, através da
possibilidade de escolha aos indivíduqs e tornam internet, elas criam novos tipos de quase espaços
possíveis novos tipos de serviço adaptados a uma públicos "virtuais", que penetram no âmago de lares
grande variedade de situações. e empresas.
A sociedade hipertexto que separa os campos
5. Conceber os lugares em função das novas das práticas sociais mobiliza as TICs para viabilizar
práticas sociais a pertinência simultânea aos mais diversos tipos de
espaços: assim, o uso dos equipamentos individuais
Dos espaços simples aos espaços múltiplos portáteis permite desenvolver atividades de natu-
O urbanismo moderno desenvolveu a cidade reza diversa em um mesmo lugar: trabalhar dentro
baseada na repartição dominante, atribuindo prin- de um transporte, telecomunicar em pleno espaço
público etc. O neourbanismo deve-se esforçar em banismo com uma diversidade complexa de interes-
combinar essc1s possibilidades, cm conceber espa- ses e com uma complexidade de desafios que dificil-
ços múltiplos de n dimensões sociais e funcionais, mente podem se materializar em interesses coletivos
hiperespaços gue articulem o real e o virtual, pro- estáveis e aceitos por todos. Os políticos locais, o
pícios tanto à intimidade quanto às mais variadas Estado, os urbanistas, todos os especialistas podem,
sociabilidades. As novas tecnologias da informação assim, cada vez menos pretender fundamentar suas
e da comunicação imprimem igualmente, nas cida- ações e suas propostas no interesse geral ou comum,
des, a marca das suas estruturas e particularmente objetivo e único. Além disso, o desenvolvimento das
90 a distinção entre hardware e software. ciências e das técnicas só evidencia a grande comple- 91

A consideração das práticas urbanas conduz, xidade onde anteriormente havia problemas passíveis
por fim, os mentores à integração progressiva dos de solução: a experiência que Fundamentava as dcci
limites da exploração e gestão de espaços e equipa- sões qualificadas pelo interesse geral foi substituída
mentos urbanos. Isto contribui para a redefinição pela controvérsia entre especialistas, o que remete as
das fronteiras e das modalidades de exercício dos decisões a espinhosos princípios de precaução. Uma
diversos campos do urbanismo, pois este deve inte- decisão só pode ser entendida como sendo de interes-
grar mais diretamente as exigências da gestão futura se geral ou comum através de sua substância objetiva.
dos espaços que ele ajuda a produzir. É o modo, o procedimento como ela foi elaborada
e eventualmente construída pelos atores envolvidos,
6. Agir em uma sociedade fortemente que lhe confere, in fine, seu caráter de interesse geral.
diferenciada As divergências e conflitos se resolvem assim menos
pelas maiorias, pois elas são circunstanciais, e mais
Do interesse geral substancial ao interesse por compromissos que pennitem tralar uma varieda-
geral modulado' de de situações coletivas.
O urbanismo moderno foi construído em con- Os procedimentos de identificação e formula-
cepções substanciais de interesse geral ou de inte- ção dos problemas, de negociação das condições,
resse comum. Deve-se entender que, a ravés desse assumem uma importância crescente e decisiva. A
ponto de vista, as decisões públicas, os planos com participação - sob diversas formas - nesse processo,
suas regras e proibições, as realizações públicas, as desde o seu início, dos habitantes, usuários, vizi-
exceções ao direito de uso da propriedade (servi- nhos e todos os atores envolvidos, torna-se essen-
dão), as desapropriações, os impostos, eram legiti- cial. Não se trata somente de um debate entre opi-
mados pelos interesses coletivos admitidos como niões divergentes, de melhorar soluções propostas,
superiores aos interesses individuais. mas de construir o quadro de referência e a própria
A sociedade hiperte.xto, composta de multiper-. solução dos desafios.
