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JACQUES RANCIÈRE E A MODERNIDADE DO MOVIMENTO

Jacques Rancière and the modernity of movement

Osvaldo Fontes Filho


Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP

Resumo: Este texto expõe alguns momentos da reflexão de Jacques Rancière


em torno de uma “contra história da modernidade artística”, segundo a qual
uma concepção renovada do movimento e da ação dramática teria surgido nos
espetáculos de variedades e de dança em fins do século XIX, com reflexos na
mecânica das performances no cinema mudo.

Palavras-chave: Modernidade; Movimento; Pantomima/teatro/cinema; Jacques


Rancière.
Abstract: This text exposes some moments of Jacques Rancière's reflection on
a “counter-history of artistic modernity” by which a renewed conception of body
movement and dramatic action would have emerged in the spectacles of
varieties and dance in the late nineteenth century, with reflections in the
mechanics of performances in silent movies.
Keywords: Modernity; Movement; Pantomime/theater/cinema; Jacques
Rancière.

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Em 1879, o espetáculo de régime esthétique de l’art (2011),


um grupo de acrobatas ingleses se objetiva deslegitimar a doxa
produzia em Paris, no Théâtre des dominante que faz do poeta
Folies-Bergère. Palhaços e hermético, à procura por uma
malabaristas, os cinco irmãos linguagem pura, apartado das
Hanlon-Lees conheceram grande formas da cultura popular, um dos
popularidade nos anos 1860-1880. paradigmas do espírito moderno.
Suas apresentações se distinguiam Em contrapartida, o trabalho de
pela exuberância técnica com que Rancière, em Aisthesis, de
propunham verdadeiras proezas consignação dos momentos em
acrobáticas, no limite da que a Arte moderna encontra seus
possibilidade física. Números de ritmos e contrarritmos, mostra um
trapézio se alternavam com Mallarmé convencido de que a
sketches de pantomima, nos quais linguagem se renovava nas artes
cenários elaborados permitiam o do movimento, particularmente nos
aparecer e desaparecer feérico dos espetáculos de variedades dos
corpos, de grande efeito ilusionista. pequenos teatros ou naqueles de
Mallarmé se apercebe que ali, de dança do music-hall. A figura do
algum modo, se arruinava a boa poeta seduzido por novas esferas
ordem das intrigas canônicas e a da experiência sensível reforça em
verborragia do teatro convencional, Aisthesis uma apreciação do
e mesmo o sentido das popular que estaria na base de
convenções sociais. Fato é que, ao certa modernização da
radicalizar uma assombrosa sensibilidade. Diga-se que perfilar
estética do movimento, os protagonistas de um renovado
acrobatas ingleses faziam da tecido sensível, e dos novos
pantomima uma arte do esquemas de sua inteligibilidade,
imprevisível, onde toda posição faz parte de uma prosa de
estável do corpo permanecia ao retificação em tom de exortação
sabor de sua iminente ruína. contra esquemas explicativos
consagrados – “que não nos
A evocação do nome de
enganemos”, “cumpre bem
Mallarmé, feita na cena nº 5 do livro
de Rancière, Aisthesis: scènes du compreender”, “é preciso bem ver”

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são expressões recorrentes na a seu fim”2. Portanto, referidas a


escrita de Rancière. De fato, a partir de testemunhos diretos, as
“contra-história da modernidade práticas cênicas comentadas por
artística” (2011a, p. 13)1 a que ele Rancière não são tanto “obras
se propõe, por meio de uma significativas”, por seu hipotético
ensaística que se recusa a caráter paradigmático, quanto
generalizar o que se particulariza singularidades (de uma
nos arquivos, empenha-se em performance ou de um comentário)
trazer à luz momentos esquecidos, que põem exemplarmente em jogo
episódios de alguma inflexão cuja um medium, ou a partir das quais
memória foi de algum modo se alteram as disposições dos
reprimida pelas histórias oficiais. corpos, se reconfiguram suas
capacidades, aquelas que lhe eram
As “cenas” reportadas em
Aisthesis não constituem, porém, comumente atribuídas, bem como
os modos de percebê-las e pensá-
meros exemplos ou episódios de
las. Ainda que atores em
uma narrativa maior. As novas
espetáculos de entretenimento, os
experiências do popular (do
funâmbulos que seduzem Mallarmé
comum, do prosaico), que se
não fazem justiça meramente à
estabelecem em um regime
criatividade inovadora, mas
estético da arte, com seu modo de
também ao fundo de reflexividade
equivalência e co-implicação entre
em ato – de tessitura e de re-
as diferentes práticas, não motivam
tessitura, como aprecia se
o esforço por uma teoria global.
expressar Rancière – em torno de
“De um modo geral,” testemunha
práticas de expressão que de
Rancière (2015) “estou mais
algum modo mobilizam registros de
interessado pelo inventário aberto
um renovado meio sensível, de um
dos possíveis de um regime do que
“novo meio de experiência, um
pela história destinal que o conduz
novo mundo técnico que é,

1 2
Todas as passagens de textos de Jacques Conf. <https://blogs.mediapart.fr/bertrand-
Rancière – e de outros autores aqui citados – dommergue/blog/310815/entretien-avec-
que ainda não possuem edição brasileira estão jacques-ranciere-ou-en-est-lart>. Acesso em
em tradução minha. 03/11/2018.

