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Maurice Halbwachs e Marc Bloch em torno do conceito de

memória coletiva
Eliza Bachega Casadei*

Resumo: A partir da constatação de que o conceito de “memória coletiva” tem


se tornado cada vez mais importante para diversas áreas das Ciências Humanas,
o presente artigo propõe o estudo da discussão entre o inventor do termo,
Maurice Halbwachs e o historiador Marc Bloch em torno desta temática. Ao
passo em que Halbwachs estabelece, pioneiramente, um trabalho que retira a
memória de uma esfera meramente individual, Bloch acrescenta a problemática
da transmissão das lembranças coletivas. O objetivo do presente texto é resgatar
esse debate, bem como estudar como ele influenciou nos desdobramentos
posteriores em torno do tema.
Palavras-chave: transmissão da memória; usos do passado; tradição.
Abstract: After noting that the concept of “collective memory” has become
increasingly important for many areas of Humanities, this paper proposes the
study of discussions between the inventor of the term, Maurice Halbwachs and
historian Marc Bloch around this theme. Halbwachs was pioneer when he took
away the memory of a sphere merely individual and Bloch added the problem of
collective memories’ transmission. The purpose of this paper is to rescue this
debate and study how it influenced the subsequent developments around the
theme.
Key words: memory transmission; uses of the past; tradition.

Em sua grande obra sobre os lugares de grupos e instituições sociais, colocando


memória, Pierre Nora (1996: 8) chama a os indivíduos diante de um imperativo
atenção para uma característica que de memória que ordena a todo o
marca as sociedades que experimentam momento com a força de um
padrões de mudanças rápidas: “o medo mandamento: “lembre-se” (“Thou shalt
de que tudo está na iminência de remember”).
desaparecer acompanhada com a
Essa obsessão com a memória também
ansiedade sobre o significado preciso do
é enfatizada por Andreas Huyssen,
presente e a incerteza sobre o futuro,
quando ele coloca que, em um mundo
investe até a mais humilde testemunha,
obstinado pela memória, o
o mais modesto vestígio, com a
esquecimento é visto com desconfiança
dignidade de ser potencialmente
e frequentemente relacionado com uma
memorável”. Desta forma, “a resultante
“inabilidade para comunicar”, com “um
obrigação de lembrar faz de todo
fracasso evitável ou com uma regressão
homem o seu próprio historiador”
indesejável”. É por isso que “falamos
(NORA, 1996a: 10). Com isso, Nora se
com facilidade de uma ética do trabalho
refere ao grande número de resgates do
da memória, mas provavelmente
passado que emergem de diversos
negamos que poderia existir uma ética,

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muito mais do que simplesmente uma 2003: 35)1. Ao contrário destes autores,
patologia do esquecimento” no entanto, no campo que Halbwachs
(HUYSSEN, 2005: 22). inaugura, as memórias de um indivíduo
nunca são só suas, uma vez que
Diante da importância que o conceito de
nenhuma lembrança pode existir
memória coletiva tem adquirido para o
apartada da sociedade.
entendimento de diversas áreas das
Ciências Humanas, o presente artigo A influência para essa nova abordagem
busca estudar as primeiras é claramente durkheimiana: do mesmo
configurações em torno desta temática. modo em que Durkheim (2005)
As mortes trágicas e prematuras do transferiu a noção do suicídio (antes
sociólogo Maurice Halbwachs e do tido como um fenômeno puramente
historiador Marc Bloch interromperam individual) para um plano sociológico,
uma profícua discussão que se dava em Halbwachs opera uma inversão
torno do conceito de memória coletiva. semelhante em relação à memória, ao
O objetivo do presente artigo é resgatar entendê-la como um fato social que
esse debate, bem como estudar como poderia ser delimitado através da
ele influenciou nos desdobramentos pesquisa de padrões de comportamento.
posteriores em torno do tema. Os escritos de Halbwachs são um
ataque direto ás teses psicologizantes da
memória, representadas na época,
principalmente, pela figura de Charles
Blondel. Segundo este autor, a memória
individual não é só uma condição
necessária, mas também suficiente para
a recordação e para o reconhecimento
das lembranças. A obra de Halbwachs –
a partir da publicação, em 1925, de Les
Cadres Sociaux de la Memoire – se
estrutura contra esse argumento, ao