tinências, de mobilidades e de territórios sociais e Esse enfoque modulado por procedimentos mo-
individuais de geometria variável, confronta o neour- difica a natureza da intervenção de especialistas e
profissionais, mais particularmente o trabalho dos no âmago de um sistema de atores, cujas lógicas
urbanistas. Estes devem inscrever sua intervenção são variadas e que funcionam em um meio cada
em processos de longa duração, que às vezes se ar- vez mais aberto. Para tanto, deve produzir qua-
ticulam mal com as lógicas do mercado e com as dros comuns de ação e regras do jogo que não se
mudanças políticas locais. Além disso, fica cada vez oponham às lógicas dos atores, mas as conciliem,
mais difícil associar as intervenções ao interesse ge- e as utilizem em proveito dos próprios projetos,
ral, conduzindo-os a colocar suas competências à produzindo sinergias'°; ainda arbitra quando situ-
disposição de diversos atores e grupos. Isto introduz ações parecerem nebulosas ou quando a autorre-
92 de forma nova as questões de ética e de deontologia gulação estiver falhando. 93
no campo profissional. O neourbanismo privilegia, portanto, a regu-
O neourbanismo privilegia a negociação e o lação em detrimento da administração. O poder
compromisso em relação à aplicação da regra majo- público se esforça, assim, para assegurar o Funcio-
ritária, o contrato em relação à lei, a solução ad !toe namento "regular" elos sistemas de atores urbanos,
em relação à norma. atuando de maneira a limitar as disfunções e as in-
coerências; impulsiona os enfoques modulados em
7. Requalificar a missão do poder público procedimentos que visam o interesse geral. Tanto
quanto possível, coordena a elaboração mais do que
Da administração à regulação elabora para aproveitar melhor a competência e o
O poder público administrou o urbanismo mo- conhecimento dos especialistas. Mas também con-
derno, isto é, assegurou a aplicação das leis, dos pla- trola, avalia, corrige, compensa e eventualmente
nos e das regulamentações, as missões de interes- aplica sanções. Isto demanda competências técni-
se geral e o bom andamento dos serviços urbanos. cas, sistemas de observação e bases de dados muito
Esta "administração'' era coerente com um urbanis- mais elaborados que os que estavam à disposição
mo que proibia e controlava tanto quanto projetava, das administrações, cuja atividade era muito mais
que aplicava princípios e soluções, e, para que isso normatizada e repetitiva. O neourbanismo supõe
acontecesse, mantinha uma tendência estrutural assim uma reformulação dos objetivos e dos servi-
de negar as especificidades das cidade , dos lugares dores públicos.
e das culturas, reduzindo-os a meros cenários.
O neourbanismo esforça-se em construir os 8. Responder à variedade de gostos
problemas caso a caso, e em elaborar respos- e demandas
tas específicas para cada situação. Acumula e
mobiliza a experiência, os saberes e as técnicas, De uma arquitetura funcional a um desenho
não para aplicar soluções repetitivas, mas para urbano atraente
aumentar suas possibilidades de adaptação aos O urbanismo moderno apoiou-se sobre uma
contextos particulares, mutantes, incertos. Atua arquitetura e formas urbanas que correspondiam à
sua ideologia funcionalista e esforçou-se por genera- de escolha, tornar poss1ve1s as mudanças na
lizü-las. Elaborou concepções globais da cidade, por escala metapolitana. De certa forma, confere
vezes totalitárias, não hesítando, em alguns casos, uma importância renovada à questão dos estilos
em fazer tábula rasa do passado ou em induzir que arquitetônicos, separando-os das questões de
isso ocorresse. Entretanto, desenvolveu também a funcionalidade e morfologia urbanas. Mas tam-
noção tipicamente moderna de "patrimônio", ccm- bém inscreve essas escolhas estéticas - quando
servando cidades que o precederam, vestígios, mo- afetam os espaços públicos - em procedimentos
numentos para a memória e elementos particulares no debate democrático, modificando a esfera de
94 de valor artístico. ação dos criadores e sua relação com o público e 95
O neourbanismo, por outro lado, admite a o político
complexidade e deve propor uma variedade de
formas e ambientes arquitetônicos e urbanos 9. Promover uma qualidade urbana nova
a uma sociedade cada vez mais diferenciada
na sua composição, nas suas práticas e gostos. Das funções simples a um urbanismo
Confrontado com uma cidade cada vez mais mó- multissensorial
vel, na qual os atores ampliam a sua capacidade O urbanismo moderno desenvolveu um Fun-
de escolha de localização, o neourbanismo deve cionalismo bastante elementar, tanto pela es-
seduzir. E'.sforça-se em propor um tipo de cidade colha das funções (trabalhar, morar, divertir-se,
à la carie, que oferece combinações variadas de abastecer-se, deslocar-se), quanto pela forma de
qualidades urbanas. Para tanto, não hesita em realizá-las.
