Você está na página 1de 95
= ee ee seine tie ih ey José Carlos Reis ‘| Escola dos Annales A inovacao em Historia PAZE TERRA © José Carlos Reis CIP-Brasil, Catalogagio-nark Sindicato Nacional dos Editores R3la Reis, José Carlos Escola dos Annales —u José Carlos Reis, — So Paulo: Paze Terra, 2000 Inclui bibliografia ISBN85-219-0349-9 1 Escola dos Annales, 2, Histéria — Filosofia. 3. Histrial Titulo 00-0269 CDD-901 €bD-930.1 EDITORAPAZETERRASIA Rua do Triunfo, 177 Santa Ifigénia, Sio Paulo, SP — CEP 01212-010 ‘Fel: (011) 2234 E-mail: vendas@ pazeterra.com.br Home Page: www.pazeterra som.br 2000 Impresso no Brasil/Pringed ir Bail SUMARIO OS ANNALES: A RENOVAGAO TEORICO-METODOLOGICA E“UTOPICA” DA HISTORIA PELA RECONSTRUCAO DO TEMPO HISTORICO, 9 SOBRE AS RELACOES ENTRE TEMPO HISTORICO E CONHECIMENTO HISTORICO: UMA HIPOTESE, 9 ‘O TEMPO HISTORICO DOS ANNALES, 15 (OS ANNALES E © CONHECIMENTO HISTORICO: A RENOVACAO TEORICO-METODOLOGICA DA HISTORIA, 20, “DIALETICA DA DURACAO™ E EVASAO: A“ UTOPIA DOS ANNALES” — UMA INTERPRETACAQ POSSIVEL, 28 1900 - 1929: O DEBATE FUNDADOR DOS ANNALES — HISTORIA E CIENCIAS SOCIAIS, 37 HISTORIA, FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS, 37 M. FOUCAULT: 0 LUGAR DAS CIENCIAS HUMANAS, 39 POSITIVISMO, HISTORICISMO E MARXISMO: © SURGIMENTO DOS PONTOS DE VISTA DAS CIENCIAS SOCIAIS, 42 A CIENCIA SOCIAL SEGUNDO DURKHEIM, ACIENCIA SOCIAL SEGUNDO WEBER, 46 AREPERCUSSAO DAS CIENCIAS SOCIAIS SOBRE A HISTORIA, 5] F. SIMIAND EA HISTORIA-CIENCIA SOCIAL, 52 H. BERR E A RENOVACAO DA HISTORIA, 56 VIDAL DE LA BLACHE E A RENOVAGAO DA HISTORIA, 61 OSURGIMENTO DA “ESCOLA DOS ANNALES” EQSEU “PROGRAMA”, 65 REDEFININDO E AMPLIANDO 0 SENTIDO DA EXPRESSAO “NOUVELLE HISTOIRE”, 65 OS COMBATES DE FEBVRE, 68 A“HISTORIA-PROBLEMA”, 73. O FATO HISTORICO COMO “CONSTRUGAO”, 76 O NOVO CONCEITO DE “FONTE HISTORICA”, 77 A“HISTORIA TOTAL OU GLOBAL”, 78 AINTERDISCIPLINARIDADE, 81 AS PROPOSTAS DE BLOCH 0 OBJETO DO CONHECIMENTO, HISTORICO EASUATEMPORALIDADE, 82 0 “METODO RETROSPECTIVO”: A DIALETICA PRESENTE/PASSADO, 85 BLOCH E FEBVRE: DIVERGENCIAS, 86 AS DIVERSAS FASES DA “ESCOLA DOS ANNALES”: CONTINUIDADE OU DESCONTINUIDADE?, 91 A PRIMEIRA FASE: 1929/1946 FEBVRE, BLOCH E ARENOVACAO DA HISTORIA COM A REVISTA ANNALES D'HISTOIRE ECONOMIQUE ET SOCIALE , 93 UM OUTRO NOME FUNDADOR: ERNEST LABROUSSE, 97 A“HISTORIA DA HISTORIA” DOS ANNALES FEITA POR ALGUNS DE SEUS MEMBROS, 98 6 “ASEGUNDA FASE: 1946/1968 ANNALES: ECONOMIES, SOCIETES, CIVILISATIONS: A CONSOLIDAGAO DO NOVO PROGRAMA TEGRICO E PROJETO DE PODER, 102 BRAUDEL: SEUS DEBATES, COMBATES E VITORIAS, 104 0 PREDOMINIO DO QUANTITATIVISMO, 107 ALBERT SOBOUL: A HISTORIA SOCIAL RESISTE AO QUANTITATIVISMO DOMINANTE, 110 ATERCEIRA FASE: 1968/1988?, 4 NOUVELLE NOUVELLE HISTOIRE, 112 AINFLUENCIA DA ANTROPOLOGIA, 113 AHISTORIA EM MIGALHAS, 114 AS POLEMICAS DE LE ROY LADURIE: 0 COMPUTADOR, OEVENTO, A HISTORIA IMOVEL, NOVAS TECNICAS..., 115 AS TESES DE LEGOFFE NORA, 118 PAUL VEYNE: O DESAFIANTE INTERNO, 121 AREPERCUSSAO DE MICHEL FOUCAULT, 123 A MANIFESTACAQ DA CRISE E A NECESSIDADE DE UM TOURNANT CRITIQUE, 125 1988 — UM TOURNANT CRITIQUE, HISTORIA E CIENCIAS SOCIAIS: A CRISE DA. INTERDISCIPLINARIDADE, 126 A“DIALETICA DA DURACAO” POSTAEM DUVIDA, 128 R. CHARTIER: REDEFININDO OS TERMOS DACRISE, 130 SERIA O RETORNO DO DIFICIL DIALOGO ENTRE A HISTORIA EAFILOSOFIA?, 131 AVOLTA DANARRACAO, 134 ORETORNO DA BIOGRAFIAE DOEVENTO, 140 SOBRE A IDENTIDADE IDEOLOGICA DOS ANNALES: A POLEMICA E UMA HIPOTESE, 147 ANNALES D" HISTOIRE