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OS DOMÍNIOS MORFOCLIMÁTICOS NA AMÉRICA DO SUL:

PRIMEIRA APROXIMAÇÃO

Aziz Nacib Ab’Sáber

Geomorfologia, São Paulo, Instituto de Geografia, O mapa morfoclimático da América do Sul — elabo-
Universidade de São Paulo, n. 52, p. 1-22, 1977. rado por critérios climático-geomorfológicos, fitogeográ-
ficos e ecológicos — representa uma primeira aproximação
no que diz respeito à cartografia dos grandes espaços na-
BIBLIOGRAFIA turais do continente sul-americano. Não é um trabalho de
primeira mão nem tampouco o resultado gráfico de um
projeto específico e demorado de cartografação temática.
O documento básico foi feito para ser reduzido à escala de
mapas, como se fora uma simples folha de atlas. Tal como
se encontra, o mapa expressa somente uma necessidade ur-
gente: é um documento preparado para servir de elemento
global de visualização dos grandes domínios morfocli-
máticos, fitogeográficos e macroecológicos do continente
americano do sul.
A base que tornou possível chegar a esta primeira
aproximação — em um tempo relativamente rápido —
foi o Mapa da Vegetação da América do Sul, elaborado
por Kurt Hüeck e publicado em 1972, na categoria de
obra póstuma, graças aos esforços de organização, estru-
turação e editoração de Paul Seibert e da Gustav Fischer
Verlag, de Stuttgart. Muitas outras fontes, conheci-
mentos de campo e observações de terceiros serviram de
apoio e de elemento de consulta para a elaboração do
novo mapa. Entretanto, não fora o esforço de cartografia
de vegetação intentada por Hüeck, assim como a cui-
dadosa recuperação das pesquisas do autor — levadas a
efeito por Seibert —, praticamente seria impossível es-
boçar as grandes linhas morfoclimáticas e fitogeográficas
do continente sul-americano, em um prazo de tempo re-
lativamente tão curto.
De nossa parte, tendo em vista a caracterização dos
grandes espaços climático-geomorfológicos da América
do Sul, realizamos um outro tipo de recuperação das pes-
quisas de Kurt Hüeck, botânico e fitogeógrafo alemão,
que por muitos anos residiu no Brasil, trabalhou e con-
viveu conosco.

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A metodologia que serviu de partido para a 5. Realizar uma busca sistemática das feições mor-
delimitação genérica e a caracterização dos grandes fológicas, hidrológicas, pedológicas e fitogeográ-
conjuntos regionais, de natureza morfoclimática, ficas, associadas e superpostas — dependentes
fitogeográfica, hidrológica e ecológica foi em prin- de condições climáticas atuais e de heranças
cípio a mesma que nos possibilitou a definição e paleoclimáticas e paleoecológicas recentes —
o delineamento dos principais domínios morfocli- em detrimento de uma simples caracterização
máticos brasileiros a partir de estudos e pesquisas geomorfológico-estrutural e topográfica.
realizadas entre 1954 e 1961.
A América do Sul é grande demais para ser 6. Procura sistemática de novos modelos de domínios
conhecida no conjunto e no detalhe por um só e geomorfológico-climáticos nas áreas extrabrasi-
único pesquisador. Daí termos sido levados a tra- leiras e guianenses, com a proposição de sutilezas
balhar em algumas áreas que escapam à nossa ex- cartográficas para seu mapeamento. Sobretudo, rea-
periência pessoal. Para compensar a dificuldade, lizar um esforço para uma integração dos diferentes
utilizamos todo o apoio bibliográfico disponível, à agrupamentos de modelos, sem maiores prejuízos
custa de rígida seleção. para a leitura conjunta do produto gráfico final.
Em face da escala continental do produto grá-
fico que se procurou obter, firmamos algumas dire- 7. Revisão da problemática do escalonamento
trizes metodológicas particulares, a fim de orientar altitudinal das faixas ecológicas em relação ao
o mapeamento e garantir uma certa margem para conjunto especial das montanhas e altiplanos an-
futuras aproximações e destaques. Resumidamente, dinos, sem prejuízo de agrupamentos regionais
os critérios preestabelecidos foram os que seguem: de paisagens e ecologias zonais ou azonais por-
ventura existentes em subsetores dos Andes.
