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Reitor da Universidade de Brasília
José Geraldo de Sousa Junior

Vice-reitor
João Batista de Sousa

Diretora do Instituto de Artes


Izabela Costa Brochado

Vice-diretora do Instituto de Artes


Nivalda Assunção Araújo

Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Arte


Maria Beatriz de Medeiros

ISBN número: 978-85-89698-34-4


Instituto de Arte da Universidade de Brasília
Programa de Pós-Graduação em Arte
CNPJ: 00038174000143
Edição: 1
Ano: 2012
Local: Brasília - DF

Dados da Obra:
Título: Art - Arte e Tecnologia // MODUS OPERANDI UNIVERSAL
Organizadores: Cleomar Rocha, Maria Beatriz de Medeiros e Suzete Venturelli

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Kant e a neuroestética
Miguel Gally1

Resumo: A recolocação de alguns temas e descobertas trazidas pelo recém


criado campo da Neuroestética são tematizadas à luz da história da estética,
mais precisamente, a partir da contribuição de Immanuel Kant (1724-
1804). Privilegiou-se uma abordagem que reflete sobre o lugar da Estética
no projeto filosófico moderno clássico e seu deslocamento operado pela
Neurociência atual, questionando o que de novo e proveitoso é gerado
e proporcionado pela maneira como a Neuroestética investiga o estado
estético.
Palavras-chave: estado estético, neuroestética, Kant
Abstract: The replacement of some concepts and discoveries made by the
recently created field of the Neuroaesthetics are investigated through the light
of the history of aesthetics, to be more precise, from the view of Immanuel Kant
(1724-1804). This approach was focused: a) on the place of aesthetics within
the classic-modern philosophical project and its (dis)placement operated by
this new field of the Neuroscience; b) on an examination of what is positive and
on a critic of what is new through the way the Neuroaesthetics investigates the
aesthetic state.
Keywords: Aesthetic State, Neuroaesthetics, Kant