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alternadamente, um novo mundo interessantes que este século


sensível e um novo mundo social” produziu”, capazes de resgatar seu
(RANCIÈRE, 2016, p. 33). Ao público “da vil resignação e da
mesmo tempo em que procuram platitude universal” que o
mostrar um pensamento que se assoberba. Os palhaços-acrobatas
constrói, as “cenas” de Aisthesis seriam os verdadeiros poetas de
põem em causa duas separações seu tempo por permanecerem
comumente reivindicadas pela instintivos em um mundo repleto de
historiografia ortodoxa: entre as lugares-comuns. Eles seriam,
diferentes práticas da Arte, por ainda, capazes de um pensamento
força da especificidade como que “plana alado e livre acima das
dogma de modernidade (ou de tolices atarefadas” (BANVILLE
modernismo), e entre estas e os apud RANCIÈRE, 2011a, p. 101).
discursos que elas motivam. De Por meio de suas evoluções
certo modo, a “cena” faz justiça não acrobáticas, eles se libertam da
tanto ao que se passa diante dos gravidade física; por seus gestos
olhos quanto às exigências de uma exagerados, se furtam às normas
implicação na trama espectatorial e sociais; por seu sentido fino do
interpretativa de uma ideia de arte absurdo, anulam as convenções da
e da realidade sensível a que esta ação teatral. Pode-se assumir que
pertence, o que faz do comentário o juízo aponta para uma arte
rancieriano um exercício popular como a forma já existente
essencialmente parafrástico. da arte pela arte: uma arte da
performance pura, desembaraçada
Théodore de Banville, uma
de qualquer pedagogia moral ou
das tantas referências textuais de
social. Efetivamente, Rancière
Rancière, também comenta o
comenta, os acrobatas ingleses
espetáculo dos artistas ingleses.
têm a rapidez necessária para
Poeta e teatrólogo adepto da arte
transfigurar o rosto humano, o
pela arte, cioso de seus
lampejo do olhar que tudo sabe
hermetismos, Banville não se
dizer no mutismo, uma agilidade
impede, porém, de emitir um juízo
que lhes permite confundir num só
inequívoco: os Hanlon-Lees seriam
movimento desejo e ação, assim
“os personagens mais

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como a energia instintiva mesma burlescas que se debatem em


do animal, capaz de suprimir, “com cena, esmagadas, esquartejadas,
a distância do pensamento ao ato, sacudidas como marionetes por
aquela do possível ao impossível” uma mão invisível, seriam
(RANCIÈRE, 2011a, p. 104). demonstrativas da vida em sua
lógica mesma.
Não há lirismo nesse flerte
com o impossível dos movimentos, À evidência, os artistas
nessa “idealidade da pantomima”, ingleses escapavam do mero
mesmo porque ela é devedora de registro da ginástica e da proeza
algumas artimanhas técnicas circenses para encarnarem uma
bastante precisas. E porque à dramaturgia visual sui generis. Fato
graça aérea desses corpos de é que seus cenários, em constante
improvável agilidade vêm se mutação, permitiam peripécias
contrapor “encontros violentos, visuais que prevaleciam sobre o
entrechoques, quedas: são corpos encadeamento roteirizado dos
que escalam alturas e delas acontecimentos. O domínio do
degringolam, se esborracham ao movimento, ressaltava um
solo e se reerguem entre observador da época, lhes permitia
saraivadas de tapas” (RANCIÈRE, passar da “fixidez [do] tableau
2011a, p. 105). A dualidade entre a vivant [a] uma inenarrável
graça matreira do palhaço e a acrobacia, iludindo mesmo a
agitação violenta do acrobata rapidez da visão pela justeza das
deixa-se evidentemente explicar cambalhotas”. Donde a impressão,
como expressão do conflito entre o por parte do espectador, que se era
ideal e a vida empírica. A esse convidado a uma zona indistinta
respeito, porém, Rancière retém a entre sonho e realidade. “Como em
observação de Banville: as um sonho, por força de intensidade
extravagâncias dos Hanlon-Lees e decisão, seus atos são mil vezes
seriam da ordem de um verdadeiro mais reais que a realidade, e,
realismo, da vida em sua sobretudo, não admitem nenhuma
intensidade devorante e desprovida objeção” (BANVILLE apud
de sentido. As personagens MARTINEZ, 2009, p. 163). Aos

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olhos de Mallarmé, os Hanlon-Lees pensamentos e emoções, de


mostravam ser os “reveladores” de romper com a lógica causal das
uma modernidade assentada nos intrigas e a semiologia da
“raccourcis”, nos “lampejos” e na expressão das paixões
“simplicidade vertiginosa” (RANCIÈRE, 2011a, p. 108).
(MALLARMÉ apud BONNET, 2013, Deslegitimava-se, enfim, a ideia de
p. 453). Razão porque não restava uma linguagem dos sentidos
às demais artes senão se integralmente motivada. A fórmula
dobrarem a essa nova rítmica do da arte popular seria, então, aquela
mundo. de uma performance sem razão: o
personagem popular é o
Tal histrionismo atlético
executante virtuose de uma tarefa
desses pierrôs-acrobatas dos
para a qual permanece indiferente.
novos tempos, que não deixavam
As palhaçadas dos funâmbulos
de ser alegoristas das paixões, “ao
forneceriam o modelo de uma arte
levarem ao paroxismo a análise da
teatral desembaraçada da
máscara humana”, como sustenta
Zola (apud MARTINEZ, 2009, engenhosidade das intrigas da
comédia de costumes. Rancière
p.164), desautorizava as lógicas
convoca aqui a apreciação de
causais da verossimilhança e da
Théophile Gautier acerca do teatro
imitação, os códigos dominantes da
popular:
conveniência expressiva que desde
a época clássica entendia a obra
tudo [ali] se ata e se desata
de arte em termos de mímesis. com admirável
Razão porque Rancière considera desengajamento: os efeitos
a pantomima um antiteatro ou um não têm absolutamente
teatro isento do academismo da nenhuma causa, e as causas
nenhum efeito [...]. Essa
tragédia, assim como da grosseria confusão e desordem
burguesa do melodrama ou da aparentes, no fim das contas,
comédia de costumes (RANCIÈRE, fornecem mais exatamente a
2011a, p. 106). A força da vida real sob seus aspectos
caprichosos que o mais
pantomima estaria em sua rebuscado dos dramas de
capacidade de se substituir às costumes. (GAUTIER apud
palavras para exprimir RANCIÈRE, 2011a, p. 110)