1
Como explica Santos (2003: 50-51): “Bergson
Maurice Halbwachs (1877-1945) construiu uma teoria a partir da mediação entre
atitudes adaptativas, orgânicas e intuição e
Maurice Halbwachs não só foi o subjetividade. Respondeu às crenças no
determinismo da matéria sobre o espírito
primeiro estudioso a cunhar o termo defendendo uma relação entre ambas. Freud
“memória coletiva”, como também foi o desenvolveu conceitos que tinham por base
primeiro a pensar em uma dimensão da diferentes sistemas psíquicos, um referenciado
memória que ultrapassa o plano na ‘matéria’ e outro na relação do indivíduo
individual, dominante nas pesquisas até com o mundo. Trouxe para o corpo humano a
dualidade entre matéria e espírito. Halbwachs
então. Nomes importantes como rejeitou ambas as teorias sobre a memória e
“Marcel Proust, William James e deslocou o eixo do debate: as vivências do
Sigmund Freud, contemporâneos de passado não estavam materializadas em nossos
Halbwachs, estavam todos a sua corpos ou mentes, mas na sociedade. Afirmou
maneira voltados para o estudo da não só que não podemos armazenar fisicamente
a totalidade de nossas experiências passadas,
memória como forma de conhecimento mas também que a memória não pode ser
da realidade, amplamente fundada em explicada a partir do conflito entre a matéria e o
características subjetivas” (SANTOS, espírito, ou mesmo, entre o consciente e o
inconsciente”.

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postular que não só nós nunca nos pelo fato de estarem no ponto em que se
lembramos sozinhos, como também o cruzam duas ou mais séries de
fato de que a memória se esvai quando pensamentos, pelos quais elas se
nos afastamos do grupo que estava a ela interligam a tantos outros grupos
ligado. diferentes” (HALBWACHS, 2006: 48).
Como exemplo, o autor cita os sonhos Neste sentido, não é senão “a partir de
como um momento em que a uma análise sutil da experiência
recordação está de todo ausente, uma individual de pertencer a um grupo, e na
vez que, muito embora ele apresente base do ensino recebido dos outros, que
fragmentos que se assemelhem a a memória individual toma posse de si
lembranças ou reminiscências, nunca mesma” (RICOEUR, 2007: 130). E isso
uma cena completa do passado aparece porque a memória individual não é nada
diante dos olhos. A hipótese delineada mais do que a memória formada pela
por Halbwachs é que isso acontece vivência de uma pessoa em diversos
porque é justamente no sonho que se grupos ao mesmo tempo. É a soma não
pode observar o momento em que o redutível destas várias memórias
espírito está mais afastado da sociedade. coletivas que se alocam no ser e
Neste sentido, sem este suporte social representam a sua parcela individual de
que confronta a nossa consciência com experiência. Em outras palavras, a
as memórias de outros, toda recordação constituição da memória é, em cada
se faz impossível. indivíduo, uma combinação aleatória
das memórias dos diferentes grupos nos
Algo parecido está em suas análises
quais ele sofre influência – e isso
sobre as memórias de infância. Aqui,
explicaria, em grande medida, porque as
Halbwachs afirma que nós não somos
pessoas guardam memórias
capazes de armazenar as nossas
diferenciadas.
imagens e pensamentos da primeira
infância porque, nesta fase da vida, É neste sentido que, “poderíamos
“nossas impressões não se ligam a invocar um número enorme de
nenhuma base enquanto ainda não nos lembranças muito originais de adultos,
tornamos um ser social” que se apresentam com tal característica
(HALBWACHS, 2006: 43). de unidade, que parecem resistir a
qualquer decomposição”, mas, no
Ele coloca que mesmo quando adultos
entanto, “para esses exemplos,
julgam lembrarem-se de fatos da
poderíamos sempre denunciar a mesma
infância nos quais eles estavam
ilusão”. Essa ilusão se refere ao fato de
completamente sozinhos, essa
que a influência destes diferentes
impressão de uma memória puramente
grupos só encontra ressonância no
individual não passa de uma ilusão. Isso
próprio interior do indivíduo e, desta
porque a criança, mesmo sozinha, não
forma, “se certo membro do grupo vier
deixa de sofrer a influência do grupo
a fazer parte ao mesmo tempo de um
familiar (o principal nessa época da
outro grupo, se os pensamentos que ele
vida). Além disso, opera-se um
tem de um e do outro se encontram de
contraste entre a integração no núcleo
repente em seu espírito... teoricamente
familiar e o sentimento de abandono,
só ele perceberá esse contraste”
aliados às experiências posteriores da
(HALBWACHS, 2006: 49). O
vida adulta: “portanto, o conteúdo
indivíduo participa, portanto, de dois
inicial dessas lembranças, que as
tipos de memórias, sendo a individual,
destaca de todas as outras, se explicaria