1. Esforço para fixar e delimitar as áreas nucle-
ares em todas as regiões do continente onde o 8. Não insistir na delimitação gráfica de faixas de
modelo fosse passível de utilização. Isso porque, transição morfoclimáticas em áreas de massas
em função de conhecimentos prévios, já se podia florestais mais ou menos contínuas ou coales-
antever sérias dificuldades para aplicação do mo- centes, situadas em vertentes úmidas de escarpas
delo às regiões centrais, meridionais e ocidentais (tipo Mantiqueira ou Serra do Mar), cordilheiras
da América do Sul. (sistema Andino e, sobretudo, vertente amazô-
nica dos Andes) ou grandes conjuntos de terras
2. Tendo fixado como apoio preferencial um mapa baixas equatoriais (tipo Amazônia).
global da vegetação da América do Sul, tomar todas
as precauções para evitar a utilização dos critérios, 9. Uma ideia força presidiu toda a execução do
eminentemente fitogeográficos, que serviram de trabalho: caso ao se terminar o mapeamento, o
base para caracterizar espaços homogêneos defi- produto final obtido não pudesse ser considerado
nidos tão somente pela cobertura vegetal. um documento de nível ortodoxamente morfo-
climático, não passando de um primeiro mosaico
3. Na fase inicial do trabalho — correspondente a dos grandes conjuntos de tecidos ecológicos da
essa primeira aproximação — eliminar a pretensão América da Sul, tanto melhor.
de indicar ou mapear os enclaves paisagísticos,
ilhados no interior das diferentes áreas nucleares. 10. Convém sublinhar que, dada a escala de tra-
tamento escolhida para o trabalho, ficou, desde
4. Ainda, na primeira fase do trabalho, evitar um logo, bem clara a impossibilidade de mapear os
tratamento gráfico especial para definir as múlti- numerosos enclaves paisagísticos ocorrentes no
plas e altamente heterogêneas faixas de transição interior dos diferentes domínios morfoclimáticos.
e contato, existente entre as áreas nucleares já Por outro lado, nem mesmo para os grandes do-
caracterizadas. Esse tipo de tratamento foi con- mínios morfoclimáticos foi possível tentar um
siderado mais útil para facilitar a visualização do reconhecimento de padrões de paisagens ou de
universo paisagístico-ecológico do continente sub-regiões ecológicas, dada a heterogeneidade das
sul-americano em sua estruturação espacial bá- informações disponíveis e as dificuldades de carto-
sica. Com isso, procurou-se evitar uma poluição grafação a nível regional. Esse é um tipo de trabalho
gráfica excessiva e até certo ponto de vista desne- que pressupõe mais pesquisas e um novo esforço
cessária para os objetivos iniciais do trabalho. de mapeamento em uma escala mais adequada.

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Um agradecimento prazeroso e indispen- do Chile e noroeste da Argentina e o pequeno
sável: esse trabalho, incluindo o mapa e o texto que domínio residual dos páramos dos altiplanos dos
o acompanha, somente se tornou possível graças ao Andes setentrionais. Os interespaços rochosos,
estímulo, aos conselhos e ao intercâmbio de ideias desnudos, pontilhados de pequenos núcleos de
e informações recebidos de nosso colega e amigo glaciação, existentes entre os páramos e as puñas,
Paulo Emílio Vanzolini, zoólogo e intelectual do- entre o deserto costeiro e os cordões das cordi-
tado de uma particular sensibilidade para desen- lheiras orientais, distribuídos em forma anasto-
volver trabalhos tanto em uma escala local como mosada desde os Andes equatoriais até os Andes
em nível continental, transitando com a maior na- ditos boreais, são paisagens típicas de montanhas,
turalidade da análise para a síntese. enquadradas na categoria dos fatos geomorfoló-
gicos e pedológicos intrazonais e azonais. Nesse
OS AGRUPAMENTOS DE MODELOS sentido são um tipo especial de enclave.