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Uma performance cênica, de arte como aquela de um grande


egressa dos meios circenses, corpo fragmentado e da
desposa as idas e vindas da vida multiplicidade dos corpos inéditos
em sua ausência de razão. Com o nascidos dessa fragmentação”
que contrastar uma arte dramática (RANCIÈRE, 2011a, p. 14). Drama
afeita, desde Aristóteles, aos fulgurante por sua imageria
enredos que entendem imitar as convulsionada, a desorganização
razões da vida por encadeamento performática dos corpos despertou
de causas e efeitos. Corpos em mais de um espírito a sensação
entregues a estímulos implacáveis, de uma arte absoluta com destino
à vertigem de rasteiras, socos e seguro por constituir “simples
tapas, que “fazem a cacofonia de exibição da doença moderna da
uma artilharia”, nos termos de alma e da civilização” (RANCIÈRE,
Baudelaire, prestavam-se mesmo a 2011a, p. 115).
um cômico absoluto, hiperbólico, A dinâmica dos artistas-
algo satânico. Um riso que o poeta ginastas ingleses conheceria seu
e dramaturgo Jean Richepin desdobramento cênico no teatro de
caracterizou como “sem alegria, Vsevolod Meyerhold, onde o ator
convulsivo, pleno de espanto”. deixa de ser o mero intérprete de
Rancière interpreta-o como a um personagem para ser instado
entrada em cena nos ao aprendizado de renovada
divertissements modernos da
corporeidade pela “aquisição de
“civilização nova dos prazeres todos os esquemas gestuais [de
superexcitados, das doenças biomecânica] que definem uma
nervosas e das visões pessimistas ação cênica (andar, correr, subir,
sobre a evolução da humanidade” descer, escorregar, dar
(RANCIÈRE, 2011a, p. 114). À cambalhotas ou sapatear, dar um
evidência, os corpos
tapa, [...] e assim por diante)”
desmantelados dos Hanlon-Lees (RANCIÈRE, 2011a, p. 117). A
pertencem a um mostruário capaz artisticidade estaria em combinar
de construir, como o pretende livremente esses esquemas a fim
Aisthesis, “a história de um regime
de construir roteiros pantomímicos

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que contrariem as expectativas e do espectador. Para além das


aproximem os incompatíveis. O normativas clássicas do corpo
teatro compreendeu que a como meio e medium de ação,
pantomima seria, pois, o trabalho como funcionalidade presa à lógica
que permite visualizar o da causa e do efeito, surgem novos
pensamento em performances modos corporais, virtualidades
plásticas no espaço. Assim, gestuais de certo modo reprimidas
Arlequim, Pierrô e Colombina pelo domínio continuado de velhas
deixavam de ser personagens da poéticas, presas nas antigas
tradição que opunham seus gestos prerrogativas do sujeito em saga. A
tipificados às intrigas dos unidade, a harmonia e o
poderosos. Eles passavam a ser os direcionamento sensorial do corpo
trabalhadores/ginastas que clássico são desafiados por forças
desposam os movimentos e as vitais profundas e amorfas que
formas de um novo mundo em fornecem energia a novas
construção, como nas cenografias disposições, ao mesmo tempo em
de Meyerhold ou de Lioubov que debilitam antigas organizações
Popova. A mise en scène de e organicidades.
Meyerhold para Le Cocu
magnifique, de 1922, poderia ser *
um exemplo apropriado dessa
renovada cena teatral. Pois que o Em 13 de maio de 1893,
cenário futurista lembrava ali os Mallarmé assiste ao espetáculo de
artifícios da trupe circense: dança de Loïe Fuller no Folies-
escadas oblíquas, passarelas Bergère. Na cena nº 6 de Aisthesis,
improváveis, platibandas que se Rancière reporta o parecer do
encaixavam, rodas e roldanas, uma poeta que denota na dançarina
sucessão de trouvailles espaciais americana a expressão de uma
que combinavam, no interior do “embriaguez feminina” em
retângulo cênico, os elementos do realização, por assim dizer,
universo industrial. Tudo a serviço “industrial”, a serviço de uma arte
de um desejo de renovar os modos que flui “incidentalmente, soberana,
de ver, de modificar as percepções da vida comunicada a superfícies

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impessoais eurítmicas”. aplica a reconfigurar o conjunto dos


“Harmonioso delírio”, elementos do espetáculo: o
complementava o poeta dispositivo da cena, as funções da
(MALLARMÉ apud RANCIÈRE, luz, a arquitetura mesma do lugar.
2011a, p. 120). Para tanto, ele recorre às
divagações do poeta. Mallarmé
Loïe Fuller tornou-se um
ícone do art nouveau ao compor sempre evocou a dança como uma
“escritura sumária”, a única capaz
uma dança que não era mais
de “traduzir o fugaz e o súbito”,
virtuosismo dos pés, nem história
elementos constitutivos do
coreografada, mas criação de
“Espetáculo futuro” (MALLARMÉ,
formas no espaço. Ela faz evoluir
1897, p. 142). Ele encontrava ali o
em torno de si um jogo de véus de
equivalente do que procurava na
crepe e brinca com os efeitos da
poesia: não mais a descrição das
iridescência produzidos pela
coisas, mas o sentir do movimento
iluminação elétrica então nascente.
pelo qual estas se fazem visíveis.
A luz é, de fato, elemento
De fato, ao suprimir do palco todo
constitutivo do espetáculo: a
elemento de cenário e todo suporte
eletricidade evoca a união entre
narrativo, Loïe Fuller propunha um
natureza e artifício, analisa
espaço não representativo,
Rancière (2011c, p. 9), meio pelo
construído tão somente pelos
qual “o espírito se realiza em
deslocamentos de seu corpo
energia material e a matéria se
volteante. Um corpo que é “ponto
eleva à condição de potência
morto no centro do redemoinho”, e
espiritual”. Uma arte inusitada,
que “engendra formas ao se
pois. “Aquela de um corpo novo,
colocar exterior a si mesmo”
aliviado de seu peso de carne,
(RANCIÈRE, 2011a, p. 123).
conduzido a um jogo de linhas e
Mallarmé entendeu bem a essência
tons, turbilhonando no espaço”
dessa coreografia: o corpo tornava-
(RANCIÈRE, 2011a, p. 120). Em
Aisthesis, Rancière percorre se fusional, a serviço de “nuances
velozes”, da “rapidez de paixões,
algumas das estratégias cênicas da
delícia, luto, cólera”. Para movê-
dançarina, dos modos como ela se