Algumas pesquisas recentes (Kawabata & Zeki: 2004; Jacobsen &


Schulz et all: 2006; Cinzia & Vittorio: 2009) no domínio das Neurociências
apresentaram grande interesse em descobrir se há e, havendo, qual ou
quais seria(m) o(s) correlato(s) neuronal (is) de uma experiência estética
e/ou de uma experiência estética do belo na arte visual (especialmente
na pintura). Esse campo de investigação, que inclui ainda as Ciências
Cognitivas, a Filosofia da Psicologia e a própria Psicologia, a Filosofia da
Mente e a Metafísica Contemporânea tem sido chamado de Neuroestética.
Para o cientista pesquisador, a descoberta das populações neuronais
e/ou das zonas específicas do cérebro que entram em atividade quando
o cérebro se depara com uma situação estética seria o ponto de partida
para reflexões que normalmente fizeram parte da Estética. Inclui-se nesse
campo novo questões como a da universalidade possível ou provável
de uma experiência particular e íntima ou a da relação entre recepção e
criação, já que essas zonas ativadas ou a maneira de ativação das células
no cérebro poderiam ser as mesmas, semelhantes ou estar associadas as
que são usadas/articuladas para criação artística. Podendo ainda incluir
nesse conjunto, sendo bastante otimista, pistas sobre o que para os
neurocientistas parece ser uma das grandes questões a desvendar, a ponte
entre uma conexão neural química/eletromagnética e seu correlato estado
de consciência, ou seja, a da (não)materialidade da consciência (Chalmers
2006; Damásio 2010).
Para o (cientista) pensador com preocupações especulativas em torno
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do sentido dessa eventual descoberta, ou investigação, restaria ainda se
debruçar sobre quais seriam as implicações dessas pesquisas para a Estética
e talvez para o domínio das artes, já que a Estética, por um tempo, esteve
ligada diretamente às artes. Gostaríamos também, aqui, de problematizar
algumas dessas implicações para a Estética e para o conhecimento em
geral observando-se suas condições de produção e contato com o mundo,
pois desde que se prestou atenção a uma estetização da vida/existência/
cultura a Estética está dissolvida na vida, na cultura e na existência também
como pensamento.
Caso não haja um correlato neuronal seguro, específico e regular
do estado do belo, como sugerem algumas pesquisa (Cinzia et all: 2009;
Kawabata et all: 2004), seria possível inferir, embora possa não estar
correto, que o belo remete a uma preferência particular, porque sempre
ocorreria de modo contingente no cérebro. Dessa inferência ter-se-ia
algo mais a favor da sentença usual segunda o qual “cada um tem seu
próprio gosto” ou “que a beleza é relativa”, e de que gosto e beleza não são
teorizáveis porque são aquilo que de mais íntimo e irredutível a conceitos
poderia haver. Salvo naquela pesquisa de Jacobsen, que conseguiu
identificar áreas específicas do cérebro que são ativadas, mas apenas para
uma situação estética ligada a formas geométricas simétricas (2006), cabe
lembrar que as situações propostas nessa pesquisa eram vinculadas à arte
visual e não à natureza, um campo tradicionalmente também vinculado
à Estética. Essa abordagem da Neurociência pensa a Estética e o estado
estético por um viés objetivo, tratando esse sentimento (esse estado
cognitivo) enquanto tendo um correspondente identificável no cérebro e
esse estado ou sentimento podendo ou não ser universalizável (caso seja
regular sua manifestação em zonas do cérebro), mas não a experiência
do belo propriamente. Trata-se de um (re)esclarecimento do estético, ou
seja, de um desencantamento da experiência do belo através de uma
naturalização.
Suponhamos, entrando ainda mais no tema por esse viés
desencantado, que temos a certeza de que um estado neuronal realmente
corresponde a um estado cognitivo, o estético, e que sua universalização
objetiva seja também a da experiência do belo e que posso pensar sua
universalidade objetivamente, materialmente. Eliminando a fronteira
entre estado cognitivo (não material) e estado neuronal (material), entre
estado subjetivo e a objetividade material relacionada a esse estado, o que
fizemos, propriamente, com o estado estético? Como deveríamos pensar
esse estado estético considerado agora materialmente? Com certeza,
essa seria uma nova Estética e muito diferente daquela pensada por Kant
quando escreveu a Crítica da Faculdade de Julgar publicando-a em 1790 e
que orienta grosso modo ainda hoje nossa visão do que seja a Estética e
o estado estético e sua crítica no final do século passado e início do XXI
(Cf. Danto, The Abuse of Beauty, 2003; Heidegger, A origem da obra de arte,
1936). E o que seria radicalmente diferente, o que de novo a Neuroestética
traria para a história da Estética?
Kant pensava o ajuizamento estético como parte de um processo de
estados cognitivos que só são possíveis porque o sujeito cognoscente
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consegue desvincular-se, nesse ajuizamento, de qualquer forma de