REGIONAIS Removida e dificuldade conceitual básica,
pensamos que, na porção subcontinental ocidental
Em termos de grupos de modelos regionais da América do Sul, correspondente ao corpo topo-
de organização natural de paisagens, a América do gráfico geral dos Andes, podem ser identificados
Sul apresenta três esquemas fundamentalmente três áreas nucleares do ponto de vista paisagístico
diferentes: 1) domínios paisagísticos dispostos em e ecológico: 1) o domínio do deserto costeiro, hi-
grandes áreas core (áreas nucleares), nos planaltos perárido, do Chile e do Equador; 2) o domínio das
intertropicais do Brasil e das Guianas (e parte da puñas que comporta um conjunto de regiões áridas
Venezuela); 2) domínios transicionais progressivos, e semiáridas, estépicas, nos altiplanos intercordi-
incidindo sobretudo nas planuras e baixos platôs lheiranos, em latitudes tropicais (Chile, Argentina,
meridionais do Cone Sul do continente, a partir Bolívia); e 3) o domínio dos páramos, pradarias de
das áreas envolventes das pradarias pampeanas; altitude, de aspecto marcadamente residual, exis-
3) diversos segmentos de paisagens de montanhas e tentes nas cimeiras mais elevadas dos Andes se-
altiplanos intercordilheiranos, dotados de diferentes tentrionais (Colômbia, Peru, Venezuela). A esses
faixas e andares ecológicos e paisagísticos, contro- três subconjuntos paisagísticos, bastante diferen-
lados pelas condições climáticas de altitude. Esse ciados entre si, acrescentam-se diversos setores
terceiro esquema de ordem de grandeza macrorre- mais complexos de paisagens correspondentes
gional é o mais complexo, porque envolve setores aos Andes equatoriais, aos Andes subtropicais e
muito diferenciados devido à disposição norte-sul temperados do Chile e aos Andes Meridionais do
geral dos Andes e sua complexa climatologia. Chile e Argentina. Por último, há que referir uma
É-se tentado a reconhecer áreas nucleares tí- paisagem restrita, tipicamente zonal, existente no
picas fora dos setores inter e subtropicais do Brasil extremo sul do continente, franjando o litoral do
e das Guianas. Alguns são fáceis de ser detectados e arquipélago de Magalhães: as tundras magelânicas.
caracterizados: o domínio dos Ilanos da Venezuela, Trata-se de verdadeiras amostras de um domínio
o domínio semiárido do Chaco Oriental, as pra- paisagístico, morfoclimático e pedológico que não
darias da Pampa úmida argentina. Outros setores, teve espaço para se estender devido à brusca e
entretanto, somente seriam passíveis de tal consi- complicada finisterra do Cone Sul.
deração caso fossem tomados dentro de um critério No que diz respeito aos domínios paisagís-
muito mais frouxo e totalmente flexível: o setor sul ticos marcadamente transicionais, que se estendem
dos Andes, onde ocorrem florestas subtropicais e do sul do Chaco até a Patagônia, os fatos geográ-
temperadas frias, o segmento equatorial dos Andes, ficos e ecológicos têm uma outra sequência no seu
em níveis baixos e médios, até 2.000 metros de al- desenvolvimento espacial. Existe, primeiramente,
tura, onde as florestas tropicais úmidas progrediram uma diferenciação de leste para oeste, comportando
muito em altitude (Peru, Colômbia), tanto na ver- uma degradação climática e ecológica, baseada na
tente amazônica quanto na vertente pacífica. interiorização por continentalidade, interessado à
Daí porque em termos de áreas nucleares, faixa que vai da pampa úmida até a região semiárida
preferimos identificar, dentro do espaço global da do monte e o piemonte árido do oeste argentino. Um
área andina, alguns setores dotados de forte indivi- segundo eixo de diferenciação se processa no sen-
dualidade paisagística e ecológica, tais como: o do- tido norte-sul, na direção da extremidade do Cone
mínio do deserto costeiro do Chile e do Equador; Sul do continente, ou seja, da pampa úmida para
o domínio árido e semiárido das puñas do norte o monte e deste, para as estepes frias da Patagônia.