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las, “prismáticas, com violência ou mesmo como o art nouveau,


diluídas, a vertigem de uma alma ondulante e espiralado, terá sido
como suspensa no ar por um uma arte da comunicação entre as
artifício” (MALLARMÉ, 1897, p. artes, uma arte da tradução e da
179-180). transformação universais das
formas (RANCIÈRE, 2011a, p.
Esta estética nova, se faz
122).
valer os desenhos de uma forma
imitada (serpente, borboleta ou A um tempo figura e fundo, o
flor), não mais se orienta pelo “corpo novo” de Loïe Fuller imitava
imitativo: os movimentos do corpo o aparecer mais que as aparências,
dançado restringem-se a ser tão o surgir e desenvolver das formas
somente rodopios, espirais ou no jogo geral do mundo. Rancière
hélices. Loïe Fuller esposava, retoma, aqui, uma vez mais, a
assim, uma concepção diferente de interpretação de Mallarmé: tratar-
mímesis, uma “mímesis superior”, se-ia de um “corpo que usa de um
avalia Rancière (2011a, p. 121), instrumento material para produzir
substituindo à história “a um meio sensível de emoção que
construção de um jogo de em nada se lhe assemelha”
aspectos, de formas elementares (RANCIÈRE, 2011a, p. 123). O que
que toma em analogia o jogo do faz lembrar como a trajetória da
mundo”. Para tanto, o corpo recusa dança moderna inscreve-se numa
a ordem das proporções “história mais ampla da
geométricas: o serpentinado da sensibilidade e das emoções”
dançarina é mesmo uma (PERRIN, 2013, p. 52), atenta à
“destruição do orgânico” em favor condição mesma da existência de
de uma “linha em variação um gesto e de sua apreensão pelo
perpétua”, cujos acidentes se espectador. O propósito de
fundem uns nos outros. Com o que Aisthesis é precisamente o de
suscitar, para aquém das figuras, desenrolar “o tecido de experiência
“uma potência nova do artifício”, sensível”, “as condições materiais”,
uma dinâmica ou uma virtualidade “os modos de percepção”, “os
genésica, capaz de atravessar os regimes de emoção”, “os
gêneros e as espécies – do modo esquemas de pensamento” que

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dirigem o aparecimento e o (RANCIÈRE, 2011a, p. 125). Essa


reconhecimento de um ato artístico procura pela presença material do
(RANCIÈRE, 2011a, p. 10). Razão espaço pressupõe o esvaziamento
porque o véu da dançarina aponta cênico de tudo quanto fazia,
para uma “embriaguez de arte” outrora, o cenário das intrigas
capaz de engendrar formas e dramatizadas. Mallarmé fala de
emoções em nuanças infinitas. O “eclosão contemporânea,
“corpo não encontrável” da milagrosa” de uma “cena livre”,
dançarina a que se refere Mallarmé aberta ao atmosférico das paixões
existe apenas como “organizador (MALLARMÉ, 1897, p. 181).
do jogo das metamorfoses” Ainda que involuntariamente,
(RANCIÈRE, 2011a, p. 124). Sua Loïe Fuller prenuncia o espaço
embriaguez não implica abstrato que o teatro de Adolphe
preferencialmente nenhuma fúria Appia, dentre outros, materializaria
feminina ou ritual dionisíaco: trata- em breve para uma dramaturgia
se de um corpo que produz, ele desimpedida das personificações e
mesmo, o espaço de sua aparição, intrigas da tradição teatral.
por mais intermitente que seja. A Privilegiar o aparecer mais que a
dançarina do Folies-Bergère “é aparência implica em operação de
uma aparição autossuficiente, ela supressão da distância entre a
produz por suas evoluções a cena vontade e sua realização, entre o
de suas evoluções”. Da artista e a obra, entre a obra e o
obscuridade, o corpo dançado espaço onde se produz. Razão
surge mesmo como uma descarga porque a dançarina dos véus
elétrica, arrisca-se a interpretar incorpora renovada performance,
Rancière; o véu que ele faz evoluir na qual o corpo em movimento não
em suas dobras e redobras “é a mais necessita de um texto a partir
superfície de sua própria aparição
do qual exercite sua arte de
que nega a eterna monotonia do convencimento cênico. Ela marca
„espaço a si semelhante‟, rejeita-a mesmo precisa operação de
em favor do „nada‟ da „atmosfera‟ autonomia, de supressão da
assim criada, no vazio” intencionalidade do artista. O corpo

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de Loïe Fuller permanece “imóvel”, itinerários possíveis no que


já o notara Mallarmé, no centro dos Rancière chama de a história do
redemoinhos engendrados por regime estético da arte, dos
seus véus. Nesse particular, ela momentos em que a lógica da Arte
rompe com a lógica clássica do (no singular, como modo específico
corpo articulado em torno da de ser e habitar no sensível) se
sucessão dos acontecimentos, em constrói na ruína de critérios de
torno de uma linha narrativa com distinção, inclui territórios inéditos e
começo, meio e fim. “O corpo se forja, para tanto, novas disposições
abstrai de si mesmo, ele dissimula da sensibilidade (RANCIÈRE,
sua própria forma no 2011a, p. 12). Essa lógica refere
desdobramento dos véus, uma crítica da representação em
desenhando o voo mais que o formas artísticas como a mise en
pássaro, o turbilhonamento mais scène, a dança, a pantomima ou
que a onda, a desabrochar mais mesmo as artes decorativas, todas
que a flor” (RANCIÈRE, 2011a, p. tomadas como momentos de uma
127). O que é imitado de cada grande metamorfose, de um
coisa, complementa Rancière, é o processo de devir-vida da arte, que
acontecimento de sua própria se de um lado se autonomiza, de
aparição. outro se identifica com o ordinário
das práticas da vida coletiva. Os
* artistas circenses e a dançarina do
music-hall são, cada qual à sua
Ser moderno, à vista dos maneira, modos de aceder a uma
exemplos evocados em Aisthesis, arte por assim dizer “aplicada”,
terá consistido em se demover de uma arte que “habita e exprime” a
algumas correspondências vida preparada pela ideia de arte
regradas entre a expressão e as pura e suas reivindicações
emoções e juízos que esta era espirituais (RANCIÈRE, 2011a, p.
constrita a ilustrar ou suscitar em 181-183). O que remete, ainda, ao
um regime representativo das artes duplo registro do regime estético da
(RANCIÈRE, 2011c, p. 1). Aisthesis arte: das metamorfoses e
se compromete, pois, a traçar reconfigurações das partilhas do