interesse que ele possa ter: na existência do objeto para seu prazer
imediato e meramente sensível; no uso e na determinação conceitual desse
objeto; ou mesmo, numa desvinculação frente ao significado que esse
objeto possa ter. Ainda com Kant, o sentimento do belo estaria baseado
não numa relação material com objetos, mas numa relação formal, ou seja,
indireta porque vincularia a intuição do objeto a uma capacidade de não
apreender com um conceito determinado o que esse objeto é ou para que
serve. Mesmo sabendo que ele pode ser muitas coisas e que pode servir
para muitas coisas a partir do momento em que não há mais a experiência
estética, mas que seu acontecimento pode servir, ser ou significar algo (Cf.
Kant, CJ, §§41 e 59, relativos ao interesse empírico pelo belo e o belo como
símbolo do moralmente bom). Em todo caso, Kant esperou alcançar uma
universalização do sentimento do belo independente de época, cultura
ou região, uma espécie de modus operandi universal, apesar de enfatizar
sua subjetividade enquanto um tipo especial de afeto. Basta lembrar
que tal afetividade universal se dá como um sentido comum (sensus
communis) baseado em um modo peculiar em que as mesmas faculdades
utilizadas para conhecer discursivamente (entendimento e imaginação)
se rearticulam, quando provocadas pela forma de alguns objetos. Nesses
casos, tais faculdades não se ocupam mais com a tarefa de conhecer ou
determinar um objeto e sua convivência (jogo das faculdades) fora de
uma relação de conhecimento para com o objeto gera um prazer reflexivo
(desinteressado/livre). Tal estado estético do belo pode ser esperado
de todos porque tal disposição alternativa das faculdades de conhecer
pressupõe essas mesmas faculdades para que a comunicação, por exemplo,
seja possível.
A Neuroestética quer pensar a relação entre esse estado e seu
correspondente neuronal, ou seja, material. Ora, enquanto Kant tentou
desmaterializar o sentimento do belo através de um processo de
subjetivação (desencantando o estético, mas nem tanto, porque embora
universal permaneceria imaterial!), a Neuroestética quer rematerializar
tal sentimento (desencantando completamente o estado estético!). A
materialização do belo ficou por conta dos estetas, filósofos e teóricos
das artes e da natureza que viram em critérios objetivos tais como
proporção, simetria, harmonia, etc. as, em termos modernos, condições de
possibilidade e o fundamento (do sentimento) do belo. Seguindo essa pista,
a pesquisa de Jacobsen (et all: 2006) com experiências estéticas a partir de
formas geométricas e simétricas foi, curiosamente, a que mais avançou
nessa tarefa de rematerialização do estético conseguindo mapear um
conjunto regular embora variado e complexo de zonas do cérebro ativadas
com essas experiências estéticas escolhidas. Ora, se ficou atribuído a Kant a
revolução do gosto por ele ter revertido o ponto de partida para se pensar o
belo colocando o sujeito e o modo como somos afetados por um processo
cognitivo peculiar (o do jogo das faculdades), se isso tornou-se o centro,
será que podemos dizer que a Neurociência opera também uma revolução
na Estética? Sim, mas nessa pergunta esconde-se um detalhe muito
importante: ao rematerializar o sentimento do belo e seu estado estético,
não estaria a Estética se perdendo de alguma maneira? Ao se naturalizar
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o sentimento não se estaria aí trazendo a Estética para uma condição de
manejo objetivo que perdurou na história da Estética fortemente até
Kant? Não haveria nesse processo um impedimento e uma perda do seu
lugar próprio no campo do saber (conhecimento) em geral e da cultura?
Talvez sim, mas ora, também esse lugar específico de um conhecimento
tem saído de moda com a perda das fronteiras delimitadas nas trans/multi/
pluri/interdisciplinaridades dos conhecimentos e saberes. Enfim, o que,
propriamente, está questão?
Tratar a consciência como cérebro faz parte do projeto cultural
e epistemológico moderno clássico (XVII-XVIII) no sentido de ser
o aprofundamento da sua questão principal: conceituar e teorizar
objetivamente o máximo possível desencantando o mundo ao mesmo
tempo em que ele é desvendado e esclarecido ao se apontar e acreditar
em uma regularidade desse e nesse mundo. No caso da Estética, ela foi um
lugar à parte no miolo desse mesmo projeto na medida em que, apesar
de se conceituar tal sentimento definindo-o, não se poderia, contudo, ter
conceitos determinados ou referências ao que o objeto é ou para que serve
como parte fundamental do “esclarecimento” da experiência estética, que,
ainda segundo Kant, usaria as mesmas faculdades de conhecer, mas fora de
uma relação de conhecimento para com o objeto. O que a Neuroestética
transgride e propõe enquanto, eu vou sugerir, revolução da rematerialização
do sentimento do belo: é recolocar sob bases neuronais tal materialidade
para que tal sentimento possa ser determinado conceitualmente nessas
condições específicas e identificáveis tal como se fosse um objeto. Isso seria
ampliar o alcance do projeto cultural moderno de conhecimento para um
domínio resguardado, por esse mesmo projeto, das suas próprias investidas
para desencantar o mundo como um todo. Mas seria isso, então, o fim da
Estética?
Não, certamente que não, porque tal tratamento material/naturalizante
do estado estético inauguraria uma vertente das investigações estéticas
dentro das ciências, com a tarefa de cada vez que descobrir mais detalhes
desse funcionamento, então mais distante ficará da Estética do gosto,
contudo mais próxima a estados de fantasia e liberdade, mesmo que
aparentemente protegido dos seus encantos, sem saber ao certo quais as
repercussões desse contato inaugural e tão próximo. Não se trata de saber
quem vai ganhar influenciado mais a outra com suas peculiaridades, se uma
desmaterialização da ciência através do estético ou uma rematerialização
do estético pela ciência. Ainda: se um reencantamento do saber/do
conhecimento em geral (aqui, do científico) ou um desencantamento
completo da Estética como ponto final do projeto moderno. Não se trata de
saber quem vai ganhar porque não há disputa. Trata-se sim de reconhecer,
mais uma vez, uma passagem aberta entre dois domínios apartados
estruturalmente, se se pensa somente com Kant, ou seja, da passagem entre
uma visão desencantada da filosofia crítica (científica) e o encantamento
ligado ao estado estético (fantasia e liberdade).
Se a ciência se coloca como revolucionária dentro da história da Estética
porque rematerializa suas condições de possibilidade, abrindo para a
ciência um campo até pouco tempo cego, por outro lado a Estética (e isso
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serve também para arte computacional) entra dentro do mundo da ciência