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uma mera combinatória das inúmeras inercial da tradição” (SORGENTINI,
coletivas. 2003).
Assim, as memórias não estariam
materializadas nos corpos ou mentes,
mas na sociedade circundante, através
dos diversos grupos que a compõe. E
isso se dá na medida em que, para
recordar, os indivíduos precisam utilizar
convenções sociais que não são criadas
por eles – afinal, “o funcionamento da
memória individual não é possível sem
esses instrumentos que são as palavras e
as ideias, que o indivíduo não inventou,
mas toma emprestado de seu ambiente”
– e também de outras pessoas que
possam legitimar suas próprias
recordações – “para evocar seu próprio
Marc Bloch (1886-1944)
passado, em geral a pessoa precisa
recorrer às lembranças de outras” Em sua resenha sobre Les Cadres feita
(HALBWACHS, 2006: 72)2. em Dezembro de 1925 para a Revue de
Em resumo, as teses trabalhadas em Les Synthèse, Marc Bloch elogia o trabalho
Cadres Sociaux de la Memoire - que de Halbwachs, apresentando-a como
serão posteriormente flexibilizadas, mas uma “obra extremamente rica e
ainda permanecerão presentes em toda a sugestiva” (BLOCH, 1998: 224) para os
obra de Halbwachs – estão relacionadas, estudos históricos. Não obstante isso, o
basicamente, à noção de que as historiador tece uma série de críticas ao
memórias devem estar sujeitas aos seus livro que, de certa forma, marcam um
suportes sociais, denominados quadros ponto de partida sobre as depurações
sociais de memória. A inovação de seu que teóricos posteriores dariam em
pensamento se ancora no fato de que o torno desta temática.
autor “incorpora a lógica dos grupos no Para entendermos a crítica de Bloch, é
contexto de um tratamento em que as necessário sublinhar que, para ele, pelo
representações coletivas – que menos uma parte dos fenômenos que
condicionam e possibilitam a atividade são chamados de memória coletiva é, na
da memória – vinculam as necessidades verdade, “fatos da comunicação entre
práticas destes grupos com a resistência indivíduos”. Isso porque “para que um
grupo social cuja duração ultrapassa
uma vida humana se ‘lembre’ não basta
2
Para Halbwachs (2006:31), “outras pessoas que os diversos membros que o
tiveram essas lembranças em comum comigo. compõem em um dado momento
Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las conservem no espírito as representações
e, para melhor me recordar, eu me volto para que dizem respeito ao passado do
elas, por um instante adotando seu ponto de
vista, entro em seu grupo, do qual continuo a grupo”. Antes de qualquer coisa, “é
fazer parte, pois experimento ainda sua também necessário que os membros
influência e encontro em mim muitas ideias e mais velhos cuidem de transmitir essas
maneiras de pensar a que não me teria elevado representações aos mais jovens”
sozinho, pelas quais permaneço em contato com (BLOCH, 1998: 229).
elas” (HALBWACHS, 2006: 31).