ECONOMIQUE ET SOCIALE: QUALEATENDENCIA?, 147 ANNALES E SOCIEDADE TECNOCRATICA, 148 ANNALES EMARXISMO, 152 ANNALES E DIREITA NACIONALISTA, 153 UMA HISTORIA NEGCONSERVADORA?, 155 UM NOVO MUNDO, LOGO UMA NOUVELLE HISTOIRE, 158 UM NOVO MUNDO, LOGO UMA HISTORIA ‘POS-ANNALES’, 162 ANNALES E MARXISMOS: “PROGRAMAS HISTORICOS” COMPLEMENTARES, ANTAGONICOS OU “DIFERENCIADOS"?, 165 INTRODUCAQ: MODERNIDADE ILUMINISTA VERSUS POS-MODERNIDADE ESTRUTURALISTA, E POS-ESTRUTURALISTA, 165 ONDE SITUAR OS ANNALES E OS MARXISMOS?, 170 Complementares, 173 Antagénicos, 175 “Diferenciados", 185 CONSIDERACOES FINAIS, 189 BIBLIOGRAFIA, 191 OS ANNALES: A RENOVACAO TEORICO-METODOLOGICA E “UTOPICA” DA HISTORIA PELA RECONSTRUCAO DO TEMPO HISTORICO SOBRE AS RELAGOES ENTRE TEMPO HISTORICO E CONHECIMENTO HISTORICO: UMA HIPOTESE As questies que guiardo nossa reflexio poderiam ser assim for- muladas: o que diferencia, em profundidade, as diversas “escolas ou “programas” histéricos? Qual a diferenga profunda entre a historia filos6fica e literdria, as escolas histéricas metédica, historicista, mar- xistae dos Annaies? Oque seria uma “nova escola” em oposigio a uma “escola tradicional’? Em que pode uma escola ser “nova” ou “ultra- passada”’? Costuma-se definir essa diferenga como uma “diferenga de método”: novos objetos, novas fontes, novas técnicas, noves concei- tos, novas instituigdes e obras ¢ historiadores-modelo. Mas esses ele- mentos acima, importantes, sem diivida, para a definigdo do “novo” e do “ultrapassado” em histéria, nao seriam apenas o lado mais visivel do método’? A diferenga profunda que esses elementos revelam, ¢ sem a qual nao existiriam, nao exigiria uma reflexdo sobre o método tam- bém em maior profundidade? Eis a nossa hipétese, em uma primeira formulagao: a base profunda de um método histérico é uma “represen- tagdo do tempo histérico” e é esta representagdo que diferencia as diversas escolas e programas histéricos. Os conceitos “tradicional”, “ultrapassado” ¢ “nove” ja revelam esse substrato temporal. Uma 9 escola histérica s6 pode se apresentar como “nova” se apresenta uma outra € original representagao do tempo histérico. Optar por uma ou outra escola histéri¢a nio é meramente optar por objetos e técnicas ou obras-historiadores modelos, A justificativa da escolha é mais profun- da: opta-se por um registro da temporalidade, Para sustentar essa pro- posta, e antes de tratar da inovagdo temporal que os Annales represen- taram, iremos a Herddoto de Halicarnasso, o descobridor do tempo dos homens. ‘Os gregos, os criadores da historia, tinham um pensamento pro- fundamente anti-histérico. Tanto a poesia épica, de Homero, quanto a filosofia que nasceu no século V a, C/ndo tratavam de eventos lares e de personagens auténticos, A poesia épica, no lugar dos even- tos, punha Categorias; no lugar dos personagens reais, arquétipos. Ela produzia uma lembranga mitica, exemplar, atemporal. As agoes huma- nas tornam-se modelos; os herdis so tipos. A lembranga é “poética™ — €0 artista que cria 0 exemplo e modelo das agdes e personagens, soba inspiraciio das musas. As musas contam ao poeta, em geral cego, 0 que foi, é e sera. O poeta prefere nao “ter visto”, mas “ter ouvido” diretamente das musas, que tudo vém. A filosofia grega, por seu turno, ird se opor ¢ articular-se ao mito, preservando dele o seu cardter anti- histérico. Para o fildsofo grego, s6.o permanente é conhecivel, O ser supralunar realiza um movimento circular, continuo e regular, que revela a eternidade