não apenas enquanto presença reforçada da liberdade criativa (o que a
ciência também dispõe porque cria), mas decisivamente como crítica da
ciência, sendo uma brecha do encanto impulsionando novas descobertas. A
presença da liberdade estética ou da liberdade da atividade criadora artística
dentro do mundo da ciência já se mostra visível, mas pouco sabemos
(embora muito se especule!) da repercussão das eventuais descobertas
dos correspondentes neuronais da experiência estética/ do belo para a
atividade criadora nas artes e nas ciências também. Aqui, evidentemente,
precisa-se fazer um ajuste nessas pesquisas da Neuroestética, que é a de
ampliar do belo para a experiência de arte em geral o foco da investigação
desses correspondentes neuronais. E a de ter a certeza que podemos ter
alguma experiência estética ou artística dentro de um Scanner, uma
questão de método completamente desencantada que me faz lembrar de
um projeto de Yure Firmeza e sua “experiência de gavetão”... especulações
à parte, até aonde pude perceber em algumas pesquisas atuais, parece
mesmo é que o cérebro anda a desafiar encantando os cientistas quando
não se deixa mapear materialmente de maneira integral nesse estado
estético/ou de beleza... esses estados seriam como aquelas sereias que
seduziam e cantavam para Ulisses amarrado no mastro do navio em seu
retorno para casa, parecem colocar em questão um retorno seguro para a
casa da ciência!

Referências bibliográficas
Chalmers, David J. (1996) The Conscious Mind: In Search of a
Fundamental Theory. Oxford: OUPress, 1996.
Cinzia, DD & Vittorio, G. (2009) “Neuroaesthetics: a review”. In Curr. Opin.
Neurobiol. Dec; 19(6): 682-7, 2009.
Damasio, Antonio (2010). Self comes to Mind: Constructing the Conscious
Brain. New York: Pantheon Books.
Danto, Arthur C. (2003) The Abuse of Beauty, Chicago: Open Court.
Heidegger, Martin. (1936) Der Ursprung des Kunstwerkes [A origem da
obra de arte]. Stuttgart: Reclam, 2003.
Jacobsen, T., Schulbotz, RI. et all. (2006) “Brain Correlates of Aesthetic
Judgment of Beauty”. Neuroimage Jan 1:29(1): 276-285 [Errata Aug 1; 32(1)
486-7, 2006], 2006.
Kawabata, H. & Zeki, Semir. (2004) “Neural Correlates of Beauty”. In J. of
Neurophysiol. 91: 1699-1705, 2004.
Kant, Immanuel. Crítica da Faculdade de Julgar (1790). Rio de Janeiro:
Forense, 1994.

1 Professor pesquisador do Instituto de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília.

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