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As passagens entre os diferentes padrões regionais áreas de planaltos intertropicais brasileiros para as
de paisagens nesse grande setor do Cone Sul são áreas cordilheiranas dos Andes. Praticamente resol-
extremamente complexas e sutis. Havendo pouca vido em relação às terras intertropicais do Brasil e
diferenciação topográfica e geomorfológica, os fatos das Guianas, começa a apresentar problemas muito
fisiográficos e ecológicos distribuem-se ao longo mais sérios nas áreas baixas interiores situadas entre
das planuras e ondulações platino-patagônicas, por o Brasil e as regiões pré-andinas. Mas é, certamente,
substituições constantes, perceptíveis sobretudo na zona das altas montanhas andinas — como era
através do gradual desaparecimento de algumas es- de se esperar — que as dificuldades atingem seu
pécies florísticas e pelo surgimento progressivo de ponto crítico em termos de identificação de espaços
outras formas de vida vegetal. naturais pertencentes a categorias morfoclimáticas
específicas. De resto, nas terras baixas da Patagônia,
A CORDILHEIRA ANDINA E SEUS localizadas nas mais altas latitudes do Cone Sul,
SUBSETORES MORFOCLIMÁTICOS ocorrem modelos de províncias morfoclimáticas
bastante diferentes daqueles predominantes nas
Na América do Sul, os problemas e as difi- áreas inter e subtropicais brasileiras.
culdades para a identificação de domínios morfo- De um modo geral, as características morfocli-
climáticos crescem de leste para oeste, ou seja, das máticas de uma área montanhosa, de tipo cordilhei-

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rano, pendem para o campo dos fatos fisiográficos e “o fenômeno do escalonamento em andares de ve-
ecológicos intrazonais. Nesse sentido, e sobretudo getação não se diferencia apenas segundo a vertical
na escala de mapas e planisférios, todo o conjunto no meio de um gradiente zonal; é, ao inverso, a dis-
orográfico dos Andes foi tomado como uma das posição zonal das paisagens que se reencontra por
faixas complexas de paisagens e ecologias em an- fatias superpostas”.
dares, dependentes da degradação climática altitu- Face a tais posições teóricas, e com vistas a
dinal. Entretanto, seria extremamente frustrante resolver nossos problemas de caracterização morfo-
fazer uso de uma legenda genérica para todo um climática da América do Sul, julgamos que a Cordi-
conjunto cordilheirano, de disposição sul-norte, lheira dos Andes seja talvez a única que possibilita
que se inicia em latitudes equatoriais e se estende uma certa diferenciação zonal (e localmente azonal),
até o limiar das tundras antárticas, colocado como ainda que relativa e grosseira, independentemente
está, desde 10º de latitude norte até 55º de latitude da coexistência de grupos de fatos regionais diferen-
sul, compreendendo mais ou menos 7.000 km de ciados, diretamente relacionados a paisagens escalo-
extensão ao longo de seu eixo maior. nadas, dispostas em cinturas orográfico-ecológicas.
Para ter algum significado, uma verdadeira carta Os Andes, devido à sua posição geográfica na escala
geomorfológica climática da América do Sul deverá continental, seu rumo geral Norte-Sul e suas varia-
integrar os espaços andinos em um agrupamento de ções hipsométricas e volumétricas (De Martonne,
subsetores zonais e azonais capazes de exibir seg- 1935), apresenta, em cada segmento de seu corpo
mentos regionais, dotados de escalões paisagísticos e topográfico, séries regionais de andares de condições
ecológicos próprios. Não se trata de vencer todas as morfoclimáticas e ecológicas diferenciadas.