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sensível, mas também da liberam movimentos que não levam


fragmentação, mistura e confusão a lugar algum, movendo-se na
das artes, da abolição das plena imanência, sem sobrevoo
hierarquias artísticas, portanto da simbólico ou texto a ilustrar, sem a
ruptura com as normativas do sombra de uma ideia a defender,
regime representativo. mas colocando em plena luz,
especialmente graças ao reforço da
Corpos fragmentados, em
mecânica e da eletricidade, um
perda de organicidade, exprimem
caos de formas em perpétua
literalmente uma decapitação da
mutação. A esse respeito pode-se
comunicação por muito tempo
falar, como o faz Rancière (2011a,
centrada nos valores da cabeça.
Vários capítulos em Aisthesis, p. 133), de um espaço de
indistinção, com a consequente
inspirados pelas performances
negação das supostas
teatrais e pelos espetáculos de
divertissement, colocam esse ponto especificidades das matérias e dos
procedimentos expressivos. O meio
em destaque. Antiteatral, a
sensível que então se articula
pantomima não representa uma
apresenta-se como aquele de um
ação disponível na forma de
desdobramento de potências e
linguagem ou texto: ela prescinde
formas – “gestos de mundo,
da trama, da narrativa ou das
esquemas de mundo” – anteriores
sequências da razão; não substitui
a toda normativa ligada a alguma
a palavra, mas a desautoriza, ou a
particular disciplina artística.
ridiculariza – como numa
gargalhada ou num insensato Não por acaso, o art
impulso do corpo. Acéfalo, o nouveau nutre o ideal de uma
palhaço não pretende dizer ou natureza materializada em formas
significar algo, donde o caráter simplificadas, como potências
“satânico”, observado por produtivas que se confundem com
Baudelaire, do riso causado por sua processualidade. Cruzam-se,
sua anarquia primária. Os ginastas assim, na mesma idealidade de
Hanlon-Lees, ou mesmo os véus movimento, o traçado gráfico de
em convulsão de Loïe Fuller, um poema, as rítmicas de um

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Osvaldo Fontes Filho

diálogo ou de uma superfície, os em um sentido, pois que


volteios de uma estatueta, os consiste em montagem de
formas corporais sustentada
floreados de um móvel; enfim, toda por tudo quanto a técnica
iridescência de formas e corpos pode inventar; mas também
que, para além da mera função inteiramente espiritual, porque
analógica, adquirem potencial de ela não quer reter dos corpos
mais que sua potência de
reverberação, ainda que efêmero, criação de um meio sensível,
em suas manifestações artísticas. e porque ela existe apenas no
A perspectiva é demonstrativa da tempo de uma manifestação
denegação de todo esquema voltada a seu próprio
desaparecimento.
explicativo da arte moderna que (RANCIÈRE, 2011a, p. 136)
reúna, em uma mesma fórmula,
autonomia e especificidade. Não é, pois, casual que
Importa, aqui, reter in extenso a Rancière perceba, nessa forma
leitura rancieriana: espiritual da matéria, que equivale
a uma forma material da
A arte autônoma que então é espiritualidade, os sinais
sonhada, entre a página de
escrita, a partição sinfônica, o
inequívocos de uma embriaguez
teatro de sombras, a formal que em breve repercutiria
pantomima ou a dança em sua plena realização industrial.
luminosa, mas também entre Razão porque ele identifica nos
a mistura óptica das cores, a
vibração da pincelada ou o
engenheiros-artistas da Bauhaus
espaço enclausurado do ou nos construtivistas russos os
quadro, aquela que em breve agentes de uma vocação moderna
será sonhada entre a mise en da arte, “aquela de uma perda de
scène, a fotografia ou o
cinema, não é aquela cuja hierarquia e de especificidade que
posteridade fixará a doutrina – reservava aos artistas a tarefa de
a obra resistente, bem construção das formas e do
instalada na exibição de sua mobiliário da nova vida”
materialidade. É outra coisa: a 3
arte que nega toda (RANCIÈRE, 2015 ). A
especificidade de matéria e se
identifica com o 3
Conf : <https://blogs.mediapart.fr/bertrand-
desdobramento de um ato dommergue/blog/310815/entretien-avec-
puro, inteiramente material jacques-ranciere-ou-en-est-lart>. Acesso em:
03 nov. 2018.

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Jacques Rancière e a modernidade do movimento

modernidade traça, assim, maneiras de perceber e de ser


percurso que difere do que dela afetado” (RANCIÈRE, 2011a, p. 9),
trata certa vulgata em torno da parece deslocar as linhas de
noção de “modernismo”. interpretação usuais? Relembre-se,
aqui, as reticências do próprio
Caberia aqui alguma
Rancière ao conceito de
ressalva. Ainda que se possa
“modernidade”. Basicamente, o
alinhar com a cisão interna de um
regime estético das artes não teria
discurso que não mais se pretende
começado com decisões de ruptura
contínuo (“É outra coisa”), não
artística; as revoluções estéticas
estaria Rancière, nas escolhas que
faz em Aisthesis, nas cenas que das vanguardas não se
caracterizariam por reinventar sem
convoca, dando involuntariamente
interrupção o novo. Na verdade, o
razão a Hal Foster (2013) em sua
regime estético seria movido por
reticência quanto aos “filósofos da
“decisões de reinterpretação
estética” que, segundo ele,
daquilo que a arte faz ou daquilo
tenderiam a se fixar em um
que a faz ser arte” (RANCIÈRE,
momento ou em um modelo de
2009, p. 36). Estético é, antes de
prática artística a fim de
tudo, um regime de encenação
“ontologizá-los como arte”, e então
incessante do passado, e um modo
usar esse dado reificado para seus
de constituir como o princípio
próprios esquemas conceituais? A
mesmo da artisticidade uma
reticência, que visa diretamente a
relação de expressão de um tempo
noção de “regime estético” em
e de um estado de civilização que,
Rancière, poderia mesmo se
antes, era a parte assumida “não
estender ao título proposto para o
artística”. Assim, quando futuristas
presente texto. Haveria, de fato,
ou construtivistas proclamam o fim
porque falar de uma “modernidade
da arte e a identificação de suas
do movimento”? Mas, o que de fato
práticas com aqueles que
entender por “modernidade”, pois
que Aisthesis, um texto implicado constroem, pontuam ou mobíliam
os espaços e tempos da vida
na “mutação das formas de
comum, eles propõem a arte como
experiência sensível e das