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Ao tratar a questão da memória coletiva memória histórica possui uma relação
como um dado comunicacional, várias muito mais exterior.
implicações são articuladas a partir da A história, para Halbwachs, é entendida
noção de que os mesmos problemas que
como a representação de um passado
afligem a comunicação atingem também
“sob uma forma resumida e
a memória coletiva. E isso diz respeito,
esquemática”, como “o epitáfio dos
basicamente, ao fato de que ela está
fatos de outrora, tão curto, geral e pobre
sujeita a erros de transmissão, a mal
de sentido como a maioria das
entendidos e até mesmo, a distorções
inscrições que lemos sobre os túmulos.
conscientes em torno do passado. Bloch
A história parece um cemitério em que
coloca, portanto, a possibilidade de
o espaço é medido e onde a cada
existirem falsas recordações e enganos
instante é preciso encontrar lugar para
dentro da memória coletiva. Ele cita
novas sepulturas” (HALBWACHS,
como exemplo o fato de que 2006: 74)4. Essas informações frias da
“essencialmente tradicionalistas, as História só adquiriam um sentido mais
sociedades da Idade Média sonharam denso se puderem ser correlacionadas a
reviver a sua memória; mas esta alguma vivência pessoal – da própria
memória não foi, em muitos aspectos, pessoa ou de seu grupo mais imediato
mais que um espelho infiel” (BLOCH, ligado pelos vínculos entre gerações. É
1998: 231)3. somente através do vínculo geracional
Outra crítica que Bloch faz ao que se pode efetuar a transição entre a
pensamento de Halbwachs está na memória aprendida e a memória vivida.
divisão bastante demarcada que o Objetivamente, Halbwachs aponta duas
primeiro faz entre história e memória. características principais que
Isso porque, se Maurice estabelece uma distinguem as memórias coletivas das
relação íntima entre a memória memórias históricas. A primeira delas
individual e a memória coletiva, de se relaciona ao fato de a memória
maneira que as duas se interpenetram, a
coletiva ser uma corrente de
pensamento contínuo, não artificial, que
retém o passado que ainda está vivo (ou
3
Outro exemplo explorado por Bloch está na que é capaz de viver na consciência do
memória coletiva religiosa, mais grupo) e se confina aos limites desse
especificamente, nos ritos cristãos, quando ele grupo. A História, pelo contrário, é
se pergunta se o seu significado atual se construída a partir de muitas divisões e
confunde com o seu significado primitivo.
Segundo o historiador, “poucos historiadores da cortes temporais artificiais e se coloca
religião concordam. Vale a pena recordar que a acima dos grupos. A outra característica
idéia de comunhão divina nada tem de remete à existência de muitas memórias
especificamente cristão; no primeiro século da coletivas, na medida em que cada grupo
nossa era, fazia parte do patrimônio comum, nos tem uma história, enquanto a História se
litorais do Mediterrâneo, para um grande
número de pessoas; não vai buscar sua origem pretende como universal.
ao relato da Ceia; este relato, pelo contrário e Assim, a História surge no exato ponto
com toda a evidência, só por ela se explica. Do
mesmo modo, só secundariamente foi possível
em que a tradição termina, no instante
ligar o banquete pascal à linda história que em que a memória social se decompõe
agora lhe serve de justificação; e há que admitir
4
que a sutura ficou muito mal feita. De modo que Apesar de o trecho citado dizer respeito a obra
temos aqui falsas recordações. Irá M. A Memória Coletiva, Halbwachs publicou um
Halbwachs estudar um dia destes os enganos da artigo com este mesmo teor na revista dos
memória coletiva?” (BLOCH, 1998: 230). Annales. Sobre isso, ver SORGENTINI, 2003.