dificuldades existentes para conciliar condições in-
compatíveis, tais como sejam zoneamento latitudinal A DIAGONAL ÁRIDA SULAMERICANA
e escalonamento ecológico altitudinal. E SUA DIFERENCIAÇÃO
Gabriel Rougerie, em trabalho relativa-
mente recente (1972), ao analisar os grandes pro- Desde a publicação do trabalho de Emmanuel
blemas da biogeografia das regiões cordilheiranas, De Martonne (1935) sobre os problemas das re-
recolocou os principais problemas criados pelos giões áridas sul-americanas, passou-se a reconhecer
gradientes altitudinais e latitudinais. Segundo a uma complexa diagonal de terras áridas e semiáridas
boa tradição dos antigos geógrafos e naturalistas na metade sul do continente. “Parece que a degra-
(Humboldt, D’Orbigny, De Martonne), e adap- dação da hidrografia, atingindo ao arreísmo, afeta
tando-as às novas exigências da geomorfologia e realmente uma zona meridional ativa entre 3º e 45º
da biogeografia, Rougerie se inclui entre aqueles de latitude; e que essa zona árida atravessa diago-
que não reconhecem nada de totalmente comum nalmente o continente, incluindo a possante cadeia
entre os dois fenômenos: o escalonamento altitu- montanhosa que bordeja o Pacífico, atingindo sua
dinal e a zonação morfoclimática. Considera, em maior amplitude entre 20º e 30º. É exatamente
termos genéricos e a um primeiro nível de apro- nessas latitudes que o arreísmo invade montanhas
ximação, que “os dois tipos de gradientes que in- que ultrapassam 4.000 e 5.000 metros, por vastos
tervêm quando se vai de uma parte do Equador espaços. A localização da ponte árida que coloca
ao Pólo, e doutra parte, da base ao cume de uma em ligação o deserto litorâneo do Pacífico ao de-
montanha não têm nada de comum”. Concorda em serto continental do sul argentino localiza-se entre
princípio com Tricart (1957), quando aquele ilustre o trópico e a latitude de 29º aproximadamente, se-
geormorfologista distingue a natureza das questões guindo uma diagonal ativa de Antofogasta à Cata-
envolvidas nos conceitos de zonalidade e escalona- marca; ela compreende a alta Puña de Atacama e o
mento climaticoecológico, por cinturas orográficas bolsão quase fechado de Andalgala.”
diferenciadas. Note-se que, para Tricart, a maior Pela sua distribuição espacial, desde Tumbes,
parte das semelhanças porventura existentes entre no Equador, à Patagônia, na Argentina, atraves-
os dois fenômenos ficaria restrita ao campo dos sando os Andes, pela puña de Atacama, a diagonal
fatos de convergência. árida sul-americana é uma das mais desenvolvidas
Muito significativo, porém, é que Rougerie, a áreas de desertos azonais conhecidas. Para que tal
despeito de todas essas considerações conceituais, coalescência de subsetores áridos pudesse ocorrer
atinge a uma conclusão final que reserva interesse foi necessário uma importante convergência de fa-
particular para a compreensão geomorfológico- tores climáticos, de ordem dominantemente geo-
climática dos Andes: “Em conclusão”, diz o autor, gráfica. Nesse sentido, e com vistas à diferenciação

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morfoclimática, a importante diagonal seca da áridas e desérticas a exigir diferenciações setoriais
metade sul do continente sul-americano não pode mais lógicas e criteriosas.
ser considerado um único e verdadeiro domínio
morfoclimático. Pelo contrário, é uma associação A DIAGONAL ARREICA SULAMERICANA
coalescente de domínios morfoclimáticos e fito- E A DIAGONAL DE FORMAÇÕES ABERTAS
geográficos diferenciados. Entre o deserto tropical DO BRASIL
da fachada costeira ocidental dos Andes e as frias
estepes patagônicas, existem diferenças substanciais Num mapa a um tempo geomorfológico e fi-
de ordem morfoclimática e fitogeográfica. Identi- togeográfico, como é o caso daquele ora apresentado,
camente, entre o monte, a puña e o Chaco persistem torna-se muito evidente a posição e o cruzamento
diferenças acopladas de ambiente natural e condi- de duas diagonais fundamentais para a compreensão
ções fitogeográficas suficientes para solicitar outra de diversos fatos da biogeografia sul-americana.