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Osvaldo Fontes Filho

uma identificação com “modos de modernista. Seríamos modernos


discurso, formas de vida, ideias do por força de outros esquemas que
pensamento e figuras da as fórmulas rebarbativas que
comunidade”, bem como com “as multiplicam as mesmas referências
formas pelas quais a vida se forma a Dada, Duchamp ou Malevitch.
a si mesma” (RANCIÈRE, 2009, p. Nem a “Fonte”, nem o “Quadrado
14 e 34, respectivamente). Do Negro sobre Fundo Branco”,
mesmo modo, Rancière identifica lugares incontornáveis das
nos espetáculos do Folies-Bergère vanguardas históricas, aparecem
compromissos com os espaços e merecedores de atenção por parte
tempos que então começavam a de uma autodenominada “contra-
ritmar e ocupar a vida em comum. história da modernidade”. Se a
“Modernidade” seria, pois, um noção de “modernidade” é
termo equivocado se entendesse contrafeita em sua historicidade
conotar tão somente gestos de canônica, tal se deve ao fato de
ruptura, separando-os do contexto Rancière a pensar fora das
geral, interno e externo às artes, explicações em torno do
que os autoriza. A “autonomia” de modernismo e seus postulados de
que trata o modernismo não se desenvolvimento formal e de
reduz a uma recusa do figurativo. destino histórico – o “próprio da
Aisthesis mostra como as formas arte” e uma “teleologia simples da
do espetáculo popular, dos Hanlon- evolução e da ruptura históricas”.
Lees a Charlie Chaplin, passando As teses do modernismo deveriam,
pela dança “elétrica” de Loïe Fuller, ao contrário, ser entendidas a partir
ajudaram a construir a da promoção em esfera artística de
modernidade bem mais que uma equivalência sensível – das
qualquer realização que porventura “passagens e misturas que
corrobore a ideia de um “destino arruinavam a ortodoxia da
global antimimético da separação das artes” (RANCIÈRE,
„modernidade‟ artística” 2009, p. 41) – em oposição às
(RANCIÈRE, 2009, p. 35). Estas hierarquias de gênero, princípios
manifestações nos falam mais, de verossimilhança e critérios de
hoje, que qualquer manifesto

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Jacques Rancière e a modernidade do movimento

distinção do sistema da decapitado para falar de


representação. neutralização da expressividade,
de equivocidade da forma e de
Ressalvas à parte, fato é
que Aisthesis considera a suspensão da narração.
Winckelmann propõe como modelo
revolução estética como uma
um corpo que renuncia à proporção
“interminável ruptura com o modelo
orgânica e à expressão do rosto,
hierárquico do corpo, da história e
um corpo em transição da ação
da ação” (RANCIÈRE, 2011a, p.
voluntária aos movimentos
15). Interminável, pois que
autônomos da vida (RANCIÈRE,
ressurgências hierárquicas
2011c, p. 8). Enfim, um corpo
permanecem sempre possíveis,
indiferente, impassível,
assim como as rupturas podem
inexpressivo ou imóvel (muito
advir como desvios, contrapontos
diferente do corpo do guerreiro
por vezes paradoxais. Não por
ativo, ideal de perfeição da vida
acaso essa é uma história
coletiva antiga), que se torna o
construída a partir de uma cena
receptáculo paradoxal de
inicial, na qual Winckelmann, autor
movimentos e forças que quebram
a partir do qual “a Arte começa a se
as ilusões da intencionalidade de
dizer como tal” (RANCIÈRE,
exceção.
2011a, p. 13), propõe uma leitura
inesperada de um torso Na recusa do motus
fragmentado da Antiguidade. Neste contínuo da “lógica da autoridade”,
se deslegitimariam os dois grandes o comentário rancieriano se
critérios em uso na ordem oferece, por fragmentos, como um
representativa: “primeiramente, a desvio da função crítica da
harmonia das proporções, ou seja, explicação. A descrição em
a congruência entre as partes e o Winckelmann fornece, de imediato,
todo; em seguida, a o mote; ela que celebra, junto ao
expressividade” (RANCIÈRE, torso de Hércules, a virtude de um
2011a, p. 22). Há, pois, essa “escoamento incessante de uma
primeira trama em Aisthesis que forma em outra” (RANCIÈRE,
convoca um corpo desmembrado e 2011a, p. 19). Esse movimento –