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ou se esgarça até o ponto de ruptura. insuspeitos em sua proveniência
Mais do que isso, quando a memória de declarada não são, necessariamente, por
uma sequência de acontecimentos perde isso, testemunhos verídicos” (BLOCH,
o seu suporte de um grupo, quebra-se 2001: 97)5.
um elo fundamental da memória, pois A questão da transmissão da memória
esta só pode ser exercida na medida em
como um problema de comunicação é
que ainda existam indivíduos que
aprofundada nos seus escritos ulteriores
participaram destes eventos e que tem a
e se estrutura em dois termos que dizem
condição de relatá-lo. Neste sentido, a
respeito, de um lado, à noção de que a
memória desaparece quando a História
tradição não pode ser considerada como
surge.
contínua e, de outro, à atribuição de
Como bem aponta Sorgentini (2003), uma função especial para a história
“mais do que o caráter oposicional do relacionada à crítica da tradição6
vínculo e a apelação ao caráter objetivo (SORGENTINI, 2003).
da história, o problema da consideração
Quanto a isso, podemos dizer que, para
halbwachiana reside na tensão entre Bloch, a relação entre o presente e o
essa objetividade ‘ingênua’ e a
passado é bastante sutil na medida em
constatação da existência de uma que não é possível estabelecer uma
função prática da história detectada a distinção entre o “atual e o inatual está
luz da exploração das funções da longe de se ajustar necessariamente pela
memória”. A história, neste sentido, média matemática de um intervalo de
acaba funcionando no pensamento de tempo” (BLOCH, 2001: 61). E isso
Halbwachs como um mecanismo de porque o passado se apresenta como um
restabelecimento da continuidade da conjunto vivo de representações, que
tradição. É justamente este ponto que se podem mudar tão incessantemente
choca com as idéias de Bloch a respeito
das pontes que podem ser estabelecidas 5
O autor acrescenta que, no caso destes
entre o presente e o passado e se testemunhos inverídicos, “não basta constatar o
voltavam, mais especificamente, contra embuste. É preciso também descobrir seus
a visão tradicional de Halbwachs sobre motivos. Enquanto subsistir uma dúvida sobre
a objetividade do conhecimento suas origens, ele permanecerá em si mesmo algo
de rebelde à análise. (...) Acima de tudo, uma
histórico. Bem de acordo com o espírito
mentira enquanto tal é, a seu modo, um
da Escola de Annales, para Bloch, os testemunho” (BLOCH, 2001: 98).
fatos históricos eram produtos da 6
“Para que uma sociedade, qualquer que fosse,
intervenção ativa do historiador e, desta pudesse ser inteiramente determinada pelo
forma, os estudos da memória coletiva momento logo anterior àquele que vive, não lhe
bastaria uma estrutura tão perfeitamente
deveriam estar voltados às causalidades
adaptável à mudança que ficaria efetivamente
inerentes às ações sociais, não podendo desossada”. Mais do que isso, “seria preciso
ser derivadas de estudos empíricos ainda que as trocas entre as gerações operassem
sobre padrões de comportamentos. apenas, ouso dizer, em fila indiana, as crianças
só tendo contatos com seus ancestrais por
É, portanto, a partir de uma crítica à intermédio dos pais” (BLOCH, 2001: 64). Isso,
noção de “verdade” (pensada a partir no entanto, seria impensável – como provam,
dos mecanismos de transmissão da por exemplo, o intenso contato das crianças com
memória coletiva) que está estruturado seus avós nos anos de formação – e “a
observação comprova, ao contrário, que nesse
o argumento de Bloch. Como escreveria imenso continnum os grandes abalos são
posteriormente, “deveria ser supérfluo capazes de propagar desde as moléculas mais
lembrar que (...) os testemunhos mais longínquas até as mais próximas” (BLOCH,
2001: 64).