abordagem metodológica em termos de mapea- Em 1935, Emmanuel De Martonne identi-
mento morfoclimático. ficou a diagonal arreica que se estende de modo ir-
Em qualquer hipótese, não há como parale- regular desde a Patagônia até o deserto costeiro do
lizar, do ponto de vista de modelos morfoclimáticos Chile e do Peru, passando pelos Andes, por meio
espaciais, o caso do polígono das secas do Nordeste de um largo setor seco de montanhas e altiplanos,
brasileiro com o caso da diagonal árida da metade entre os paralelos 3º e 30º de latitude sul. Nos seus
sul do continente. Trata-se de áreas morfoclimá- estudos biogeográficos sobre o Brasil, integrado às
ticas pertencentes a agrupamentos diferentes em grandes linhas do continente sul-americano, Paulo
termos de modelos espaciais. Nesse sentido, cumpre Emílio Vanzolini tem destacado o importante
destacar o fato de que o domínio das caatingas (de- papel de trânsito e de área preferencial de expansão
pressões interplanálticas revestidas por diferentes para determinadas espécies animais, representado
tipos de caatinga) é muito mais homogêneo do pela diagonal de formações abertas brasileiras que
ponto de vista paisagístico, ecológico e hidrológico. se estende do Nordeste Seco ao Brasil Central,
O Nordeste seco brasileiro, colocado como está em prolongando-se, depois, no Paraguai e Argentina,
latitudes subequatoriais e pro-parte tropicais, é um pelo Chaco adentro. É exatamente no Chaco que
conjunto espacial disposto sob a forma de domínio terminam as paisagens, mais ou menos contínuas,
morfoclimático e fitogeográfico, com área nuclear do braço oriental da diagonal arreica sul-ameri-
perfeitamente definida. cana, as quais provindo da Patagônia prosseguem
No que tange à diagonal árida, a situação é pela faixa do monte argentino até essa área de pla-
bastante diferente tanto do ponto de vista mor- nícies centrais sul-americanas.
foclimático, como principalmente do ponto de O certo é que o Chaco é uma área de cru-
vista das superposições entre os fatos morfoclimá- zamento e entroncamento das formações abertas
ticos e os fatos fitogeográficos. Não escapou a De provindas do Nordeste com aquelas outras, ainda
Martonne o caráter de coalescência de setores secos mais secas, porém muito mais frias, provindas
que ora estamos sublinhando. Na realidade, ao se da Patagônia e do monte argentino. Somente os
referir à ponte de ligação entre o deserto costeiro biogeógrafos poderão tirar ilações desse fato, em
do Chile em relação às regiões áridas continentais termos de seu significado para a explicação de áreas
da Argentina, De Martonne deixou implícita a de ocorrência faunística. Para isso, o caminho já foi
ideia de que a diagonal árida é uma espécie de área aberto por Paulo Emílio Vanzolini em seus estudos
de emendação generalizada de subsetores secos. sobre lagartos sul-americanos.
Não há, pois, como identificar uma área core nesse Ao elaborar o mapa dos domínios morfo-
vasto conjunto de área secas — arreicas e endor- climáticos e fitogeográficos da América do Sul,
reicas; frias, temperadas e quentes — dispostas em vimo-nos na obrigação de sondar alguns aspectos
diferentes compartimentos topográficos e sujeitas da forma de distribuição e das áreas constituídas
a modificações climático-botânicas pelo jogo de por essas duas diagonais que se cruzam. É ponto
fatores latitudinais, altitudinais e geográficos. Por- pacífico que o cruzamento ou entroncamento entre
tanto, a despeito da efetiva coalescência de condi- elas se processa à altura das planícies chaquenhas.
ções climáticas semiáridas e áridas, que acarretam Do ponto de vista climático, apesar das diferenças
deficiências hídricas generalizadas, a chamada dia- básicas que incidem sobre o clima seco das caatingas
gonal arreica da América do Sul é apenas um com- brasileiras em face dos cerrados do Brasil Central,
plexo de regiões e paisagens estépicas semiáridas, assim como em relação ao clima do Chaco, existem

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certos parâmetros que tornam possível considerar tabuliformes florestados; b) grandes planícies
o conjunto dessas áreas como uma associação de florestadas; c) subsetores mamelonizados flores-
climas intertropicais e subtropicais, dotado de su- tados, incluindo pequenas serras com vertentes
ficiente convergência em termos de condiciona- revestidas por matas amazônicas (tipo Serra dos
mentos biogeográficos. Mais do que isso, pode-se Carajás); d) montanhas florestadas das encostas
agregar ao conjunto pelo menos a área do noroeste andinas orientais (pedestal oriental dos Andes,
argentino, entre as serras de Córdoba e as serras de com florestas hyloenas — até 400-600 m de
Tucumã, constituída pelas paisagens e ambientes altitude, no leste e nordeste do Peru, nordeste
do monte com cactáceas. Somente ao sul dessa faixa da Bolívia, leste do Equador e o leste-sudeste
setentrional do monte argentino é que as condições da Colômbia). Hyloea, Amazônia, Amazônia e
climáticas têm uma degradação térmica capaz de Guianas.