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Osvaldo Fontes Filho

que não permite ignorar que toda pela “linha reta do ponto de partida
realidade ideal encontra sua ao ponto de chegada” (RANCIÈRE,
verdade em imperativos materiais 2011a, p. 199).
bastante prosaicos – se constitui
em clara oposição às antigas *
idealidades da história e da ação
(RANCIÈRE, 2011c, p. 4). Na Uma Arte atenta à potência
observância de tal mutação de própria das coisas ou das frases,
categorias, Rancière vê surgir, aqui aos movimentos desregrados da
e acolá, uma plástica elaborada a Vida, encontra no cinema um meio
contrário do princípio clássico “que de reapropriação dos tantos
obrigava o corpo a exprimir um experimentos cênicos
sentimento determinado ou um (materialidades, usos do espaço/
momento determinado de uma tempo e do corpo cenografado)
ação significativa” (RANCIÈRE, maturados nos pequenos teatros
2011a, p. 190). Corpos inacabados do entretenimento popular. Junto
ou dispersos em uma proliferação com a fotografia, o cinema é a arte
monstruosa de suas partes (como de um novo mundo sensível regido
nas estátuas de Balzac e Victor pela luz e pelo movimento: um
Hugo, ou nas Portas do Inferno, de mundo afeito às intensidades e
Rodin) exprimem a dinâmica que velocidades, “onde a matéria se
uma estética niilista sugere, qual espiritualiza em energia luminosa e
seja, os movimentos anárquicos de motriz e onde o pensamento e o
uma Vida que é “potência infinita sonho têm a mesma consistência
de invenção de formas totalmente que a matéria instrumentalizada”
imanentes aos movimentos e (RANCIÈRE, 2016, p. 34).
encontros dos corpos” Rancière ressalta, ainda, que o
(RANCIÈRE, 2011a, p. 194-195 e cinema nasce em tempos de
198). Na vida moderna, essa grande suspeita quanto às
potência investe a multiplicidade histórias, quando uma arte nova
dos gestos, muitos despercebidos não mais descrevia o espetáculo
ou à procura de seu próprio das coisas, não mais apresentava
sentido, pois que não governados os estados de alma de

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Jacques Rancière e a modernidade do movimento

personagens, mas “inscrevia O potencial do cinema então


diretamente o produto do nascente residia na aliança que
pensamento no movimento das possibilitava entre o mecânico e o
formas” (RANCIÈRE, 2011b, p. 16). humano, em sua capacidade de
Nesse sentido, o cinema parece ter modificar as velocidades, de
desempenhado um papel fragmentar as ações, de desviar as
expressivo nas reconsiderações trajetórias, portanto, de incorporar
em torno da modernidade em arte. aquela “potência espacial de
Em As distâncias do cinema, ilusão” de que falava Mallarmé. Ele
Rancière assinala: “a história da assim substituía a ciência das
pureza modernista vencida pelo intrigas, a representação das
qualquer coisa pós-moderno personagens e a encarnação dos
esquece que a diluição das sentimentos pela imediatez das
fronteiras ocorreu de maneira mais figuras mudas, “que fazem efeito
complexa em outros lugares como ao se fundirem no desenho de um
o cinema” (RANCIÈRE, 2011b, p. contorno ou ao se singularizarem
9). A investigação dessa diluição se por alguns gestos e atitudes
sistematiza em Aisthesis, com foco rudimentares” (RANCIÈRE, 2011a,
na circulação entre as artes, mas p. 234). De certo modo, o cinema
igualmente entre a arte e a vida. punha em cena, espetacularmente,
Afinal, o movimento próprio ao uma nova redistribuição da relação
regime estético, aquele que entre o “qualquer um” e o todo; em
sustentou os sonhos de novidade outros termos, ele contribuía para a
artística e de fusão entre a arte e a reconfiguração de um pensamento
vida sob a bandeira da do comum, no qual tanto insiste o
modernidade, “tende a apagar as pensamento de Rancière.
especificidades das artes e diluir as Consequentemente, a Arte tendia
fronteiras que as separam entre si ali a se demonstrar cabalmente,
como as separam da experiência como o efeito de uma perturbação
cotidiana” (RANCIÈRE, 2011a, p. das relações entre noções
13). comumente antitéticas: movimento
e ação, pensamento e ação,

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trabalho e diversão, arte e interessado nas “mudanças de


mecanicidade, exemplar e comum, olhar”; suas cenas são mesmo
organismo e vida, performance assumidas como “máquinas
popular e coreografia formal, dentre ópticas”, instadas a (de)monstrar
outras. mudanças na sensibilidade do
espaço e do tempo. A cena
Nesse particular, a obra de
rancieriana não é mera ilustração
Charles Chaplin representa
de uma ideia. Ela é, antes, uma
expressiva reapropriação de modos
“máquina ótica que nos mostra o
cênicos. Carlitos é um personagem
pensamento ocupado em tecer
que não interpreta: ele reage.
laços que unem percepções,
Trata-se de um ser movido por
afetos, nomes e ideias, em
estímulos, situação que perverte a
constituir a comunidade sensível
lógica do sujeito, aquela que
que esses laços tecem e a
sempre sustentou a arte do ator,
comunidade intelectual que torna
com seus predicados ordinários
esse tecido pensável” (RANCIÈRE,
(autonomia, reflexão,
2011a, p. 12). O que importa é
responsabilidade, etc.).
saber, a cada feita, como algo se
Protagonista às voltas com
torna pensável, e não o que é
mecanismos da vida cotidiana que
preciso pensar por força desta ou
frustram sua vontade, suas
daquela explicação. Enfim, o que
iniciativas ilustram uma
importa é saber “como uma
funcionalidade paradoxal que não
dançarina que agita véus ou um
cessa de flertar com seu contrário.
mímico acrobata se tornam
Razão porque a figura de Carlitos
paradigmas da grande arte, como é
se inscreve, sem dificuldades,
possível que Chaplin, uma espécie
numa reflexão sobre a ação e o
de palhaço, se torne o paradigma
movimento que passa pela inércia
da arte moderna” (RANCIÈRE,
paradoxal de Julien Sorel, pelo
2011c, p. 5). Por tudo quanto se
drama sem ação de Maeterlinck, ou
mostrou acima, a passagem soa
pelos heróis pouco heroicos de
um tanto paradoxal. Seja como for,
Ibsen.
tem-se a impressão que Rancière
Importa lembrar aqui como, procura em Carlitos uma
em Aisthesis, Rancière se mostra
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Jacques Rancière e a modernidade do movimento