utilizar as Formas antigas e os estilos vernaculares, O neourbanismo desenvolve um enfoque Fun-
tanto quanto os tipos modernos. Tendo rompido cional muito mais fino, considerando a complexi-
com as ideologias simplificadoras e totalitárias dade e a variedade das práticas urbanas, e respon-
cio progresso, acomoda-se na complexidade das dendo a elas através de soluções multiFuncionais.
cidades que herda e em que atua. Também pa- Enfrentando demandas cada vez mais elevadas, e
trimoniaHza cada vez mais o quadro construído múltiplas formas de concorrência entre espaços,
existente, seja museificando-o e inlegrando-o à tenta oferecer, em lugares públicos e espaços ex-
nova economia cultural e turística urbana, seja ternos, uma qualidade equivalente à dos espaços
reutilizando-o ou designando novos usos. O novo privados e de espaços internos. Leva em conta as
urbanismo tenta tanto quanto possível utilizar as dimensões multissensoriais do espaço e elaborn
dinâmicas do mercado para produzir ou conser- não somente o visível, mas também o sonoro, o tátil
var valores simbólicos da cidade antiga. e o olfativo. O desenho multissensorial das cidades
O novo urbanismo aproveita a variedade ar- permite criar ambientes diversificados, mais atra-
quitetônica e de formas urbanas para fabricar entes e mais confortáveis, inclusive pma pessoas
cidades diversificadas, ampliar as possibilidades portadoras de deficiências sensoriais e motoras.
10. Adaptar a democracia à terceira A governança urbana implica um enriqueci-
revolução urbana mento da democracia representativa, atrnvés de
novos procedimentos deliberativos e consultivos.
Do governo das cidades à governança São necessárias, ao mesmo tempo, a relação mais
metapolitana direta com os cidadãos e as formas democráticas
O urbanismo moderno necessitava de formas de representação na escala das metápoles, que
de governo municipais firmes, decididas e que representa a escala na qual devem ser tomadas
dispusessem de poderes fortes para ser c<1pazes as decisões urbanas estruturantes e estratégicas.
96 ni'io só de impor regras e de Fazê-las cumprir, Esta nivelação da democracia local é um dos ele- 97
mas também de estimular as transformações de mentos-chave do futuro das cidades e, mais am-
maneira espontânea. Essa autoridade apoiava- plamente, das sociedades ocidentais.
se em engrenagens sociais locais de todo tipo: O risco de que a maior autonomia dos indiví-
a escola, a igreja, o comércio local. Esse tipo de duos e a força crescente da economia de mercado
governo urbano esteve assegurado conforme o aumentem as desigualdades sociais existentes ou
país de origem. criem novas é, de fato, muito alto. E a democracia
O neourbanismo enfrenta grupos sociais di- de vizinhança sem a democracia metapolitana não
versificados, indivíduos de múltiplas origens, basta para que os cidadãos tenham consciência de
territórios social e espacialmente heterogêneos,. que seu futuro está interligado. Pelo contrário, o de-
uma viela associativa prolífera, porém, efêmera, bate democrático sobre o futuro e a gestão das metá-
o enfraquecimento dos mediadores locais encar- poles pode contribuir para o desenvolvimento dessa
nados pelos educadores, padres, comerciantes de solidariedade reflexiva, necessária a todas as escalas,
bairro, zeladores etc. Deve apoiar-se nas lógicas da mais local à mais global, dependendo dessas cir-
técnicas e econômicas privadas que diferem mui- cunstâncias o futuro das nossas sociedades.