representar uma barreira ou filtro climático em
termos rigorosamente biogeográficos. 2. Domínio equatorial pacífico com florestas plu-
Nos estudos sobre a continuidade dos es- viais densas, desde a costa até as vertentes mé-
paços ecológicos existentes entre a diagonal de dias dos Andes colombianos e istmo do Panamá.
formações abertas e a diagonal arreica, existem três Florestas colombianas-caribianas.
áreas de barreiras biogeográficas a serem conside-
radas: 1) a dos pantanais, onde a presença de vastas 3. Domínio tropical atlântico, simbolicamente
áreas alagáveis e de vegetação de savanas com reconhecido como domínio dos mares de morros
palmeiras pode interromper a continuidade dos florestados, desenvolvido em posição azonal na
espaços ecológicos; 2) a transição entre o monte fachada atlântica tropical do Brasil. Em anexo,
estépico e semiestépico, onde ocorrem variações um subdomínio de chapadões florestados, cor-
climáticas irreversíveis; e 3) a cordilheira andina, respondente aos planaltos florestados do Oeste
na área de junção dos climas áridos de leste com de São Paulo e Norte do Paraná. Domínio das
os climas desérticos costeiros do Chile, do Peru e Matas Atlânticas.
do Equador. Esta última, dada a sua continuidade
e a série de condições climáticas diferenciadas pela 4. Domínio dos cerrados, desenvolvido nos pla-
zonação altitudinal, constitui-se na única grande naltos centrais do Brasil, em áreas onde imperam
barreira moderna para a expansão de espécies e climas tropicais úmidos a duas estações. Região
faunas de leste em relação às áreas pacíficas. de uma flora arcaica, composta de cerradões, cer-
Se essa última afirmativa for verdadeira, rados e campestres. Domínio dos Campos Gerais,
fica comprovado que a diagonal arreica da Amé- Domínio dos chapadões centrais do Brasil.
rica do Sul tem apenas uma individualidade
física, centrada no tema da aridez, mas envolve todo 5. Domínio Roraima-Guianense, situado em
um agrupamento diferenciado de climas secos re- posição equatorial em terras amazônicas do he-
gionais, coalescentes. Sua setorização regional, em misfério norte, na fronteira entre o território de
termos fitogeográficos, é complexa, assim como Roraima, a Venezuela e as Guianas. Domínio
mais complexo ainda é o seu comportamento em da Gran Sabana. Domínio dos “campos” do Rio
face das áreas e domínios zoogeográficos. Branco e Tumucumaque.

RELAÇÃO SINTÉTICA DOS DOMÍNIOS 6. Domínio intermontano subequatorial dos


MORFOCLIMÁTICOS, SULAMERICANOS Ihanos da Venezuela e Colômbia, no Vale do
Orenoco, sujeito a climas de ritmo tropical (à
Feita a ressalva essencial de que existem duas estações). Domínio dos Ihanos da Vene-
diferentes agrupamentos regionais de condições zuela e Colômbia.
morfoclimáticas — Brasil-Guianas, Andes e terras
baixas do Cone Sul — pode-se discriminar os se- 7. Domínio dos Andes equatoriais (com zonação
guintes conjuntos espaciais representativos de do- altitudinal complexa). Sub-setor da cordilheira
mínios climático-geomorfológicos e fitogeográ- andina, em que ocorrem florestas pluviais densas
ficos na América do Sul: em ambas as vertentes baixas dos Andes: a ama-
zônica e a colombiana; e, a partir daí, sucessivas
1. Domínio equatorial amazônico com quatro faixas altitudinais de condições ecológicas e de
grupos principais de padrões: a) baixos platôs vegetação.