ressonância do impessoal no códigos expressivos; uma mímica


individual que tanta presença que deslegitima toda verborragia
fornece aos objetos e gestos edificante (RANCIÈRE, 2011a, p.
banais captados pela fotografia; ou, 237). Uma mecânica corporal
então, aquela expressão da Vida garante, assim, seu êxito cênico
no banal que tanto aprecia no pela total imprevisibilidade de seus
drama sem ação (da vida ordinária) efeitos. Eis o que transforma os
de Maurice Maeterlinck; ou, ainda, movimentos exatos do mímico
aquele “corpo dançante” que não popular em puras formas plásticas
mais adapta sua mímica ao caráter inscritas na tela. De algum modo, o
do personagem que encarna, mas corpo desimpedido das
que traduz diretamente a vida deliberações do pensamento e dos
infusa na condição que vivencia, sentimentos inequívocos pode se
como prescrevia a mise en scène dar a um “puro traçado gráfico
de Adolphe Appia para os dramas repudiando toda gravidade
de Ibsen (RANCIÈRE, 2011a, p. corporal” (RANCIÈRE, 2011a, p.
153). 235).
Fato é que o gestual do Os volteios e equilíbrios
vagabundo recusa todo instáveis do “palhaço biomecânico”
sentimentalismo de fácil recepção se fazem com os elementos
em favor de uma mutação quase mesmos do trabalho ou da
que instantânea dos estados de banalidade cotidiana. A precisão
espírito: os ombros caídos do mecânica do movimento, ainda que
derrotado pela vida podem no registro do vulgar paródico, trai
prontamente se reerguer para a intenção de emular o ritmo da
desferir algum golpe que lhe mude máquina. Não que se vise à mera
a sorte; os olhos acabrunhados crítica da mecanização dos modos
podem revirar em olhar predador à e meios. A síntese da pura forma
vista de alguma oportunidade de visual e da gestualidade
furto ou recompensa fácil. Todo um carnavalesca, que está igualmente
gestual que se presta ao equívoco no teatro de Meyerhold, esclarece,
e que, portanto, se opõe aos antes, um modo renovado de

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entender a arte do ator. Doravante, imediata eficácia da reação quanto


afeito à economia dos modos de na vacuidade de uma mecânica
expressão, à precisão dos que retoma sempre sua posição
movimentos, o ator se identifica inicial. Rancière vê nisso algo já
com “o engenheiro de sua própria presente em Winckelmann e em
mecânica” (RANCIÈRE, 2011a, p. Hegel: a modernidade que se figura
239). Tal obsessão pela mecânica numa paradoxal indistinção entre
do corpo expressivo faz do excesso e falta, movimento e
pequeno vagabundo paradigma, no repouso. Ele ousa mesmo redefini-
cinema de massas nascente, de la a partir de momentos de
uma antidramaturgia própria a indeterminação que dinamizariam a
figurar particular (e paradoxal) história da arte: moderna teria sido
eficácia da ação moderna na era uma época na qual os artistas se
das máquinas. O homenzinho de empenharam em “desencadear as
bengala e chapéu coco não é tanto potências sensíveis ocultas na
um sentimental quanto “um inexpressividade, na indiferença ou
biomecânico mascarado sob os na imobilidade”, bem como em
trajes de um bastardo de comédia”. “compor os movimentos
Sua gestualidade, de um virtuose contrariados dos corpos dançantes,
da falta de jeito e do malogro, faz da frase, do plano ou da pincelada
dele um habitante exemplar de um colorida que detêm a história ao
novo universo sensível, aquele das contá-la, suspendem o sentido ao
máquinas que realizam e negam ao transmiti-lo ou sustam a figura
mesmo tempo a vontade e seus mesma que designam”
fins, e que impõem “a repetição (RANCIÈRE, 2011a, p. 28). O
teimosa de um movimento cuja regime estético da arte revela que
perfeição própria é a de não querer a modernidade da vontade está
nada por si mesmo” (RANCIÈRE, ligada a seu esgotamento em face
2011a, p. 241). da “marcha teimosa de uma vida
que nada quer”. Razão para ir ter
Portanto, o cinema coloca
em pauta a figura sui generis de com movimentos liberados pela
dissociação entre forma, função e
uma inércia em perpétuo
expressão, submetidos doravante
movimento, apreendida tanto na

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Jacques Rancière e a modernidade do movimento

ao crivo das luzes do maquínica e as ilusões do desvario,


cinematógrafo. a astúcia infalível e o fracasso
certo, a teimosia obstinada e o
Carlitos personifica-os
abandono ao acaso. Por obra do
exemplarmente: antipersonagem
cinema, a arte se vê “própria a
dotado de uma inércia
exprimir o niilismo secreto que
constantemente contrariada, ele é
acompanha a grande fé maquínica”
o sujeito “sobre o qual os
(RANCIÈRE, 2011a, p. 206). Com
acontecimentos recaem
que revisar os modos correntes de
ininterruptamente, para fora de
entendimento da modernidade.
toda lógica causal tradicional”
Como sublinha o comentador: “agir
(RANCIÈRE, 2011c, p. 3). Com ele,
sem plano, agir sem nada querer,
conclui Rancière (2011a, p. 242), o
abster-se de agir, expressar para
cinema “metaforiza uma maneira
não significar ou nada pretender:
singular de habitar o mundo novo
essas figuras paradoxais de ser
das grandes empresas da vontade
(um corpo) no mundo constituem
e das performances da máquina”.
para Rancière a camada mais
Em “Tempos Modernos”, o artista
profunda da experiência moderna”
dança o balé do homem moderno,
(DERANTY, 2013). Este é o ponto
no ritmo compassado de uma
nulo em que o sentido e o sem
mecânica repetitiva. Mas, o que de
sentido se fundem, indistinguíveis;
fato demonstra o mímico
este é o nó central na trama
cinematográfico, para além da
mesma do regime estético a que
evidente identificação da mecânica
tantos filósofos e escritores
da montagem e da “vontade
modernos têm sido sensíveis.
planificadora do novo mundo
maquínico” (RANCIÈRE, 2011a, p.
Recebido em 16/01/2019
243), é o que já estava implícito
Aceito em 08/03/2019
nas peripécias circenses dos
Hanlon-Lees e nos volteios
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torna inseparáveis a precisão de siècle, caprice moderne. In:

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