to profundamente da cultura e lógica de operaçi'io Concluindo, para resumir e qualificar esse
pública. Necessita de novas formas de concep- neourbanismo que se esboça atualmente, ao menos
ção e realização das decisões públicas, permitin- no mundo ocidental, podemos dizer que é:
do consultar e associar habitantes, suários, vizi- • um urbanismo de dispositivos: trata-se menos de
nhos, atores, especialistas os mais variados, em fazer planos do que de aplicar dispositivos que os ela-
todo o processo de tomada de decisão. borem, discutam, negociem, que os façam evoluir;
O governo das cidades dá lugar, dessa forma, • um urbanismo reflexivo: a análise já não precede a
a uma governança urbana, que pode ser definida regra e o projeto, mas está presente permanentemen-
como um sistema de dispositivos e de formas de te. O conhecimento e a informação são produzidos
ação que associa às instituições alguns represen- antes, durante e depois da ação. Heciprocamente, o
tantes da sociedade civil, a fim de elaborar e im- projeto torna-se, plenamente, um instrumento de
plementar as políticas e as decisões públicas. conhecimento e de negociação;
• um urbanismo de precaução, que dá lugar às notas / bibliografia
controvérsias e que permite meios de conside-
rar as externalidades e exigências do desenvolvi-
mento sustentável;
• um urbanismo convergente: a concepção e a re-
alização dos projetos resultam da intervenção de
uma multiplicidade de atores com lógicas diferen-
ciadas e combinadas entre si;
98 • um urbanismo reativo, flexível, negociado, em sin- Introdução
tonia com as dinâmicas da sociedade; 1. N T - No caso francês.
• um urbanismo multifacetado, composto de ele- Capitulo 3
mentos híbridos, soluções múltiplas, redundân- 1. O nO'vU urbanismo norte-americano remete a três tipos de práti-
cias, diferenças; cas: um estilo estético, desenho urbano e modos de urbanização. A
• um urbanismo estilisticamente aberto que, ao estética proposta é a de uma arquitetur.i de tipo contextual amiüde
separar o desenho urbano das ideologias urba- pastiche e /Utscli; o desenho urbano privilegia um urbanismo de ruas,
nísticas e político-culturais, dá lugar a escolhas de espaços püblicos, de densidades elevadas; o modo de urbaniza-
formais e estéticas; ção Fundamenta-se em princípios de mistum funcional e social, no
• um urbanismo multíssensorial, que enriquece a uso de transportes püb!icos e no combate ao espmiamemo urbano.
urbanidade do lugar. Uma cartílha codifica o novo urbanismo estabelecendo princípios
Dito de outra forma, o neourbanismo é um que estão longe de ser novos, mas que rompem com as fomms ur-
caminho particularmente ambicioso, que neces- banas desenvolvidas nos Estados Unidos, em gmndes aglomemções.
sita de mais conhecimento, mais experiências e Sua.<; referências iniciais emm o Seasidc (uma estaçilo balneária bas-
mais democracia. tante chique) e Celebmtion (uma cidade privada concebida e reali-
111da pela Disney). fvlas os promotores do novo urbanismo buscam
desprender-se dessa imagem de cidade para classes médias, de fato
bastante parecida com modelos implantados nas gata! commmiities
(condomínios privados), e convencer que seu projeto pode servir
também para requalificar e regenemr as zonas degradadas.
Capítulo 4
1. Gestão: aplicnção ele um conjunto de conhecimentos vol-
tados à organização e ao gerenciamento, a fim de assegurar o
funcionamento de uma empresa ou de uma instituição, para
elaborar e realizar projetos conjuntos.
2. Estratégia: conjunto de objetivos operacionais escolhidos
para pôr em prática uma política previamente definida.
3. Método heurístico: gue serve para a descoberta, que opera BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Rejlexit,e
em avaliações sucessivas e hipóteses provisórias. A!odemiwt/011. Politics, Tmditio11 m1d Aestlietics in tlw Modem
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6. Série recorrente: em que cada termo é uma função dos ter- Universitaires de Fnmce, 2000.
mos imediatamente anteriores. CAi\-lPBELL, Scott; FAINSTEIN, Susan S. (org.). Readiug s
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do precedente pelo subsequente. Contrarreilçiio e retroação. fleadillgs i11 Urba11 Theory. Oxford, Blackwell
8. Regras de exigência sào aquelas impostas por alguma disci• Publishers, 2001.
plina, uma submissão numa ordem ou lei. Regras de resultado, CASTELLS, Manuel. La era tle Ia i11fornmció11: economia, so•
que preveem um resultado ótimo, próximo àquele que uma ciedml y criltura. 3 volumes; vol. 1: La sociedad red; vol. 2: EI
máquina, um ser vívo ou uma organização pode obter. poder de 1u idcntidad; voL 3: Fln de milenio. i'vh1dri, Alianza
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