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8. Domínio das caatingas, no Nordeste brasileiro, 18. Domínio do monte com cactáceas e bolsones re-
em áreas de depressões interplanálticas semiáridas, siduais. Planícies e ondulações áridas e semiáridas,
com drenagens intermitentes sazonárias. Domínio pré-andinas, com bosques ralos e cactáceas, condi-
das caatingas. Domínio das depressões interpla- ções arreicas generalizadas, raros rios alóctonos e
nálticas quentes e semiáridas. Domínio dos sertões arroios intermitentes, tributários de depressões la-
secos. Nordeste Seco. Polígono das Secas. custres residuais (tipo bolsones). NW da Argentina.

9. Domínio subequatorial caribe-guajira. Área se- 19. Domínio do monte estépico, do oeste e sudeste,
miárida quente, litorânea e sublitorânea da Co- à retaguarda da pampa ocidental, sob condições de
lômbia atlântica e Venezuela. Domínio guajira. climas temperados secos continentais, com poucos
rios alóctonos e oásis de piemonte.
10. Domínio do Chaco Central. Área de planícies
centrais sul-americanas, com bosques secos, do- 20. Domínio patagônico, com estepes subúmidas de
tada de climas tropicais subúmidos e subtropicais piemonte, passando a semiáridas e áridas, de oeste
semiáridos rústicos (Bolívia, Paraguai e Argen- para leste na área de mesetas e ondulações baixas
tina). Domínio dos bosques chaquenhos. De- do sul da Argentina.
pressão central sul-americana do Chaco. Ihanos do
Chaco. Domínio do quebracho e do algarrobo. 21. Domínio dos Andes subantárticos, sujeitos a
climas temperados frios e frios, com zonação
11. Domínio dos desertos costeiros pacíficos. Faixa altitudinal complexa e diferentes faixas de florestas
costeira azonal de desertos hiperáridos e nu- boreais. Paisagens inclusas de glaciários de altitude,
blados, que se estende de Tumbes, no Equador, residuais e finger lakes.
até o Chile Central (3º a 30º de latitude sul).
22. Domínio da finisterra subúmida das terras pa-
12. Domínio das puñas e desertos intercordi- tagônicas e magelânicas, revestidas pela faixa mais
lheiranos dos altos Andes Centrais. Desertos boreal das florestas sul-americanas.
intermontanos de altitude, situados em antigos
bolsones dos Andes. 23. Domínio das tundras subantárticas, constituído
por amostras de paisagens de tundra, na costa sul
13. Domínio dos planaltos sul-brasileiros com do Arquipélago de Magalhães e nas áreas insulares
araucárias. Planaltos subtropicais atlânticos re- da plataforma sul-argentina (Malvinas-Falklands).
vestidos por um velho núcleo de araucárias.
24. Paisagens das serras úmidas e piemontes da faixa
14. Domínio andino subtropical e temperado com tucumano-boliviana, na área de recomeço de climas
araucárias. Montanhas de média altura, com re- úmidos nas vertentes orientais dos Andes, após a
manescentes de araucárias do setor meridional grande interrupção constituída pela sombra de chuva
dos Andes. dos Andes meridionais. Paisagens dos brejos e serras
úmidas do Nordeste Brasileiro.
15. Domínio das pradarias mistas subtropicais.
Prados da metade sul do Rio Grande do Sul e da 25. Paisagens rochosas, comportando escombros e
maior parte do Uruguai, com presença de florestas- detritos, vales secos, altos picos de acumulação vul-
galeria subtropicais. Domínio dos campos meri- cânica e feições periglaciais, ao longo dos Andes
dionais. Domínio das campinas gaúchas. Cam- (em posição intrazonal).
panha Gaúcha. Coxilhas com pradarias mistas.
26. Paisagens dos glaciários residuais do sul dos
16. Domínio da Pampa Úmida. Grandes planícies Andes e dos finger lakes meridionais.
pampeanas com estrutura superficial e comparti-
mentação complexas, revestidas por pradarias ex- 27. Paisagens dos enclaves glaciários de altitude,
tensivas. Domínio dos pampas argentinos. que pontilham descontinuamente os cumes vul-
cânicos e picos altos dos Andes, situados acima
17. Domínio dos páramos. Paisagens residuais de ci- do limite das neves eternas.
meira do setor equatorial dos Andes, na Colômbia
e Venezuela, constituídas por pradarias de altitude.

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