e nao o tempo (Collingwood, 1981). ‘Anti-histérico, portanto, o pensamento grego mitica-po 0c filosdfico néo trata do transitério, da sucessiio, da mudanga, do mundo sublui reino da corruptibilidade temporal. O seu olhar e atengao. estao voltados para 0 eterno.'O mito libertava-se do evento eda mudan- ¢a, procurando manter-se na origem, 10 antes do tempo, buscando a cternidade no presente intenso do tempo sagrado do ritual, onde o atu- al reencontra a origem. A filosofia grega estava voltada para as idéias eternas, para os movimentos regulares, para o permanente supralunar, tinico cognascivel, objeto de “episteme”’. Os fildsofos niio deixaramde refletir sobre as coisas humanas e realizaram reflexdes inesqueciveis sobrea ética, a estéticae a politica, masna perspectiva das “idéias eter- nas”. Para eles, o mundo temporal sublunar seria residual ¢ desprezi- vel, pois incognoseivel ¢ inabordivel pela teoria. Enfim, o pensamen- to grego do século V a.C. era paradoxal: fundamentalmente anti- 10 histérico, criou a “ciéncia da histéria” (Collingwood, 1981; Momi- gliano, 1983). A questao que intriga é: como pode esse pensamento do supralu- nar criar a “histéria, ciéncia do sublu {isto é, um saber das aces humanas como resultado de uma investigagao, de uma pesquisa e aspi- randoa verdade? A verdade nao seria p gio do supralunare doseu conhecimento pela teoria? Como encontré-la no sublunare na narrati va de fatos particulares? Verdade e mudanga, verdade ¢ histéria nao riam termos excludentes? Como puderam os gregos criar uma cién- cia do que consideravam incognoscivel, das agées humanas em suas mudan¢as, um “conhecimento verdadeiro” do devir? Como conhecer amudanga. o que é e nao €? Para os filésofos, a histéria estava no mun- do efémero de ambigdes e paixGes do qual a filosofia deveria libertar os homens) Eles preferiam Homero a Herddoto, o que falava do que “poderia acontecer™ ao que tratava do “acontecido”. Para Aristoteles. ateoria era um discurso racional ¢ atemporal sobre o universal — epis- teme. A poesia atendia 4s suas exigéncias epistemolégicas melhor do que a historia. Aristoteles desprezava a nova criagao grega, a “ciéncia dos homens no tempo” €0 seu criador, segundo ele, o “contador” (para muitos, o “mentiroso”) Herddoto. Para ele, os historiadores referiam- se a fatos acontecidos, particulares, ¢ nao ao universal, referiam-se a mudanca e no A estabilidade e regularidade. e eram por isso epistemo- logicamente menos “sérios”. Os historiadores produziam um conheci- mento residual sobre o residual — doxa, opinides sem valor logico sobre as coisas humanas que mudam. Seu conhecimento nao seria demonstrativo ¢, portanto, nao teria validade tedrica (Momigliano, 1983; Hartog, 1986). Em um contexto intelectual tao desfavordvel, a criagao da histé- ria por Herédoto no século V representou uma verdadeira revolugde cultural, Em vez de evitar a mudanga, 0 tempo, © historiador decidiu aborda-la. O historiador optou pelo sublunar, pela temporalidade, que, para ele, é o verdadeiro lugar da inteligibilidade da vida humana. Essa foi uma atitude inaugural, original, uma ruptura com a tradi¢ao mitica e filoséfica. “Os homens no tempo”, os homensem sua vida particular e publica, com os seus nomes, iniciativas e valores, experiéncias ¢ esperangas, em sua finitude, em sua historicidade, em suas mudangas — eis o novo objeto do nove conhecimento. Herddoto argumentaria contra Aristételes: é pouco sério falar do vivido humano? Na verdade,

Você também pode gostar