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quanto o presente: “essa solidariedade através das gerações” (BLOCH, 2001:
das épocas tem tanta força que entre 83).
elas os vínculos de inteligibilidade são E é por isso que a história “já não é a
verdadeiramente de sentido duplo”. E ‘memória universal do gênero humano’
assim, se “a incompreensão do presente como pretendia Halbwachs”, mas
nasce fatalmente da ignorância do “aspira a consecução de uma memória
passado”, também “talvez não seja universalista que expressa, antes de um
menos vão esgotar-se em compreender encontro com a tradição, a necessidade
o passado se nada se sabe sobre o de um exame crítico dos mecanismos de
presente” (BLOCH, 2001: 65).
sua transmissão e configuração através
A partir destas constatações, as das lembranças coletivas”
distinções entre a história e memória (SORGENTINI, 2003).
postas por Halbwachs perdem um Sobre este aspecto, a preservação dos
pouco o sentido, na medida em que
testemunhos, bem como a sua
ambas estão sujeitas a essa destruição ou o seu falseamento, “têm
determinação pelo presente. A sua origem nas forças históricas de
representação do passado, qualquer que caráter geral; não apresentam nenhum
seja, nunca pode escapar da intervenção traço que não seja perfeitamente
ativa de quem o retrata. A história, inteligível; mas são desprovidas de
pensada desta forma, não pode ser um qualquer relação lógica com o objeto de
corpo fixo e, a medida que seu ponto de investigação cujo desfecho se acha, no
partida está sempre no presente, o entanto, colocado sob sua dependência”
historiador está sujeito ao fato de que (BLOCH, 2001: 86).
“no filme por ele considerado, apenas a
última película está intacta. Para Bloch enumera mesmo uma série de
reconstituir os vestígios quebrados das exemplos que apontam para este
outras, tem a obrigação de, antes, problema. Ele chega a indicar mesmo
desenrolar a bobina no sentido inverso que “do mesmo modo que indivíduos,
das seqüências” (BLOCH, 2001: 67). existiram época mitômanas” (BLOCH,
Assim como a memória, a história 2001: 99). Atribuições de falsas
também só tem sentido a partir de certas autorias, plágios, decretos pontificais
determinações do tempo presente. inventados e capitulares forjadas para
apoiar a autoridade da Sé romana, bem
E, neste ponto, nos encontramos como as evocações do romantismo que
novamente com a problemática da bebia tanto da fonte do primitivismo
transmissão das memórias coletivas. A quanto do popular são exemplos citados
crítica à tradição ganha tonalidades pelo historiador para enfatizar o fato de
idênticas, aqui, à crítica dos que “os períodos mais ligados à tradição
documentos, na medida em que, como foram também os que tomaram mais
os documentos não surgem sozinhos liberdade com sua herança precisa.
nos arquivos, “os problemas que a sua Como se, por uma singular revanche de
transmissão coloca, longe de serem uma irresistível necessidade de criação,
apenas o alcance de exercício de à força de venerar o passado,
técnicos, tocam eles mesmos no mais naturalmente se fosse levado a inventá-
íntimo da vida do passado, pois o que se lo” (BLOCH, 2001: 99-100)7.
encontra assim posto em jogo é nada
menos do que a passagem da lembrança
7
Em seu livro A Sociedade Feudal, Bloch
destina um capítulo sobre a memória coletiva e,

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As críticas de Bloch foram importantes, memória nacional, a forma mais
uma vez que influenciaram completa de uma memória coletiva”
sobremaneira os estudos posteriores em (POLLAK, 1989: 4).
torno do conceito de memória coletiva.
É justamente no reconhecimento desse
É bastante significativa, neste sentido, a elemento interno problemático da
abordagem de Michael Pollak, para memória coletiva – ligado à violência
quem Halbwachs, em grande parte simbólica e aos processos de dominação
como resultado de suas raízes - que se dá a mudança de olhar em torno
durkheimianas, teria sido incapaz de do tema. Diferentemente da abordagem
enxergar os elementos de dominação ou durkheimiana:
de violência simbólica existentes nas numa perspectiva construtivista,
diversas formas de memória coletiva. não se trata mais de lidar com os
Muito pelo contrário, Halbwachs a fatos sociais como coisas, mas de
enxergaria como um fator que analisar como os fatos sociais se
acentuação da força de coesão de um tornam coisas, como e por quem
grupo. E isso é devido ao fato de que eles são solidificados e dotados de
“na tradição européia do século XIX, duração e estabilidade. Aplicada à
em Halbwachs, inclusive, a nação é a memória coletiva, essa abordagem
forma mais acabada de um grupo, e a irá se interessar, portanto, pelos
processos e atores que intervêm no
trabalho de constituição e de
ao ressaltar o papel que ele exercia na sociedade formalização das memórias. (...) Ao
medieval, aponta os mesmos problemas de contrário de Maurice Halbwachs,
transmissão. Segundo o autor, “todavia, não nos ela acentua o caráter destruidor,
deixemos enganar: esta época, que tão uniformizador e opressor da
facilmente se voltava para o passado, possuía memória coletiva nacional. Por
dele apenas representações mais abundantes do outro lado, essas memórias
que verídicas. Tanto a dificuldade de subterrâneas que prosseguem seu
informação que existia, mesmo sobre os
trabalho de subversão no silêncio e
acontecimentos mais recentes, como a
inexactidão geral dos espíritos, condenavam a de maneira quase imperceptível
maioria dos trabalhos históricos a suportarem afloram em momentos de crise em
estranhas escórias. Toda uma tradição narrativa sobressaltos bruscos e exacerbados.
italiana, que começa desde os meados do século A memória entra em disputa. Os
IX, esquecendo-se de registrar a coroação do objetos de pesquisa são escolhidos
ano 800, fazia de Luís, o Pio, o primeiro de preferência onde existe conflito
imperador carolíngio. (...) Certamente que as e competição entre memórias
grandes falsificações que exerceram a sua acção concorrentes (POLLAK, 1989: 4).
sobre a vida política civil ou religiosa da era
feudal são ligeiramente anteriores a ela: a Além disso, elas acrescentam o fato de
pseudo-Doação de Constantino datava do século que a memória coletiva passa a ser vista
VIII que terminava; as obras da espantosa como sinônimo de representações ou
oficina à qual se devem, como trabalhos
principais, as falsas decretais atribuídas a identidades coletivas com dimensão
Isidoro de Sevilha e as falsas capitulares do histórica – campo de estudo que ganhou
diácono Bento foram um fruto da renascença espessura na década de 1980. “O
carolíngia, no seu florescimento. Mas o passado deixou de ser resgatado a partir
exemplo dado deste modo devia atravessar os de uma estrutura pré-determinada e
tempos. A colectânea canónica compilada, entre
1008 e 1012, pelo santo bispo Burchard de passou a ser compreendido a partir dos
Worms, fervilha de atribuições enganadoras e grupos sociais envolvidos em sua
de arranjos quase cínicos. Partes falsas foram construção” (SANTOS, 2003: 78).
forjadas na corte imperial” (BLOCH, 1982:
112).

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Referências: (org.). Comunicação, Acontecimento e
Memória. São Paulo: Intercom, 2005.
BLOCH, Marc. “Memória coletiva, tradição e
costume: a propósito de um livro recente”. In NORA, Pierre. Realms of Memory: the
BLOCH, Marc. História e Historiadores: construction of the French Past. Nova Iorque:
textos reunidos por Étienne Bloch. Lisboa: Columbia University Press, 1996.
Editorial Teorema, 1998.
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento,
__________. A Sociedade Feudal. Lisboa: silêncio”. Estudos Históricos. Volume 2,
Edições 70, 1982. número 3. Rio de Janeiro: CPDOC, 1989, p. 3-
15.
__________. Apologia da História ou o Ofício
do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o
2001. Esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,
2007.
HALBWACHS, Maurice. A Memória
Coletiva. São Paulo, Centauro: 2006. SANTOS, Myrian Sepúleda dos. Memória
Coletiva e Teoria Social. São Paulo:
__________. Les Cadres Sociaux de la
Annablume, 2003.
Mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.
SORGENTINI, Hernán. “Reflexión sobre la
HUYSSEN, Andreas. “Resistência à Memória:
memoria y autorreflexión de la historia”.
os usos e abusos do esquecimento público”. In
Revista Brasileira de História. Volume 23,
BRAGANÇA, Aníbal e MOREIRA, Sônia
ano 45, São Paulo, Julho de 2003.

*
ELIZA BACHEGA CASADEI é Mestranda em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com bolsa CNPQ.

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